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Eliza: trajetória e estratégias de sobrevivência de uma outsider/within na Matemática

Eliza: the journey and strategy from an outsider to survive within Mathematics

Resumo

O presente trabalho pretende dar visibilidade à história de uma mulher negra e pobre que quebrou a tríplice opressão decorrente do seu gênero, sua cor e sua classe social, bem como rompeu os condicionantes das representações sociais que impõem escolhas de carreiras de acordo com o gênero. A análise se apoia nos Estudos Feministas da Ciência e da Tecnologia, bem como em reflexões articuladas às questões econômicas e raciais. Assim, este artigo apresenta a primeira doutora em Matemática da Bahia e uma das primeiras do Brasil, a doutora em Álgebra Eliza Maria Ferreira Veras da Silva – uma mulher que pode ser reconhecida como uma “guerreira negra”. Para tanto, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com a professora, as quais foram submetidas ao método de análise do discurso de acordo com a linha francesa. A análise revelou as práticas discursivas que atravessaram o cotidiano da referida matemática, além das formas de resistência utilizadas por ela em um campo acadêmico ainda androcêntrico. Desse modo, apresentar a trajetória de uma mulher negra e pobre que se destacou na área da Matemática tanto contribui para o reconhecimento e valorização da cientista, como revela um referencial importante para as novas gerações de mulheres que almejam ingressar no campo da Matemática.

Gênero; Raça; Classe Social; Matemática

Abstract

The current work intends to give visibility to the story of a poor black woman, who has broken the triple oppression related to her gender, color, and social status, as well as breaking the constraints of social representations that impose career choices based on their gender. Thereby, this article introduces the first PhD in Mathematics from Bahia, and one of the firsts in Brazil, the PhD in algebra – Eliza Maria Ferreira Veras da Silva – a woman who can be recognized as a “black warrior”. Therefore, semi-structured interviews were conducted with the Professor, which were submitted to the analytical method of speech according to the French standard. The analysis revealed discursive practices that passed through the daily known mathematics, besides the resistance methods used by her in an academic field still androcentric. Thus, showing the journey of a poor black woman, who stood out in the mathematics field, contributes a lot to recognize and appreciate the scientist, as well as reveals an important reference to the new generations of women, who aspire to join the mathematics field.

Gender; Race; Social Class; Mathematics

1 Introdução

Nos tempos atuais, muito se tem discutido sobre a invisibilidade da participação das mulheres nos diversos setores científicos, acadêmicos, artísticos e culturais, reivindicando um olhar analítico sobre seu papel nesse amplo campo. Essas reivindicações são sólidas e consistentes, porque, de fato, a história contada, escrita e disseminada tem mantido um direcionamento que obscurece as realizações das mulheres de tal forma que a ideia que se cristalizou é a de que elas nada produziram.

Visando à manutenção da hegemonia masculina, o sistema patriarcal articulou um processo de invisibilização de todos/as aqueles/as que não correspondessem a seu modelo de referência: ser homem, branco, heterossexual. Uma das formas de concretizar tal processo de invisibilização consiste em atribuir maior valor às produções masculinas em detrimento das femininas.

Assim, como o espaço público (produtivo/político/externo) culturalmente sempre foi atribuído ao masculino, a este espaço se confere um maior valor e importância, colocando o espaço privado (doméstico/interno), atribuído ao feminino, em uma posição hierarquicamente inferior e desvalorizada. Essa dicotomia histórica entre público e privado inscreveu, no caminhar dos indivíduos, papéis, lugares, falas, pertencimentos e ações condicionados ao ideal social previsto pelas regras patriarcais.

É importante destacar que esta visão pode ser simplista e não registrar a presença marcante de mulheres negras e pobres no espaço público, trabalhando para manter suas famílias. Muitas vezes, são essas mulheres que tornam possível o sustento dos filhos e até dos netos. O que destacamos nesta discussão é que, especificamente no campo do conhecimento, as mulheres têm enormes dificuldades para vencer os inúmeros obstáculos estruturais e simbólicos que se interpõem em seu caminho.

Importante ressaltar que essa separação entre as esferas é simbólica e não estanque, como nos dizem Chaia e Martins (2021CHAIA, V.; MARTINS, J. M. L.; Fronteiras difusas entre o público e o privado: campanhas eleitorais de mulheres pelas lentes da teoria política. In: CHAIA, V.; BÓGUS, L.; MAGALHÃES L. F. A.(org.). Ciências sociais contemporâneas: objetos de pesquisa. São Paulo: EDUC, 2021. p 251-269. , p. 265):

[...] as fronteiras entre o público e o privado são difusas tanto porque o privado não cessa de ser apresentado nas discussões sobre o espaço público, [...], como porque a separação é artificial: a atuação do homem no espaço público sempre foi possibilitada pelo trabalho das mulheres no privado [...]

Esse processo dicotômico que exclui e silencia as mulheres as afeta de forma diferenciada, ou seja, mulheres brancas, em geral, são atingidas de forma menos “dura” que as mulheres negras, entre estas, especialmente as que estão em nível social e econômico de menor poder. Os processos de colonização e escravização impuseram um sistema hierarquizante, pelo qual as mulheres negras quase sempre são tidas como inferiores. Neste sentido, a vida se torna mais leve para as não oprimidas.

As mulheres negras vivenciaram e vivenciam, de forma mais perversa, a exclusão e a invisibilidade de suas trajetórias, em razão de serem vítimas da tripla opressão1 1 Tripla opressão: Gênero, Raça, Classe social. Subjugadas, excluídas, invisibilizadas por serem mulheres negras e pobres. causada pelo sistema capitalista, machista e racista vigente em nossa sociedade.

O Brasil continua vivendo um falso discurso de que haveria uma “democracia racial”, mas um olhar mais atento às estruturas sociais e políticas do país revela que apenas um grupo se beneficia com direitos e poderes – o grupo constituído pelo “homem branco”.

[…] Worryingly, only 20 per cent of Brazilians who graduate from school are Afro-descendent (Strategic Affairs Secretariat – SAE, 2014). Consequently, this population group has been and remains in a position that requires specific attention. One of the main contextual logics as to why this population remains in this difficult position is due to a myth of racial democracy in Brazil that suggests equality and meritocracy: we see little evidence of that, as this population is politically underrepresented and underrepresented in most social spaces. […] In Brazil, gender equality is intermixed with issues of social markers of difference, such as race or ethnicity, and in particular, the role of Afro-descendants in Brazil. In the main, Afro-descendants and Afro-descendent women are dramatically under-or not represented [...]2 2 É preocupante que apenas 20% dos brasileiros que se formam na escola são afro-descendentes. [...] Consequentemente, este grupo populacional foi e permanece em uma posição que requer atenção específica. Um dos principais contextos lógicos da razão pela qual essa população permanece nesta posição difícil é devido ao mito da democracia racial no Brasil, que sugere igualdade e meritocracia: vemos poucas evidências disso, já que essa população é politicamente sub-representada e sub-representada na maioria dos espaços sociais. [...] No Brasil, a igualdade de gênero está misturada com marcadores sociais de diferença, como raça ou etnia e, em particular, o papel dos afrodescendentes no país. Em geral, os homens e as mulheres afrodescendentes são dramaticamente sub-representados/as ou não representados/as. (Tradução livre). (SILVA; CASTRO; CARTER, 2016, p. 31; 38).

A sociedade brasileira “[...] se mantém descompensada pela continuidade de regimes excludentes, como o racismo e o machismo. Obtivemos avanços, [...] mas não o suficiente para destruir as mazelas deixadas pela escravidão e pela abolição inacabada [...]” ( RIBEIRO, 2008RIBEIRO, M. Mulheres negras: uma trajetória de criatividade, determinação e organização. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 16, n. 3, p. 987-1004, set./dez.2008. , p. 988).

