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A Etnomodelagem nas Cantorias de Repente do Cariri Cearense

The Ethnomodeling in the Songs of Repente of the Cariri Cearense

Resumo

A Educação é um processo de transmissão da cultura. Haja vista a necessidade de recorte do que será priorizado no rol de conhecimentos e práticas difundidas no âmbito escolar, em algumas situações, essa seletividade acaba excluindo e marginalizando partes importantes da cultura de grupos socioculturais. Nesse contexto, a Etnomodelagem se coloca enquanto uma das tendências que estuda essas relações entre Matemática acadêmica e conhecimentos etnomatemáticos, podendo ser um possível caminho para o contexto escolar. Partindo da necessidade de resgate e valorização da diversidade cultural no contexto da sala de aula, a presente pesquisa tem como objetivo identificar conhecimentos (etno)matemáticos associados à cultura de cantadores repentistas do Cariri cearense, à luz da Etnomodelagem. A pesquisa foi realizada no município de Abaiara-CE e teve como sujeitos dois cantadores repentistas residentes no município. Sendo do tipo etnográfica e descritiva, essa pesquisa utilizou como instrumento de coleta de dados a entrevista semiestruturada e, para analisá-los, a Análise de Conteúdo. Sob o aporte da Etnomodelagem, os etnomodelos identificados estão relacionados ao conteúdo matemático de sequências, que está presente nas diferentes modalidades da cantoria de repente como na sextilha e nos motes em sete e dez. Portanto, podemos perceber que há uma alternativa acerca dos conhecimentos desvendados dessa prática cultural do repente como uma forma de inserção para o contexto educativo, o que seria uma possibilidade para abrir espaços para a diversidade cultural.

Cantoria de Repente; Etnomodelagem; Matemática; Cultura; Educação

Abstract

Education is a process of transmitting culture. Considering the need to define what will be prioritized in the list of knowledge and practices disseminated in the school environment, in some situations, this selectivity ends up excluding and marginalizing important parts of the culture of sociocultural groups. In this context, Ethnomodeling stands as one of the trends that studies these relationships between academic mathematics and ethnomathematics knowledge and might be a possible path for the school context. Based on the need to rescue and value cultural diversity in the context of the classroom, this research aims to identify (ethno)mathematical knowledge associated with the culture of repentista singers from Ceará, in the light of Ethnomodeling. The research was carried out in the municipality of Abaiara-CE and had as subjects two singers who live in the municipality. As an ethnographic and descriptive study, this research used the semi-structured interview as a data collection instrument and the content analysis model to analyze them. Under the contribution of Ethnomodeling, the identified ethnomodels are related to the mathematical content of sequences, which is present in the different modalities of singing suddenly as in the sextilla and in the motes in seven and ten. Therefore, we can see that there is an alternative to the knowledge unveiled from this cultural practice of repente as a way of insertion into the educational context, which would be a possibility to open spaces for cultural diversity.

Suddenly singing; Ethnomodeling; Mathematics; Culture; Education

1 Introdução

A Educação é um processo de transmissão da cultura. Enquanto espaço de interação sociocultural, o contexto escolar possibilita que os discentes tenham contato com conhecimentos e práticas constituídas ao longo da história.

Haja vista a necessidade de recorte do que será priorizado no rol de conhecimentos e práticas difundidas no âmbito escolar, em algumas situações, essa seletividade acaba excluindo e marginalizando partes importantes da cultura de grupos socioculturais específicos.

Como apontam Moreira e Candau (2003)MOREIRA, A. F.B. E CANDAU, V. M. Educação escolar e culturas(s): construindo caminhos. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, [s.v.], n. 23, p. 156-168, 2003. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/99YrW4ny4PzcYnSpVPvQMYk/?format=pdf. Acesso em: 13 de nov. 2022.
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, a escola sempre teve dificuldade de inserir a pluralidade da diversidade cultural no contexto educativo, de maneira que tende a silenciar e neutralizar os conhecimentos socioculturais, não levando em consideração a diversidade e a valorização cultural. Ainda, as escolas se tornam mais confortáveis com a padronização das culturas, tomando como base uma referência cultural dominante. No entanto, abrir espaços para a diversidade, a diferença de culturas, constitui um grande desafio que é necessário enfrentar.

Nesse contexto, é importante salientar que relações entre a Matemática e a cultura é um princípio utilizado pela Etnomodelagem enquanto uma das tendências que estuda essas relações entre Matemática acadêmica e conhecimentos etnomatemáticos de grupos socioculturais específicos, podendo ser um possível caminho para abordagem no contexto escolar.

Partindo da necessidade de resgate e de valorização da diversidade cultural no contexto da sala de aula, a presente pesquisa tem como objetivo identificar conhecimentos (etno)matemáticos associados à cultura de cantadores repentistas do Cariri cearense, à luz da Etnomodelagem.

2 Fundamentação teórica

A presente seção foi dividida em duas partes. Inicialmente, será apresentada a cantoria de repente, seu contexto histórico, principais características, regras e tipos. Posteriormente, será abordada a Etnomodelagem enquanto campo do conhecimento.

2.1 Os cantadores repentistas do Cariri cearense

A cantoria repentista é uma manifestação artística brasileira que consiste na composição musical de estrofes, a partir de versos improvisados. Seus artistas são denominados por diferentes nomenclaturas, tais como: poetas, cantadores, repentista ou cantadores repentistas.

O repente ou cantoria é uma arte poético-musical que tem como característica a improvisação nas estrofes (compostas no momento da apresentação) a partir de um tema pré-definido pelo repentista ou pelo público, de modo que o verso de um repentista interage com o(s) do(s) outros artistas e/ou com os espectadores.

