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Avaliação de Materiais Curriculares de Matemática, no Contexto da Educação do Campo, Implicada por Affordance e Agência

Evaluation of Mathematics Curriculum Materials, in the Context of Rural Education, Implied by Affordance and Agency

Resumo

Tomando como objetivo compreender como affordance e agência implicam a avaliação de materiais curriculares, discutimos a relação entre professores e materiais, dando ênfase à avaliação e sua implicação para a escolha de materiais ou parte deles. A pesquisa se caracteriza com abordagem qualitativa e estudo de caso. Três professoras que ensinam Matemática nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental em turmas da Educação do Campo são as colaboradoras da pesquisa, concedendo entrevista semiestruturada que, após serem lidas e textualizadas, foram organizadas em três unidades de análise. Os resultados indicam que, além dos materiais e professoras assumirem a agência, ainda ocorre deslocamento para o perfil dos estudantes campesinos; desvenda que as affordances possibilitam aos estudantes construir aprendizagens com sentidos e significados a partir da identidade, valores, cultura e conhecimentos dos povos campesinos.

Palavras-chave
Educação do Campo; Relação Professor-Materiais Curriculares; Avaliação de Materiais Curriculares; Agência; Affordance

Abstract

With the objective of understanding how affordance and agency imply the evaluation of curriculum materials, we discuss the relationship between teachers and materials, emphasizing evaluation and its implication for the choice of materials or part of them. The research is characterized by a qualitative approach and case study. Three teachers who teach Mathematics in Elementary School in Rural Education classes are the research collaborators, granting semi-structured interviews that, after being read and textualized, were organized into three units of analysis. The results indicate that, in addition to the materials and teachers taking over the agency, there is still a shift to the profile of rural students; revealing that affordances allow students to build learning with senses and meanings based on the identity, values, culture and knowledge of peasant peoples.

Keywords
Rural Education; Teacher-Curriculum Materials Relationship; Evaluation of Curriculum Materials; Agency; Affordance

1 Ideias iniciais

A pesquisa em Educação Matemática tem considerado os materiais curriculares como uma das principais ferramentas que professores fazem uso, bem como os estudantes, no processo de construção de suas aprendizagens. Tais materiais são subsídios para as práticas de ensinar, na tradução do currículo em forma de propostas de tarefas (Macêdo; Brandão; Nunes, 2019; Soares, 2020SOARES, M. C. R. A. A relação professor-materiais curriculares de Matemática: análise na perspectiva dos conceitos de affordance e agência. 2020. 142f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Centro de Ciências Humanas, Universidade Estadual de Montes Claros, Montes Claros, 2020.). Professores fazem uso de diferentes materiais curriculares, dentre eles, livros didáticos avaliados e distribuídos pelo Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD).

Considerando as práticas de ensino na Educação do Campo, ao se relacionar com materiais para planejar e realizar aulas, professores agem como discutem Remillard e Kim (2017)REMILLARD, J. T.; KIM, O. Knowledge of curriculum embedded mathematics: exploring a critical domain of teaching. Educational Studies in Mathematics, Dordrecht, v. 9, n. 1, p. 65-81, 2017., ou seja, leem, interpretam e avaliam o que é apresentado em forma de tarefas e orientações para o ensino. Essa atividade envolve a mobilização de conhecimentos relativos à Matemática e seu ensino, mas, além disso, requer o conhecimento dos princípios e propostas da Educação do Campo para reconhecer e avaliar as opções de abordagem e apresentação dos conceitos contextualizados à luz das especificidades dos povos campesinos, bem como as condições que são propiciadas, pelos materiais, para levar os estudantes a se reconhecerem como povos do campo e a valorizar as identidades, práticas, valores e cultura de seu povo. Nesse processo, os professores percebem affordances nos materiais, ou seja, possibilidades de ações pedagógicas; podem assumir a agência do desenvolvimento curricular; ou realizar práticas direcionadas pelos materiais como agência.

Ao considerarmos o histórico do PNLD, a Educação do Campo não era contemplada por essa política pública educacional brasileira; os materiais curriculares distribuídos para essa modalidade de ensino eram os mesmos avaliados e distribuídos para as demais modalidades, sem considerar as particularidades e especificidades dos povos campesinos.

Em 2013, ocorreu a primeira edição do PNLD-Campo, seguida da edição de 2016. No âmbito desse Programa específico para a Educação do Campo, foram avaliados e distribuídos materiais curriculares do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental. O Programa, em suas duas edições, considerou o contexto dos povos campesinos a partir de uma abordagem da realidade social, cultural, ambiental e econômica dessa população. Para a edição de 2019, o PNLD avaliou e distribuiu materiais comuns a diferentes modalidades de ensino, deixando de considerar a Educação do Campo.

A descontinuidade do PNLD-Campo implicou os modos como professores se relacionam com os materiais, quando passaram a usar, nas escolas da Educação do Campo, obras elaboradas e avaliadas sem considerar o contexto dessa modalidade de ensino. Isso significa que, quando se considera as obras aprovadas e distribuídas pelo PNLD-Campo, o processo de educar matematicamente é situado na valorização do contexto social, cultural, político e ambiental do povo campesino, por meio de tarefas que abordam conteúdos, textos, temas e propostas em que a realidade do campo é o ponto de partida para aprendizagens que façam sentido e significado para os estudantes.

Considerando especialmente a Matemática, essa descontinuidade implica a questão do conhecimento dos professores em relação às propostas de ensino a esses princípios, no sentido de, ao avaliar e selecionar materiais não específicos para a Educação do Campo, professores precisam ler e interpretar um conjunto de orientações neles e contextualizar as propostas de ensino aos princípios da Educação do Campo. Vale destacar a importância dessa avaliação para identificação de possibilidades de ação, ou seja, as affordances, na abordagem e apresentação da Matemática incorporada aos materiais curriculares. Também precisam identificar pontos que apresentem fragilidade e observar a necessidade de complementação do material selecionado, ou de parte dele, para realizar suas aulas.

Considerando esses aspectos, e tendo em vista que a relação de professores com os materiais curriculares é dinâmica, em que um implica a prática do outro (Collopy, 2003COLLOPY, R. Curriculum materials as a professional development tool: how a Mathematics textbook affected two teachers' learning. The Elementary School Journal, Chicago, v. 103, n. 3, p. 287-311, 2003.; Januario, 2017JANUARIO, G. Marco conceitual para estudar a relação entre materiais curriculares e professores de Matemática. 2017. 194f. Tese (Doutorado em Educação Matemática) - Faculdade de Ciências Exatas e Tecnologia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2017.; Soares, 2020SOARES, M. C. R. A. A relação professor-materiais curriculares de Matemática: análise na perspectiva dos conceitos de affordance e agência. 2020. 142f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Centro de Ciências Humanas, Universidade Estadual de Montes Claros, Montes Claros, 2020.), entendemos ser oportuno investigar a avaliação de materiais curriculares feita por professores, que atuam em escolas da Educação do Campo. Este artigo orienta-se pelo objetivo de compreender como affordance e agência implicam a avaliação de materiais curriculares.

2 Avaliação de materiais curriculares a partir dos professores

A relação entre professores e materiais curriculares acontece de maneira dinâmica, cada um trazendo seus recursos. Os materiais trazem crenças, concepções e valores da Matemática e seu ensino, além da abordagem conceitual; professores trazem conhecimentos, crenças e concepções. Esses recursos implicam o processo de educar matematicamente, incluindo o planejamento e a realização de aulas (Collopy, 2003COLLOPY, R. Curriculum materials as a professional development tool: how a Mathematics textbook affected two teachers' learning. The Elementary School Journal, Chicago, v. 103, n. 3, p. 287-311, 2003.; Remillard; Kim, 2017REMILLARD, J. T.; KIM, O. Knowledge of curriculum embedded mathematics: exploring a critical domain of teaching. Educational Studies in Mathematics, Dordrecht, v. 9, n. 1, p. 65-81, 2017.; Januario, 2020JANUARIO, G. Agência, affordance e a relação professor-materiais curriculares em Educação Matemática. Ensino em Re-Vista, Uberlândia, v. 27, n. 3, p. 1055-1076, set./dez. 2020.). Nesse processo, professores realizam uma avalição para identificar o quanto o material atende aos objetivos de ensino; em que medida oferecem oportunidades de aprendizagens significativas aos estudantes; o que apresentam de inovações pedagógicas; e, no caso da Educação do Campo, em que medida as orientações de ensino e tarefas contemplam os princípios da educação campesina.