Considerando a importância da representatividade para os mais diferentes grupos sociais na perspectiva da superação de todo tipo de discriminação, é imprescindível contar a história, as realizações e as contribuições das mulheres negras que sempre estiveram presentes em nosso cotidiano, em diferentes contextos sociais. Como diz Joana Pedro (2010PEDRO, J. M. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica. Revista História . São Paulo, UNESP, v. 24, n. 1, p.77-98, set. 2010. , p. 92), urge escrever “[...] uma história que questiona as ‘verdades’ sedimentadas, contribuindo para uma existência menos excludente.”

Assim, o objeto central destas reflexões é a trajetória acadêmica de uma mulher negra, oriunda da classe trabalhadora, que se propôs a construir uma carreira em um ambiente sabidamente androcêntrico e elitista, que parece ser destinado aos homens, e repleto de estereótipos relacionados ao conhecimento no campo da Matemática e ao gênero, especialmente aqueles que justificariam uma pretensa dificuldade das mulheres para a abstração e o cálculo.

A entrevista que originou este artigo se deu no contexto de uma pesquisa em que se investigava a criação do Instituto de Matemática e Física da Universidade Federal da Bahia, destacando o papel marcante das mulheres nesse projeto. A presença de uma mulher negra de classe trabalhadora entre as pioneiras suscitou o interesse em desvendar sua trajetória, os obstáculos enfrentados e as estratégias utilizadas para superá-los, sendo estas as categorias de análise do estudo. A entrevista se deu a partir de um roteiro semiestruturado, sendo realizada no período de 2013 até 2014.

As falas foram transcritas e analisadas utilizando-se elementos da Análise do Discurso na linha francesa, porque, segundo Fischer (2001)FISCHER, R.M.B. Foucault e a análise do discurso em educação. Cadernos de Pesquisa, Rio de Janeiro, n.114, p.197-223, 2001. , as condições de produção do discurso são fundamentais para as análises realizadas, ou seja, a análise das falas de Eliza permitiu observar não o que “está por trás” dos textos, mas as condições de existência do discurso dito, levando em consideração o contexto histórico e sociocultural em que foi elaborado. As falas evidenciam as relações de poder da sociedade patriarcal, mas também as estratégias de resistência.

Ao serem reveladas tais contribuições, abrem-se possibilidades para que inúmeras experiências relevantes possam ser conhecidas e compartilhadas, ampliando a visão de pesquisadoras/es, bem como o conhecimento existente em diversas áreas científicas.

2 As mulheres negras na Matemática

Diversas pesquisas têm sido feitas tomando como base o tema Educação/Ciência/ Tecnologia/Gênero, a exemplo das realizadas por Valerie Walkerdine (1995)WALKERDINE, V. O raciocínio em tempos pós-modernos. Revista Educação & Realidade , Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 207-226, jul./dez. 1995. , Carla Cabral (2005)CABRAL, C. G. As mulheres nas escolas de engenharia brasileira: história, educação e futuro. Cadernos de Gênero e Tecnologia , Curitiba, v. 1, n. 4, p. 9-19, 2005. , Maria Rosa Lombardi (2013)LOMBARDI, M. R. Formação e docência em Engenharia, na ótica do gênero: um balanço de estudos recentes e dos sentidos da feminização. In: YANNOULAS, S. C. (org.). Trabalhadoras: análise da feminização das profissões e ocupações. Brasília: Editorial Abaré, 2013, p.111-136. e Lindamir Casagrande (2017)CASAGRANDE, L. S. Silenciadas e invisíveis: relações de gênero no cotidiano das aulas de matemática. Curitiba: CRV, 2017. . Essas pesquisas vêm sinalizando que as hierarquias entre os gêneros ainda são evidentes e persistentes, em geral, em todos os espaços e nas relações sociais.

Particularmente, quando se fala em conteúdo matemático, considerado fundamental para as carreiras científicas e tecnológicas, o cenário ainda se mantém em uma perspectiva turbulenta, veiculando e naturalizando preconceitos em relação às mulheres e à Matemática.

A pesquisadora Lindamir Casagrande salienta, em seu livro Silenciadas e Invisíveis , que “[...] as relações de gênero na sala de aula de Matemática ocorrem intensamente [...]” ( CASAGRANDE, 2017CASAGRANDE, L. S. Silenciadas e invisíveis: relações de gênero no cotidiano das aulas de matemática. Curitiba: CRV, 2017. , p. 210), concluindo, portanto, que esses espaços não são neutros e também afirma:

[...] O preconceito sobre a capacidade feminina [...] se apresenta como “paredes” do labirinto, obrigando as mulheres a percorrer caminhos mais longos e com mais barreiras para se aproximarem do sucesso. As meninas/moças/mulheres passam sua vida acadêmica percorrendo caminhos e buscando saídas para situações que lhes são impostas de forma desnecessária e injusta [...] ( CASAGRANDE, 2017CASAGRANDE, L. S. Silenciadas e invisíveis: relações de gênero no cotidiano das aulas de matemática. Curitiba: CRV, 2017. , p. 198).

Os estudos da pesquisadora Maria Rosa Lombardi ressaltam que as mulheres que se inserem nos considerados “guetos masculinos” enfrentam fortes mecanismos discriminatórios.

[...] A inserção [delas] continua sendo um ato de transgressão, pois as regras de sociabilidade [...] continuam eivadas de representações tradicionais de feminino e masculino que localiza as mulheres, [...] em uma situação, senão de desvantagem, ao menos de suspeição quanto à sua capacidade [...] ( LOMBARDI, 2013LOMBARDI, M. R. Formação e docência em Engenharia, na ótica do gênero: um balanço de estudos recentes e dos sentidos da feminização. In: YANNOULAS, S. C. (org.). Trabalhadoras: análise da feminização das profissões e ocupações. Brasília: Editorial Abaré, 2013, p.111-136. , p. 121).

A pesquisadora Valerie Walkerdine (1995WALKERDINE, V. O raciocínio em tempos pós-modernos. Revista Educação & Realidade , Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 207-226, jul./dez. 1995. , p. 211) chama atenção para a estrutura educacional que corrobora a formação dos “guetos”:

[...] A educação não está organizada para a libertação, mas para a produção de um tipo apropriado de sujeito para a ordem moderna. Isto é feito por meio da produção de uma teoria da "natureza" daquele sujeito e, consequentemente, da caracterização da diferença como um desvio patológico daquela natureza.

Nesse sentido, é necessário urgentemente “descolonizar a ordem eurocêntrica do conhecimento” e respeitar as diversidades, de forma que todas e todos tenham “o direito de existir como igual” ( KILOMBA, 2019KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. , p. 53; 78).

Neste artigo, é utilizado o conceito de interseccionalidade, particularmente as relações entre gênero, cor e classe social, que atingem a vida das mulheres negras de forma mais excludente.

[...] A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento [...] ( CRENSHAW, 2002CRENSHAW, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas , Florianópolis, v. 10, n. 1, p.171-188, jan. 2002. , p. 176).

Essas desigualdades também estão presentes no espaço acadêmico da Matemática. Neste campo, a mulher negra que consegue acessar a educação e seguir uma trajetória acadêmica, vivencia, no seu fazer acadêmico, a posição de um ser considerado “ outsider within” , ou seja, segundo Patrícia Hill Collins, em entrevista concedida a TV Boitempo, ela “[...] pode estar dentro de determinada configuração e, ainda assim, permanece outsider within (fora). Nunca pertence plenamente. [...] É um ser, um viajante entre esses dois mundos diferentes, ou seja, estar insider e ao mesmo tempo outsider ” (TV BOITEMPO, 2019).

Quando há um deslocamento da “ outsider within ”, de modo a gerar um movimento de imersão e ocupação de determinados territórios, ou seja, quando ultrapassa o limite da fronteira permitida, ela observa e sente o olhar de estranhamento dos pares, sendo vista como “estrangeira”3 3 Segundo Alfred Schutz (2010 , p.118), “ [...] o estrangeiro deverá significar um indivíduo [...] que tenta ser permanentemente aceito ou ao menos tolerado pelo grupo ao qual ele se aproxima.” , forasteira.

