RESUMO
JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS: O objetivo deste estudo foi apresentar um caso de dor crônica difusa com 36 meses de evolução, associada com aftas orais de repetição e glossite, destacando a importância do amplo diagnóstico diferencial e da possibilidade da deficiência de vitamina B12 como causa.
RELATO DO CASO: Paciente do sexo masculino, 39 anos, branco, referindo dores difusas que predominavam em região cervical, torácica, abdominal, coxas e joelho esquerdo, além da presença de aftas orais frequentes, com duração superior a 5 dias, múltiplas e dolorosas, predominando na língua, há 6 meses. O quadro foi atribuído à doença de Behçet, mas houve remissão total e permanente após tratamento com vitamina B12.
CONCLUSÃO: É importante inserir a deficiência de vitamina B12 para o diagnóstico diferencial em quadros de dor crônica.
Descritores: Dor crônica; Glossite; Doença de Behçet; Úlcera oral; Vitamina B12
ABSTRACT
BACKGROUND AND OBJECTIVES: The study’s objective was to present a case of diffuse chronic pain with 36 months of development, associated with recurrent oral aphthous ulcers and glossitis, highlighting the importance of the wide differential diagnosis and the possibility of vitamin B12 deficiency as a cause.
CASE REPORT: Male patient, 39 years-old, white, reported diffuse pain predominantly in the cervical, thoracic, abdominal, thighs and left knee regions, besides the presence of frequent oral aphtae, lasting more than 5 days, multiple and painful, predominantly on the tongue, for 6 months. The condition was attributed to Behçet’s disease, but there was complete and permanent remission after treatment with vitamin B12.
CONCLUSION: It’s important to insert vitamin B12 deficiency for differential diagnosis in chronic pain scenarios.
Keywords: Behçet disease; Chronic pain; Glossitis; Oral ulcer; Vitamin B12
INTRODUÇÃO
A dor crônica (DC) representa um dos mais importantes e prevalentes sintomas enfrentados pela humanidade. A etiologia nem sempre é definida, sendo em alguns casos caracterizada como idiopática ou sem causa conhecida. Existem pacientes cuja DC, mesmo após exaustiva investigação, não tem sua causa ou um substrato anatômico encontrado. Há relatos em literatura sobre o uso de vitamina B12 no tratamento de alguns tipos de DC.
O objetivo deste estudo foi apresentar um caso clínico com predomínio de DC difusa e aftas orais, que inicialmente foi atribuído a doença de Behçet, mas que teve remissão total e permanente após o tratamento com vitamina B12, evidenciando sua deficiência como causa da DC e das úlceras orais de repetição.
RELATO DO CASO
Paciente do sexo masculino, 39 anos, branco, encaminhado para Reumatologia com dor generalizada há 6 meses. Relatava dores difusas que predominavam em região cervical, torácica, abdominal, coxas e joelho esquerdo. Outro dado importante foi a presença de aftas orais frequentes, com duração superior a 5 dias, múltiplas e dolorosas, predominando na língua. Havia também história de úlceras genitais na glande, entretanto, em frequência menor. O paciente não apresentava manifestações articulares como artrite ou artralgia. No exame físico foram observadas 2 aftas em língua de 0,5 e 1 cm de diâmetro e discretas lesões do tipo foliculite no dorso e face, sem outras alterações relevantes. Após investigação laboratorial (Tabela 1), foi feita a hipótese diagnóstica de doença de Behçet pelo quadro clínico, embora não houvesse comprometimento oftalmológico ou de sistema nervoso central e o teste de patergia tivesse sido negativo. Inicialmente houve discreta melhora na frequência das aftas, entretanto, após alguns meses houve acentuação não somente das lesões orais, como também do quadro álgico.
O paciente abandonou o acompanhamento médico e passou a tratar com analgésicos e anti-inflamatórios sem controle adequado da sintomatologia. Retornou após 3 anos com piora do quadro álgico que predominava em região torácica, abdominal, membros superiores e inferiores, das aftas orais com dor na língua e sensação de desconforto e queimação, sugerindo glossite (Figura 1). Com esses dados, foi feita a hipótese diagnóstica de carência de vitamina B12, confirmada pelos exames da tabela 1. Foi iniciado tratamento com a vitamina B12 (cobalamina cronoativa), inicialmente com 5000µg intramuscular a cada 7 dias por 1 mês e a seguir a cada 30 dias, havendo melhora dos sintomas, com a remissão total da dor e das alterações da língua após um mês de tratamento (Figura 2). Não ocorreram novas aftas orais ou genitais após os 10 meses de tratamento.
Prosseguindo com a investigação etiológica, foi constatada a dieta inadequada do paciente há alguns anos, com predominância de carboidratos, e a endoscopia digestiva alta evidenciou gastrite crônica leve com pesquisa positiva para Helicobacter pylori, sendo submetido ao tratamento com esquema clássico e pesquisa negativa para doença celíaca. A colonoscopia foi normal, assim como uma eletroneuromiografia de 4 membros realizada para a propedêutica do quadro álgico difuso.
DISCUSSÃO
As deficiências de vitaminas constituem um problema comum no mundo. O reconhecimento e tratamento da deficiência de vitamina B12 é essencial por ser causa reversível de insuficiência da medula óssea e de doenças desmielinizantes.
A vitamina B12 está envolvida na conversão de metilmalonil-CoA (ácido metilmalônico ligado à coenzima A) em succinil-CoA pela enzima metilmalonil-CoA mutase com adenosil-B12 como cofator. A deficiência de B12 causa aumento dos níveis de ácido metilmalônico no plasma1.