Assim, uma das principais características do repente é o improviso, que possibilita uma “[...] capacidade de sustentar o diálogo poético em apresentações que podem durar horas, respondendo às estrofes do parceiro e a pedidos dos ouvintes, é no aspecto mais intrigante e encantador dessa arte [...]” (Sautchuk, 2010SAUTCHUK, J. M. M. A poética cantada: investigação das habilidades do repentista nordestino. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n.35, p. 167-182, 2010. Disponível em: https://www.scielo.br/j/elbc/a/6vCZccB5GC9dJCwNzD7vCXM/?lang=pt&format=pdf. Acesso em: 20 de set. 2022.
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, p. 167). Dessa maneira, vemos que o canto improvisado entre repentistas é um elemento de fundamental importância para arte da cantoria.

A cantoria repentista tem uma forte influência de raízes africanas. De acordo com Silva (2021, p. 90):

[...] as manifestações tradicionais de natureza oral demonstram fortes semelhanças em seus aspectos formais e temáticos, inclusive relacionando tais semelhanças à cultura trovadoresca, isso alegando a sobrevivência da mesma através da oralidade popular. Essa relação pode ser evidenciada a partir das relações de proximidade entre comunidades no tempo e no espaço, o que faz com que o Candomblé, a Congada e o Repente, entre outros, possuam semelhanças em relação à métrica e a rima em suas performances orais. Curiosamente, todos esses exemplos são de grupos predominantemente negros [...]

Diante disso, vemos que o contexto histórico acerca da formação repentista no Brasil, se assemelha à cultura trovadoresca e à cultura africana nos aspectos orais e temáticos, a partir do improviso poético no repente, no que diz a respeito às estrofes com rimas e métricas improvisadas ao som de instrumentos, apresentando assim, uma influência da cultura africana.

Os versos compostos pelos repentistas são improvisados e acompanhados pelo som de violas com toadas tradicionais da cantoria. As apresentações acontecem entre dois cantores repentistas a partir da arte do improviso (chamadas cantorias pé de parede), nas quais os repentistas debatem e atendem a variadas temáticas e modalidades de acordo com os pedidos do público.

Durante a cantoria, ao fazer pedidos, a plateia coloca o dinheiro sobre uma bandeja que está em frente à dupla como forma de pagamento, de maneira que os cantadores atendem também a pedidos de poemas, canções e outras modalidades da cantoria repentista.

Os cantadores se apresentam em festivais de viola, onde ocorrem competições entre várias duplas. Diferentemente da cantoria, no festival, a plateia não faz pedidos aos repentistas, pois são cantadas modalidades definidas e assuntos (quase sempre relacionados ao cotidiano dos espectadores) propostos pelos organizadores, momentos antes da apresentação.

Embora tenha como característica central a composição de versos musicais improvisados, a cantoria de repente possui algumas normas. Passamos a descrever as principais.

A composição dos versos é distribuída em estrofes, podendo haver versos que apresentam rimas como também versos que não apresentam rimas (versos brancos). Além disso, os versos seguem algumas regras poéticas como rima, métrica e oração, as quais os cantadores repentistas se baseiam para compor seus versos de improviso. É importante destacar que a rima, segundo Sautchuk (2010)SAUTCHUK, J. M. M. A poética cantada: investigação das habilidades do repentista nordestino. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n.35, p. 167-182, 2010. Disponível em: https://www.scielo.br/j/elbc/a/6vCZccB5GC9dJCwNzD7vCXM/?lang=pt&format=pdf. Acesso em: 20 de set. 2022.
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, proporciona a repetição de sons de palavras que sejam correspondentes aos sons vocais ou consonantais da sílaba tônica. Ou seja, o improviso é desafiado a ter uma harmonia sonora entre os versos.

Ainda, em concordância com Sautchuk (2010)SAUTCHUK, J. M. M. A poética cantada: investigação das habilidades do repentista nordestino. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n.35, p. 167-182, 2010. Disponível em: https://www.scielo.br/j/elbc/a/6vCZccB5GC9dJCwNzD7vCXM/?lang=pt&format=pdf. Acesso em: 20 de set. 2022.
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, a oração no repente representa a coerência temática, ou seja, é necessário seguir uma ordem de começo, meio e fim em cada estrofe no decorrer do assunto cantado na modalidade.

A métrica, de acordo Sautchuk (2010)SAUTCHUK, J. M. M. A poética cantada: investigação das habilidades do repentista nordestino. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n.35, p. 167-182, 2010. Disponível em: https://www.scielo.br/j/elbc/a/6vCZccB5GC9dJCwNzD7vCXM/?lang=pt&format=pdf. Acesso em: 20 de set. 2022.
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, retrata a contagem dos versos em cada estrofe e das sílabas por verso nas diversas modalidades da cantoria. Contudo, alguns cantadores repentistas não seguem perfeitamente a regra estabelecida pela métrica, visto que, o cantador repentista, ao compor as estrofes de um repente de improviso, precisa fazê-lo de maneira rápida, o que impossibilita uma contagem exata da quantidade de sílabas e versos nas estrofes.

Nas modalidades da cantoria, são tratados diversos estilos da arte do repente. Em concordância com Ernesto Filho (2013) as modalidades utilizadas no repente são: sextilha, sete linhas, oitava, mote, décima, martelo, galope, mourão, quadrão, o que é que me falta fazer mais, Brasil caboclo, gemedeira, dez pés de queixo caído, coqueiro da Bahia, treze por doze, voa sabiá, segura o remo, meu cadeado é um nó, sai muito bem respondido, povo bom muito obrigado, entre outras.

Dentre as modalidades, a sextilha e o mote são os mais utilizadas na cantoria de repente. As sextilhas são utilizadas pelos cantadores no início de uma apresentação e, segundo Ernesto Filho (2013), é constituída por seis versos, com sete silabas poéticas. Mais precisamente, o verso tem sete separações silábicas, seguindo o ritmo do cantador, e a sua terminação acontece até a última sílaba tônica do verso.