Apesar de ainda estarem sub-representadas em todas as áreas, inclusive na Matemática, as mulheres negras estão fazendo carreira na área acadêmica e nas pesquisas científicas, mostrando “[...] que as mulheres [estão] qualificadas [...] que a diferença de seu sexo [e cor] não [faz] diferença [...]” ( SCOTT, 2005SCOTT, J. W. O enigma da igualdade. Revista Estudos Feministas , Florianópolis, v. 13, n. 1, p. 11-30, jan./abr. 2005. , p. 21). Para tanto, percebe-se a necessidade de que tais mulheres mantenham sua autodeterminação, valorizando as suas próprias histórias, seus próprios códigos de interpretação e expressão, suas próprias “receitas”, os quais contribuem para que se mantenham ativas e produtivas nos espaços acadêmicos.

Neste sentido, ao se recuperar e visibilizar a história das mulheres negras que lutaram, quebraram barreiras, fizeram (e fazem) produção de conhecimento, em áreas marcadamente androcêntricas, o que se busca é construir novos olhares, novas perspectivas, novos caminhos para se alcançar a equidade na diversidade social. “[...] Precisamos de práticas, políticas e estruturas que demonstrem [...] compromissos verdadeiros contra o racismo e outros sistemas de opressão. Precisamos de passos concretos que nos guie em direção a justiça racial – dentro e fora da Matemática [...]” ( MANIFESTO, 2020MANIFESTO. Antirracismo? Matemáticas Negras na pauta. Grupo de Matemáticas Negras, 2020, Disponível em: https://www.sbmac.org.br/wp-content/uploads/2020/06/manifesto-antirracista-matematicas-negras.pdf. Acesso em: 28 jun. 2022.
https://www.sbmac.org.br/wp-content/uplo...
, p. 3).

Assim, o presente artigo resgata a história da primeira Doutora em Matemática da Bahia e uma das primeiras do Brasil, a doutora em Álgebra, Eliza Maria Ferreira Veras da Silva.

3 Eliza – os primórdios de uma vida dedicada à Matemática

Eliza Maria Ferreira Veras da Silva nasceu no dia 4 de fevereiro de 1944 na cidade de Ituberá-Bahia, filha de uma relação inter-racial entre Dahil Ferreira, mãe branca e dona de casa, e Edgard Moreira Rosa, pai negro e coletor da Receita4 4 A função de Coletor de Impostos, segundo Eliza, na época, representava a terceira autoridade do Estado: Prefeito, Padre, Coletor de Impostos. , os quais tiveram 3 filhos e 2 filhas, sendo Eliza a segunda filha do casal. A família possuía uma condição financeira razoável até o período em que Eliza tinha por volta de 3 anos de idade, quando seu pai desapareceu da cidade e deixou a família. A partir de então, começaram a passar por momentos muito difíceis, pois a mãe não tinha como manter o padrão de vida ao qual estavam acostumados, de modo que a família precisou se adequar à nova realidade, inclusive recebendo ajuda de parentes. Diante da nova situação, a mãe de Eliza – que até aquele momento exercera a função de dona de casa – passou a se empenhar na confecção e venda de seus bordados.

A pequena Eliza começou a frequentar o Jardim de Infância aos 3 anos de idade; aos 4 anos, a família mudou-se para Gandu e ela passou a ter aulas com a professora Pedrina. Como a situação financeira da família continuava muito difícil, quando Eliza tinha cerca de 7 anos, ela mudou-se para Jequié juntamente com a sua mãe e seus irmãos, passando a morar com a sua avó. Segundo suas lembranças:

Essa época foi muito boa, vivíamos em uma casa, tínhamos uma boa alimentação, brincávamos com os primos. Foram momentos felizes. Eu estudei na escolinha da vovó Liquinha, depois fiz o 3º ano primário na escola do Sesc ou Senac, não lembro bem. Já no 4º e 5º ano primários estudei no Grupo Escolar Castro Alves. Na época, para ingressarmos no antigo ginásio, tínhamos que fazer o exame de admissão. Mamãe tinha muita preocupação com os estudos e, como via que eu gostava muito de estudar, ficou preocupada, pois não tínhamos condições de pagar escola. Mas ela desejava que eu pudesse ter um bom ensino. Existiam duas escolas normais em Jequié na época, uma pública e outra particular que era bem mais conceituada. (Entrevista, 2013).

Apesar de pouco estudo, a mãe de Eliza desejava um futuro diferente do seu para a sua filha e suas razões revelam que ela estava seguindo seu impulso e sua sabedoria, na tentativa de tirar a menina de um determinado espaço, ou seja, de acordo com as concepções descritas por Adriana Vallejos et. al. (2003, p. 430), “[...] as mulheres [...] têm tentado tirar suas filhas e congêneres deste espaço exclusivamente dedicado à reprodução biológica e à repetição do mesmo.”

Durante muito tempo, a formação educacional das meninas, em geral, não era percebida e concebida para um futuro desenvolvimento em carreiras profissionais diversas; elas eram direcionadas para uma formação que, segundo Louro (2004LOURO, G. L. Mulheres na sala de aula. In: Del Priori, M. (org.). História das mulheres no Brasil. 3. ed. São Paulo: Contexto: Unesp, 2004. p. 443-481. , p. 465), era “[...] justificada por uma lógica que se apoiava na compreensão social do magistério como função adequada para mulheres e na aproximação dessa função à maternidade [...]” e, assim, através dessa justificativa, criou-se a ideia de “vocação” das mulheres para desempenharem as funções do Magistério.

Como eu era do interior, lá a única opção para as mulheres era o magistério primário e eu precisava trabalhar . (Entrevista, 2013).

Portanto o ideal para Eliza, naquele momento, era frequentar a Escola Normal, formar-se professora primária e começar o mais rápido possível a trabalhar. Mas havia um aparente empecilho: a escola mais bem conceituada no ensino ginasial e pedagógico era uma instituição particular, frequentada pelas/os filhas/os da alta classe burguesa.

Meu tio Ferreira trabalhava nesta escola, conhecia o diretor. Mamãe mais uma vez me ajudou, ela falou de sua preocupação com meu tio, do fato de que eu sempre fui boa aluna e pediu para ele conversar com o diretor para tentar uma bolsa de estudos. Após a conversa com o padre Espínola, diretor da escola, ficou acertado que a bolsa seria concedida através de uma condição, eu teria que ser aprovada no concurso de admissão. (Entrevista, 2013).

Desse modo, Eliza se preparou para o exame, o qual apresentava a questão de gênero bem demarcada, de modo que os meninos faziam as provas no turno matutino e as meninas no turno vespertino.

Fiz o exame e, na época era uma verdadeira euforia e atenção pelos resultados. Eu estava na pracinha brincando durante uma quermesse quando ouvi um comentário entre várias mães que conversavam na praça: “Ah, saiu o resultado da admissão da Escola Normal, quem passou em 1º lugar foi uma ‘neguinha aí’”. Eu ainda não sabia que essa ‘neguinha’ era eu. Esse discurso era porque tinham outras meninas de classe, filhas de A e B que não passaram. Isso foi uma constante na minha vida. (Entrevista, 2013).

Eliza foi aprovada com a média 9,4, uma grande vitória para a menina negra de baixa renda; contudo as falas proferidas pelas mães de outros/as estudantes, acima mencionadas, revelam a manutenção do pensamento racista e classista dominante em uma sociedade que já se dizia possuidora de uma democracia racial.

