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O que falar sobre pacientes com dor durante e após a pandemia por COVID-19?

Prezado editor,

Que começo de 2020! A pandemia trouxe inumeráveis desafios para a saúde pública, para a política, economia e relações pessoais em todo o mundo. A COVID-19 provocou grandes impactos11 Tay MZ, Poh CM, Rénia L, MacAry PA, Ng LFP. The trinity of COVID-19: immunity, inflammation, and intervention. Nat Rev Immunol. 2020;20(6):363-74.. O foco foi direcionado para a assistência aos pacientes que foram infectados pelo vírus, especialmente aqueles que desenvolveram distúrbios respiratórios graves. Por outro lado, muitos pacientes com doenças crônicas foram destituídos de sua rotina, e do acesso seguro e fácil ao seu tratamento de saúde.

A dor é a queixa mais prevalente em todo o mundo, e a dor não aliviada continua sendo um problema de saúde global. Entretanto, uma revisão sistemática mostrou que a prevalência de pacientes com dor crônica na população geral nos países em desenvolvimento foi de 18%. Estudos com a população brasileira identificaram que entre 28 e 40% da população sofre com dores crônicas, com maior prevalência entre as mulheres, idosos, e população com baixo índice de desenvolvimento humano22 Souza JB, Grossmann E, Perissinotti DMN, Oliveira Junior JO, Fonseca PRB, Posso IP. prevalence of chronic pain, treatments, perception, and interference on life activities: Brazilian population-based survey. Pain Res Manag. 2017;2017:4643830.,33 Ferreira KASL, Bastos TRPD, Andrade DC, Silva AM, Appolinario JC, Teixeira MJ, et al. Prevalence of chronic pain in a metropolitan area of a developing country: a population-based study. Arq. Neuropsiquiatr. 2016;74(12):990-8.. Durante o período da pandemia global, os riscos de morbidade da dor, e até mesmo mortalidade, podem ser drasticamente amplificados. Segundo a Organização Mundial da Saúde, as pandemias anteriores geraram um número maior de pacientes com diagnóstico de dor osteomuscular crônica associada ao transtorno de estresse pós-traumático44 World Health Organization et al. Integrating palliative care and symptom relief into responses to humanitarian and crises: a WHO guide. 2018..

O que realmente acontece com esses pacientes durante o período de quarentena? Esse não é um cenário promissor para os pacientes com dor crônica, principalmente nos países em desenvolvimento. Não há dúvida de que aquilo que pode ser feito para tratar a dor é diferente daquilo que foi feito nos países em desenvolvimento. Alguns fatores contribuíram para essa situação, tais como a formação limitada dos profissionais de saúde, escassez de instalações para o tratamento da dor, e acesso inadequado aos tratamentos para o alívio da dor. Nos países em desenvolvimento, houve uma crescente motivação para a educação em dor e o crescimento dos treinamentos clínicos, ao mesmo tempo, várias barreiras foram impostas às mudanças na prática pelos governos e administradores de saúde55 Bond M. Pain education issues in developing countries and responses to them by the International Association for the Study of Pain. Pain Res Manage 2011;16(6):404-6..

Primeiro, os pacientes que eram atendidos tiveram seu tratamento de saúde interrompido inesperadamente. Embora a telemedicina e a telereabilitação tenham sido usadas com sucesso em muitos casos para muitos prognósticos66 Adamse C, Dekker-Van Weering MG, van Etten-Jamaludin FS, Stuiver MM. The effectiveness of exercise-based telemedicine on pain, physical activity, and quality of life in the treatment of chronic pain: a systematic review. J Telemed Telecare. 2018;24(8):511-26., elas não podem ser consideradas como normal da noite para o dia. Além disso, devemos ressaltar que a situação em países em desenvolvimento, como o Brasil, é muito precária se levarmos em consideração a escassez de equipamentos adequados e conectividade, e o aculturamento dessas práticas tecnológicas mais recentes no âmbito da saúde.

Ademais, a telessaúde provavelmente será incorporada por alguns serviços depois desse uso forçado das ferramentas tecnológicas e da experiência com os pacientes, como mencionado na recente publicação da PAIN77 Eccleston C, Blyth FM, Dear BF, Fisher EA, Keefe FJ, Lynch ME, et al. Managing patients with chronic pain during the COVID-19 outbreak: considerations for the rapid introduction of remotely supported (eHealth) pain management services. Pain. 2020;161(5):889-93.. Entretanto, os profissionais da saúde devem ter cuidado no futuro quando esta crise humanitária tiver sido resolvida, pois precisaremos ter critérios claros para indicar que tipo de paciente/doença/disfunção ou que fase do tratamento da dor pode ser abordada usando-se a telessaúde. Não existem garantias de que isso funcionará para todo e qualquer caso. A dor crônica é multidimensional, e os pacientes com dor geralmente precisam de assistência e contato presencial. Uma carta recentemente publicada no BrJP88 Fioratti I, Reis Felipe JJ, Fernandes LG, Saragiotto BT. The COVID-19 pandemic and the regulations of remote attendance in Brazil: new opportunities for people dealing with chronic pain. BrJP. 2020;3(2):193-94. descreveu os principais fatores que devem ser considerados para essa implementação no Brasil.