A distribuição das rimas acontece a partir da sequência ABCBDB, de forma que a letra B representa a rima do segundo verso com o quarto e o sexto, enquanto as letras ACD que são o primeiro, o terceiro e o quinto versos são brancos, ou seja, que não apresentam rimas. Vale ressaltar que o primeiro verso de uma estrofe deve rimar com o último verso da estrofe anterior, o que é chamado de deixa. Veja, no exemplo a seguir, uma estrofe de uma sextilha com o assunto “Se eu não fosse advogado”, de Ernesto Filho (2007, p. 44).

[...]

Se eu não fosse advogado

não sei bem o que eu seria,

nem engenheiro nem médico,

nem soldado nem vigia,

talvez encontrasse espaço

no mundo da cantoria

[...]

Logo, diante da estrofe dessa sextilha, vemos que ela possui seis versos, em que segue a sequência ABCBDB, em que o B são os versos com presença da rima e ACD são versos brancos. Na separação silábica poética de cada verso, apresenta sete sílabas poéticas, podendo existir mais sílabas, mas, no caso da poética se conta até a última sílaba tônica do verso. Por exemplo, no primeiro verso, a separação silábica poética acontece dessa maneira: se/eu/não/fo/sse/ad/vo/ga/do, veja que, o ss fica junto, pois isso acontece de acordo com ritmo poético, que difere da separação silábica gramatical, bem como o ga se apresenta como a última sílaba tônica do primeiro verso. Já no segundo verso a separação silábica é da seguinte forma: Não/sei/bem/o/que eu/se/ria. Percebe-se que as sílabas “que” e “eu”, ficam juntas, em virtude do ritmo poético cantado pelo repentista, como também, a última sílaba tônica se dá a partir do ria.

Outra modalidade de cantoria muito comum é o mote, que, de acordo com Sautchuk (2010)SAUTCHUK, J. M. M. A poética cantada: investigação das habilidades do repentista nordestino. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n.35, p. 167-182, 2010. Disponível em: https://www.scielo.br/j/elbc/a/6vCZccB5GC9dJCwNzD7vCXM/?lang=pt&format=pdf. Acesso em: 20 de set. 2022.
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, se refere a uma frase, formada de dois versos, com os quais os cantadores repentistas devem finalizar suas estrofes. Além disso, Ernesto Filho (2013) traz que o mote é formado de sete ou dez sílabas poéticas, de maneira que, os motes em sete e dez, são construídos com dez versos, seguindo a sequência ABBAACCDDC, em que, o A representa a rima entre o primeiro, quarto e o quinto verso, o B é a rima entre o segundo e o terceiro verso, o C traz a rima entre o sexto com o sétimo e o décimo verso e o D é a rima entre oitavo com o nono verso. Segue, um exemplo de um mote em sete “Não desenhe a natureza com o sangue dos animais” (Ernesto Filho, 2007, p. 58).

[...]

Não prenda em sua gaiola

um canário cantador,

não mutile um beija-flor

nem tire a vida de um gola,

na sombra da castanhola

não persiga sabiás,

nas plantas não jogue gás

nem polua a correnteza

- Não desenhe a natureza

com o sangue dos animais

[...]

Diante disso, o mote em sete finaliza nos últimos versos de cada estrofe, apresentando dez versos com a sequência ABBAACCDDC e sete sílabas poéticas em cada verso. A título de ilustração, veja, através da separação silábica poética do primeiro verso, como acontece a contagem da sílaba, Não/pren/da em/su/a/gai/ola. Observe que a separação silábica acontece a partir do ritmo poético, na qual sua contagem silábica vai até a última sílaba tônica o. Em continuidade segue, um exemplo de um mote em dez “A história do homem está escrita na coragem, na luta e no saber”, de Ernesto Filho (2007, p. 84),

[...]

É o homem segredo natural

que margeia os caminhos da ciência,

soerguido por sua competência,

assegura um lugar no social,

faz conquista no mundo espacial

e no cenário da arte dá prazer,

associa a vontade ao resolver

e com sua razão se capacita

- A história do homem está escrita

na coragem, na luta e no saber

[...]

Portanto, temos que o mote em dez segue a mesma ordem de distribuição da sequência de rimas ABBAACCDDC do mote em sete. Contudo, diferente do mote em sete, o mote em dez apresenta dez sílabas poéticas em cada verso. Observe como se dá contagem dessas sílabas no segundo verso, que/mar/geia/os/ca/mi/nhos/da/ci/ên/cia, em que essa contagem é de acordo com ritmo do cantador repentista e a terminação desse verso, acontece na sílaba tônica ên.

Dessa forma, temos que tanto a sextilha como os motes em sete e em dez seguem a regra poética da métrica, rima e oração, de maneira que a sextilha apresenta a sequência ABCBDB, possui seis versos, com rima e brancos, cada um com sete silabas poéticas. No caso dos motes em sete e em dez, ambos apresentam dez versos e cada estrofe segue a sequência ABBAACCDDC. Por outro lado, enquanto o mote em sete possui versos com sete sílabas poéticas, o mote em dez apresenta versos com dez sílabas poéticas.

2.2 Etnomodelagem

A Etnomodelagem consiste em um campo que se debruça sobre elementos da Matemática e da Cultura, tendo por base fundamentos advindos, sobretudo, da Etnomatemática e da Modelagem Matemática. Rosa e Orey (2010ROSA, M.; OREY, D. C. Ethnomodelling: a pedagogical action for uncovering ethnomathematical practices. Journal of Mathematical Modelling and Application, Blumenau, v. 1, n. 3, p. 58- 67. 2010. Disponível em: https://www.repositorio.ufop.br/bitstream/123456789/3721/1/ARTIGO_EthnomodelingPedagogicalActionUncovering.pdf. Acesso em: 20 de jun. 2022
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, p. 61) compreendem que a Etnomodelagem:

[...] é um processo de elaboração de problemas e questões crescentes, de situações reais ou sistemas retirados da realidade que formam uma imagem ou sentido de uma versão idealizada do matema. O enfoque dessa perspectiva forma essencialmente uma análise crítica da geração e produção do conhecimento (criatividade), e configura um processo intelectual para sua produção, os mecanismos sociais de institucionalização do conhecimento (acadêmicos) e sua transmissão (educação) [...]