A pequena Eliza, ao dizer " eu não sabia que essa ‘neguinha’ era eu ”, percebe o seu pertencimento ao grupo de mulheres negras e, consequentemente, ao grupo que enfrenta a tripla opressão. Este foi um momento marcante na vida da Doutora, pois ali ela percebeu que sua cor estava provocando discriminações que não levavam em consideração sua pouca idade e tampouco as suas capacidades intelectuais demonstradas pela sua aprovação em 1º lugar em um exame tão concorrido. Pode-se dizer, portanto, que naquele exato momento ela sentiu que "[...] ser negra e mulher no Brasil [...] é ser objeto de tripla discriminação, uma vez que os estereótipos gerados pelo racismo e pelo sexismo a colocam no mais baixo nível de opressão [...]" ( GONZALEZ, 1982, pGONZALEZ, L. A mulher negra na sociedade brasileira. In: LUZ, M. (org.). O lugar da mulher: estudos sobre a condição feminina na sociedade atual. Rio de Janeiro: Graal, 1982. p. 87-104. , p. 97), conforme expressa Eliza a respeito do “neguinha”: “ Esse discurso era porque tinham outras meninas de classe, filhas de A e B que não passaram” (Entrevista, 2013).

Nesse momento, de forma inconsciente talvez, Eliza tenha demonstrado o quanto a interiorização e os efeitos das normas sociais estavam enraizados em sua formação, a ponto de não perceber que foi vítima da violência e da discriminação. Ela se deixou levar pela estrutura educacional e cultural construída em nosso país que silenciou toda e qualquer potencialidade histórica da cultura negra. Como lembra bell hooks (2014hooks, b. Não sou eu uma mulher? Mulheres negras e feminismos. Plataforma Gueto , 2014. Disponível em: https://plataformagueto.files.wordpress.com/2014/12/nc3a3o-sou-eu-uma-mulher_traduzido.pdf. Acesso em: 20 mar. 2015.
https://plataformagueto.files.wordpress....
, p. 87):

[...] Não há livros de história usados nas escolas públicas que nos informem sobre o imperialismo racial. [...] Ninguém falou sobre a África como o berço da civilização, sobre os africanos e os asiáticos que chegaram à América antes de Colombo. Ninguém mencionou os assassinatos em massa dos nativos americanos como genocídio, ou a violação das nativas americanas e das mulheres africanas como terrorismo. Ninguém discutiu a escravatura como a fundação para o crescimento do capitalismo. [...] As instituições de educação nada fizeram para aumentar a nossa compreensão limitada do racismo como uma ideologia política. Ao invés, os professores sistematicamente negaram a verdade, ensinando-nos a aceitar a polaridade racial na forma da supremacia branca e polaridade sexual na forma de domínio masculino.

O silenciamento da cultura negra pelos sistemas educacionais do Brasil gera um desnível na qualidade educacional dos afrodescendentes.

[...] Os sistemas educacionais de toda região não promovem o reconhecimento das identidades afrodescendentes; pelo contrário, eles contribuem para a promoção de representações estereotipadas e folclóricas. Embora a maioria dos países da América Latina assegure o direito universal à Educação, há um contraste entre o tipo e a qualidade dos serviços educacionais disponíveis para afrodescendentes e não afrodescendentes [...] ( BANCO MUNDIAL, 2018BANCO MUNDIAL. Afrodescendentes na América Latina: rumo a um Marco de Inclusão. Washington, DC: World Bank, 2018. , p. 90).

Talvez mesmo sem prever, Eliza seguiu os caminhos educacionais em busca de romper com esse silenciamento e contribuir para valorizar a cultura negra. Ao terminar o ginásio5 5 Atual Ensino Médio. , ela seguiu seus estudos na mesma escola fazendo o curso pedagógico (a chamada Escola Normal), mas nesse período a bolsa de estudos que recebia era só de 50%, e ela complementava a renda dando aulas particulares para seus/suas colegas da escola. Durante o período do curso de normalista, Eliza foi uma excelente aluna, manteve durante todos os três anos de estudo a média 10 (dez) em todas as disciplinas – um mérito exemplar, o que a levou a ser agraciada com uma bolsa de estudos ofertada pela Phillips6 6 Na verdade, foram duas bolsas: no segundo ano do curso, Eliza recebeu uma bolsa da Philipps para custear os estudos do 3º ano. E, no final do curso, recebeu outra bolsa da Philipps como prêmio. A Phillips é uma empresa holandesa com produtos voltados para a tecnologia, produtos de consumo e estilo de vida. A Phillips do Brasil é uma subsidiária do Royal Phillips Electronics. . Mas, mesmo com seu desempenho notável, sofreu com o preconceito da dúvida. Ao terminar o curso pedagógico, na véspera da formatura, o Padre Espínola lhe pediu perdão:

Eliza: Padre não estou entendendo. O senhor, padre, me pedir perdão?

Padre: Tenho sim porque eu pequei por dúvida. Quando perguntei ao coordenador quem havia tirado o 1º lugar no curso e ele me disse que foi você, não foi surpresa nenhuma para mim devido a sua trajetória de boa aluna sempre. Mas quando perguntei a sua média, e ele me disse que você passou com nota 10 (dez) em tudo, eu não acreditei. Fui conferir caderneta por caderneta e, realmente, não restava dúvidas, tudo conferia. Você tinha 10 em todas as disciplinas. Por isso lhe peço perdão. (Entrevista, 2013).

Apenas inferindo: será que o padre Espínola teria agido da mesma forma duvidosa se a nota máxima estivesse relacionada a um aluno homem? Ou, mesmo, se a nota estivesse relacionada a uma das alunas brancas das classes mais favorecidas? Infelizmente, a sociedade brasileira ainda mantém muitos preconceitos relacionados à inferiorização da população negra.

[...] Negar à mulher negra agência enquanto sujeito e tratá-la como o “outro” objetificado representa ainda uma singular dimensão do poder que constructos de oposição dicotômicos salvaguardam para a manutenção do sistema de dominação[...] ( COLLINS, 2016COLLINS, P. H. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado , Brasília, v. 31, n.1, p. 99-127, jan./abr. 2016. , p. 109).

Formada professora primária, o caminho profissional considerado apropriado para as mulheres era ingressar na docência primária. Mas a premiação recebida pela Phillips proporcionou a Eliza a oportunidade de começar a sonhar com um voo mais alto em direção aos estudos universitários, algo até então inimaginável para uma jovem de baixa renda.

Quando recebi a bolsa, veio aquele ‘estalo’, vou estudar em Salvador. Vou fazer cursinho e entrar na Universidade. Precisava fazer cursinho porque o curso normal não dava uma boa base em Física e Matemática. Sabia que seria difícil, eu teria que arranjar um emprego para conseguir me manter. Vim para Salvador com a cara e a coragem. Mas eu sempre confiei muito em Deus e tinha muita determinação . (Entrevista, 2013).

O “estalo” no pensamento de Eliza foi um momento importante para a quebra de paradigmas e ela começou a dar os primeiros passos rumo à vida universitária.

4 A trajetória acadêmica

Eliza veio para Salvador morar com uma tia e, através de contato com a senhora Rosa Levita, na época coordenadora do ensino primário em Salvador, conseguiu emprego no Colégio Nossa Senhora do Carmo e assumiu também a função de professora particular dos três filhos da senhora Rosa. Essas oportunidades propiciaram que ela se mantivesse em Salvador e continuasse se preparando para o vestibular. Neste mesmo ano, Eliza foi nomeada professora do Estado assumindo a função no Colégio Antônio Euzébio no turno noturno.

Era uma vida bem corrida, às vezes não tinha condições nem de jantar, pois quando chegava em casa, ainda tinha que fazer as correções das tarefas das crianças e preparar as atividades para o novo dia. Mas eu era jovem, tinha garra e determinação, sabia que precisava trabalhar e realizar meus objetivos. Queria melhorar de vida. Meu pensamento era sempre em mamãe, queria recompensá-la, pois ela foi uma guerreira e lutou muito pelos filhos. (Entrevista, 2013).