Ao se relacionar com materiais curriculares de Matemática para planejar e realizar aulas em escolas da Educação do Campo, professores precisam mobilizar conhecimentos acerca da realidade de seus estudantes; a identidade dos povos campesinos onde a escola está situada; as questões sociais do campo que são relevantes para estudantes e comunidade; além de conhecimentos sobre como a Matemática pode colaborar na formação do pensamento crítico dos estudantes, na valorização da identidade e da cultura da comunidade campesina. Sobre esse último aspecto, os professores precisam ler e interpretar o conhecimento da Matemática incorporada aos materiais curriculares (Remillard; Kim, 2017REMILLARD, J. T.; KIM, O. Knowledge of curriculum embedded mathematics: exploring a critical domain of teaching. Educational Studies in Mathematics, Dordrecht, v. 9, n. 1, p. 65-81, 2017.), bem como os princípios da Educação do Campo presentes neles.

Em seus estudos, Brown (2009)BROWN, M. W. The Teacher-Tool Relationship: theorizing the design and use of curriculum materials. In: REMILLARD, J. T.; HERBEL-EISENMANN, B. A.; LLOYD, G. M. (ed.). Mathematics Teachers at Work: connecting curriculum materials and classroom instruction. New York: Taylor & Francis, 2009. p. 17-36. entende que a relação professor-materiais curriculares demanda entendimento sobre as representações curriculares, além da importância de conhecer os conceitos e ações a serem desenvolvidas em situações de aula. Esse autor descreve a importância da interpretação que professores fazem dessas representações, pois elas são capazes de influenciar a ação docente a partir do conceito de agência. Nessa relação, professores são agentes que pensam, planejam e, principalmente, coordenam processos de ensino e de aprendizagem (Soares, 2020SOARES, M. C. R. A. A relação professor-materiais curriculares de Matemática: análise na perspectiva dos conceitos de affordance e agência. 2020. 142f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Centro de Ciências Humanas, Universidade Estadual de Montes Claros, Montes Claros, 2020.).

A descontinuidade da política pública educacional de avaliação e distribuição de materiais específicos para Educação do Campo, por meio do PNLD-Campo, implica considerar que os professores precisam se relacionar e avaliar materiais concebidos para um contexto diferente daquele que irão atuar.

A relação com materiais curriculares não específicos para os povos do campo leva os professores a utilizar esses materiais avaliando-os e selecionando-os a partir das propostas e princípios da Educação do Campo para balizar as abordagens didáticas, metodológicas e conceituais. A avaliação e seleção de materiais distribuídos pelo PNLD para a educação regular requer dos professores a avaliação e seleção de materiais de modo a subsidiar processo de ensino que garanta o direito dos estudantes do campo à construção de conhecimentos universalmente consolidados. Requer que não deixe de lado a concepção de uma formação crítica, que instrumentalize para acesso e uso do conhecimento. Para que essa formação se efetive de modo significativo dentro do contexto campesino, é necessário que o professor, ao se relacionar com materiais curriculares, reconheça e valorize os distintos saberes dos estudantes do campo, advindos de seu percurso de vida, e de seus valores.

Ainda, é importante destacar as especificidades sociais, econômicas, políticas, ambientais, de gênero, de raça, de etnia, de crenças e, especialmente, culturais desses povos campesinos que vão ecoar, fortemente, sobre o ensino. Nesse sentido, ao considerarmos as concepções da Educação do Campo, entendemos a importância de se considerar os sujeitos do campo em suas subjetividades; e ainda entendemos que essa modalidade não se distancia das lutas e dos movimentos sociais e sindicais, que visam dialogar e sugerir sobre formas de fazer engendrar a escola no contexto camponês. Para que a Educação do Campo aconteça, é preciso conhecer a realidade campesina e, a partir do que se entende por Campo, desaguará o significado em que a Educação ofertada assumirá nesse ambiente (Brasil, 2013BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão. Guia de Livros Didáticos: Educação do Campo - Ensino Fundamental, Anos Iniciais. Brasília: MEC/SECADI, 2013.).

À vista disso, é importante ressaltar que os distintos saberes dos sujeitos do campo, advindos do seu percurso de vida, de sua construção cultural, dos modos de se relacionar com a natureza e com o trabalho, em grande parte correspondem de sua identidade como sujeito do campo (Molina et al., 2009). Assim, nem a escola nem o professor que atua nessa área podem se distanciar dessas realidades, pois com a descontinuidade do PNLD-Campo, que se revestia da importância e reconhecimento de concepções pedagógicas particulares da Educação do Campo, faz reverberar a necessidade de uma avaliação por professores dos materiais não específicos para essa realidade, para que agreguem em seu ensino perspectivas dos projetos político-pedagógicos das escolas campesinas.

A avaliação de materiais curriculares para estudantes do campo possibilita aos professores realizar práticas de ensino contextualizadas. Professores que atuam nessa modalidade enfrentam vários desafios, desde o diagnóstico dos saberes dos estudantes; a seleção dos objetivos; a seleção de opções metodológicas para o ensino; a análise de apresentação de conteúdos e disposição de tarefas. Assim, a tarefa de avaliar materiais curriculares envolve assegurar metodologias apropriadas que atendam às características desses estudantes, além de desempenhar o papel social de defender o campo como um espaço de cultura, produção e conhecimento.

A descontinuidade do PNLD-Campo se insere como um desafio que, consequentemente, exigiu ainda mais dos professores a mobilização de conhecimentos para avaliar materiais, a partir de uma mediação implicada de esforço para o (re)conhecimento das subjetividades e necessidades dos estudantes do campo.

Em vista a isso, os professores sendo agentes responsáveis pelo desenvolvimento do currículo (Januario, 2017JANUARIO, G. Marco conceitual para estudar a relação entre materiais curriculares e professores de Matemática. 2017. 194f. Tese (Doutorado em Educação Matemática) - Faculdade de Ciências Exatas e Tecnologia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2017.) na relação com seus recursos, realiza intervenções, adaptações e até mesmo improvisações dos materiais com intuito de atender às necessidades de aprendizagem dos estudantes.

A utilização do material curricular implica uma ação pedagógica que requer planejamento e avaliação por parte do professor para coordenar/promover situações de aprendizagem da Matemática situadas no contexto da Educação do Campo. Tal relação requer uma prática na qual se focaliza os processos de ensino e de aprendizagem em que ora os professores são agentes desses processos, ora o material é quem assume as decisões curriculares.

3 A relação professor-materiais curriculares induzida pelos conceitos de agência e affordance

Segundo os estudos de Soares (2020)SOARES, M. C. R. A. A relação professor-materiais curriculares de Matemática: análise na perspectiva dos conceitos de affordance e agência. 2020. 142f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Centro de Ciências Humanas, Universidade Estadual de Montes Claros, Montes Claros, 2020., os materiais curriculares têm sido considerados como uma das principais ferramentas de suporte ao trabalho dos professores em promover situações de ensino e de aprendizagem. Disso, implica a importância da relação do professor com esse material, no sentido de entender e identificar nele suas potencialidades e possíveis fragilidades, pois essa relação ecoa no desenvolvimento curricular. Na relação entre professores e materiais curriculares, ambos trazem recursos, dentre os quais destacamos os conceitos de agência e affordance.

No entendimento de Biesta e Tedder (2007)BIESTA, G.; TEDDER, M. Agency and learning in the lifecourse: towards an ecological perspective. Studies in the Education of Adults, London, v. 2, n. 39, p. 132-149, 2007., professores, como agentes sociais, alteram ou modificam suas ações a partir da competência de agência, que leva esses profissionais a optar por aumentar ou por diminuir suas ações, invenções e escolhas em relação às situações dentro do cenário que eles agem, ou seja, situações de ensino e de aprendizagem ao se relacionar com os materiais curriculares. Esses autores pontuam a importância de aprender, e como se pode mudar ou reconstruir ações e práticas a partir de uma postura de agente. Isso leva a entender que, na relação professor-materiais curriculares, quanto mais conhecimento os professores têm e mobilizam, mais se tornarão agentes do processo de ler, interpretar, avaliar e selecionar materiais ao planejar e realizar aulas.