Diante disso, vemos que a Etnomodelagem estuda os processos sobre diferentes situações culturais, educacionais, entre outras, com intuito de compreender os conhecimentos, dentre eles os matemáticos, oriundos dos grupos culturais diversos. Nesse sentido, a Etnomodelagem se propõe a promover a interação entre conhecimentos de grupos socioculturais e conhecimentos acadêmicos, visando promover o diálogo e a valorização da diversidade cultural humana.

Assim, de acordo Rosa e Orey (2012ROSA, M.; OREY, D. C. O campo de pesquisa em etnomodelagem: as abordagens êmica, ética e dialética. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 38, n. 4, p. 865- 879, out./dez. 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ep/a/vBd7FrRfsd7fFTpW9NLNpCk/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 25 de ago. 2022
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, p. 868) “[...] os procedimentos da Etnomodelagem envolvem os saberes desenvolvidas e utilizadas em diversas situações-problema enfrentadas no cotidiano dos membros desses grupos [...]”. Dessa maneira, vemos que os saberes adquiridos a partir dos conhecimentos etnomatemáticos são utilizadas pelo grupo cultural na sua realidade local.

Dessa forma, a Etnomodelagem é o processo de transformar a realidade por meio de conhecimentos matemáticos transmitidos em uma comunidade cultural, na qual é importante compreendermos como os conhecimentos etnomatemáticos se originam das práticas cotidianas que estão relacionadas com os grupos socioculturais. Conforme, Rosa e Orey (2018, p. 116):

[...] a etnomodelagem pode ser considerada como uma ferramenta que tem por objetivo mediar as formas culturais do desenvolvimento matemático com o currículo escolar para possibilitar o processo de ensino e aprendizagem desse campo do conhecimento[...]

Com base no enfoque discutido pelos autores, o objetivo da Etnomodelagem é associar os conhecimentos etnomatemáticos de um determinado grupo com os conhecimentos que permeiam o currículo escolar. Desse modo, a Etnomodelagem insere no contexto educacional discussões sobre a Matemática, enquanto um produto da cultura humana, bem como o reconhecimento e a valorização das práticas desses saberes por indivíduos que muitas vezes são esquecidos na sociedade.

Discutindo sobre as relações entre a Etnomatemática e a Modelagem Matemática, que dão subsídios a constituição da Etnomodelagem, Gonçalves (2021GONÇALVES, P. G. F. A etnomodelagem no contexto da carcinicultura cearense: possibilidades para a sala de aula. Revista de Ensino de Ciências e Matemática, Passo Fundo, v. 12, n. 2, p. 1-20, 2021. Disponível em: https://revistapos.cruzeirodosul.edu.br/index.php/rencima/article/view/2941/1498. Acesso em: 12 de set. 2022.
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, p. 4) afirma que desenvolvem uma relação protocooperativa. Conforme o autor:

[...] embora possam existir de forma independente, uma combinação harmoniosa é benéfica para ambas. Sendo assim, a Etnomatemática possibilita à Modelagem Matemática o contato com outros conhecimentos etnomatemáticos, dissemelhantes da matemática acadêmica, desenvolvidos por diferentes grupos, em momentos distintos da história. [...] Por outro lado, a Modelagem Matemática integra à Etnomatemática o processo de constituição de modelos como forma de enxergar, explicar, predizer e transformar a realidade por meio de conhecimentos científicos (e matemáticos, em particular), muito difundido em uma sociedade cada vez mais interconectada [...]

Assim, temos que enquanto a Etnomatemática se debruça sobre os conhecimentos de grupos socioculturais e a Modelagem Matemática utiliza-se do conhecimento matemático para representar situações diversas, a Etnomodelagem agrega as duas visões, promovendo um diálogo entre o local e o global, originando uma perspectiva glocal.

Rosa e Orey (2020)ROSA, M; OREY, D. C. Etnomodelagem como um movimento de globalização nos contextos da etnomatemática e da modelagem. Com a Palavra, o Professor, Vitória da Conquista, v. 5, n. 11, p. 258-283, 2020. Disponível em: http://revista.geem.mat.br/index.php/CPP/article/view/565. Acesso em: 5 de set. 2022
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apresentam as três abordagens da Etnomodelagem: global (ou ética), local (ou êmica) e glocal (ou ética-êmica). A seguir, discutimos cada uma delas.

A abordagem global ou ética “[...] é a visão dos observadores externos, de fora, sobre as crenças, os costumes e o conhecimento matemático desenvolvido pelos membros de grupos culturais distintos [...]” (Rosa; Orey, 2020ROSA, M; OREY, D. C. Etnomodelagem como um movimento de globalização nos contextos da etnomatemática e da modelagem. Com a Palavra, o Professor, Vitória da Conquista, v. 5, n. 11, p. 258-283, 2020. Disponível em: http://revista.geem.mat.br/index.php/CPP/article/view/565. Acesso em: 5 de set. 2022
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, p. 265). Nessa abordagem, tem-se que os pesquisadores empreendem um olhar de dentro para fora e descrevem os conhecimentos e os costumes desenvolvidos em culturas distintas, buscando estabelecer uma relação entre os saberes dos grupos socioculturais com a Matemática acadêmica.