O diagnóstico da deficiência pode ser realizado de acordo com as manifestações clínicas e a dosagem de vitamina B12. A elevação sérica de homocisteína e do ácido metilmalônico pode ser fundamental para o diagnóstico dessa deficiência. Nível elevado de ácido metilmalônico é razoavelmente específico para o diagnóstico e sua redução ocorre após a terapia com vitamina B121.
Em relação à dor, o principal sintoma relatado pelo paciente, e as aftas predominantemente orais, a princípio ocasionaram grande dificuldade para o diagnóstico devido à inespecificidade do quadro, entretanto, a doença de Behçet foi a principal hipótese, visto que preenchia critérios descritos na tabela 2.
O diagnóstico da síndrome de Behçet exige cuidadosa observação clínica, não existindo até o momento exames laboratoriais que possam confirmar esse diagnóstico. É uma síndrome que pode simular várias doenças, inclusive a carência de vitamina B12. Vários critérios diagnósticos foram propostos e entre eles os recomendados pelo International Criteria for Behçet’s Disease (ICBD) que foi introduzido em 2006 e revisado em 2014 (Tabela 2)2. Conforme observado na tabela, o paciente apresentava aftas orais, aftas genitais e lesões semelhantes a foliculite, que embora inespecíficos foram atribuídos inicialmente a possível doença de Behçet, já que, de acordo com o ICBD, tal diagnóstico deve ser considerado se ≥ 4 pontos.
O quadro álgico, que mais incomodava o paciente nos últimos meses, era caracterizado por dor contínua em diversas regiões do corpo, sem melhora significativa com o uso de analgésicos ou anti-inflamatórios não esteroidais. Além do quadro álgico difuso, o surgimento da lesão dolorosa da língua, com eritema e perda das papilas (Figura 1), sugeriu a hipótese diagnóstica de hipovitaminose B12, que foi confirmado com as dosagens baixas de vitamina B12, aumento de homocisteína, além da excelente resposta com a reposição de vitamina B12. Após 10 meses de tratamento, o paciente teve resolução do quadro álgico, desaparecimento de aftas orais e genitais e da lesão na língua, como observado na figura 2. Manteve-se assintomático durante todo o período de acompanhamento.
Uma revisão sobre o papel analgésico das vitaminas do complexo B evidencia que tem efeito analgésico em síndromes dolorosas neuropáticas e nociceptivas, sendo opções seguras e de baixos custos para o tratamento de alguns quadros álgicos3.
Embora o papel da vitamina B12 no tratamento de dor seja reconhecido por outros autores, não está definido se a carência de vitamina B12 poderia ocasionar dor. Não há na literatura quadro semelhante de DC generalizada e mal definida, com remissão completa após o tratamento de reposição com a administração de vitamina B12. Existem alguns relatos de dor musculoesquelética iniciada após uso de isotretinoína, com melhora após a introdução de vitamina B124. Um estudo5 observou melhora dos sintomas de dor musculoesquelética em pacientes com câncer de mama submetidos ao tratamento com inibidores de aromatase (anastrozol, letrozol ou exemestano), após o tratamento com vitamina B12.
Embora seja necessária avaliação crítica e ensaios prospectivos randomizados, os relatos se somam para demonstrar o papel analgésico da vitamina B12. Por outro lado, é importante destacar que, para doenças que cursam com quadro álgico significativo, como a fibromialgia, não existem estudos demonstrando a relação da dor com vitamina B12. Um estudo6 não recomenda a dosagem de vitamina B12 rotineiramente em pacientes com fibromialgia. Na procura de um biomarcador para DC, outro estudo7 observacional retrospectivo evidenciou níveis elevados de ácido metilmalônico em 10% (n=1.827) dos pacientes, indicando deficiência de vitamina B12. No mesmo estudo foi encontrada alteração em homocisteína em 11% dos pacientes, reforçando a provável associação com deficiência de vitamina B12.
Alguns autores apontam a possibilidade do uso de vitamina B12 no tratamento de DC de diversas etiologias, entre elas a dor neuropática8-10, entretanto, tais estudos necessitam de prosseguimento para comprovação. Em relação às aftas orais dolorosas e de repetição que muito incomodavam o paciente, estudo11 cita, entre as várias causas, a importância de pesquisar a carência de vitamina B12.
Apesar de descritas várias causas possíveis de deficiência de vitamina B1212, é provável que no paciente deste relato seja carencial por dieta inadequada, uma vez que outras possibilidades não evidenciaram resultados conclusivos como doenças intestinais comprometendo a absorção, doenças autoimunes (AC anti-célula parietal e AC Antifator Intrínseco negativos) ou cirurgias. Não foi constatada a utilização de medicações que pudessem causar a deficiência. Pode ocorrer deficiência de vitamina B12 mesmo com níveis séricos aparentemente normais e ausência de anemia, principalmente em fases iniciais, sendo importante na investigação incluir a dosagem de ácido metilmalônico e homocisteína com a finalidade de ampliar a possibilidade de detecção da carência mais precocemente, embora nem sempre haja disponibilidade de realização desses exames, principalmente do ácido metilmalônico.
CONCLUSÃO
É importante avaliar a deficiência de vitamina B12 no diagnóstico diferencial de quadros álgicos crônicos, além da associação com o desenvolvimento de aftas orais de repetição. A reposição da vitamina B12 é eficaz, melhorando significativamente a qualidade de vida dos pacientes.
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Fontes de fomento: não há.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
08 Out 2021 -
Data do Fascículo
Jul-Sep 2021
Histórico
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Recebido
25 Jan 2021 -
Aceito
19 Abr 2021