O conceito de agência pode ser definido como a capacidade de “[...] operar independentemente dos constrangimentos da estrutura social [...]” ou “[...] de exercer controle e dar direção à vida pessoal [...]” (Biesta; Tedder, 2007BIESTA, G.; TEDDER, M. Agency and learning in the lifecourse: towards an ecological perspective. Studies in the Education of Adults, London, v. 2, n. 39, p. 132-149, 2007., p. 134). Tal definição remete à tarefa dos professores de avaliar e selecionar materiais curriculares, principalmente, na Educação do Campo. Professores desenvolvem essa tarefa a partir de seus conhecimentos, crenças e concepções para criar as condições de aprendizagem de seus estudantes com base nos princípios dessa modalidade de ensino. Ao avaliar e selecionar materiais, ou parte deles, identificam possibilidades de ação, principalmente aquelas que apresentam inovações em termos de estratégias e abordagens de ensino.

Estudos têm considerado os materiais curriculares como agentes que expressam poder de decisão e de escolha sobre o desenvolvimento curricular (Januario, 2020JANUARIO, G. Agência, affordance e a relação professor-materiais curriculares em Educação Matemática. Ensino em Re-Vista, Uberlândia, v. 27, n. 3, p. 1055-1076, set./dez. 2020.). Os materiais se caracterizam como agência quando apresentam inovações pedagógicas por meio de estratégias de ensino; dispõem de abordagens conceituais diferenciadas daquelas conhecidas; têm em si teorizações que justificam as opções didáticas e metodológicas; indicam tarefas que levam os estudantes a se engajarem em seu processo de aprendizagem; apresentam outros materiais de apoio ao desenvolvimento curricular — materiais manipulativos, jogos, softwares, livros paradidáticos, repositórios para consulta; e denotam tarefas que materializam os princípios educacionais, particularmente, os da Educação do Campo.

Na concepção de Giddens (1989)GIDDENS, A. A constituição da sociedade. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1989., a agência representa a capacidade para agir, tendo os agentes a condição, ou não, de realizar as ações. Nesse sentido, professores e materiais curriculares são agentes que, ao trazerem seus recursos para uma relação dinâmica, implicam os usos feitos dos materiais, a forma como a Matemática é apresentada e abordada nas tarefas e, com isso, o que é oportunizado como situação de aprendizagens aos estudantes.

Ao considerarmos a relação entre professores e materiais curriculares, especialmente no âmbito da Educação do Campo, os professores leem, interpretam, avaliam e selecionam materiais com o propósito de identificar possibilidades de ação pedagógica, isto é, perceber affordances.

Nos materiais curriculares, affordances representam o que determinado material possui de oportunidade para seu uso; relacionam-se aos aspectos práticos dos materiais e às percepções de quem os utiliza (Januario, 2017JANUARIO, G. Marco conceitual para estudar a relação entre materiais curriculares e professores de Matemática. 2017. 194f. Tese (Doutorado em Educação Matemática) - Faculdade de Ciências Exatas e Tecnologia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2017., 2020JANUARIO, G. Agência, affordance e a relação professor-materiais curriculares em Educação Matemática. Ensino em Re-Vista, Uberlândia, v. 27, n. 3, p. 1055-1076, set./dez. 2020.). Considerando as propostas e princípios da Educação do Campo, as affordances nos materiais podem ser caracterizadas, dentre outros aspectos, como as abordagens contextualizadas da Matemática; situações que levam os estudantes a se reconhecerem como sujeitos do campo; tarefas que abordem o dia a dia do campo e que promovam o respeito e a valorização de sua cultura; estratégias metodológicas que levem os estudantes a mobilizar o que sabem ao construir novas aprendizagens.

Em sua pesquisa, Soares (2020)SOARES, M. C. R. A. A relação professor-materiais curriculares de Matemática: análise na perspectiva dos conceitos de affordance e agência. 2020. 142f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Centro de Ciências Humanas, Universidade Estadual de Montes Claros, Montes Claros, 2020. discute que as affordances podem implicar processo de ensino mais bem contextualizado. Como possibilidades de ação, as affordances nem sempre estão explícitas nos materiais ou em suas tarefas; elas podem ser percebidas, refletidas e trabalhadas na relação do professor com os materiais, partindo de um objetivo de ensino.

Entendemos que o que leva professores a perceberem as possibilidades de ação são os conhecimentos que possui e mobiliza. Assim, quanto mais conhecimento o professor tem da Matemática, do seu ensino e dos princípios e propostas da Educação do Campo, mais terá condições de perceber possibilidades nos materiais ou identificar pontos de fragilidade que requerem intervenção por meio de outros materiais ou por situações criadas por si.

Ao perceber no material muitas possibilidades de ação, affordances, esse material tende a ser caracterizado pelo professor como um bom material, afinal, ele identificou várias possibilidades para colocar em prática o que planejou. Nesse processo, é natural que o material seja reproduzido, ocorrendo uma relação de fidelidade (Januario, 2020JANUARIO, G. Agência, affordance e a relação professor-materiais curriculares em Educação Matemática. Ensino em Re-Vista, Uberlândia, v. 27, n. 3, p. 1055-1076, set./dez. 2020.).

Os professores também podem perceber poucas possibilidades de ação e identificar pontos de fragilidade nos materiais. Nesse caso, a tendência é que o material seja usado com adaptação, ocorrendo a infidelidade curricular (Januario, 2020JANUARIO, G. Agência, affordance e a relação professor-materiais curriculares em Educação Matemática. Ensino em Re-Vista, Uberlândia, v. 27, n. 3, p. 1055-1076, set./dez. 2020.) e o deslocamento de agência (Giddens, 1989GIDDENS, A. A constituição da sociedade. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1989.), isto é, ora ela está nos professores, ora está nos materiais. Há casos em que os professores se deparam com situações em que o que haviam planejado não corresponde às demandas em situações de aula, levando ao improviso com os materiais.

As tessituras sobre agência e affordance na relação professor-materiais curriculares colaboram para as análises sobre como os professores leem, interpretam, avaliam e selecionam os materiais de Matemática considerando princípios e propostas da Educação do Campo.

4 Design Metodológico

O objetivo de pesquisa elaborado para esse artigo direciona a uma pesquisa de abordagem qualitativa. Três professoras que ensinavam Matemática nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental em turmas da Educação do Campo foram as colaboradoras da pesquisa, sendo que duas delas atuavam na rede estadual de ensino de Minas Gerais, na cidade de São Francisco, e a outra atuava na rede municipal de ensino de Brasília de Minas. Do convite feito a um grupo de professoras, de nosso conhecimento, essas três foram as que responderam positivamente e se disponibilizaram a participar de uma entrevista.

Na época da produção de dados, uma professora tinha 49 anos de idade, uma 32 anos e a outra, 25 anos de idade. Duas delas exerciam a docência há mais de 10 anos, sendo a maior parte em escolas da Educação do Campo, e a outra estava em seu primeiro ano de trabalho.

Ainda sobre o objetivo da pesquisa, esse direciona a uma investigação do tipo estudo de caso (Yin, 2001YIN, R. K. Estudo de caso: planejamento e método. Tradução de Daniel Grassi. 2. ed. São Paulo: Bookman, 2001.), entendido como uma estratégia intensiva e sistemática de pesquisa que analisa um fenômeno em seu contexto real e os aspectos que o influenciam. Na pesquisa, o caso refere-se à avaliação que as professoras fazem de materiais curriculares, ou parte deles, para planejar e realizar aulas de Matemática para turmas da Educação do Campo.

Para a produção de dados, a opção foi pela entrevista semiestruturada, conforme descreve Yin (2001)YIN, R. K. Estudo de caso: planejamento e método. Tradução de Daniel Grassi. 2. ed. São Paulo: Bookman, 2001., a ser feita em grupo, em encontro remoto via aplicativo de videochamada. O propósito da realização da entrevista em grupo foi o de dialogar sobre questões que dizem respeito à relação professor-materiais curriculares, especialmente, considerando a avaliação dos materiais no que diz respeito às tarefas, orientações de ensino e concepções subjacentes relativas à Educação do Campo. Ao serem consultadas, as três colaboradoras tomaram conhecimento da pesquisa; receberam, leram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido1.