Nessa fala, é relevante registrar a questão da exemplaridade. A força de Eliza estava (está) vinculada à mãe guerreira. A palavra “mamãe” , ao ser pronunciada por Eliza, emite uma sonoridade emocional marcante e contagiante. Não há como não se emocionar ao ouvi-la falar da “mamãe” ’. Essa “mamãe” , provavelmente, transmitiu “[...] para suas descendentes do sexo feminino, [...] um legado de trabalho duro, perseverança e autossuficiência, um legado de tenacidade, resistência e insistência na igualdade” ( DAVIS, 2016DAVIS, A. Mulheres, raça e classe . São Paulo: Boitempo, 2016. , p. 41).

A exemplaridade é um fator muito importante na trajetória das pessoas, particularmente em relação às escolhas profissionais. Segundo Carrell, Page e West (2009, p. 20):

[…] We find that the gender gap is mitigated considerably when female students have female professor. […] We find that the effect of female professors on female students is largest among students with high math ability.7 7 Descobrimos que a diferença de gênero é mitigada consideravelmente quando as alunas têm professoras. [...] Descobrimos que o efeito das professoras sobre as alunas é maior entre as alunas com alta habilidade matemática. (Tradução livre)

Eliza fez vestibular para Matemática na Universidade Federal da Bahia e foi aprovada em 2º lugar. Essa aprovação meritória a tirou das estatísticas que ainda hoje são enfrentadas pela população negra de baixa renda, já que “[...] a probabilidade de indivíduos não brancos ingressarem em instituições de ensino superior é 15 pontos percentuais menor na América Latina. [...] No Brasil a diferença chega a 18 pontos percentuais [...]” ( BANCO MUNDIAL, 2018BANCO MUNDIAL. Afrodescendentes na América Latina: rumo a um Marco de Inclusão. Washington, DC: World Bank, 2018. , p. 90).

Apesar de Eliza ter feito vestibular em uma época em que as políticas públicas não estavam vigentes, ela e mais três mulheres lograram êxito no concurso de 1964. É relevante, neste momento, chamar a atenção para uma novidade ocorrida na Bahia, o curso de graduação em Matemática desde o seu início, em 1943, apresentou um diferencial marcante, pois o número de mulheres ingressando e formando-se neste campo foi sempre superior ao número de homens. Esse diferencial favorável às mulheres contradiz as expectativas das representações sociais que “naturalizam” a ideia de uma pretensa dificuldade das mulheres na Matemática.

Sem falsa modéstia, eu poderia ter escolhido qualquer área, pois fui boa aluna em todas, mas a minha escolha ocorreu de forma natural devido ao dom que sempre tive pela matemática, sempre me saí muito bem, sempre adorei estudar, tinha facilidade. Eu adoro matemática. (Entrevista, 2013).

Eliza continuou trabalhando durante todo o período do curso. Ela formou-se em 1967 nas duas habilitações: Licenciatura e Bacharelado8 8 Ela e suas/seus colegas de turma faziam as disciplinas em paralelo, no final do curso fizeram um requerimento aos órgãos competentes pedindo a concessão para habilitação conjunta. O processo foi julgado pelo Sr. Magalhães Neto, que emitiu parecer favorável ao pleito dos/as alunos/as. .

Sobre a participação das mulheres e dos homens na Matemática, ela diz:

Eu não vejo que existe diferença entre matemática para homens e para as mulheres. O que acho é que os homens visam mais o lado material das coisas, da profissão, as mulheres não. Nós buscamos o nosso ideal, lutamos com garra para alcançarmos o que queremos. Mas as mulheres realmente mantêm uma ligação forte com a família. As mulheres assumem a casa, a criação dos filhos, é uma dupla jornada. Isso pode abalar a trajetória profissional das mulheres. Os homens estão livres destes atributos (Entrevista, 2013).

Depois de formada, Eliza trabalhou no Colégio Central, e seu ingresso no Instituto de Matemática da UFBA, como docente, assumindo o cargo de Auxiliar de Ensino com carga horária de 20 horas, ocorreu em 1969, após o convite de sua amiga Célia Pitangueira9 9 Célia Pitangueira ingressou na graduação em Matemática da FF no mesmo ano que Eliza. Foi uma das quatro mulheres que passaram no vestibular de 1964. Tornou-se também professora do Instituto de Matemática e ocupou o cargo de direção da Instituição no período de 1988-1992. . Nesse período, ela conviveu com a professora Lolita Campos Carneiro, na época, diretora do Instituto, que lhe ofereceu uma bolsa de estudo de 8 meses, financiada pela Unesco para realização do curso de mestrado na França. Entusiasmada, ela aceitou o convite e o desafio de ir estudar fora do país. Pouco tempo antes de findar o prazo de 8 meses, ela recebeu um comunicado da professora Lolita avisando que tinha conseguido ampliação do prazo da bolsa, possibilitando assim que ela concluísse seu mestrado com a dissertação intitulada Matrizes de permutação e leis de casamento nas sociedades primitivas , defendida na Universidade de Montpellier (1973), sob a orientação do matemático brasileiro, residente na França, Artibano Micali.

De volta ao Brasil, ela continuou seus estudos, mantendo o intercâmbio de orientação com o professor Artibano, que lhe enviava constantemente material de estudos algébricos, os quais ela preparava e eles discutiam. Em uma das visitas do professor Artibano ao Brasil, ele comunicou a Eliza que ela já possuía material de estudo suficiente para voltar à França e concluir o curso de Doutorado e que ele concederia a ela uma bolsa de estudo do governo francês para ajudá-la financeiramente. Eliza volta à França conclui seus estudos e defende sua tese de doutorado intitulada Álgebras não associativas , em 1977. A Bahia passa a ter nas suas estatísticas educacionais o nome da primeira doutora em Matemática – uma mulher negra, que rompeu com estereótipos, quebrou paradigmas e escreveu seu nome em um campo ainda marcadamente androcêntrico. É a mulher negra negando o pensamento perverso, mas vigente na sociedade, que considera as mulheres negras “só corpo sem mente” ( hooks, 1995hooks, b. Intelectuais negras. Revista Estudos Feministas , Florianópolis, v. 3, n. 2, p. 464-478, ago./dez. 1995.[14] , p. 469).

Após retornar ao Brasil, Eliza foi aprovada em concurso público para exercer o cargo de Professora Adjunta do Instituto de Matemática da Universidade Federal da Bahia. Neste espaço, Eliza atuou no colegiado, no departamento, na orientação de alunos/as de pós-graduação, assumindo também a vice-direção do Instituto de Matemática no período de 1984-1988.

Ser professora de Matemática foi meu ideal. No meu sentir, não existe nada melhor. Sinto-me realizada, não me vejo em outra profissão. Ensinar desde os pequeninos até os alunos da Universidade foi minha realização. Tenho certeza de que contribuí muito para o campo da matemática. Tudo na minha vida aconteceu na hora certa. Entrego tudo nas mãos de Deus. (Entrevista, 2013).

A trajetória acadêmica de Eliza e sua ascensão ao pico da pirâmide acadêmica estiveram sempre associadas à obtenção de bolsas de estudos, um incentivo financeiro essencial para o seu crescimento pessoal e profissional, fato que demonstra e reforça o imprescindível: a população negra oriunda das camadas de baixa renda precisa de políticas públicas10 10 Há discussões favoráveis e contrárias às cotas, mas estamos juntos com Kabengele Munanga (2001 , p. 41-42) quando argumenta: “[...] Finalmente, a questão fundamental que se coloca não é a cota, mas sim o ingresso e a permanência dos negros nas universidades públicas. A cota é apenas um instrumento e uma medida emergencial enquanto se buscam outros caminhos. Se o Brasil, na sua genialidade racista, encontrar alternativas que não passam pelas cotas para não cometer injustiça contra brancos pobres – o que é uma crítica sensata – ótimo! Mas dizer simplesmente que implantar cotas é uma injustiça, sem propor outras alternativas a curto, médio e longo prazo, é uma maneira de fugir de uma questão vital para mais de 70 milhões de brasileiros de ascendência africana e para o próprio futuro do Brasil. É uma maneira de reiterar o mito da democracia racial, embora este esteja desmistificado. Os que condenam as políticas de ação afirmativa ou as cotas favorecendo a integração dos afrodescendentes utilizam de modo especulativo argumentos que pregam o status quo, ao silenciar as estatísticas que comprovam a exclusão social do negro.” eficientes para amenizar o fosso social que existe na sociedade. Importante frisar aqui a importância de Eliza em relação à questão da representatividade da mulher negra com título de doutorado, particularmente no campo da Ciência Matemática.

