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A Matemática no Ensino Técnico Integrado ao Médio: um levantamento de condições para integração de recursos

Technical Teaching Mathematics Integrated to Middle School: a survey of conditions for resource integration

Resumo

Este artigo levanta possibilidades de integração entre recursos da Matemática e de disciplinas específicas de um curso da Educação Profissional, na modalidade de Ensino Técnico integrado ao Médio, inicialmente a partir de uma análise da distribuição de conteúdos matemáticos nas respectivas disciplinas. A pesquisa foi realizada no IFPE, campus Garanhuns, e delimitada ao curso técnico em Eletroeletrônica. A análise dos dados, obtidos por meio das respostas a um questionário enviado como formulário eletrônico aos docentes da área, aponta potencialidades de integração entre recursos próprios do Ensino Técnico do curso e conteúdos matemáticos para as aulas de Matemática, com discussão de algumas propostas interdisciplinares, elaboradas a partir das respostas dos docentes ao questionário.

Ensino Médio Integrado; Ensino Técnico; Abordagem Instrumental; Interdisciplinaridade

Abstract

This paper raises integration possibilities between Mathematical and Professional Education specific course contents within the modality of Technical Teaching integrated to High School, based on a distribution analysis of Mathematical contents in the respective disciplines and the areas’ resource interactions. The study was undertaken in IFPE campus Garanhuns, specifically with the Electrotechnics technical course. The data analysis obtained from teachers’ answers to an electronic questionnaire shows potentialities for integrating technical artifacts within Mathematics contents in Mathematics classes, with some interdisciplinary proposals built from the teachers’ responses.

Integrated High School; Technical School; Instrumental Approach; Interdisciplinarity

1 Introdução

O Ensino Técnico e Profissional brasileiro vem sofrendo diversas modificações ao longo dos anos. Em 2004, por meio do decreto nº 5.154/04, foram definidas novas orientações para a organização da Educação Profissional, dentre as quais a inclusão da modalidade de Ensino Técnico integrado ao Médio ( BRASIL, 2004BRASIL. Parecer CNE/CEB 39/ 2004, 8 de dezembro de 2004. Aplicação do Decreto nº 5.154/2004 na Educação Profissional Técnica de nível médio e no Ensino Médio. Brasília: MEC, 2004. ). A referida norma explicita que o Ensino Médio e a Educação Profissional técnica de nível médio podem ser articulados de forma integrada. Esta modalidade de ensino é oferecida apenas “a quem já tenha concluído o ensino fundamental, sendo o curso planejado de modo a conduzir o aluno à habilitação profissional técnica de nível médio, na mesma instituição de ensino, contando com matrícula única para cada aluno” (artigo 4º, § 1º, inciso I). Assim, o estudante tem a opção de cursar o Ensino Médio ao mesmo tempo em que cursa disciplinas técnicas específicas de uma formação profissional, de maneira integrada, superando, em tese, a dicotomia entre formação geral e formação específica.

Entretanto, tal mudança pressupõe uma explicitação dos princípios e diretrizes que permeiam esta modalidade de ensino, visando orientar as instituições ofertantes na condução de tal integração. Neste contexto, em 2007 foi elaborado um documento-base pela Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica, vinculada ao Ministério da Educação (SEMTEC/MEC), com o intuito de contextualizar os

embates que estão na base da opção pela formação integral do trabalhador, expressa no Decreto nº 5.154/2004, apresentando os pressupostos para a concretização dessa oferta, suas concepções e princípios e alguns fundamentos para a construção de um projeto político-pedagógico integrado ( BRASIL, 2007BRASIL. Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrada ao Ensino Médio: Documento base. Brasília: MEC/SETEC, 2007. , p. 4).

Desta forma, para que o Ensino Técnico integrado ao Médio seja ofertado adequadamente, deve existir, de fato, uma relação entre disciplinas propedêuticas e profissionais. Este estudo está direcionado, especialmente, às possibilidades de integração entre a Matemática e as especificidades do curso técnico em Eletroeletrônica.

De acordo com Gonçalves e Pires (2014)GONÇALVES, H. J. L.; PIRES, C. M. C. Educação Matemática na Educação Profissional de Nível Médio: análise sobre possibilidades de abordagens interdisciplinares. Bolema, Rio Claro, v. 28, n. 48, p. 230-254, abr. 2014. , a associação da Matemática ao contexto profissional colabora para que os estudantes tenham uma visão de mundo menos fragmentada, mais articulada, sendo imprescindível a necessidade de uma abordagem interdisciplinar na formação destes futuros profissionais técnicos, coerente com as reais demandas do mundo do trabalho. Ademais, esta interdisciplinaridade deveria ser uma das principais características da referida modalidade de ensino.

O presente estudo, que é um recorte de tese de doutoramento da primeira autora, inicia-se a partir do seu desafio diário de ensinar Matemática em um curso técnico, ao atuar como professora de Matemática de uma instituição de ensino técnico profissional – o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco (IFPE).

Um dos princípios que fundamenta a metodologia de ensino defendida pela instituição é o da interdisciplinaridade , como consta no Projeto Pedagógico do IFPE ( BRASIL, 2014BRASIL. Plano de desenvolvimento institucional – PDI 2014/2018. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco. Recife: IFPE/SETEC/MEC, 2014. , p. 3, grifo nosso):

O ambiente mais favorável à aprendizagem é o interdisciplinar , considerando que as práticas interdisciplinares contribuem para a formação simultânea do estudante nos aspectos técnico e prático , pluralista e crítico, implicando uma qualidade social e política, pois, por INTERDISCIPLINARIDADE, enquanto princípio pedagógico, compreende-se que todo conhecimento é construído em um processo dialógico permanente com outros conhecimentos que se completam, apontando para a necessidade do seu domínio, com vistas a que essas conexões entre si se efetivem.

Assim, é essencial que haja esta relação entre disciplinas de formação geral, como a Matemática, e disciplinas específicas do curso técnico, no que se refere ao Ensino Técnico integrado ao Médio. Nesta modalidade educacional, os discentes possuem uma única grade curricular, que contempla tanto disciplinas gerais como técnicas. Além disso, cada curso dispõe de espaços e artefatos tecnológicos próprios, utilizados no ensino de suas respectivas disciplinas técnicas. Entretanto, estudos como Gonçalves e Pires (2014)GONÇALVES, H. J. L.; PIRES, C. M. C. Educação Matemática na Educação Profissional de Nível Médio: análise sobre possibilidades de abordagens interdisciplinares. Bolema, Rio Claro, v. 28, n. 48, p. 230-254, abr. 2014. , Carvalho, Nacarato e Reinato (2016) e Santos, Nunes e Viana (2017) – realizados em diferentes Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia – apontam a falta de articulação entre a Matemática e as disciplinas próprias dos cursos técnicos. Os referidos trabalhos também indicam a viabilidade desta integração.