O cenário de pandemia de Covid-19 e o volume de trabalho demandado pelas escolas onde atuavam as professoras inviabilizaram uma agenda comum para a realização do encontro; também inviabilizou a realização de encontro individual. Como alternativa, a opção foi pelo envio das questões, abertas, elaboradas no roteiro para que escrevessem, individualmente, suas respostas. Após lidas e identificadas ausência de informações em algumas respostas, importantes para que pudéssemos identificar evidências da avaliação feita por elas, perguntas auxiliares foram feitas com o propósito de complementação das respostas. Junto a essa estratégia, telefonamos para as três colaboradoras e esclarecemos dúvidas em relação às perguntas auxiliares, as quais foram respondidas por áudio do aplicativo WhatsApp, que foram ouvidos, transcritos e textualizados.

De posse das respostas das três colaboradoras, procedemos a uma leitura atenta a fim de identificarmos trechos significativos que evidenciassem como a agência e affordances induzem a avaliação feita dos materiais curriculares de Matemática, ou parte deles. Esses trechos foram organizados em três categorias de análise, conforme passaremos a discutir, optando pelos nomes fictícios Amélia, Estela e Margarete para as professoras.

5 Professores, materiais, estudantes e as agências

Em um debruçar sobre as narrativas das professoras, considerando a relação que têm com os materiais curriculares, discutimos a avaliação que essas profissionais fazem dos materiais ao planejar e realizar aulas para turmas da Educação do Campo. Em especial, nos atentamos em como os conceitos de affordance e agência implicam essa avaliação.

Desta feita, identificamos que ora a agência está nas professoras, ora está nos materiais. Porém, a partir do que responderam as professoras, a agência pode estar nos estudantes, ou seja, no perfil da turma, configurando o que Giddens (1989)GIDDENS, A. A constituição da sociedade. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1989. chama de deslocamento de agência. Ao se relacionar com os materiais curriculares, avaliando o que apresentam como tarefas e orientações de ensino, considerando o contexto da Educação do Campo, as professoras ancoram-se no perfil dos estudantes, retratado por elas como a realidade da turma, mas, também, tomam como referência as experiências de aprendizagem em suas formações e conhecimentos adquiridos na prática ao longo da carreira como professora.

Esses conhecimentos mobilizados, em especial, dizem respeito ao que Brown (2009)BROWN, M. W. The Teacher-Tool Relationship: theorizing the design and use of curriculum materials. In: REMILLARD, J. T.; HERBEL-EISENMANN, B. A.; LLOYD, G. M. (ed.). Mathematics Teachers at Work: connecting curriculum materials and classroom instruction. New York: Taylor & Francis, 2009. p. 17-36. considera como recursos dos professores, em outras palavras, são os elementos que as professoras trazem para se relacionar e avaliar materiais curriculares, o que implica o planejamento, as ações em sala de aula, e, principalmente, as condições de aprendizagem criadas por essas profissionais. A partir do que discutem Remillard e Kim (2017)REMILLARD, J. T.; KIM, O. Knowledge of curriculum embedded mathematics: exploring a critical domain of teaching. Educational Studies in Mathematics, Dordrecht, v. 9, n. 1, p. 65-81, 2017., ao planejar e desenvolver aulas a partir da avaliação que fazem dos materiais, as professoras leem, interpretam e avaliam a Matemática incorporada aos materiais considerando a Educação do Campo como modalidade de ensino.

Segundo as proposições de Collopy (2003)COLLOPY, R. Curriculum materials as a professional development tool: how a Mathematics textbook affected two teachers' learning. The Elementary School Journal, Chicago, v. 103, n. 3, p. 287-311, 2003., o conhecimento da Matemática e o conhecimento sobre a realidade dos estudantes reverberam influência nas práticas de ensino, tendo como consequência a forma como os estudantes interagem com os conteúdos para compreensão dos conceitos a eles apresentados. Os excertos seguintes ilustram como a realidade dos estudantes opera a relação professor-materiais curriculares.

Pude observar que principalmente os livros didáticos especificamente o de Matemática, pouco aborda atividades voltadas a essa realidade, sendo necessário pesquisas e até mesmo interdisciplinar com outros conteúdos para que os alunos pudessem de fato, ter algum aprendizado próximo a realidade.

(Entrevista com Amélia, 2021).

O livro didático é avaliado e adaptado por mim, conforme prescrito pelo currículo, os objetivos das aulas, e de acordo com a realidade da escola e dos alunos.

(Entrevista com Margarete, 2021).

Procuro observar aquilo que considero mais importante para a aprendizagem da turma, levando em consideração suas necessidades.

(Entrevista com Estela, 2021).

Tais assertivas das professoras revelam a importância de práticas que atendam aos objetivos de ensino, e para além disso, práticas que valorizem a Matemática e seu ensino por meio do trabalho vinculado à realidade dos estudantes campesinos. Disso, vem à tona a capacidade de design pedagógico discutido por Brown (2009)BROWN, M. W. The Teacher-Tool Relationship: theorizing the design and use of curriculum materials. In: REMILLARD, J. T.; HERBEL-EISENMANN, B. A.; LLOYD, G. M. (ed.). Mathematics Teachers at Work: connecting curriculum materials and classroom instruction. New York: Taylor & Francis, 2009. p. 17-36.. Dessa percepção, infere-se:

Quanto mais nós professores temos conhecimento, mais temos condições de operar sobre o ensino, e assim temos mais sabedoria [conhecimento] para avaliar os materiais curriculares para uso em sala de aula”.

(Entrevista com Margarete, 2021).

Nesse sentido, vale destacar a agência como sendo o poder de decisão, ou seja, a ação sobre o ensino (Januario, 2017JANUARIO, G. Marco conceitual para estudar a relação entre materiais curriculares e professores de Matemática. 2017. 194f. Tese (Doutorado em Educação Matemática) - Faculdade de Ciências Exatas e Tecnologia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2017., 2020JANUARIO, G. Agência, affordance e a relação professor-materiais curriculares em Educação Matemática. Ensino em Re-Vista, Uberlândia, v. 27, n. 3, p. 1055-1076, set./dez. 2020.). Nesse caso, quanto mais consciência que sabe sobre Matemática e seu ensino, as professoras assumem, com maior frequência, as decisões relativas ao planejamento e à realização de aulas.

A partir das narrativas das colaboradoras da pesquisa, também identificamos o material como agência no processo de avaliação e seleção de tarefas. Nas narrativas das professoras, identificamos elementos que referendam o poder do direcionamento da ação docente a partir dos materiais, em particular, ao considerar o contexto de turmas dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental em escolas da Educação do Campo.

O livro didático é uma ferramenta que serve para dar suporte ao processo de ensino aprendizagem tanto para o professor quanto para o aluno. Além de ser fundamental que os conteúdos do material didático estejam atualizados, também é muito importante que a proposta do livro didático para o processo de ensino-aprendizagem seja inovadora.

(Entrevista com Margarete, 2021).

Os aspectos e características do material influencia muito nas ações sala de aula, pois quando o material completo é completo e é condizente com os objetivos e nível, ou seja, quando esse material é bom, ele contempla muito do que precisamos ensinar em cada ano.

(Entrevista com Amélia, 2021).

Pelas narrativas das professoras, conforme destacado nos excertos, o material curricular interfere de maneira significativa no planejamento e na realização das aulas, operando sobre as práticas de ensino e induzindo o que e como os estudantes experienciarão como aprendizagem.

Neste sentido, considerando um material curricular com “apresentação contextualizada” (Brown, 2009BROWN, M. W. The Teacher-Tool Relationship: theorizing the design and use of curriculum materials. In: REMILLARD, J. T.; HERBEL-EISENMANN, B. A.; LLOYD, G. M. (ed.). Mathematics Teachers at Work: connecting curriculum materials and classroom instruction. New York: Taylor & Francis, 2009. p. 17-36.; Januario, 2017JANUARIO, G. Marco conceitual para estudar a relação entre materiais curriculares e professores de Matemática. 2017. 194f. Tese (Doutorado em Educação Matemática) - Faculdade de Ciências Exatas e Tecnologia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2017.), evidenciamos o quanto isso vai ao encontro do que Margarete verbaliza sobre como a Educação do Campo, a Matemática e o processo formativo de seus estudantes influenciam a avaliação que faz de um material curricular. Conforme explicação de uma das professoras:

[...] como o conhecimento Matemático é apresentado, se a organização do livro contribui de maneira significativa com exercícios que faça o aluno pensar sobre a Matemática no Campo, as ilustrações e como as atividades são apresentadas e problematizadas.