A representatividade é parte essencial na construção da identidade e subjetividade das mulheres. A história de Eliza pode indicar, para as meninas, jovens e não tão jovens mulheres negras, que os caminhos sonhados são possíveis, apesar das conquistas estarem envolvidas em muito tempo de luta, e, neles, as consideradas “minorias” têm de se dedicar e trabalhar muito mais para adquirir o mesmo patamar dos considerados insiders. É a falsa meritocracia atuando, quando se usa uma mesma régua para avaliar os indivíduos, sem levar em consideração o contexto, os recursos, a situação de cada um. Mas visibilizar a trajetória de Eliza pode ser o primeiro passo para a abertura de novos caminhos a serem seguidos.

Importante ressaltar que, para a época, todo esse processo de formação e ascensão profissional de Eliza é o que se pode chamar de “um ponto fora da curva” e, no dizer de Patrícia Hill Collins (2016COLLINS, P. H. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado , Brasília, v. 31, n.1, p. 99-127, jan./abr. 2016. , p. 101), “[...] a ‘marginalidade’ tem sido um estímulo à criatividade [...]”, ou seja, todas as negatividades vividas por Eliza tiveram um efeito positivo de encorajamento e vontade de progredir.

Eu inicialmente não tive problemas para viajar e seguir meus estudos, pois ainda não era casada. Sempre conciliei bem vida profissional e vida familiar, pois sempre tive empregada, o que na época era mais fácil. Mas, logo que casei, meu marido quis implicar com meu trabalho, ele queria que eu deixasse a dedicação exclusiva. Eu jamais aceitei isso. Disse para ele: – “Isso nunca! Você já me conheceu trabalhando. Mamãe me criou para ser independente, ter o meu próprio dinheiro, meu próprio sustento”. Aos poucos, ele foi se acostumando (Entrevista, 2013) .

Eliza, assim como outras mulheres, lutava para alcançar independência financeira, até por orientação da mãe e da avó. É possível inferir que a postura de Eliza quanto aos seus anseios profissionais proporcionou a ela a condição de se manter firme ante as implicâncias do marido. Essa atitude possibilita demonstrar que não há demérito para mulheres que necessitam viajar, seja com propósitos educacionais ou profissionais, algo incomum para a época, principalmente para as mulheres casadas. Além disso, o fato de Eliza estar vinculada a uma Universidade nova e em expansão e pertencer a um curso de majoritária presença feminina contribuiu para sua trajetória acadêmica – foram mulheres apoiando mulheres.

5 A luta contra os estereótipos

As camadas populacionais consideradas “minorias”11 11 “Minorias”, nesse contexto, não se trata de valor numérico menor de pessoas e, sim, das situações de desvantagens sociais que atingem essas pessoas. , particularmente as mulheres negras, vivenciam de perto as “[...] ‘intolerâncias correlatas’ – modos pelos quais o racismo se intersecta com a pobreza, a discriminação de gênero e a homofobia [...]” ( BLACKWELL; NABER, 2002BLACKWELL, M.; NABER, N. Interseccionalidades em uma era de globalização: as implicações da conferência mundial contra o racismo para práticas feministas transnacionais. Revista Estudos Feministas , Florianópolis, ano 10, p. 189-198, jan./jul. 2002. , p. 191).

Eliza, desde pequena, enfrentou esses estigmas, conforme suas palavras:

O estigma de ‘neguinha’ foi uma constante na minha vida. Quando a gente é pobre, não tem beleza que se manifeste, nem nada, você tem que dar o seu melhor naquilo que você pode fazer que é a aquisição de conhecimento. Ninguém pode tirar isso de você, conhecimento adquirido nunca lhe é tirado. O fato de ser pobre e negra incomoda a sociedade. (Entrevista, 2013).

Nessa fala, observa-se a interface de várias questões: primeiro, o estigma racial e a questão financeira acompanhando a caminhada de Eliza, mas aparece também, em sua fala, uma questão marcante – a “beleza” feminina, a “aparência” física, enfatizada na frase: “ não tem beleza que se manifeste, nem nada” , questões que atingem a população, mas é muito demarcada nas mulheres em geral. A cultura da beleza é cruel, pois o considerado “belo” na sociedade tem o padrão hegemônico de beleza associado ao tipo caucasiano – cabelos loiros, olhos claros, corpo esbelto, um parâmetro que foge às estruturas brasileiras, mas que acomete o imaginário das mulheres, muitas vezes de forma obsessiva. Em particular, as mulheres negras são estigmatizadas como não pertencentes a esses “padrões” da “boa aparência”.

No livro Pele negra, Máscaras brancas , Frantz Fanon (2008FANON, F. Pele negra, Máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. , p. 104-105) revela o peso dos corpos negros que enfrentam o olhar branco:

[...] No mundo branco, o homem de cor encontra dificuldades na elaboração de seu esquema corporal. O conhecimento do corpo é unicamente uma atividade de negação. É um conhecimento em terceira pessoa. Em torno do corpo reina uma atmosfera densa de incertezas. [...] Elaborei, abaixo do esquema corporal, um esquema histórico-racial. Os elementos que utilizei não me foram fornecidos pelos resíduos de sensações e percepções de ordem sobretudo táctil, espacial, cinestésica e visual, mas pelo outro, o branco, que os teceu para mim através de mil detalhes, anedotas, relatos.

Corroborando essa temática, a professora Yaba Blay, da Universidade de Drexel, ressalta que “a beleza é algo construído socialmente” e, portanto, tem objetivos políticos determinados: “[...] no contexto da supremacia branca, vemos que o poder funciona como hierarquia, onde o branco está no topo, associado ao belo, e a negritude, na base, associada ao que é bárbaro, negativo e feio. [...] A beleza negra é uma questão política [...]” (BLAY, 2015, p. 1). De fato, diante das atitudes racistas cotidianas que sofre uma pessoa negra, perceber-se bonita demonstra compreensão e posicionamento político assertivo.

O depoimento de Eliza demonstra “[...] como dói perceber a relação entre a opressão racista e os argumentos que usamos para convencer a nós mesmas e aos outros de que não somos belos ou aceitáveis como somos [...]” ( hooks, 2005hooks, b. Alisando o nosso cabelo. Brasil, Fala Preta , 2005. Disponível em: http://criola.org.br/mais/bell%20hooks%20-%20Alisando%20nosso%20cabelo.pdf. Acesso em: 20 jun.2013.
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, p. 5). São os condicionamentos estereotipados aflorando e mantendo as mulheres negras em um padrão de introjeção das imagens negativas produzidas pelo poder discriminatório.

[...] não víamos a “natureza feminina” como um aspeto importante da nossa identidade. A socialização racista, sexista condicionou-nos a desvalorizar a nossa feminilidade e a olhar a raça como o único rótulo importante de identificação. Por outras palavras, foi-nos pedido que negássemos uma parte de nós próprias – e fizemo-lo [...] ( hooks, 2014hooks, b. Não sou eu uma mulher? Mulheres negras e feminismos. Plataforma Gueto , 2014. Disponível em: https://plataformagueto.files.wordpress.com/2014/12/nc3a3o-sou-eu-uma-mulher_traduzido.pdf. Acesso em: 20 mar. 2015.
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, p. 5).