Para levantar as possibilidades de integração de ambos os tipos de disciplinas, primeiramente é necessária uma análise cronológica dos conteúdos matemáticos abordados em cada matéria. A abordagem pode se dar das seguintes formas:

  1. Simultaneamente, em ambas as disciplinas;

  2. Inicialmente na disciplina de Matemática;

  3. Inicialmente na disciplina técnica.

Aqui, analisaremos a distribuição curricular por ano letivo, considerando a necessidade de se pensar detalhadamente as abordagens nos casos (i) e (iii), para: permitir que o estudante compreenda bem conteúdos de outras disciplinas que dependem dos da Matemática; e conseguir aproveitar melhor e com diversas abordagens o conhecimento desenvolvido em outras disciplinas técnicas pelos alunos, além dos artefatos técnicos apropriados por eles.

No primeiro caso, o docente de Matemática pode introduzir o conteúdo no contexto profissional em que está sendo abordado, inclusive, com a possibilidade de trabalhar com o professor da área técnica de forma conjunta. Neste cenário, surge um leque de possíveis integrações de recursos, além da motivação do aluno por estar estudando numa perspectiva interdisciplinar ( FAZENDA, 2002FAZENDA, I. C. A. Interdisciplinaridade: um projeto em parceria. 5. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2002. ).

Quando o conteúdo é visto na Matemática antes de ser trabalhado na disciplina específica do curso, é facultado ao docente da área técnica abordar o tema em questão, uma vez que o aluno já estará familiarizado. Já o professor de Matemática pode, como exemplos de aplicações práticas em que o assunto é demandado, explorar situações específicas do curso técnico a serem estudadas como forma de aplicação na Matemática.

Finalmente, quando o tema matemático surge inicialmente em um contexto profissional, o professor de Matemática pode utilizar a abordagem como motivação ao apresentá-lo em sua disciplina. Entretanto, é preciso pensar em como o conteúdo será introduzido e trabalhado na disciplina técnica. Em qualquer dos casos, uma integração de recursos técnicos ao ensino de disciplinas gerais pode facilitar a compreensão de conteúdos gerais e específicos.

Neste sentido, o presente artigo tem como objetivo levantar as possibilidades de integração entre a Matemática e as disciplinas profissionais do curso, na modalidade de Ensino Técnico integrado ao Médio, inicialmente por meio de uma análise da distribuição curricular de conteúdos matemáticos nas respectivas disciplinas. Por se tratar de uma modalidade educacional em que artefatos tecnológicos são essenciais à formação do estudante, utilizamo-nos da gênese instrumental ( RABARDEL, 1995RABARDEL, P. Les hommes et les technologies: une approchecognitive des instruments contemporains. Paris : Armand Colin, 1995. ) para suportar nossas reflexões sobre tal integração. A pesquisa foi delimitada ao curso técnico em Eletroeletrônica e realizada no IFPE campus Garanhuns.

Iniciamos este texto discutindo o conceito de interdisciplinaridade dentro do contexto da Educação Profissional integrada ao Ensino Médio, assim como sua importância no que se refere à integração entre as áreas técnica e geral – particularmente a Matemática – nesta modalidade de ensino. Em seguida, esclarecemos alguns conceitos fundamentais para o entendimento da ideia de gênese instrumental e sua relevância para o presente trabalho. Posteriormente, explicitamos os procedimentos metodológicos adotados, finalizando com uma análise dos dados obtidos e sugestões de como pode ser feita a integração entre a Matemática e o curso técnico.

2 Ensino Técnico Integrado e Interdisciplinaridade

Em relação à integração com o Ensino Médio, três estruturas de organização para a Educação Profissional técnica de nível médio são previstas por lei (decreto nº 5.154/04): integrada, concomitante e subsequente . Enquanto as duas últimas demandam matrículas independentes da do ensino médio, no Ensino Técnico integrado ao Médio o processo é único. Isto requer algumas adaptações para dar conta desta modalidade ser vista de maneira holística, e não como a soma de partes, de cursos distintos. Aqui, o Ensino Técnico e o Médio estão imbricados, conectados. Precisam ser considerados como um único curso, e não devem ser “desenvolvidos de forma bipolar, com uma parte de educação geral e outra de Educação Profissional” ( BRASIL, 2004BRASIL. Parecer CNE/CEB 39/ 2004, 8 de dezembro de 2004. Aplicação do Decreto nº 5.154/2004 na Educação Profissional Técnica de nível médio e no Ensino Médio. Brasília: MEC, 2004. , p. 10).

O Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) que trata da Educação Profissional Técnica de nível médio integrada ao Ensino Médio traz várias reflexões a respeito do assunto. De acordo com o documento, os conhecimentos de formação geral e os específicos de uma área profissional podem ser trabalhados de maneira colaborativa, complementar, possibilitando uma compreensão global da realidade. O contexto e problemas relacionados à área profissional podem ser utilizados para dar sentido a disciplinas de formação geral, e este seria um diferencial do Ensino Médio integrado à Educação Profissional ( BRASIL, 2007BRASIL. Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrada ao Ensino Médio: Documento base. Brasília: MEC/SETEC, 2007. ). Neste sentido, as disciplinas gerais e específicas não devem ser trabalhadas independentemente, desconectadas, mas sim relacionadas, tendo conteúdos associados e complementares.