Já a abordagem local ou êmica consiste na “[...] visão dos membros de grupos culturais distintos sobre a própria cultura e crenças e, também, sobre os próprios costumes e conhecimento matemático [...]” (Rosa; Orey, 2020ROSA, M; OREY, D. C. Etnomodelagem como um movimento de globalização nos contextos da etnomatemática e da modelagem. Com a Palavra, o Professor, Vitória da Conquista, v. 5, n. 11, p. 258-283, 2020. Disponível em: http://revista.geem.mat.br/index.php/CPP/article/view/565. Acesso em: 5 de set. 2022
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, p. 265). Logo, membros de um grupo sociocultural retratam a sua cultura, a partir do próprio contexto, reconhecendo o desenvolvimento de conhecimentos etnomatemáticos imersos em sua cultura.

Por fim, a abordagem glocal ou êmico-ético “[...] representa uma interação contínua entre a globalização e a localização, pois oferece a perspectiva de que ambas as abordagens são elementos importantes de um mesmo fenômeno [...]” (Rosa; Orey, 2020ROSA, M; OREY, D. C. Etnomodelagem como um movimento de globalização nos contextos da etnomatemática e da modelagem. Com a Palavra, o Professor, Vitória da Conquista, v. 5, n. 11, p. 258-283, 2020. Disponível em: http://revista.geem.mat.br/index.php/CPP/article/view/565. Acesso em: 5 de set. 2022
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, p. 265). Desse modo, a abordagem glocal é junção das abordagens global e local, na qual consiste em que ambas se relacionem de forma dialógica.

A Etnomodelagem tem como finalidade a identificação do conhecimento matemático a partir do conhecimento local dos membros dos grupos socioculturais distintos. Com isso, temos que o estudo da compreensão dos procedimentos matemáticos desenvolvidos por esses membros são denominados etnomodelos. Em concordância com Rosa e Orey (2018, p. 120), “[...] os etnomodelos podem ser definidos como instrumentos ou artefatos culturais utilizados para proporcionar o entendimento e a compreensão dos sistemas que são retirados da realidade dos membros de grupos culturais distintos [...]”.

Assim, temos que os etnomodelos possibilitam a compreensão dos conhecimentos desenvolvidos pelos membros de um grupo sociocultural. Dessa maneira, os etnomodelos representam conhecimentos etnomatemáticos locais e globais. A partir disso, é importante ressaltar que Rosa e Orey (2018) destacam três tipos de etnomodelos: êmicos, éticos e dialógicos.

Os etnomodelos êmicos “[...] estão baseados em características que são importantes para os sistemas retirados do cotidiano dos membros de grupos culturais distintos [...]” (Rosa; Orey, 2018, p. 120). Com isso, temos que o etnomodelos êmicos representam os conhecimentos socioculturais dos membros de um grupo sociocultural.

Os etnomodelos éticos “[...] são elaborados de acordo com a visão dos observadores externos, que analisam os sistemas retirados da realidade dos membros de grupos culturais distintos, cujas práticas matemáticas estão sendo modeladas [...]” (Rosa; Orey, 2018, p. 122). Assim, os etnomodelos éticos enfatizam os procedimentos e os conhecimentos etnomatemáticos desenvolvidos pelos membros de grupos socioculturais.

Os etnomodelos dialógicos, segundo Rosa e Orey (2018, p. 125), são “[...] nesse dinamismo cultural, os conhecimentos matemáticos locais se interagem dialogicamente com aqueles consolidados globalmente pela academia por meio do desenvolvimento de uma relação recíproca entre as abordagens êmica e ética [...]”. Nesse sentido, os etnomodelos dialógicos evidenciam uma relação dialógica entre os etnomodelos êmico e ético. Dessa maneira, envolvem uma interação entre os detentores do conhecimento global (ético) e do conhecimento local (êmico) de grupos culturais distintos por meio das ideias e dos conhecimentos etnomatemáticos vinculados aos costumes locais.

Diante do que foi apresentado, é possível observar uma relação entre as abordagens local e a global com os respectivos etnomodelos êmicos e éticos. Enquanto a abordagem local e o etnomodelo êmico remetem a Etnomatemática; a abordagem global e o etnomodelo ético estão relacionados a Modelagem Matemática. Nesse sentido, a abordagem glocal e os etnomodelos dialógicos fazem alusão a Etnomodelagem, que integra as duas perspectivas de compreensão dos conhecimentos e das práticas de grupos socioculturais.

3 Metodologia

A presente pesquisa foi realizada no município de Abaiara-CE, localizada na região do Cariri. Com uma população de cerca de 11.965 habilitantes e uma área de 180.833 km2, a referida cidade tem como atividade econômica principal a agropecuária (IBGE, 2019, 2021)

Dentre as diferentes manifestações culturais comuns no município, o presente estudo adotou como sujeitos da pesquisa dois cantadores repentistas, doravante identificados por codinomes escolhidos pelos próprios participantes, são eles: Repentista Matuto e Repentista do Sertão.

O Repentista Matuto tem 31 anos e é nascido, criado e morador do sítio Olho d’Água de Pedra, na zona rural de Abaiara. É amante da poesia e do repente, atividade cultural a qual se dedica há 10 anos. É assessor técnico de cultura no município, promotor e participante de cantorias e festivais em diferentes cidades das proximidades. Além disso, é apresentador de programas de Rádio e já participou de duas publicações de livros de poesias.

Já o Repentista do Sertão tem 59 anos e reside no distrito da Vila São José, zona rural de Abaiara. Possui 30 anos de experiência como cantador repentista, sendo promotor e participante de festivais e cantoria em todo o Nordeste. Ainda, publicou os livros: Sertão Poesia e Nossa Vida no Sertão, e é apresentador de programas de Rádio no município. Além de cantador repentista, foi vereador da Câmara Municipal de Abaiara por seis legislaturas e atualmente é Secretário de Cultura de Abaiara.