Todo esse contexto de inferioridade, de padronização do belo, segundo bell hooks (2005hooks, b. Alisando o nosso cabelo. Brasil, Fala Preta , 2005. Disponível em: http://criola.org.br/mais/bell%20hooks%20-%20Alisando%20nosso%20cabelo.pdf. Acesso em: 20 jun.2013.
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, p. 5), é resquício do impacto da colonização racista que criou e fomentou barreiras na construção da identidade das mulheres negras, levando-as a interiorizarem um medo de “que não somos aceitas como somos porque não somos belas” e, por isso, não seremos aceitas na sociedade.

Ainda de acordo com hooks (2005)hooks, b. Alisando o nosso cabelo. Brasil, Fala Preta , 2005. Disponível em: http://criola.org.br/mais/bell%20hooks%20-%20Alisando%20nosso%20cabelo.pdf. Acesso em: 20 jun.2013.
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, as mulheres negras têm suas identidades marcadas por uma baixa autoestima realçada diariamente pelos meios midiáticos com suas propagandas e slogan da “boa aparência”, “ótima aparência”. A estudiosa Sueli Carneiro (2011CARNEIRO, S. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. 2011. , p. 2) também retrata esse estigma quando diz: “[...] Fazemos parte de um contingente de mulheres para as quais os anúncios de emprego destacam a frase: ‘Exige-se boa aparência’[...]”, o que, na verdade, significa, como expressa Gonzalez (1982GONZALEZ, L. A mulher negra na sociedade brasileira. In: LUZ, M. (org.). O lugar da mulher: estudos sobre a condição feminina na sociedade atual. Rio de Janeiro: Graal, 1982. p. 87-104. , p. 97): “não se apresentem candidatas negras, não serão admitidas.”

Eliza foi criada dentro desse contexto, convivendo com o temor de não ser aceita na sociedade e, aos poucos, ela foi desenvolvendo estratégias de sobrevivências para se manter no mundo de dominação branca.

Você tem que dar o seu melhor naquilo que você pode fazer, que é a aquisição de conhecimento. Ninguém pode tirar isso de você, conhecimento adquirido nunca lhe é tirado. (Entrevista, 2013).

Adquirindo e ampliando seus conhecimentos, Eliza foi quebrando barreiras e ingressando no mundo acadêmico matemático da Bahia, destinado preferencialmente aos homens brancos das elites.

Uma questão importante que devemos observar é que a fundação da Faculdade de Filosofia da Universidade da Bahia12 12 Para maior aprofundamento: PASSOS, E. S. Palcos e Plateias: as representações de gênero na Faculdade de Filosofia. Salvador: EDUFBA, 1999. , instituição na qual Eliza graduou-se, abriu os caminhos para o ingresso das mulheres na vida universitária, mas os cursos mantiveram em sua estrutura as normas identitárias previstas e impostas ao ideal feminino – mulheres seguindo cursos direcionados à docência.

A fala de Eliza está carregada da questão interseccional entre classe e raça, pois, ao dizer “o fato de ser pobre e negra incomoda a sociedade” , não teve a noção de que fundamentalmente não era o fato de ser pobre e negra que incomodava; o “incômodo” só aparece quando o “pobre”, o “negro”, enfim, quando os considerados “outros, forasteiros, estrangeiros” pela sociedade elitista buscam locomover-se, sair dos “seus” espaços na direção dos espaços ditos “superiores” e reservados apenas aos considerados pares nas relações sociais. Segundo Woodward (2000WOODWARD, K. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, T. T. da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 7-72. , p. 9), “a diferença é sustentada pela exclusão” e, assim, a sociedade tenta manter-se imune aos “forasteiros”.

Patrícia Hill Collins (2016COLLINS, P. H. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado , Brasília, v. 31, n.1, p. 99-127, jan./abr. 2016. , p. 122) corrobora com essa discussão afirmando que “[...] as experiências das mulheres negras destacam a tensão vivenciada por qualquer grupo de outsiders menos poderoso que se defronta com o pensamento paradigmático de uma comunidade mais poderosa de insiders [...]”. Portanto o “incômodo” é oriundo de uma cultura elitista, que trata “as minorias” de forma discriminatória: “[...] No nos veían como iguales. No nos trataban como a iguales [...]”13 13 “Não nos viam como iguais. Não nos tratavam como iguais” (Tradução livre). ( hooks, 2004hooks, b. Mujeres negras: dar forma a la teoría feminista. In: HOOKS, B. et al. (ed.). Otras inapropiables: feminismos desde las fronteras. Madrid: Editorial Traficantes de Sueños, 2004. p. 33-50. , p. 45).

Estudos vêm mostrando que avanços estão sendo alcançados, mulheres de diferentes etnias e classes estão conseguindo ingressar nos meios acadêmicos e crescer em suas trajetórias profissionais. Contudo muitas mudanças ainda precisam ser realizadas de forma que as mulheres, de um modo geral, tenham condições de acesso, progresso e permanência em todos os níveis sociais e profissionais, pois “[...] ainda há um longo percurso até que uma verdadeira igualdade racial seja estabelecida nas cada vez mais difíceis condições criadas pela globalização [...]” ( BLACKWELL; NABER, 2002BLACKWELL, M.; NABER, N. Interseccionalidades em uma era de globalização: as implicações da conferência mundial contra o racismo para práticas feministas transnacionais. Revista Estudos Feministas , Florianópolis, ano 10, p. 189-198, jan./jul. 2002. , p. 190). Corroborando esse pensamento, Carla Cabral (2005CABRAL, C. G. As mulheres nas escolas de engenharia brasileira: história, educação e futuro. Cadernos de Gênero e Tecnologia , Curitiba, v. 1, n. 4, p. 9-19, 2005. , p. 10) enfatiza:

[...] Hoje, não há restrições aparentes para o seu acesso aos sistemas educacionais, mas ergue-se uma série de outras barreiras que restringem sua participação na produção do conhecimento científico.

Mas inferimos que o mais importante na vida das mulheres é que estas mantenham acesa a certeza de que não “[...] temos de renunciar a nossa capacidade de sermos pessoas que se autodefinem para termos sucesso [...]” ( hooks, 2005hooks, b. Alisando o nosso cabelo. Brasil, Fala Preta , 2005. Disponível em: http://criola.org.br/mais/bell%20hooks%20-%20Alisando%20nosso%20cabelo.pdf. Acesso em: 20 jun.2013.
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, p. 6).

Eliza foi construindo suas estratégias de sobrevivência, superando muitas vezes seus próprios limites de cansaço físico e emocional, na luta para progredir no espaço profissional escolhido. Ao alcançar o grau de Doutora em Matemática, ela se tornou uma outsider within, ocupando um lugar especial, lugar merecedor de reconhecimento, pois “[...] uma variedade de indivíduos pode aprender com as experiências das mulheres negras como outsiders within [...] e confiar em suas próprias biografias pessoais e culturais como fontes significativas de conhecimento [...]” ( COLLINS, 2016COLLINS, P. H. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado , Brasília, v. 31, n.1, p. 99-127, jan./abr. 2016. , p. 122).

Sua história de vida e acadêmica é um importante convite de exemplaridade para as futuras gerações.

6 Considerações finais

A sociedade brasileira é marcada por acentuada desigualdade social, particularmente em relação a gênero, cor e classe social, categorias que ainda permeiam as relações profissionais, demarcando as escolhas realizadas pelos homens e pelas mulheres. Neste sentido, as áreas das Ciências e Tecnologias são vistas como mais apropriadas à inserção dos homens e foi neste ambiente que Eliza se inseriu e alcançou o grau de Doutora em Matemática.

A análise do discurso demonstrou que ela não sucumbiu às determinações excludentes e aos estigmas, como no momento em que foi tachada de "neguinha". A menina negra, à época pobre, não tinha dúvidas quanto aos seus potenciais, perseguiu e alcançou incentivos, através de bolsas de estudos, avançando em um espaço de predominância masculina – a Matemática.