É neste contexto que surge o conceito de interdisciplinaridade . Embora não exista definição unívoca e até mesmo haja uma banalização por parte de muitos profissionais em relação a este conceito, como bem concluem Gonçalves e Pires (2014)GONÇALVES, H. J. L.; PIRES, C. M. C. Educação Matemática na Educação Profissional de Nível Médio: análise sobre possibilidades de abordagens interdisciplinares. Bolema, Rio Claro, v. 28, n. 48, p. 230-254, abr. 2014.1 1 Recomendamos a leitura do artigo para aprofundar a discussão sobre o conceito de interdisciplinaridade. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/bolema/v28n48/12.pdf . em sua revisão de literatura, neste presente trabalho entendemos interdisciplinaridade como “processos de interação entre conhecimento racional e conhecimento sensível, e de integração entre saberes tão diferentes, e, ao mesmo tempo, indissociáveis na produção de sentido da vida” ( PEREIRA, 2009PEREIRA, I. B. Interdisciplinaridade (Verbete). In: Dicionário da Educação Profissional em Saúde. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz/Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, 2009. Disponível em: http://www.sites.epsjv.fiocruz.br/dicionario/verbetes/int.html. Acesso em: 10 maio 2021.
http://www.sites.epsjv.fiocruz.br/dicion...
, s.p). Dentre essas integrações de saberes situam-se os diferentes tipos de disciplinas ofertadas na modalidade de ensino em discussão. De acordo com o PDE do Ensino Técnico integrado ao Médio,

a interdisciplinaridade aparece, aqui, como necessidade e, portanto, como princípio organizador do currículo e como método de ensino-aprendizagem, pois os conceitos de diversas disciplinas seriam relacionados à luz das questões concretas que se pretende compreender ( BRASIL, 2007BRASIL. Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrada ao Ensino Médio: Documento base. Brasília: MEC/SETEC, 2007. , p. 52, grifo nosso).

Neste cenário, a interdisciplinaridade é elemento norteador da integração entre a formação técnica profissional e a formação geral relativa ao Ensino Médio.

A elaboração do currículo deve ser feita conjuntamente por docentes das áreas gerais e técnicas, para organizá-lo de forma que possibilite a sincronia entre as disciplinas próprias do Ensino Médio e da Educação Profissional, levando sempre em consideração o princípio da interdisciplinaridade. De acordo com as orientações a respeito da Educação Profissional,

Não se trata de subtrair carga horária destinada ao Ensino Médio ou ao ensino técnico de nível médio, considerados fundamentais para a formação integral do cidadão trabalhador. É preciso buscar um tratamento curricular integrado que garanta isso tudo de forma sincrônica, eficiente e eficaz ( BRASIL, 2004BRASIL. Parecer CNE/CEB 39/ 2004, 8 de dezembro de 2004. Aplicação do Decreto nº 5.154/2004 na Educação Profissional Técnica de nível médio e no Ensino Médio. Brasília: MEC, 2004. , p. 10).

Portanto, para que seja possível a integração entre a formação básica e profissional, superando a dicotomia entre conhecimentos gerais e específicos, um dos pressupostos diz respeito a um único currículo que relacione ambas as áreas de maneira orgânica ( BRASIL, 2007BRASIL. Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrada ao Ensino Médio: Documento base. Brasília: MEC/SETEC, 2007. ).

Apesar de ser fundamental a integração entre componentes curriculares de ambas as áreas de formação, outros fatores se fazem necessários para uma efetiva interdisciplinaridade. Um deles diz respeito às metodologias que professores podem adotar para integrar a Matemática e as disciplinas específicas do curso técnico lecionado. Gonçalves e Pires (2014)GONÇALVES, H. J. L.; PIRES, C. M. C. Educação Matemática na Educação Profissional de Nível Médio: análise sobre possibilidades de abordagens interdisciplinares. Bolema, Rio Claro, v. 28, n. 48, p. 230-254, abr. 2014. fazem algumas sugestões, como a elaboração de documentos curriculares com propostas de atividades que tratem de tematizações transversais, utilizando a Modelagem Matemática para abordar a matéria de maneira interdisciplinar.

Por meio de um levantamento dos possíveis recursos empregados no processo de integração entre a Matemática e a área técnica de um curso profissionalizante, consideraremos os equipamentos ou artefatos utilizados nas disciplinas técnicas do curso, em termos de viabilidade de uso nas aulas de Matemática, constituindo-se como característica diferencial da modalidade de Ensino Técnico integrado ao Médio. E é nesse sentido que trazemos à tona a Abordagem Instrumental ( RABARDEL, 1995RABARDEL, P. Les hommes et les technologies: une approchecognitive des instruments contemporains. Paris : Armand Colin, 1995. ), com a gênese instrumental, para pensar a transformação que o professor pode fazer de artefatos em instrumentos no ensino da Matemática ou no ensino interdisciplinar.

3 Gênese Instrumental

Ao fundamentar-se no campo da ergonomia cognitiva, Rabardel (1995)RABARDEL, P. Les hommes et les technologies: une approchecognitive des instruments contemporains. Paris : Armand Colin, 1995. discute a definição de alguns conceitos que dão suporte ao desenvolvimento da ideia de gênese instrumental . Inicialmente, utiliza o termo artefato para designar objetos que sofreram algum tipo de transformação humana, podendo ser ou não materiais. Enquanto o artefato é apenas o objeto material ou abstrato por si só, resultante da cultura humana – como uma calculadora ou um software –, o instrumento é o que o sujeito constrói a partir deste objeto ( TROUCHE; DRIJVERS, 2014TROUCHE, L.; DRIJVERS, P. Webbing and orchestration: Two interreletade views on digital tools in mathematics education, 2014. ). Assim, o processo de gênese instrumental se caracteriza na transformação de um artefato em um instrumento para determinado sujeito. Neste estudo, levaremos em consideração o processo de gênese instrumental do professor de Matemática, ao utilizar situações e artefatos próprios da área técnica do curso em que leciona, como elementos centrais à construção da integração entre disciplinas.

Cada curso técnico dispõe de instalações físicas, laboratórios e equipamentos próprios, adequados a atender as suas necessidades no que se refere ao ensino ( BRASIL, 2001BRASIL. Educação Profissional: Legislação Básica. Brasília: MEC/SETEC, 2001. ). Considerando estes recursos como artefatos, na definição de Rabardel (1995)RABARDEL, P. Les hommes et les technologies: une approchecognitive des instruments contemporains. Paris : Armand Colin, 1995. , investigamos a viabilidade de o professor de Matemática utilizar alguns deles em sua aula, trabalhando conteúdos matemáticos relacionando-os a temáticas técnicas. Para isso, o docente precisa se apropriar desses artefatos, desenvolvendo esquemas de ação, entendidos na concepção de Vergnaud (2009)VERGNAUD, G. The theory of conceptual fields. Human development, Saint-Denis, v. 52, n. 2, p. 83-94, 2009. . O autor define esquema como “a organização invariante da atividade para uma determinada classe de situações” ( VERGNAUD, 2009VERGNAUD, G. The theory of conceptual fields. Human development, Saint-Denis, v. 52, n. 2, p. 83-94, 2009. , p. 88, tradução nossa).