(Entrevista com Margarete, 2021).

O que a professora discute é a necessidade de o material ter uma abordagem e apresentação contextualizada dos conteúdos. A contextualização é um elemento considerado pelas professoras como aspecto que qualifica as tarefas de Matemática e, nesse sentido, atende à realidade de seus estudantes, configurando os materiais como agência do desenvolvimento curricular. Com a descontinuidade do PNLD-Campo, essa característica deixou de ser evidenciada nos materiais em uso nas escolas da Educação do Campo que recebiam tais materiais.

Ao considerar um ensino significativo da Matemática, a professora Margarete nos provoca à reflexão sobre os estudantes campesinos, desde as suas experiências matemáticas mais simples como contar, comprar e até mesmo operar sobre quantidades na lida com a agricultura, na pesca ou até mesma nas criações.

[...] essas potencialidades de conhecimentos matemáticos devem ser exploradas de forma mais ampla e possível.

(Entrevista com Margarete, 2021).

O material contextualizado, e caracterizado como agência, pode determinar o currículo a ser desenvolvido, tendenciando a levar o estudante a reconhecer situações de sua vivência próximas de alguns dos conceitos da Matemática. Nesse sentido, vejamos a ponderação de uma das professoras sobre o material a ser utilizado nas aulas, reafirmando a potencialidade e a necessidade do material ser contextualizado:

[...] quando está de acordo com os conteúdos propostos para o ano de escolaridade trabalhado, estando principalmente condizente com a realidade de aprendizagem da turma, influencia na construção significativa da apreensão dos conteúdos.

(Entrevista com Estela, 2021).

Nesse entendimento, “[...] a contextualização dá significado ao que é proposto em forma de conteúdos e, desse modo, o material atua como estimulador da aprendizagem por mostrar respostas às indagações dos estudantes [...]” (Januario, 2017JANUARIO, G. Marco conceitual para estudar a relação entre materiais curriculares e professores de Matemática. 2017. 194f. Tese (Doutorado em Educação Matemática) - Faculdade de Ciências Exatas e Tecnologia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2017., p. 93). Assim, compreendemos que as professoras avaliam e selecionam materiais que fomentam uma práxis que promova situações de ensino e que balizam a maneira de pensar, ver e viver a realidade sobre os povos campesinos. A avaliação de materiais curriculares tem relação direta com o conceito de agência, operando o desenvolvimento curricular, deslocando-se entre professoras, materiais e perfil dos estudantes.

Quando a agência está no material curricular, esse determina o currículo a ser desenvolvido; ao estar nas professoras, essas passam a atuar com autoridade sobre as decisões ao avaliar e selecionar tarefas; ao estar nos estudantes, é o perfil da turma que passa a operar a avaliação, seleção e uso de materiais curriculares. Sobre esse último aspecto, Soares (2020)SOARES, M. C. R. A. A relação professor-materiais curriculares de Matemática: análise na perspectiva dos conceitos de affordance e agência. 2020. 142f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Centro de Ciências Humanas, Universidade Estadual de Montes Claros, Montes Claros, 2020. discute a importância da capacidade de design pedagógico, enfatizando que a agência também se desloca para o perfil dos estudantes quando professores, ao se relacionarem com os materiais, evidenciam a realidade da turma para decidir sobre o ensino. Os excertos seguintes convergem para essa mesma perspectiva:

Procuro trabalhar o mais próximo possível da realidade deles, levando em consideração que os alunos do campo têm suas especificidades.

(Entrevista com Estela, 2021).

Pela minha experiência em sala, acredito que quanto mais eu conhecer meus alunos, mais eu vou entendê-los e mais eu irei conseguir suprir as necessidades desses alunos. Por essa razão que ao avaliar um material para usar em minhas aulas, conhecer os alunos se torna importante. As metodologias e as orientações do material avaliado como bom tem que ser dentro da realidade do aluno, para que o ensino de Matemática seja propício.

(Entrevista com Amélia, 2021).

A professora Estela, ao considerar o fato de que uma Escola do Campo atende estudantes de diversas comunidades próximas, cada qual com valores, costumes e crenças bastante distintas que, consequentemente, ecoam fortemente no direcionamento do desenvolvimento curricular, afirma que se faz

[...] necessário observar aquilo que os estudantes [já consolidaram de habilidades], assim posso, não somente, partir da realidade que já é conhecida por eles, como também abrir espaço para o novo, de forma que todos os seus direitos sejam assegurados e que sejam sempre tratados como sujeitos de muitas capacidades e não como inferiores aos alunos na área urbana — como infelizmente acontece.

(Entrevista com Estela, 2021).

Neste sentido, compreendemos quão necessário é um olhar de equidade e igualdade para o processo de educar matematicamente na Educação do Campo, que é marcada por características próprias, as quais devem ser levadas em consideração e respeitadas. Por isso, não pode ser diferente a escolha dos materiais para trabalhar nessa modalidade. Fica evidente pelas narrativas das professoras que, além do conceito de agência, a avaliação e seleção de materiais curriculares estão relacionadas, ainda, ao conceito de affordances, como passaremos a analisar.

6 Professores, materiais e as affordances

Analisando o conjunto de narrativas das colaboradoras da pesquisa, identificamos haver similaridade sobre como algumas características encontradas no material curricular balizam e fomentam o processo de educar matematicamente, características essas que são percebidas pelas professoras quando avaliam os materiais curriculares, caracterizando as affordances (Gibson, 1986GIBSON, J. J. The ecological approach to visual perception. New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates, 1986.; Januario, 2020JANUARIO, G. Agência, affordance e a relação professor-materiais curriculares em Educação Matemática. Ensino em Re-Vista, Uberlândia, v. 27, n. 3, p. 1055-1076, set./dez. 2020.). Essas são as oportunidades de ação que o material oferece para as professoras desenvolverem o currículo de Matemática, sendo que tais oportunidades não se limitam aos materiais, estando presentes, também, na interação entre o material, ambiente e professoras (Gibson, 1986GIBSON, J. J. The ecological approach to visual perception. New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates, 1986.).

Da relação das professoras com os materiais, especialmente ao ler, interpretar e avaliar tarefas e orientações de ensino, emerge a percepção de affordances, o que remete ao entendimento da apreensão de possibilidades de ação no uso dos materiais por elas ao mobilizar seus conhecimentos, crenças e concepções acerca da Matemática e seu ensino, considerando princípios e especificidades dos estudantes da Educação do Campo, como podemos observar em trechos como disposição dos conteúdos, atividades de acordo com a realidade do aluno, material que tenha uma linguagem clara e objetiva, uma organicidade que facilite a apresentação dos conteúdos que os estudantes precisam consolidar e o volume de exemplos e imagens, especialmente, ao considerar subjetividades da Educação do Campo.

A análise das narrativas das professoras evidencia que, no planejamento e realização de aulas, as práticas de ensino são implicadas pelo que Brown (2009)BROWN, M. W. The Teacher-Tool Relationship: theorizing the design and use of curriculum materials. In: REMILLARD, J. T.; HERBEL-EISENMANN, B. A.; LLOYD, G. M. (ed.). Mathematics Teachers at Work: connecting curriculum materials and classroom instruction. New York: Taylor & Francis, 2009. p. 17-36. discute, isto é, a interação entre os recursos das professoras e dos materiais curriculares. Para além disso, essa interação recebe forte influência do que as professoras consideram como sendo o perfil dos estudantes, consequentemente, da realidade de sala de aula, como também observou Soares (2020)SOARES, M. C. R. A. A relação professor-materiais curriculares de Matemática: análise na perspectiva dos conceitos de affordance e agência. 2020. 142f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Centro de Ciências Humanas, Universidade Estadual de Montes Claros, Montes Claros, 2020. em sua pesquisa.