Esta pesquisa é do tipo etnográfica, haja vista que “[...] estuda preponderantemente os padrões mais previsíveis das percepções e comportamento manifestos em sua rotina diária dos sujeitos estudados” (Mattos, 2011MATTOS, C. L.G. A abordagem etnográfica na investigação científica. In: MATTOS, CLG.; CASTRO, P. A. (orgs). Etnografia e educação: conceitos e usos. Campina Grande: EDUEPB, 2011. p. 49-83. Disponível em: https://books.scielo.org/id/8fcfr/pdf/mattos-9788578791902-03.pdf. Acesso em: 8 mar. 2024.
https://books.scielo.org/id/8fcfr/pdf/ma...
, p. 51). Sendo assim, um estudo desse tipo tem como principal abordagem observar, a partir de situações cotidianas, a cultura e o comportamento de um determinado grupo sociocultural. Assim, tem-se que a presente pesquisa é etnográfica, pois é desenvolvida uma análise dos conhecimentos culturais dos cantadores repentistas do município de Abaiara.

Além disso, a presente pesquisa também é descritiva, pois, conforme Gil (2002GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2002. Disponível em: https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/150/o/Anexo_C1_como_elaborar_projeto_de_pesquisa_-_antonio_carlos_gil.pdf. Acesso em: 14 de out. 2022.
https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/150...
, p. 1), “[...] as pesquisas descritivas têm como objetivo primordial à descrição das características de determinada população ou fenômeno ou, então, o estabelecimento de relações entre variáveis [...]”. Portanto, temos que esse tipo de pesquisa estuda as características de um determinado grupo social, levando em consideração suas opiniões, crenças, costumes e atitudes. Diante disso, a pesquisa se enquadra como descritiva, por apresentar uma descrição dos conhecimentos etnomatemáticos dos cantadores repentistas e associar esses conhecimentos com conhecimentos matemáticos.

No estudo foi utilizado como instrumento de coleta de dados a entrevista, que possibilitou ao pesquisador um aprofundamento da situação investigada e estabeleceu conhecimentos etnomatemáticos produzidos pelos cantadores repentistas, bem como especificou esses conhecimentos a partir da concepção dos participantes.

Dentre os diferentes tipos de entrevista, optamos pela semiestruturada. A escolha se deu por causa da estrutura do roteiro com eventuais questões, uma vez que elas são previamente estabelecidas e pela possibilidade de criação de outras conforme a direção que o diálogo se encaminha. Além disso, é capaz de proporcionar a espontaneidade e a flexibilidade das percepções dos participantes em função dos principais conhecimentos etnomatemáticos utilizado na cantoria de repente, de acordo com o roteiro detalhado no Quadro 1.

Quadro 1
Roteiro utilizado na entrevista

Os dados coletados da pesquisa foram explanados de acordo com a Análise de Conteúdo, conforme Bardin (2011)BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.. Baseados na proposta dessa autora, seguimos as fases de: pré-análise (leitura prévia e interpretação das falas dos participantes, de modo a facilitar a manipulação da análise e alcançar o objetivo a que foi proposto na presente pesquisa); exploração do material (constituição dos elementos fundamentais para a construção dos etnomodelos, evidenciando os pontos comuns e particulares do trecho das falas dos repentistas); tratamento dos resultados; a inferência e a interpretação (interpretação dos resultados da coleta de dados, em que se deu a construção dos etnomodelos e associação destes à conhecimentos matemáticos).

Finalizada a explanação do percurso metodológico, apresentaremos na seção seguinte os resultados e discussões da presente pesquisa.

4 Aspectos (etno)matemáticos na cultura do repente

Destacamos que, a partir dos dados coletados na entrevista, foi possível identificar conhecimentos etnomatemáticos presentes na cantoria de repente. Inicialmente, foi realizada a transcrição, a leitura e a interpretação das falas de cada participante. Em seguida foram construídos etnomodelos, apresentando os pontos comuns dos trechos das falas dos cantadores repentistas que trazem os elementos matemáticos.

Assim, apontamos três etnomodelos relacionados à cantoria de repente, presentes na construção do repente: sextilha, mote em sete e mote em dez. Em seguida, discutimos cada um deles e logo após, traremos sua representação matemática.

De acordo com a explicação dos repentistas, a sextilha é composta por seis versos e, em cada verso, sete sílabas poéticas. É possível haver mais, desde que a última sílaba tônica seja a sétima. As rimas na sextilha acontecem da seguinte forma: o segundo verso rima com quarto e com o sexto, enquanto os versos um, três e cinco são brancos (ou seja, que não precisam serem rimados).

Nesse sentido, os procedimentos matemáticos utilizados na sextilha estão presentes justamente na sequência das rimas dos versos que são representados desta maneira: ABCBDB, em que o B são os versos que rimam e ACD são versos brancos, como foi trazido no tópico 2.1 da seção da fundamentação teórica, na qual são sintetizados no Quadro 2 a seguir.

Quadro 2
Representação das rimas na sextilha

Como apresentado no Quadro 2, a disposição das rimas e dos versos brancos ao longo do repente podem ser apresentados em uma sequência que segue uma regra de formação. Essa regra de formação permite realizar modelos para observar e analisar os versos. Formalmente, uma sequência pode ser observada como uma listagem de elementos de um conjunto, na qual, tomando o conjunto das letras do alfabeto, pode ser descrita como:

(A, B, C, R, D, T, T, E, A, S, D, E, F, A, E, ...)

Essa listagem é um contexto que define a ordem das escolhas dos elementos que compõem um determinado conjunto, em que a referida listagem é diferente de uma descrição de um conjunto escrito por extenso, pois, como podemos observar, a simbologia utilizada em uma listagem é escrita entre parênteses. Vale ressaltar que a posição dos elementos é importante, visto que, não é apenas uma apresentação dos elementos, mas, estabelece a ordem dos termos do conjunto, trazendo quem é o primeiro, o segundo, o terceiro e assim por diante.