É certo que, visando sua gênese instrumental, o professor de Matemática precisará estudar sobre a parte técnica do curso lecionado, em graus variados, a depender dos artefatos em questão e da temática do curso profissional a ser trabalhada, o que demandará uma colaboração dos docentes das disciplinas técnicas.

4 Procedimentos metodológicos

A nossa pesquisa envolve um levantamento das possibilidades de integração entre a Matemática e as disciplinas próprias de cursos técnicos. Para maior delimitação de nosso objeto de estudo, nos restringimos ao curso técnico em Eletroeletrônica, integrado ao Ensino Médio, ministrado no Instituto Federal de Pernambuco, campus Garanhuns. A escolha se deu por ser um dos cursos ofertados na instituição que apresenta grande relação entre suas disciplinas técnicas e a Matemática. Com duração de quatro anos, o curso é composto por 13 disciplinas técnicas, além de disciplinas de formação complementar, e as disciplinas gerais próprias do Ensino Médio, todas anuais ( BRASIL, 2012BRASIL. Projeto Pedagógico do curso técnico em Eletroeletrônica integrado ao ensino médio. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco. Recife: IFPE/SETEC/MEC, 2012. ).

No 1º ano, os alunos cursam apenas duas disciplinas técnicas, totalizando quatro horas/aulas semanais, sendo as demais relativas ao Ensino Médio. Já durante os 2º e 3º anos do curso, a carga horária técnica aumenta para oito horas/aulas semanais, distribuídas por três disciplinas anuais. No 4º ano, a maior parte da grade curricular dos discentes é composta por disciplinas técnicas, constituindo-se em 16 horas/aulas semanais divididas em cinco disciplinas ( Quadro 1 ). Em cada ano também é ministrada uma disciplina de Matemática de três horas/aulas semanais, totalizando quatro disciplinas desta matéria ( BRASIL, 2012BRASIL. Projeto Pedagógico do curso técnico em Eletroeletrônica integrado ao ensino médio. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco. Recife: IFPE/SETEC/MEC, 2012. ).

Quadro 1
– Distribuição de disciplinas técnicas por ano do curso Técnico em Eletroeletrônica

Com o intuito de analisar a ordem em que os conteúdos matemáticos são trabalhados nas disciplinas técnicas ofertadas no referido curso em relação às disciplinas de Matemática, além da possibilidade de integração de temáticas e artefatos próprios destas disciplinas técnicas nas aulas de Matemática, elaboramos um questionário em formato de formulário eletrônico, o qual foi enviado por e-mail a todos os professores da área técnica pesquisada. Ao respondê-lo, cada docente identificou a disciplina em questão, o ano escolar em que ela é ministrada, os conteúdos matemáticos necessários para a compreensão da mesma, e os artefatos utilizados para trabalhar alguns temas. No total, obtivemos respostas de 10 professores diferentes, abrangendo as 13 disciplinas técnicas, já que alguns deles contribuíram a respeito de mais de uma disciplina. Os dados foram coletados entre agosto e novembro de 2018.

O questionário elaborado serviu como instrumento de colaboração dos professores das disciplinas técnicas em relação à disciplina de Matemática. Por meio das respostas, esperávamos compreender em que momento do curso técnico os conteúdos matemáticos são estudados nas disciplinas profissionais. Ademais, esperávamos fazer um levantamento de alguns artefatos utilizados nas aulas técnicas, para posterior análise da viabilidade de quais deles poderiam ser utilizados nas aulas de Matemática, a fim de relacionar alguns conteúdos matemáticos ao curso técnico, em uma perspectiva de aplicação e integração.

De posse dos dados, inicialmente realizamos uma comparação entre os momentos em que os conteúdos matemáticos são trabalhados nas disciplinas técnicas e na disciplina de Matemática, identificando a ordem cronológica em que são demandados e em que são ministrados. Elaboramos diagramas comparando estes momentos.

Em seguida, fizemos um levantamento dos artefatos técnicos utilizados para estudar temas específicos, escolhendo algumas das respostas para analisar a possibilidade de uso nas aulas de Matemática, considerando o processo de gênese instrumental do professor desta disciplina. Como critérios de seleção, levamos em conta a riqueza de detalhes da resposta, o domínio exigido do professor de Matemática para utilização do artefato e a estrutura física do campus para o uso destes recursos. Após esta análise, discutimos as sugestões de artefatos técnicos que poderiam ser utilizados para trabalhar determinados conteúdos matemáticos, a fim de articular a Matemática com as disciplinas profissionais de maneira interdisciplinar.

5 Análise e discussão dos resultados

Iniciaremos nossa análise com foco nos conteúdos matemáticos demandados para o ensino e aprendizagem das disciplinas técnicas. Primeiramente, dentre as treze disciplinas, apenas duas delas – Eletrônica Digital (2º ano) e CLP (4º ano) – não demandam conteúdos matemáticos estudados no Ensino Médio, trabalhando temas como Álgebra de Boole e Álgebra Aristotélica.

Das duas disciplinas ministradas no 1º ano, observamos que ambas demandam diversos conteúdos que são trabalhados na Matemática apenas no 2º ano ( Quadro 2 ), o que, dependendo da forma em que os temas são abordados, pode culminar em dificuldades dos alunos na disciplina técnica, uma vez que ainda não tiveram contato com os assuntos matemáticos requeridos na compreensão da mesma. Ao mesmo tempo, isto possibilita ao professor de Matemática introduzir estes conteúdos num contexto profissional já conhecido pelos discentes.

Quadro 2
– Conteúdos Matemáticos das disciplinas técnicas do 1º ano

Ao fazer esta mesma análise no currículo do 2º ano, observamos que o padrão se mantém. Ou seja, os professores das disciplinas técnicas trabalham temas que demandam conteúdos matemáticos os quais serão discutidos na disciplina de Matemática apenas em anos posteriores, embora estejam em menor quantidade se comparados às disciplinas técnicas do 1º ano ( Quadro 3 ).

Quadro 3
– Conteúdos Matemáticos das disciplinas técnicas do 2º ano

A análise feita de maneira análoga nos componentes curriculares das disciplinas do 3º e 4º ano não aponta grande diferença entre os momentos em que os conteúdos matemáticos são abordados nas matérias técnicas e na Matemática, ou seja, não apresenta conteúdos a serem estudados apenas posteriormente nas disciplinas de Matemática.