Observamos que as affordances estão diretamente ligadas aos materiais como agência, que operam a relação professor-materiais curriculares. Isso fica evidente ao retornarmos o olhar para as respostas dadas pelas colaboradoras:

[...] o material contempla muitas orientações das habilidades e competências do ano de escolaridade”.

(Entrevista com Amélia, 2021).

[ no material] tem atividades claras e lúdicas [que podem implicar] a construção das situações de aprendizado.

(Entrevista com Margarete, 2021).

As affordances são percebidas à medida que as professoras avaliam os materiais, ou seja, leem e interpretam, o que Remillard e Kim (2017)REMILLARD, J. T.; KIM, O. Knowledge of curriculum embedded mathematics: exploring a critical domain of teaching. Educational Studies in Mathematics, Dordrecht, v. 9, n. 1, p. 65-81, 2017. chamam de conhecimento da Matemática incorporada aos materiais, isto é, conceitos, organização e seleção de conteúdos, teorias subjacentes às tarefas e orientações de ensino, inovações pedagógicas. Ao avaliar materiais, analisa em que medida a realidade dos estudantes campesinos, bem como objetivos da Educação do Campo, são contemplados neles.

A percepção pelas professoras desses elementos, os quais podem estar explícitos ou implícitos, influencia a relação que têm com os materiais curriculares, principalmente, a percepção de affordances, podendo potencializar os processos de ensino e de aprendizagem. Disso, surge o entendimento sobre as professoras como designer pedagógico.

Ao agir como designer, as professoras avaliam propostas de ensino presentes nos materiais, percebem affordances, selecionam partes dos materiais ou identificam pontos que precisam de ajustes. O desenvolvimento curricular é implicado pela avaliação feita pelas professoras, especialmente, na identificação das possibilidades de ação para, assim, reproduzir, adaptar ou improvisar com os materiais curriculares (Brown, 2009BROWN, M. W. The Teacher-Tool Relationship: theorizing the design and use of curriculum materials. In: REMILLARD, J. T.; HERBEL-EISENMANN, B. A.; LLOYD, G. M. (ed.). Mathematics Teachers at Work: connecting curriculum materials and classroom instruction. New York: Taylor & Francis, 2009. p. 17-36.).

Parte das narrativas mostra que as professoras percebem affordances nos materiais. Ainda postulam que quando é considerada a realidade dos estudantes há uma maior potencialidade das práticas de ensino, com os materiais, nas turmas da Educação do Campo, conforme ilustram os excertos seguintes a respeito das características que os materiais precisam possuir para operar o planejamento e a realização das aulas de Matemática:

Os livros terem atividades claras e lúdicas de forma que o aluno consiga obter êxito na construção de conhecimentos por meio da resolução dessas atividades. As características, e a forma que são apresentados os conteúdos, a qualidade das atividades (contextualizadas), dos manuais do professor que funcionam como suporte para nós professores desenvolvermos nossas aulas.

(Entrevista com Margarete, 2021).

Vale focarmos na contextualização dos conteúdos, a qualidade das atividades, a forma que são problematizadas as situações problemas e o que é apresentado no material atende os objetivos das aulas.

(Entrevista com Amélia, 2021).

São considerados na avaliação dos materiais curriculares, para desenvolver as aulas, os seguintes aspectos: físicos no livro didático, as unidades temáticas, a presença e qualidade das ilustrações e a qualidade dos textos, das atividades, as orientações de cada atividades e a apresentação dos conteúdos.

(Entrevista com Estela, 2021).

Disso fica a análise que as professoras pontuam sobre as distintas possibilidades de avaliação e de interação com os materiais, partindo das suas características. Em Stein e Kim (2009)STEIN, M. K.; KIM, G. The role of Mathematics curriculum materials in large-scale urban reform: an analysis of demands and opportunities for teacher learning. In: REMILLARD, J. T; HERBEL-EISENMANN, B. A.; LLOYD, G. M. (ed.). Mathematics Teachers at Work: connecting curriculum materials and classroom instruction. New York: Taylor & Francis, 2009. p. 37-55., encontramos que os artefatos (materiais) podem contemplar possibilidades de transformação das aprendizagens, por meio das possibilidades de ensino (affordances) e do poder de ação (agência). Ao avaliar os materiais para a abordagem dos conteúdos e proposições de situações de aprendizagem, as professoras visam ao que esteja próximo daquilo que avaliam, consideram e decidem como mais adequado a ensinar, segundo seus objetivos e princípios e especificidades da Educação do Campo.

Stein e Kim (2009)STEIN, M. K.; KIM, G. The role of Mathematics curriculum materials in large-scale urban reform: an analysis of demands and opportunities for teacher learning. In: REMILLARD, J. T; HERBEL-EISENMANN, B. A.; LLOYD, G. M. (ed.). Mathematics Teachers at Work: connecting curriculum materials and classroom instruction. New York: Taylor & Francis, 2009. p. 37-55. evidenciam em suas pesquisas a necessidade e importância de se evitar materiais curriculares que sejam estruturados de maneira que dificultem a percepção das affordances pelos professores. Essas autoras trazem apontamentos que evidenciam a transparência de concepções teóricas, didáticas e metodológicas nos materiais. Ao avaliar materiais curriculares de Matemática para turmas da Educação do Campo, as concepções do material são consideradas pelas professoras colaboradoras, pois é avaliando que se é possível identificar affordances e pontos de fragilidades, como ilustra o excerto seguinte:

Relembrando os vários livros didáticos com os quais tive a oportunidade de trabalhar, percebi que em quase todos as metodologias e atividades eram organizadas de forma complexa, onde as unidades temáticas importantes eram pouco trabalhadas em uma sequência que pudesse oportunizar o aluno uma aprendizagem mais concreta, sendo assim, era necessário pesquisas e elaboração de atividades práticas e escritas paralelas para a consolidação do ensino.

(Entrevista com Amélia, 2021).

Ao realizar a avaliação, a professora identifica fragilidades no material, sobretudo, identifica possibilidade de usar o material com adequações. Nesse sentido, a professora Estela afirma que “além do livro, quando necessário, ainda pauto meu trabalho em pesquisas na internet para que meu aluno compreenda melhor as unidades temáticas trabalhadas” (inserir fonte). Respostas como essas mostram a importância da Matemática e seu ensino, mas, especialmente, remetem sobre o que é conceituado por Brown (2009)BROWN, M. W. The Teacher-Tool Relationship: theorizing the design and use of curriculum materials. In: REMILLARD, J. T.; HERBEL-EISENMANN, B. A.; LLOYD, G. M. (ed.). Mathematics Teachers at Work: connecting curriculum materials and classroom instruction. New York: Taylor & Francis, 2009. p. 17-36. sobre a capacidade de design pedagógico.

Entendemos que na avaliação que fazem de materiais curriculares, as professoras identificam as possibilidades de ação e, ao mesmo tempo, assumem-se como agentes do desenvolvimento curricular quando pensam, planejam e, principalmente, balizam os processos de ensino e de aprendizagem (Soares, 2020SOARES, M. C. R. A. A relação professor-materiais curriculares de Matemática: análise na perspectiva dos conceitos de affordance e agência. 2020. 142f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Centro de Ciências Humanas, Universidade Estadual de Montes Claros, Montes Claros, 2020.). Ainda compreendemos, a partir das narrativas, que na relação com os materiais, ao serem identificadas fragilidades neles, as professoras se assumem como agentes; porém, conforme percebem affordances, ocorre deslocamento da agência para os materiais ou, ainda, para o perfil dos estudantes.

7 Avaliação de materiais a partir das agências e affordances

As professoras externam sobre como os processos de ensino e de aprendizagem ocorrem ao educar matematicamente na Educação do Campo. Ao analisar as narrativas das três professoras em respostas à entrevista, identificamos evidências de como avaliam tarefas e orientações de ensino nos materiais ao se relacionarem com eles, o que implica o desenvolvimento curricular de Matemática.

Elas expõem sobre como os materiais podem se constituir como agentes do processo de ensino, evidenciando a percepção de affordances quando se relacionam com eles, como pode ser observado nos seguintes excertos:

São instrumentos que norteiam o ensino e a aprendizagem.

(Entrevista com Margarete, 2021).

[...] esses materiais curriculares vêm contribuindo de forma positiva em minha prática em sala de aula.