Tratando de uma sequência, é necessário que ela não dependa de um contexto, mas, de uma função para definir a sequência, pois ela não depende do contexto. Dessa forma, para definir uma sequência é preciso trazer o conceito de função, pois é a relação entre os conjuntos dos números naturais e qualquer outro conjunto.

Por se tratar de uma sequência, a listagem pode ser finita ou infinita, assim, se a sequência for infinita, a listagem será representada pela imagem de uma função F que tem como domínio o conjunto dos números naturais (Denotado por N, considerando zero como um número natural) e como contradomínio o conjunto do universo dos elementos. Por outro lado, se estamos tratando de uma sequência finita, a listagem é também imagem de uma função F com o contradomínio sendo o conjunto universo dos elementos e domínio um subconjunto do conjunto dos números reais. Exemplo, é o conjunto a seguir:

I n = { 1 , 2 , 3 , , n 1 , n } , em que n é o número de elementos da sequência.

Dessa forma, na sextilha descrita no Quadro 2, observamos que o padrão da rima é dado por ABCBDB e que as posições formam uma sequência dada por:

Quadro 3
Etnomodelo Sextilha

Desse modo, como os versos A, C e D são brancos, as funções são dadas por uma sequência, com valores em N (conjunto dos números naturais) cujos elementos da imagem representam as posições das rimas brancas no repente. Como cada rima A, C e D tem apenas uma única ocorrência em cada verso, considerando n = 0 podemos fazer a seguinte interpretação. Na sequência FA, por exemplo, temos,

Logo, a imagem FA(n)=1+6.nFA(0)=1+6.0=1 da função FA para n = 0 é igual a 1, o que significa que a rima A se encontra no primeiro verso da primeira estrofe da sextilha. De forma similar, as ideias podem ser verificadas para os versos brancos C e D, ou seja, a rima C ocorre no terceiro verso e a rima D ocorre no quinto. Nesse sentido, para n = 0 vemos que as funções FA, FC e FD estão mapeando as posições dos versos brancos na primeira estrofe, e ainda, pela expressão das leis de formação, representam o regramento das posições desses outros versos brancos nas demais estrofes.

O verso B apresenta rima e a função que modela a sua posição tem como domínio e contradomínio o conjunto dos números naturais. Como em cada estrofe temos três ocorrência da rima B, considerando n = 0, 1 e 2, temos na função FB,

F B ( n ) = 2 + 2 . n F B ( 0 ) = 2 + 2 0 = 2 , F B ( 1 ) = 2 + 2 1 = 4 , F B ( 2 ) = 2 + 2 2 = 6 .

As imagens da função FB para os três primeiros valores de n representam as posições dos versos com rima B na primeira estrofe da sextilha. Além disso, essas são as posições de rima segundo o regramento das estrofes na sextilha. Ou seja, os três primeiros valores recuperam a essência do regramento da rima B. Dessa maneira, tem-se que a função FB está representando as posições dos versos nas estrofes que possui rimas. Vale ressaltar que os exemplos acima da sextilha estão sendo representados por repentes infinitos, bem como, as sequências acima possuem como imagem o conjunto dos números naturais (podendo ser o conjunto dos números reais), na qual são denominadas de sequências numéricas.

Como os versos brancos A, C e D têm apenas uma ocorrência em cada estrofe, podemos estabelecer uma relação entre a posição da estrofe no repente e a posição da rima no repente, na forma de sequência, como mostra o Quadro 4.

Quadro 4
Etnomodelo Sextilha

Considerando n = 1 (que representa a primeira estrofe) temos: FA (1) = 1, FC (1) = 3 e FD (1) = 5, que representam as posições das respectivas rimas na estrofe primeira. Para n = 2, temos FA (2) = 7, FC (2) = 9 e FD (2) = 11, que representam as posições das respectivas rimas na estrofe segunda. Assim, as sequências acima estabelecem relações das posições das rimas em relação às estrofes. Para a rima B, que tem três ocorrências em cada estrofe, não é possível estabelecer uma relação das posições da rima com a estrofe por meio de uma sequência numérica. Para uma relação ser estabelecida, podemos proceder com uma relação com alguma posição da rima, por exemplo da primeira, em relação à estrofe, ou proceder com uma sequência que tem valores vetoriais em NxNxN (produto cartesiano de três cópias de N). Esse tipo de sequência será apresentado no próximo etnomodelo elaborado.

Descreveremos agora o etnomodelo relacionado ao mote em sete. A partir do relato do Repentista Matuto, acerca de como funciona a composição do mote, ele apresenta a seguinte explicação:

O mote em sete, são dez versos, cada verso contendo sete sílabas ou mais, mas, contando que as setes sílabas poéticas, a última sílaba seja tônica e a rimas acontece da seguinte forma: o primeiro verso rima com o quarto e o quinto verso, o segundo verso rima com o terceiro, o sexto verso rima com o sétimo e com o décimo e o oitavo verso rima com o nono (Entrevista com Repentista Matuto, 2023).

Ainda, ao indagar o Repentista do Sertão acerca dos elementos que compõem um repente, ele apresenta o mesmo conceito do Repentista Matuto. Portanto, a partir das falas dos Repentistas Matuto e do Sertão percebemos uma coerência em suas explicações de modo que ambos ressaltam a composição do mote em sete, trazendo a explicação de como se dá a contagem dos versos e das sílabas poéticas, bem como acontece as sequências das rimas no mote em sete.

Ademais, nas respostas dos repentistas Matuto e do Sertão ressaltou-se que o mote em dez é composto por dez versos, em que cada verso possui dez sílabas poéticas, podendo ter mais, desde que a última sílaba seja a tônica e as sequências das rimas aconteça da mesma forma que o mote em sete, em que o primeiro verso rima com o quarto e o quinto verso; o segundo verso rima com o terceiro; o sexto verso rima com o sétimo e com o décimo; e o oitavo verso rima com o nono.