No que concerne aos artefatos utilizados para tratar de temáticas da área técnica que envolvam conteúdos matemáticos, analisaremos agora as respostas mais satisfatórias em termos de riqueza de detalhes, preenchimento de todos os campos do questionário e sugestões de artefatos. Para cada resposta relativa a uma disciplina, deixamos espaço para a sugestão de três temáticas, assim como para os artefatos próprios do curso técnico utilizados para trabalhá-las. As respostas a serem analisadas são correspondentes às disciplinas de Fundamentos de Eletroeletrônica, Instalações elétricas e Microcontroladores e microprocessadores .

Iniciaremos a discussão analisando a disciplina Fundamentos de Eletroeletrônica, cursada no 1º ano. A primeira temática proposta pelo docente foi a Lei de Ohm , a qual está relacionada ao conteúdo matemático de Função Afim , como relatado em resposta ao formulário eletrônico:

A Lei de Ohm relaciona, de forma linear, três grandezas fundamentais em um circuito elétrico, a saber, resistência, tensão e corrente elétrica. Neste tema, o multímetro é um instrumento de medida utilizado para validar a Lei de Ohm. Esse instrumento é capaz de aferir as grandezas referidas anteriormente, quando ministradas as aulas em laboratório. Uma fonte de tensão é utilizada para fornecer energia a um resistor. Com o multímetro, é possível aferir a corrente que passa pelo mesmo resistor e, portanto, comparar com os cálculos previamente efetuados com auxílio da Lei de Ohm.

(Professor da disciplina Fundamentos de Eletrônica – resposta ao questionário, 2018).

Faremos uma análise mais aprofundada desta proposta em relação às demais, uma vez que foi a selecionada para as próximas etapas metodológicas da tese de doutorado.

O professor de Matemática pode, ao apresentar à turma o conteúdo de função afim – especificamente o caso de função linear –, usar como exemplo a Primeira Lei de Ohm , que diz que um condutor mantido a uma temperatura constante terá uma intensidade elétrica proporcional à sua tensão ( GOUVEIA, 2018GOUVEIA, R. Leis de Ohm. In: Toda Matéria: conteúdos escolares. 2018. Disponível em: https://www.todamateria.com.br/leis-de-ohm/. Acesso em: 13 mar. 2019.
https://www.todamateria.com.br/leis-de-o...
). Ou seja, um condutor denominado ôhmico possui resistência elétrica constante.

Sendo R sua resistência medida em Ohm , U sua tensão (ou diferença de potencial elétrico) medida em Volts , e I a intensidade da corrente elétrica medida em Ampére , então:

U = R I ou I = U R

Logo, o coeficiente angular da função afim estaria relacionado à resistência do condutor, restando as grandezas tensão e corrente para compor as abscissas e ordenadas da função. De acordo com Boylestad (2012BOYLESTAD, R. L. Introdução à análise de circuitos. Revisão técnica Benedito Donizete Bonatto. Tradução Daniel Vieira e Jorge Ritter.12 ed. São Paulo: Person Prentice Hall, 2012. , p. 85), “a corrente é uma reação à tensão aplicada, e não o fator que coloca o sistema em movimento”. Ou seja, é usual que a corrente elétrica de um condutor seja expressa em função de sua tensão. Tratando-se do gráfico que representa a Lei de Ohm, a intensidade da corrente elétrica é representada no eixo das ordenadas e a tensão no eixo das abscissas ( Figura 1 ), para a maior parte dos conjuntos de características de dispositivos semicondutores.

Figura 1
– Exemplo de gráfico da Lei de Ohm

Para fazer a construção do gráfico, o professor de Matemática pode utilizar um multímetro2 2 Ao mencionar o uso do multímetro, consideramos também todo o conjunto de artefatos relacionados e necessários ao seu uso: fonte de alimentação, protoboard, cabos de conexão, resistores, bancada, etc. – artefato próprio da parte técnica do curso –, o qual incorpora pelo menos três instrumentos de medições elétricas: voltímetro, amperímetro e ohmímetro.

Uma maneira de fazer as medições é selecionar o amperímetro para mensurar intensidades de corrente para diferentes tensões, a uma dada resistência, observando e registrando o comportamento do gráfico, que se caracterizará como uma função linear da forma:

I = 1 R U

O coeficiente angular da função é dado por 1R , ou seja, a intensidade da corrente é inversamente proporcional à resistência elétrica. Em outras palavras, quanto maior for a resistência do condutor, menor será a intensidade da corrente elétrica ( Figura 2 ).

Figura 2
– Gráficos para diferentes resistências

Posteriormente, o professor também pode, em funções similares, selecionar o voltímetro para medir a tensão do condutor para diferentes intensidades de corrente, caracterizando o comportamento de funções inversas.

A segunda temática sugerida diz respeito às Leis de Kirchhoff , relativa ao conteúdo matemático de Sistemas Lineares . Foi proposta como uma continuação da primeira temática, como explica o docente:

Apesar de útil, a Lei de Ohm não permite a análise de circuitos mais complexos. Dessa forma, com as leis de Kirchhoff, é possível formular um sistema de equações lineares independentes . Tal sistema determina as correntes ou tensões em diversos segmentos de um circuito elétrico. Novamente, o multímetro pode ser utilizado para medir as correntes que chegam e saem em um determinado nó e, consequentemente, afirmar que a soma algébrica das mesmas é aproximadamente zero, uma vez que o conceito de conservação de energia não se aplica ao mundo real.

(Professor da disciplina Fundamentos de Eletroeletrônica – resposta ao questionário, grifo nosso, 2018).

Então, ao trabalhar sistemas lineares, o professor de Matemática tem a possibilidade de utilizar o multímetro para fazer medições das correntes que chegam e saem de determinado nó, criando um sistema de equações lineares e solucionando-o, a fim de constatar a Lei de Kirchhoff relativa à corrente, que enuncia que “A soma algébrica das correntes que entram e saem de uma região, sistema ou nó é igual a zero” ( BOYLESTAD, 2012BOYLESTAD, R. L. Introdução à análise de circuitos. Revisão técnica Benedito Donizete Bonatto. Tradução Daniel Vieira e Jorge Ritter.12 ed. São Paulo: Person Prentice Hall, 2012. , p. 171).

A terceira temática proposta trata de correntes alternadas , que, de acordo com o docente da disciplina, trabalha conteúdos matemáticos como semelhança de triângulos, relações métricas no triângulo retângulo, trigonometria na circunferência, funções trigonométricas e números complexos. Como artefato técnico a ser utilizado, desta vez sugere o osciloscópio:

Por questões práticas, a corrente que atravessa um resistor pode variar de forma senoidal com o tempo. Quando tal fato ocorre, é dito que essa corrente é alternada. O osciloscópio é um artefato técnico útil que permite visualizar a forma de onda da corrente que atravessa um resistor, calcular os valores médios e eficazes dessa corrente, bem como o período e a frequência do sinal sob análise.