Além disso, as pessoas têm características biopsicossociais que afetam a dor. Os componentes biológicos, psicoemocionais e os aspectos sociais são relevantes para o paciente com dor99 Engel GL. The need for a new medical model: a challenge for biomedicine. Science. 1977;196(4286):129-36.. Ainda considerando o contexto biológico, o isolamento social interferiu tremendamente nas estratégias físicas para o tratamento da dor. A prática de exercícios tem sido o padrão-ouro no tratamento da maioria das condições de dor crônica.

Entretanto, muitos pacientes com dor precisam de uma supervisão profissional adequada e espaço apropriado para realizar e se manter em um programa de exercícios físicos. Agora, os pacientes estão em casa. Eles estão se movimentando o suficiente? Eles têm vontade de se movimentar? Eles têm acesso aos profissionais de saúde que possam ajudá-los e fazer o acompanhamento virtual? Eles têm acesso a essa nova tecnologia? Eles são motivados (por eles mesmos ou pelos familiares/amigos) para se exercitarem? Infelizmente, a maioria já parou de se movimentar.

Além do mais, vários aspectos psicoemocionais estão fortemente correlacionados com vários estados de dor, tais como ansiedade, depressão, catastrofização, medo, baixa autoeficácia, hipervigilância. Condições do humor, energia para realizar atividades e o sono também interferem nas emoções. Todos esses fatores contribuem para dar início, manter ou exacerbar as condições de dor.

Por fim, a situação socioeconômica, a cultura e os relacionamentos podem ter influência na saúde. Muitos aspectos sociais podem afetar e aumentar a dor, como condições domésticas inadequadas, falta de alimento e artigos de higiene, preocupações com o emprego, acúmulo de dívidas, preocupação com familiares/amigos, falta de privacidade, ausência de apoio familiar/amigos e incerteza sobre o futuro.

Não seremos mais os mesmos que antes. Nossos pacientes também não. Eles se transformarão. Provavelmente, as características de suas dores mudarão. Será que teremos pacientes diferentes com dor depois da pandemia? Quem eles eram antes da pandemia? Como era sua dor? O que cada um passou durante a quarentena? Como fizeram? Você está mentalmente preparado o suficiente para considerar todas essas possíveis transformações?

Apesar do pessimismo aqui expresso, e considerando que a ciência muda, será que mais dor é o único contexto clínico que podemos esperar? Talvez, situações sérias de miserabilidade social, pânico descontrolado sobre a doença e sobrevivência, aumento da violência doméstica, grave sensação diária de que o lar se tornou uma prisão podem ter um papel distrator no cérebro e alterar as manifestações de dor, uma vez que ainda não sabemos como essas experiências extremas podem modular o status da dor.

Atenção é imprescindível. Tanto os profissionais de saúde como os pesquisadores que realizam estudos observacionais ou estudos clínicos precisam estar cientes de muitos desses fatores que podem ter afetado o status da dor nos pacientes depois que a pandemia passar e a vida estiver caminhando para o novo normal.

Em geral, eventos negativos são seguidos por um tipo de transformação positiva. Sabemos que já estamos testemunhando mudanças comportamentais em muitas pessoas que aprenderam a valorizar pequenas coisas, a importância das pessoas, a vida ao ar livre, a socialização, a rotina diária e a estabilidade.

De fato, que recomeço!

REFERENCES

  • 1
    Tay MZ, Poh CM, Rénia L, MacAry PA, Ng LFP. The trinity of COVID-19: immunity, inflammation, and intervention. Nat Rev Immunol. 2020;20(6):363-74.
  • 2
    Souza JB, Grossmann E, Perissinotti DMN, Oliveira Junior JO, Fonseca PRB, Posso IP. prevalence of chronic pain, treatments, perception, and interference on life activities: Brazilian population-based survey. Pain Res Manag. 2017;2017:4643830.
  • 3
    Ferreira KASL, Bastos TRPD, Andrade DC, Silva AM, Appolinario JC, Teixeira MJ, et al. Prevalence of chronic pain in a metropolitan area of a developing country: a population-based study. Arq. Neuropsiquiatr. 2016;74(12):990-8.
  • 4
    World Health Organization et al. Integrating palliative care and symptom relief into responses to humanitarian and crises: a WHO guide. 2018.
  • 5
    Bond M. Pain education issues in developing countries and responses to them by the International Association for the Study of Pain. Pain Res Manage 2011;16(6):404-6.
  • 6
    Adamse C, Dekker-Van Weering MG, van Etten-Jamaludin FS, Stuiver MM. The effectiveness of exercise-based telemedicine on pain, physical activity, and quality of life in the treatment of chronic pain: a systematic review. J Telemed Telecare. 2018;24(8):511-26.
  • 7
    Eccleston C, Blyth FM, Dear BF, Fisher EA, Keefe FJ, Lynch ME, et al. Managing patients with chronic pain during the COVID-19 outbreak: considerations for the rapid introduction of remotely supported (eHealth) pain management services. Pain. 2020;161(5):889-93.
  • 8
    Fioratti I, Reis Felipe JJ, Fernandes LG, Saragiotto BT. The COVID-19 pandemic and the regulations of remote attendance in Brazil: new opportunities for people dealing with chronic pain. BrJP. 2020;3(2):193-94.
  • 9
    Engel GL. The need for a new medical model: a challenge for biomedicine. Science. 1977;196(4286):129-36.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2020
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