Dessa forma, os aspectos matemáticos utilizados no mote em sete e no mote em dez, estão associados na sequência das rimas que são distribuídos da seguinte forma: ABBAACCDDC, como mencionado na seção 2, a qual está no Quadro 5 a seguir.

Quadro 5
Representação das rimas no mote em sete e no mote em dez

Como cada rima tem mais de uma ocorrência em uma estrofe, as sequências para estabelecer uma relação entre a posição da estrofe e as posições de uma rima no repente consideram valores em NxNxN ou em NxNxNxN, como apresentado no Quadro 6.

Quadro 6
Etnomodelo Mote em sete e dez

Assim sendo, as sequências são dadas por funções, que têm como domínios N* o conjunto dos números naturais diferentes de zero e como contradomínios o produto cartesiano de cópias de N. Nessas funções, a variável n representa a posição das estrofes no repente. Além disso, as sequências não são numéricas, mas tratam-se de sequências vetoriais com coordenadas naturais. Cada coordenada de uma sequência vetorial é uma sequência numérica, e nas sequências do Quadro 6, podemos estabelecer as seguintes interpretações (Quadro 7).

Quadro 7
Representação das rimas no mote em sete e no mote em dez

Por exemplo, considerando n = 1 e substituindo na função FA temos que,

F a ( 1 ) = ( n , 10 ( n 1 ) + 1 , 10 ( n 1 ) + 4 , 10 ( n 1 ) + 5 ) = ( 1 , 10 ( 1 1 ) + 1 , 10 ( 1 1 ) + 4 , 10 ( 1 1 ) + 5 ) = ( 1 , 10 ( 0 ) + 1 , 10 ( 0 ) + 4 , 10 ( 0 ) + 5 ) = ( 1 , 1 , 4 , 5 )

Logo, a imagem da função FA para n =1 é igual a (1,1,4,5), assim, o primeiro, o quarto e o quinto verso da primeira estrofe dos motes em sete e dez contém uma rima. As ideias são similares que podem serem feitas para as rimas B, C e D. Nesse sentido, vemos que as funções FA, FB, FC e FD estão mapeando as posições dos versos nas estrofes que apresentam as rimas em cada verso dos motes.

Dessa forma, relacionando com as respostas dos cantadores repentistas diante da existência da Matemática na cantoria de repente, trazida no tópico anterior, podemos observar que os repentistas Matuto e do Sertão apresentam um conhecimento de forma sintetizada quanto à utilização da Matemática no repente, de modo que eles trouxeram que a Matemática na cantoria de repente existe a partir da contagem das sílabas poéticas e das rimas na composição dos versos.

Através das discussões no presente tópico, temos que a Matemática está presente na cantoria do repente nas posições dos versos com rimas e brancos das estrofes na modalidade da sextilha, mote em sete e mote em dez presentes na arte dos versos improvisados compostos pelos repentistas.

5 Conclusão

Sendo o contexto educativo um espaço de difusão cultural e, dado o quadro de marginalização de diferentes elementos da cultura popular do currículo escolar de Matemática, a presente pesquisa investigou os conhecimentos (etno)matemáticos presentes na cultura do repente, à luz da Etnomodelagem.

Sob o aporte da Etnomodelagem, foi possível construir alguns etnomodelos relacionados ao conteúdo matemático de sequências, presente nas diferentes modalidades da cantoria de repente como na sextilha e nos motes em sete e dez. Nessa vertente, atestamos que a cantoria do repente do Cariri cearense é uma cultura popular rica em conhecimentos etnomatemáticos, o que o torna propício enquanto objeto de estudo no contexto educativo como forma de inserção e valorização dos diferentes saberes e costumes da cantoria do repente associados aos conhecimentos matemáticos presentes nessa cultura.

Diante da investigação dos aspectos matemáticos existentes na cultura de repente, buscamos identificar na construção do repente diferentes etnomodelos. Com isso, podemos observar, por meio da presente pesquisa, que a Matemática está presente na composição da sextilha e dos motes a partir das sequências das rimas de cada modalidade.

Na sextilha os procedimentos matemáticos se dão por meio da sequência das rimas dos versos que são representados pelo sistema de distribuição de rimas ABCBDB, em que o B são os versos que rimam e ACD são versos brancos de modo que, foram encontradas funções (estabelecidas por sequências numéricas), formadas pelos números naturais e que apresentam a posição dos versos com rimas e dos versos brancos. Há também as imagens, que trazem as posições das estrofes da sextilha, que apresentam o verso com rima branca ou apenas com rimas.

Os aspectos matemáticos empregados no mote em sete e no mote em dez, estão associados às sequências das rimas que são distribuídas por ABBAACCDDC, na qual são representadas por funções que são dadas sequências vetoriais com coordenadas naturais, que têm como contradomínios o produto cartesiano de cópias do conjunto dos números naturais (o número de cópias de N é igual ao número de ocorrência de uma rima mais um), equivalendo a contagem da estrofe e a posição dos versos de cada estrofe que apresentam rima.

Portanto, podemos perceber que há uma alternativa acerca dos conhecimentos desvendados nessa prática cultural do repente como uma forma de inserção para o contexto educativo e para formação de professores da região, o que seria uma possibilidade para abrir espaços para a diversidade cultural, reconhecimento e valorização da cultura popular, considerando que a cultura da cantoria de repente contém conhecimento entre Matemática acadêmica e saberes da cultura do repente, sendo uma perspectiva para promover o diálogo e proporcionar anseios para uma Educação para a pluralidade, a diferença e a valorização cultural.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    20 Jul 2023
  • Aceito
    15 Set 2023
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