(Professor da disciplina Fundamentos de Eletroeletrônica – resposta ao questionário, 2018).

O professor de Matemática pode, assim, utilizar o osciloscópio para observar o comportamento de uma corrente alternada, que equivale ao de uma função trigonométrica – a função seno –, além de calcular os valores da corrente, o período e a frequência do sinal, a fim de estudar suas propriedades relacionando-as ao conteúdo de corrente alternada.

Continuaremos nossa discussão analisando agora as respostas referentes à disciplina de Instalações Elétricas , trabalhada no 3º ano do curso. A primeira temática proposta foi sobre Correção de Fator de Potência . Segundo o docente, ela envolve os seguintes conteúdos matemáticos: números complexos, relações trigonométricas e métricas no triângulo retângulo, funções trigonométricas e suas inversas e função afim. Ao indicar os artefatos técnicos utilizados no estudo do tema, o professor especificou os tópicos a serem tratados:

Conceitos de Potência em Circuitos em Corrente Alternada: Potência Ativa, Reativa e Aparente e suas relações trigonométricas; Conceito de Fator de Potência; Relação entre Potência Elétrica, Tensão e Corrente Elétrica; Medidores: Wattímetro, Varímetro, Cossifímetro; Fatura de Energia Elétrica ("Conta de Luz")

(Professor da disciplina Instalações Elétricas – resposta ao questionário, 2018).

Neste caso, o professor de Matemática pode, por exemplo, explorar as relações trigonométricas no triângulo retângulo estabelecendo relações entre potência média ou ativa ( P ), potência reativa ( Q ) e potência total ou aparente ( S ). Como exposto em Boylestad (2012BOYLESTAD, R. L. Introdução à análise de circuitos. Revisão técnica Benedito Donizete Bonatto. Tradução Daniel Vieira e Jorge Ritter.12 ed. São Paulo: Person Prentice Hall, 2012. , p. 691), essas três grandezas formam o triângulo de potências, e estão relacionadas no domínio vetorial por S=P+Q . Os vetores associados às potências ativa (medida em watt ) e reativa (medida em var ) formam sempre um ângulo de 90º, sendo, portanto, os catetos do triângulo de potências. Já a potência total (medida em VA ) caracteriza sua hipotenusa ( Figura 3 ).

Figura 3
– Triângulo de potências

Logo, a partir dessas grandezas, é possível estabelecer as relações trigonométricas no triângulo retângulo (P=ScosθeQ=Ssenθ) , assim como o Teorema de Pitágoras S2=P2+Q2 . De maneira similar, o docente pode trabalhar o conceito de fator de potência por meio da relação entre a potência ativa e a potência total num circuito, uma vez que “o fator de potência de um circuito é a razão entre a potência média e a potência aparente” ( BOYLESTAD, 2012BOYLESTAD, R. L. Introdução à análise de circuitos. Revisão técnica Benedito Donizete Bonatto. Tradução Daniel Vieira e Jorge Ritter.12 ed. São Paulo: Person Prentice Hall, 2012. , p. 687), ou seja, é dado pelo cosseno de θ. Para fazer as medições das respectivas grandezas, pode utilizar os artefatos wattímetro (para medir a potência ativa), varímetro (para medir a potência reativa) e cossifímetro (para medir o fator de potência), ou até mesmo buscar estes valores numa conta de luz.

Como segunda temática, o docente sugeriu Previsão de Cargas , que envolve o cálculo de área e perímetro de figuras planas . No campo de artefatos técnicos, indicou:

Requisitos da Norma NBR 5410 para Dimensionamento de Iluminação e Circuitos de Força/tomadas; Conceitos: Tomadas de Uso Geral, Pontos de Luz; Plantas Baixas; Diagramas Unifilares; Ambientes e suas dimensões.

(Professor da disciplina Instalações Elétricas – resposta ao questionário, 2018).

Desta forma, podem ser criadas atividades envolvendo situações matemáticas baseadas nas recomendações da Norma NBR 5410, que “estabelece as condições a que devem satisfazer as instalações elétricas de baixa tensão, a fim de garantir a segurança de pessoas e animais, o funcionamento adequado da instalação e a conservação dos bens” ( ABNT, 2004ABNT. Norma Brasileira. NBR 5410: Instalações Elétricas de Baixa Tensão. São Paulo: ABNT, 2004. Versão corrigida: 2008. , p. 1). O professor de Matemática tem a possibilidade, por exemplo, de disponibilizar plantas baixas de cômodos para que os alunos calculem o número de pontos de tomada a serem instalados – a depender do tipo de cômodo e perímetro – e a potência de iluminação – a depender da área do local – verificando e seguindo as recomendações previstas no item “Previsão de carga”, constante na referida norma ( ABNT, 2004ABNT. Norma Brasileira. NBR 5410: Instalações Elétricas de Baixa Tensão. São Paulo: ABNT, 2004. Versão corrigida: 2008. , p. 12-13).

A última sugestão de tema desta disciplina foi Dimensionamento de Condutores e Eletrodutos , que trabalha conteúdos matemáticos como leitura e interpretação de tabelas, noções gerais de funções e função afim . Os artefatos técnicos e conceitos elencados foram:

Requisitos da NBR 5410 para Dimensionamento de Condutores; Gráficos e Tabelas; Fundamentos sobre o Método da Ampacidade e sobre o Método da Queda de Tensão; Condutores; Plantas Baixas, Diagramas Unifilares.

(Professor da disciplina Instalações Elétricas – resposta ao questionário, 2018).

Mais uma vez, o professor pode utilizar a NBR 5410 como artefato para trabalhar conteúdos matemáticos que envolvam temáticas técnicas, como os requisitos de dimensionamento de condutores e eletrodutos. As atividades podem ser propostas por meio de situações matemáticas em que os alunos busquem as informações necessárias na referida norma. Para tal, os estudantes desenvolvem competências de leitura e interpretação de gráficos e tabelas, ao trabalhar definições e propriedades sobre condutores, plantas baixas, diagramas unifilares, além de considerar os critérios de capacidade da corrente (ampacidade) e limite de queda de tensão.