A importância da inserção das políticas públicas ficou evidente na trajetória de Eliza, assim como o falso mito da meritocracia que a acompanhou de perto, através dos muitos olhares de dúvida e de suspeição quanto a sua capacidade cognitiva, como no recorte em que alcança nota máxima em todas as disciplinas durante o Ensino Médio, fato que exemplifica os preconceitos sofridos pelos indivíduos negros. Portanto a progressão acadêmica de Eliza foi alcançada com muita luta e perseverança, pois, assim como a maioria daqueles considerados como "um ponto fora da curva", ela não encontrou as portas livremente abertas para caminhar, ao contrário: as portas precisaram ser fortemente empurradas para que obtivesse o acesso desejado.

A história de Eliza permaneceu durante muito tempo na invisibilidade, mantendo o preceito "comum" e "natural" da visibilidade apenas das histórias e feitos masculinos. Mas quantas Elizas provavelmente ainda se encontram silenciadas em suas trajetórias de lutas e realizações profissionais? Quantas realizaram – e continuam realizando – produção de conhecimento em suas áreas de atuação?

É necessário destacar os trabalhos científicos realizados pelas mulheres negras, mostrando que elas estão construindo e realizando ciência com grande competência. Lembrando as palavras de bell hooks (2013hooks, b. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. , p. 55): “[...] à vontade de incluir os considerados ‘marginais’ não correspondia a disposição de atribuir a seus trabalhos o mesmo respeito e considerações dados aos trabalhos de outras pessoas [...]”. Para tanto, precisa-se romper com o hábito de apenas discutir suas histórias e vivências quanto ao racismo, machismo e outras formas de preconceito apenas nos espaços fechados e núcleos reservados a tais discussões. No contexto de um estudo interdisciplinar, é possível inferir que vale a pena refletir sobre a possibilidade de se investir em algo mais ambicioso, a saber, a transdisciplinaridade em todos os cursos de formação superior, que seria, em poucas palavras, a extinção das fronteiras entre as disciplinas.

Desse modo, expandindo necessariamente tais discussões, não se formariam apenas "especialistas técnicos" que saem dos espaços universitários com um diploma de nível superior, porém sem nenhuma visão ética e crítica acerca das mazelas sofridas por grande parcela da sociedade, e assim vão reproduzir, nos seus espaços de atuação profissional, os preconceitos de gênero e racismo enraizados na formação sociocultural brasileira.

Destarte, torna-se imperativa e urgente a formação, no nível superior, de seres humanos atentos, críticos e ativos na luta a favor da dignidade e dos direitos da pessoa humana e, em especial, ativos no combate às diversas formas de preconceitos, racismo e demais formas de opressão. Assim, é preciso unir forças para romper com a naturalidade histórica que coloca os homens brancos como protagonistas da História e do Campo das Ciências no Brasil, trazendo ao palco as escritas, a vida e as realizações de grande parte da população que ainda se encontra silenciada.

Referências

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  • 1
    Tripla opressão: Gênero, Raça, Classe social. Subjugadas, excluídas, invisibilizadas por serem mulheres negras e pobres.
  • 2
    É preocupante que apenas 20% dos brasileiros que se formam na escola são afro-descendentes. [...] Consequentemente, este grupo populacional foi e permanece em uma posição que requer atenção específica. Um dos principais contextos lógicos da razão pela qual essa população permanece nesta posição difícil é devido ao mito da democracia racial no Brasil, que sugere igualdade e meritocracia: vemos poucas evidências disso, já que essa população é politicamente sub-representada e sub-representada na maioria dos espaços sociais. [...] No Brasil, a igualdade de gênero está misturada com marcadores sociais de diferença, como raça ou etnia e, em particular, o papel dos afrodescendentes no país. Em geral, os homens e as mulheres afrodescendentes são dramaticamente sub-representados/as ou não representados/as. (Tradução livre).
  • 3
    Segundo Alfred Schutz (2010SCHUTZ, A. O estrangeiro: um ensaio em Psicologia Social. Revista Espaço Acadêmico , Maringá, n. 113, p. 117-129, out. 2010. , p.118), “ [...] o estrangeiro deverá significar um indivíduo [...] que tenta ser permanentemente aceito ou ao menos tolerado pelo grupo ao qual ele se aproxima.”
  • 4
    A função de Coletor de Impostos, segundo Eliza, na época, representava a terceira autoridade do Estado: Prefeito, Padre, Coletor de Impostos.
  • 5
    Atual Ensino Médio.
  • 6
    Na verdade, foram duas bolsas: no segundo ano do curso, Eliza recebeu uma bolsa da Philipps para custear os estudos do 3º ano. E, no final do curso, recebeu outra bolsa da Philipps como prêmio. A Phillips é uma empresa holandesa com produtos voltados para a tecnologia, produtos de consumo e estilo de vida. A Phillips do Brasil é uma subsidiária do Royal Phillips Electronics.
  • 7
    Descobrimos que a diferença de gênero é mitigada consideravelmente quando as alunas têm professoras. [...] Descobrimos que o efeito das professoras sobre as alunas é maior entre as alunas com alta habilidade matemática. (Tradução livre)
  • 8
    Ela e suas/seus colegas de turma faziam as disciplinas em paralelo, no final do curso fizeram um requerimento aos órgãos competentes pedindo a concessão para habilitação conjunta. O processo foi julgado pelo Sr. Magalhães Neto, que emitiu parecer favorável ao pleito dos/as alunos/as.
  • 9
    Célia Pitangueira ingressou na graduação em Matemática da FF no mesmo ano que Eliza. Foi uma das quatro mulheres que passaram no vestibular de 1964. Tornou-se também professora do Instituto de Matemática e ocupou o cargo de direção da Instituição no período de 1988-1992.
  • 10
    Há discussões favoráveis e contrárias às cotas, mas estamos juntos com Kabengele Munanga (2001MUNANGA, K. Políticas de ação afirmativa em benefício da população negra no Brasil: um ponto de vista em defesa de cotas. Revista Sociedade e Cultura , Goiás, v. 4, n. 2, p. 31-43, jul./dez. 2001. , p. 41-42) quando argumenta: “[...] Finalmente, a questão fundamental que se coloca não é a cota, mas sim o ingresso e a permanência dos negros nas universidades públicas. A cota é apenas um instrumento e uma medida emergencial enquanto se buscam outros caminhos. Se o Brasil, na sua genialidade racista, encontrar alternativas que não passam pelas cotas para não cometer injustiça contra brancos pobres – o que é uma crítica sensata – ótimo! Mas dizer simplesmente que implantar cotas é uma injustiça, sem propor outras alternativas a curto, médio e longo prazo, é uma maneira de fugir de uma questão vital para mais de 70 milhões de brasileiros de ascendência africana e para o próprio futuro do Brasil. É uma maneira de reiterar o mito da democracia racial, embora este esteja desmistificado. Os que condenam as políticas de ação afirmativa ou as cotas favorecendo a integração dos afrodescendentes utilizam de modo especulativo argumentos que pregam o status quo, ao silenciar as estatísticas que comprovam a exclusão social do negro.”
  • 11
    “Minorias”, nesse contexto, não se trata de valor numérico menor de pessoas e, sim, das situações de desvantagens sociais que atingem essas pessoas.
  • 12
    Para maior aprofundamento: PASSOS, E. S. Palcos e Plateias: as representações de gênero na Faculdade de Filosofia. Salvador: EDUFBA, 1999.
  • 13
    “Não nos viam como iguais. Não nos tratavam como iguais” (Tradução livre).
  • 14
    A grafia do nome bell hooks, assim mesmo, em minúsculas, é um posicionamento político da recusa egóica intelectual. bell hooks queria que prestássemos atenção em suas obras, em suas palavras e não em sua pessoa. O pseudônimo (bell hooks) escolhido por Gloria Jean Watkins é uma homenagem à sua avó.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Set 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    31 Ago 2022
  • Aceito
    13 Dez 2022
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