(Entrevista com Amélia, 2021).

A organização dos capítulos e unidades é se suma importância, como também a qualidade dos textos e riqueza de imagens.

(Entrevista com Estela, 2021).

As expressões evidenciadas pelas professoras vão ao encontro de construtos de Davis e Krajcik (2005)DAVIS, E.; KRAJCIK, J. Designing educative curriculum materials to promote teacher learning. Educational Researcher, New York, v. 34, n. 3, p. 3-14, 2005., para quem os materiais têm sido indutores de currículo, contribuindo não apenas para o processo de aprendizagem dos estudantes, mas apresentando recursos que colaboram para o conhecimento profissional docente. Nesse sentido, Stein e Kim (2009)STEIN, M. K.; KIM, G. The role of Mathematics curriculum materials in large-scale urban reform: an analysis of demands and opportunities for teacher learning. In: REMILLARD, J. T; HERBEL-EISENMANN, B. A.; LLOYD, G. M. (ed.). Mathematics Teachers at Work: connecting curriculum materials and classroom instruction. New York: Taylor & Francis, 2009. p. 37-55. discutem que os materiais curriculares se constituem como ferramentas mediadoras dos processos de ensino e de aprendizagem, configurando-se um elo entre o que é prescrito no currículo e as práticas de ensino, as quais incluem o planejamento e a realização de aulas.

Para que os materiais curriculares de Matemática, avaliados, selecionados e utilizados pelas professoras, não deixem de contemplar os princípios, objetivos, características e metodologias da Educação do Campo, as entrevistadas narram que:

[É] necessário criar maneiras de inovar o ensino mostrando a real importância dessa área do conhecimento no dia a dia.

(Entrevista com Margarete, 2021).

[...] para que não ocorra apenas uma aprendizagem mecânica e sim uma reflexão sobre o que se está aprendendo, se é necessário um material contextualizado.

(Entrevista com Estela, 2021).

Assim, sobre o uso dos materiais curriculares por professores que ensinam Matemática, pesquisas evidenciam que professores e materiais se constituem como agentes que mobilizam seus recursos para uma relação dinâmica, em que um acarreta a ação do outro (Januario, 2020JANUARIO, G. Agência, affordance e a relação professor-materiais curriculares em Educação Matemática. Ensino em Re-Vista, Uberlândia, v. 27, n. 3, p. 1055-1076, set./dez. 2020.; Soares, 2020SOARES, M. C. R. A. A relação professor-materiais curriculares de Matemática: análise na perspectiva dos conceitos de affordance e agência. 2020. 142f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Centro de Ciências Humanas, Universidade Estadual de Montes Claros, Montes Claros, 2020.). No caso dessas duas professoras, a avaliação que fazem dos materiais indica as affordances para que os estudantes campesinos possam ampliar seus conhecimentos de forma a atribuir sentidos e significados dos povos do campo, quais sejam, evidenciar a importância da Matemática para as práticas cotidianas desses estudantes.

As professoras que colaboraram com a pesquisa indicaram que o material curricular é concebido como ferramenta de apoio à prática, como também considera Sacristán (2013)SACRISTÁN, J. G. O que significa o currículo? In: SACRISTÁN, J. G. (org.). Saberes e incertezas sobre o currículo. Tradução de Alexandra Salvaterra. Porto Alegre: Penso, 2013. p. 16-35. em seus estudos. Pelas narrativas, podemos observar o material se constituindo como agência do desenvolvimento curricular, conforme os excertos:

Considero como bom material aquele que oferece uma linguagem clara e objetiva [...], esses são instrumentos que norteiam o ensino e a aprendizagem, muitos materiais possuem uma sequência volumosa de atividades e que apresente os conteúdos que atendam ao ano de escolaridade, que seja contextualizado com a realidade do chão da escola [Educação do Campo], que apresente muitas opções de ação em sala de aula e que não deixe de seguir o que é disposto nos documentos oficiais que norteiam a Educação.

(Entrevista com Margarete, 2021).

Esses materiais curriculares vêm contribuindo de forma positiva em minha prática em sala de aula, pois consigo através de um bom planejamento alcançar os meus alunos no que diz respeito às suas aprendizagens.

(Entrevista com Amélia, 2021).

Livro que subsidie um ensino diverso e satisfatório com uma abordagem condizente com o ano de escolaridade, proporcionando um ensino significativo.

(Entrevista com Estela, 2021).

A agência localiza-se nos materiais curriculares, bem como as affordances que podem ser percebidas pelas professoras; nos excertos, a identificação da agência está relacionada às affordances percebidas (Januario, 2020JANUARIO, G. Agência, affordance e a relação professor-materiais curriculares em Educação Matemática. Ensino em Re-Vista, Uberlândia, v. 27, n. 3, p. 1055-1076, set./dez. 2020.). Pela avaliação que fazem dos materiais, as professoras identificam as possibilidades de ação ou indicam quais affordances poderiam ser oferecidas pelos materiais para o desenvolvimento curricular em Matemática: linguagem clara e objetiva; contextualizado à Educação do Campo; opções de prática de ensino; atendimento às disposições oficiais; abordagem condizente com o ano escolar. O que consideram as professoras ao avaliar materiais curriculares diz respeito sobre a relação entre os recursos dos materiais do tipo Manual do Professor, os quais determinam os tipos de usos dos materiais e implicam o planejamento e a realização de aulas (Brown, 2009BROWN, M. W. The Teacher-Tool Relationship: theorizing the design and use of curriculum materials. In: REMILLARD, J. T.; HERBEL-EISENMANN, B. A.; LLOYD, G. M. (ed.). Mathematics Teachers at Work: connecting curriculum materials and classroom instruction. New York: Taylor & Francis, 2009. p. 17-36.).

Em seus estudos, Brown (2009)BROWN, M. W. The Teacher-Tool Relationship: theorizing the design and use of curriculum materials. In: REMILLARD, J. T.; HERBEL-EISENMANN, B. A.; LLOYD, G. M. (ed.). Mathematics Teachers at Work: connecting curriculum materials and classroom instruction. New York: Taylor & Francis, 2009. p. 17-36. relaciona materiais curriculares a uma partitura musical, em forma de analogia, sendo o professor um intérprete. Essa interpretação refere-se ao modo como professores leem, interpretam, avaliam, selecionam e usam os materiais curriculares, sendo operada pela agência. Pelas entrevistas concedidas, observamos que as professoras se assumem como agência no desenvolvimento curricular, pois são elas que interpretam a partitura, ou seja, o conhecimento da Matemática incorporada aos materiais como destacam Remillard e Kim (2017)REMILLARD, J. T.; KIM, O. Knowledge of curriculum embedded mathematics: exploring a critical domain of teaching. Educational Studies in Mathematics, Dordrecht, v. 9, n. 1, p. 65-81, 2017., conforme podemos observar nos excertos seguintes:

A maior parte dos materiais curriculares utilizados para pesquisa ou até mesmo embasar o trabalho da Educação do Campo fornecem informações que norteiam esse trabalho que requer, quase sempre, um aprimoramento por meio de pesquisas de atividades para o atendimento adequado do aluno e suas especificidades.

(Entrevista com Amélia, 2021).

O Livro deve mediar, e mediar não é dar a resposta, é conduzir ao raciocínio de maneira segura e dinâmica, motivando o aluno, construindo com ele a evolução de seu aprendizado em todos os momentos das dificuldades, pensando assim nem sempre os materiais dispõem os conteúdos por essa lógica, por isso que, por vezes, tenho que trabalhar com atividades adicionais.

(Entrevista com Margarete, 2021).

As apresentações, as metodologias são pensadas na sua grande maioria de maneira genérica e isso por vezes julgo, que distancia os materiais das subjetividades e faço as minhas intervenções.

(Entrevista com Estela, 2021).