O docente da disciplina de Microcontroladores e microcomputadores, cursada no 4º ano, propôs como primeiro tema a Montagem e implementação de circuitos com LED , o qual trabalha conteúdos matemáticos como Inequações do primeiro grau, Progressões aritméticas, Estruturas lógicas e Matrizes . Como artefato, sugeriu o uso do computador, mais especificamente algumas linguagens de programação, explicando:

Em diversos momentos, uma linguagem de programação – Python, C, Assembly, entre outras – pode ser utilizada para instruir um microcontrolador, um tipo de circuito elétrico programável. Em circuitos que possuem sinalizações sequenciais na forma de LED's, os alunos geram laços iterativos a partir de progressões aritméticas, sujeitos às restrições adicionais formuladas por inequações do primeiro grau. Adicionalmente, os vetores ou matrizes, na forma de uma estrutura denominada array, podem ser utilizados para controlar conjuntos de LED's de maneira sistematizada.

(Professor da disciplina Microcontroladores e microcomputadores – resposta ao questionário, 2018).

Em um segundo contato feito por e-mail, no qual o docente foi pedido para detalhar mais sua resposta, ele explica que, em um semáforo, por exemplo, o acionamento das luzes indicadoras – vermelha, amarela e verde – segue um padrão preestabelecido, dado um estudo prévio do trânsito de veículos presentes nas vias locais, em que cada indicador luminoso permanece acionado por um período de tempo, em um ciclo sequencial. Para implementar um circuito que atenda às especificações, o microcontrolador deverá acionar uma luz indicadora – passagem ou bloqueio de veículos –, contar unidades de tempo para, enfim, alternar o estado do semáforo. Ao admitir a duração de 60 segundos para a luz vermelha, uma função que computa apenas 1 segundo pode ser implementada em um laço de repetição, regido por uma progressão aritmética de razão igual a 1, com t ≤ 60 segundos, em que t é dado pela quantidade de vezes em que a função é executada dentro do microcontrolador.

Assim, o professor de matemática pode utilizar um microcontrolador – artefato utilizado para controlar digitalmente dispositivos e processos – dentro de diversos contextos do curso técnico, como o de montagem de circuitos com LED, para trabalhar conteúdos matemáticos tais como progressões aritméticas.

A segunda proposta feita pelo professor é referente ao tema Controle de velocidade de um motor de corrente contínua , o qual trabalha o conteúdo de Sistemas Lineares , com a utilização de artefatos como o multímetro e o tacômetro:

Em microcontroladores programados para indicar a velocidade angular de um motor de corrente contínua, os alunos estabelecem relações lineares entre a velocidade de um motor e a corrente consumida por ele. Tais relações são comprovadas com o uso em conjunto de instrumentos de medida, como o multímetro e o tacômetro. O multímetro é utilizado para aferir a corrente consumida e, por sua vez, o tacômetro afere a velocidade do motor em termos de rotações por minuto.

(Professor da disciplina Microcontroladores e microcomputadores – resposta ao questionário, 2018).

Então, o docente pode elaborar uma atividade em que os estudantes utilizem o conjunto de instrumentos de medida para comprovar tal linearidade. Enquanto o multímetro, na função amperímetro, é utilizado para aferir a corrente consumida, o tacômetro afere a velocidade do motor em termos de rotações por minuto. Dessa forma, ao anotar algumas correspondências entre velocidade e corrente elétrica – grandezas diretamente proporcionais, nesse caso –, o aluno poderá modelar o problema através de equações lineares, formando um sistema linear. Como explica o docente, o modelo matemático do motor é inserido no microcontrolador e, a partir da corrente consumida, a velocidade angular pode ser exibida através de um display.

Sua última sugestão de tema está relacionada ao conteúdo matemático de função exponencial e trata de Montagem e implementação de circuitos com termistores , com o uso de artefatos como multímetro, termômetro e termistor . Em seu relato, explica que:

Em caso análogo ao anterior, microcontroladores podem ser programados para indicar a temperatura em um determinado ambiente ou processo industrial. Nessa situação específica, os alunos estabelecem relações exponenciais entre a resistência de um termistor – um resistor sensível à temperatura – e a temperatura em um ambiente qualquer. O microcontrolador, ao identificar uma temperatura excedente a partir da leitura da resistência do termistor, poderá desativar o processo e, assim, proteger os operadores próximos e os equipamentos.

(Professor da disciplina Microcontroladores e microcomputadores – resposta ao questionário).

O professor orienta os estudantes a utilizarem um termômetro e um multímetro na função ohmímetro, neste contexto, comprovando a relação exponencial entre as grandezas físicas de temperatura e resistência elétrica em um termistor, através do levantamento da curva Temperatura x Resistência . Desse modo, a partir dos dados coletados, o microcontrolador pode ser programado para exibir a temperatura em um display qualquer.

No Quadro 4 , a seguir, foi feita uma síntese referente às três respostas detalhadas – as quais resultaram em nove propostas interdisciplinares –, com especificação da disciplina técnica relacionada, da temática técnica a ser trabalhada, do conteúdo matemático envolvido e do artefato técnico do curso profissional que pode ser utilizado.

Quadro 4
– Síntese das propostas interdisciplinares

Naturalmente, nas sugestões discutidas levamos em consideração o processo de gênese instrumental do docente em relação aos recursos utilizados. Neste contexto, o professor de Matemática precisa mobilizar/desenvolver esquemas para: (i) se apropriar da temática profissional; (ii) utilizar adequadamente os artefatos referentes ao curso técnico; e (iii) relacionar os conteúdos de ambas as áreas de forma a facilitar o aprendizado dos estudantes. As atividades podem ser planejadas e realizadas com o apoio de um professor da área técnica do curso, oferecendo a devida supervisão competente e auxiliando o professor de Matemática em sua gênese instrumental.

Desta forma, o conteúdo matemático pode ser articulado ao conteúdo técnico, gerando a possibilidade de aprender conceitos gerais a partir de problemas específicos. A modalidade de ensino integrado traz este diferencial, como é discutido em seu documento base:

No ensino médio integrado à educação profissional esses problemas podem ser aqueles que advêm da área profissional para a qual se preparam os estudantes. Mesmo que os processos de produção dessas áreas se constituam em partes da realidade mais completa, é possível estudá-los em múltiplas dimensões, de forma que, para compreendê-los, torna-se necessário recorrer a conhecimentos que explicam outros fenômenos que tenham o mesmo fundamento. Portanto, a partir de questões específicas pode-se necessitar de conhecimentos gerais e, assim, apreendê-los para diversos fins além daqueles que motivaram sua apreensão ( BRASIL, 2007BRASIL. Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrada ao Ensino Médio: Documento base. Brasília: MEC/SETEC, 2007. , p. 51).