As professoras revelam perceber não apenas as affordances, mas a ausência delas, ou seja, pontos de fragilidade nos materiais, fato que as levam a fazer intervenções no material selecionado, ou parte dele, teorizado por Brown (2009)BROWN, M. W. The Teacher-Tool Relationship: theorizing the design and use of curriculum materials. In: REMILLARD, J. T.; HERBEL-EISENMANN, B. A.; LLOYD, G. M. (ed.). Mathematics Teachers at Work: connecting curriculum materials and classroom instruction. New York: Taylor & Francis, 2009. p. 17-36. como sendo o uso do tipo adaptação. A percepção de ausência de affordances leva à infidelidade curricular e colabora para o deslocamento de agência, no caso, dos materiais para as professoras (Januario, 2020JANUARIO, G. Agência, affordance e a relação professor-materiais curriculares em Educação Matemática. Ensino em Re-Vista, Uberlândia, v. 27, n. 3, p. 1055-1076, set./dez. 2020.).

Gibson (1986)GIBSON, J. J. The ecological approach to visual perception. New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates, 1986. aborda que as affordances não dependem do indivíduo, podendo ser ou não percebidas; para esse autor, as affordances existem como oportunidades de ação e estão nos variados objetos — e incluímos os materiais. Os excertos seguintes ilustram a percepção de affordances pelas professoras, ou o que consideram ser possibilidades de ação, quando avaliam materiais curriculares para a Educação do Campo:

Um bom material curricular para mim é aquele que oferece ferramentas para o bom embasamento, ou seja, um suporte com conteúdos, esclarecimentos e atividades sobre os conceitos apresentados. Assim consolidando-se como fonte de pesquisas para o bom planejamento e de ação frente ao desenvolvimento de uma boa aula.

(Entrevista com Amélia, 2021).

Quando a linguagem do livro, as ilustrações bem como os exemplos dos conteúdos trazem a realidade do Campo. Os princípios, objetivos, características, especificidades e abordagens metodológicas da Educação do Campo são atingidos possibilitando a oferta de um ensino significativo.

(Entrevista com Margarete, 2021).

As características dos materiais e os princípios e especificidades da Educação do Campo [são fatores que] balizam se o ensino vai ser contextualizado, como ele irá acontecer e se ele atenderá ou não as necessidades dos estudantes.

(Entrevista com Estela, 2021).

As professoras deixam entrever que os materiais curriculares atuam como agência; elas também atuam como agência, principalmente ao identificar pontos de fragilidade quando avaliam os materiais. Podemos associar o deslocamento de agência ao conceito de affordances, ou ausência de sua percepção, o que implica o planejamento e a realização de aulas a partir da avaliação que fazem de materiais curriculares de Matemática para turmas da Educação do Campo.

8 Ideias finais

Sem deixar distante do olhar o que objetivamos com o estudo aqui retratado — compreender como os conceitos de affordance e agência influenciam a avaliação de materiais curriculares por professoras que ensinam Matemática na Educação do Campo — analisamos as narrativas de três professoras em entrevista concedida, a qual versou sobre a relação professor-materiais curriculares, particularmente, considerando a avaliação que fazem de materiais ao planejar e realizar aulas. Observamos que no desenvolvimento curricular, ou seja, avaliação de materiais, planejamento e realização de aulas, as professoras que ensinam Matemática na Educação do Campo acessam diferentes recursos dos materiais para colocar em prática princípios e especificidades dessa modalidade de ensino. Acessam recursos para criar oportunidades de aprendizagem aos estudantes campesinos, com tarefas e tratamento de conceitos de maneira contextualizada e, consequentemente, significativas.

No estudo, as professoras se apresentam como agentes que trazem seus conhecimentos, crenças e valores para avaliar os materiais e tomar decisões sobre que material, ou parte dele, utilizar, bem como para os diferentes modos de interação, prevalecendo o uso como reprodução. Pelas entrevistas concedidas, é possível observar que, além das professoras se assumirem como agência, os materiais agem como sujeitos ativos que determinam o desenvolvimento curricular, implicando as práticas de ensinar e de aprender Matemática.

As affordances, presentes nos materiais e percebidas pelas professoras, ou indicadas por elas como possibilidades de ação necessárias de incorporação nos materiais, provocam o deslocamento de agência. Essas affordances, segundo as professoras colaboradoras, referem-se à abordagem dada aos conteúdos matemáticos presentes nas tarefas; à contextualização das tarefas conforme a identidade dos povos do campo; à qualidade de produção do material no que diz respeito à linguagem, imagens e coerência da abordagem com o ano escolar. Para além disso, referem-se ao quanto o material curricular, por meio das orientações de ensino, apresenta a abordagem das concepções de seus elaboradores, ou seja, em certa medida há um diálogo do autor do material com as professoras. Como transparência do material, esse diálogo se faz necessário na medida que pode proporcionar às professoras elementos que as ajudem na tomada de decisões quanto ao desenvolvimento curricular, facilitando as adaptações, o redesenho das abordagens conceituais, didáticas e metodológicas. Mais que isso, esse diálogo oportuniza às professoras a ampliação de seus conhecimentos sobre a Matemática e seu ensino no âmbito da Educação do Campo.

É sabido que o material não abarca todas as respostas para os questionamentos ou expectativas das professoras, ou não apresentam todas as possibilidades para a ação. Em relação ao estudo aqui apresentado, sobretudo pelo que as professoras responderam à entrevista, identificamos o quão se faz necessário que o material curricular apresente propostas contextualizadas aos povos do campo. Isso pode ser reflexo da descontinuidade do PNLD-Campo, exigindo das professoras a mobilização de conhecimentos não só da Matemática e seu ensino, mas dos princípios e especificidades da Educação do Campo, sendo esse aspecto affordances que possibilitam aos estudantes construir aprendizagens com sentidos e significados a partir da identidade, valores, cultura e conhecimentos dos povos campesinos.

A descontinuidade do PNLD-Campo, importante política pública educacional, força as professoras a adaptarem e a buscarem complementação para além dos materiais disponibilizados e utilizados por elas para atendimento às necessidades dos estudantes. Tal interrupção implica a agência como uma competência das professoras que ensinam Matemática nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental em escolas da Educação do Campo e configura ausência de princípios e especificidades dessa modalidade de ensino na apresentação e abordagem dos conteúdos, podendo ser observados, conforme expuseram as professoras, nas tarefas descontextualizadas e sem problematização dos povos do campo, desaguando, diretamente, em como os materiais são avaliados e usados.

Entendemos que o deslocamento de agência para o perfil dos estudantes, dentre outras causas, deve-se à ausência de abordagens contextualizadas para os povos do campo. Assim, considerar unicamente o perfil dos estudantes como ponto de partida para a avaliação e seleção de tarefas nos materiais curriculares pode levar as professoras a desconsiderar inovações pedagógicas apresentadas neles, sendo essas inovações: abordagens diferenciadas de conteúdos, estratégias metodológicas, organização de conteúdos, sugestão de organização de tempos e espaços, propostas de modalidades organizadoras. Logo, embora seja importante considerar o nível de aprendizagem da turma, o que desperta suas atenções em termos de problemas sociais, bem como suas dificuldades, os estudantes como agência podem levar à avaliação de materiais curriculares que implicará práticas de ensino que limitam suas experiências de aprendizagem, o que pode levar, muitas vezes, as professoras a adotarem práticas tradicionais de desenvolvimento do currículo de Matemática.

É na avaliação que fazem dos materiais curriculares que as professoras têm a possibilidade de ponderar e decidir sobre qual material, ou parte dele, usar ao planejar e realizar aulas, uma vez que leem, interpretam, avaliam e selecionam tarefas e orientações de ensino, além de conhecer inovações pedagógicas. Disso, lançamos holofotes para a importância da avaliação dos materiais a serem usados na Educação do Campo, especialmente no contexto de descontinuidade de importante política pública educacional, como é o caso do PNLD-Campo, o que leva professoras e professores a mobilizarem seus recursos para fazer escolhas que melhor atendam às expectativas dos povos campesinos e aos princípios da Educação do Campo, considerando a Matemática como disciplina escolar que colabora para o processo de uma educação que leve os estudantes a se reconhecerem como sujeitos do campo, a constituírem sua identidade e a valorizarem seus saberes, valores e tradições.

Referências

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    O projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Montes Claros em 31 ago. 2021 e aprovado em 11 out. 2021, processo n. 51423021.0.0000.5146 e Parecer n. 5.032.434. As professoras também assinaram o Termo de Cessão de Direitos sobre a utilização da entrevista concedida e sobre sua textualização.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    19 Jul 2023
  • Aceito
    07 Dez 2023
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