Portanto, com a colaboração de um docente da área profissional do curso, o professor de Matemática se depara com um leque de opções e ideias de como integrar as diferentes disciplinas de maneira interdisciplinar, usufruindo das vantagens que a modalidade de ensino integrado pode oferecer.

6 Considerações finais

Vimos que os documentos que permeiam as diretrizes da Educação Profissional Técnica de nível médio relatam o caráter diferenciado da organização integrada ao Ensino Médio, e os benefícios que esta modalidade pode e deve oferecer. Ao vivenciar o princípio da interdisciplinaridade em suas aulas, no que se refere à integração entre disciplinas propedêuticas do Ensino Médio e Profissionais, o professor contribui para uma aprendizagem holística de seus estudantes, superando a divisão do geral e técnico. No ensino da Matemática, esta ação interdisciplinar corrobora uma aprendizagem mais significativa dos conteúdos matemáticos.

Nesta pesquisa, o questionário aplicado e as análises posteriores se limitaram ao curso técnico integrado de Eletroeletrônica, mas por meio desta metodologia os resultados alcançados sugerem a viabilidade de estudo similar envolvendo outros cursos técnicos nesta modalidade, em qualquer instituição de ensino que a oferte.

Constatamos divergências na distribuição curricular da Matemática e de disciplinas técnicas que abordam conteúdos matemáticos, demandando um trabalho específico para introduzir tais temáticas ainda não estudadas no Ensino Médio. Propomos, inicialmente, um repensar dessas condições curriculares de integração, a partir do trabalho colaborativo e interativo entre os docentes de ambas as áreas, a fim de discutirem como podem abordar os conteúdos de forma integrada.

Ademais, com o propósito de usufruir do diferencial que a modalidade de Ensino Técnico integrado ao Médio oferece, sugerimos que o professor de Matemática utilize os recursos técnicos específicos das disciplinas profissionais em suas aulas. Para que isso seja possível, deve não só desenvolver esquemas de ação para dominar a temática técnica à qual vai relacionar o conteúdo matemático a ser ensinado e os artefatos que irá utilizar, mas também estabelecer esta relação de forma que contribua com a aprendizagem dos estudantes, objetivando sua gênese instrumental ( RABARDEL, 1995RABARDEL, P. Les hommes et les technologies: une approchecognitive des instruments contemporains. Paris : Armand Colin, 1995. ).

Concluímos nossa reflexão com a identificação de potenciais temáticas e artefatos constituintes da parte técnica do curso para uso na abordagem matemática como elemento motivador, uma vez que são anteriormente ou simultaneamente estudados nas disciplinas técnicas. Isso pode ajudar o professor a atribuir sentido aos conteúdos matemáticos trabalhados, auxiliando a aprendizagem do aluno ao resgatar aplicações em sua área profissional, já estudadas por ele. Além disso, esta ação interdisciplinar contribui para que o estudante se sinta estimulado e interessado nas disciplinas técnicas do curso, que muitas vezes são deixadas em segundo plano.

Portanto, consideramos favoráveis as condições de integração de recursos do Ensino Técnico nas aulas de Matemática. A partir de um trabalho colaborativo entre professores de ambas as áreas, recursos da área profissional podem e devem ser utilizados para facilitar o aprendizado de conteúdos matemáticos.

Como continuação desta pesquisa, no estudo da tese de doutoramento, a primeira proposta interdisciplinar aqui apresentada foi escolhida para servir de base a uma formação de professores de Matemática do Ensino Técnico, a fim de capacitá-los a integrar tais recursos de forma adequada e a contribuir com uma formação holística dos estudantes desta modalidade educacional.

Referências

  • ABNT. Norma Brasileira. NBR 5410: Instalações Elétricas de Baixa Tensão. São Paulo: ABNT, 2004. Versão corrigida: 2008.
  • BOYLESTAD, R. L. Introdução à análise de circuitos. Revisão técnica Benedito Donizete Bonatto. Tradução Daniel Vieira e Jorge Ritter.12 ed. São Paulo: Person Prentice Hall, 2012.
  • BRASIL. Educação Profissional: Legislação Básica. Brasília: MEC/SETEC, 2001.
  • BRASIL. Parecer CNE/CEB 39/ 2004, 8 de dezembro de 2004. Aplicação do Decreto nº 5.154/2004 na Educação Profissional Técnica de nível médio e no Ensino Médio. Brasília: MEC, 2004.
  • BRASIL. Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrada ao Ensino Médio: Documento base. Brasília: MEC/SETEC, 2007.
  • BRASIL. Projeto Pedagógico do curso técnico em Eletroeletrônica integrado ao ensino médio. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco. Recife: IFPE/SETEC/MEC, 2012.
  • BRASIL. Plano de desenvolvimento institucional – PDI 2014/2018. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco. Recife: IFPE/SETEC/MEC, 2014.
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  • FAZENDA, I. C. A. Interdisciplinaridade: um projeto em parceria. 5. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2002.
  • GONÇALVES, H. J. L.; PIRES, C. M. C. Educação Matemática na Educação Profissional de Nível Médio: análise sobre possibilidades de abordagens interdisciplinares. Bolema, Rio Claro, v. 28, n. 48, p. 230-254, abr. 2014.
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  • NILSSON, J.W.; RIEDEL, S.A. Circuitos Elétricos. 8. ed. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2008.
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  • RABARDEL, P. Les hommes et les technologies: une approchecognitive des instruments contemporains. Paris : Armand Colin, 1995.
  • SANTOS, F. P.; NUNES, C. M. F.; VIANA, M. C. V. A busca de um currículo interdisciplinar e contextualizado para o ensino técnico integrado ao médio. Bolema, Rio Claro, v. 31, n. 57, p. 517-536, abr. 2017.
  • TROUCHE, L.; DRIJVERS, P. Webbing and orchestration: Two interreletade views on digital tools in mathematics education, 2014.
  • VERGNAUD, G. The theory of conceptual fields. Human development, Saint-Denis, v. 52, n. 2, p. 83-94, 2009.
  • 1
    Recomendamos a leitura do artigo para aprofundar a discussão sobre o conceito de interdisciplinaridade. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/bolema/v28n48/12.pdf .
  • 2
    Ao mencionar o uso do multímetro, consideramos também todo o conjunto de artefatos relacionados e necessários ao seu uso: fonte de alimentação, protoboard, cabos de conexão, resistores, bancada, etc.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    11 Nov 2020
  • Aceito
    27 Ago 2021
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