RESUMO
JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS A sedoanalgesia em infusão contínua pode favorecer desfechos hospitalares negativos, assim, o objetivo foi analisar a relação entre sedoanalgesia em infusão contínua e fatores como tempo de ventilação pulmonar mecânica (VPM), falha de extubação, infecções hospitalares, tempo de internação e óbito numa unidade de terapia intensiva pediátrica (UTIP) mista.
MÉTODOS Coorte retrospectivo com internações de crianças de zero a 14 anos, de 2012 a 2017. Uso de sedoanalgesia contínua foi considerado fator para os desfechos tempo de VPM, falha de extubação, infecções hospitalares (infecções relacionadas à assistência à saúde - IRAS, infecção fúngica e infecção de corrente sanguínea relacionada a cateter), tempo de internação em UTIP e no hospital e óbito. Foi realizada a regressão de Poisson com ajuste por modelos progressivos com nível de significância de 5%, cálculo do risco relativo (RR) e intervalo de confiança (IC 95%). Este estudo buscou identificar a associação do uso de sedativos e analgésicos em infusão contínua com desfechos hospitalares por meio do controle de variáveis de confusão.
RESULTADOS Foram analisadas 894 internações, predominando o sexo masculino (54,3%), crianças não desnutridas (70,7%) e sem diagnóstico de doença crônica (55,1%). Lactentes representaram metade da população. Os desfechos que se associaram à sedoanalgesia contínua no modelo final foram: tempo de VPM > 4 dias (RR=2,74; IC95%=1,90-3,93), IRAS (RR=1,91; IC95%=1,32-2,80), infecção fúngica (RR=2,00; IC95%=1,12-3,58), tempo de internação na UTIP > 3 dias (RR=1,81; IC95%=1,51-2,17) e hospitalar > 10 dias (RR=1,52; IC95%=1,27-1,84) e óbito (RR=0,64; IC95%=0,43-0,95).
CONCLUSÃO: Tempo de VPM maior que quatro dias, diagnóstico de IRAS, diagnóstico de infecção fúngica, tempo de internação na UTIP maior que três dias e tempo de internação hospitalar maior que 10 dias foram mais incidentes nas crianças que receberam sedoanalgesia em infusão contínua. Já o óbito apresentou maior relação com as variáveis de gravidade do que com o uso de fármacos psicoativos.
Descritores: Analgesia; Infecções nosocomiais; Sedação profunda; Tempo de internação; Unidades de Terapia Intensiva Pediátrica; Ventilação artificial
ABSTRACT
BACKGROUND AND OBJECTIVES Continuous infusion sedoanalgesia may favor negative hospital outcomes, thus, the objective was to analyze the relationship between continuous infusion sedoanalgesia and factors such as duration of mechanical pulmonary ventilation (MPV), extubation failure, hospital infections, length of hospitalization, and death in a mixed pediatric intensive care unit (PICU). The aim of this study was to identify the association of the use of sedatives and analgesics in continuous infusion with hospital outcomes through the control of confounding variables.
METHODS Retrospective cohort with hospitalizations of children aged zero to 14 years, from 2012 to 2017. Use of continuous sedoanalgesia was considered a factor for the outcomes: duration of MPV, extubation failure, hospital infections (healthcare-associated infections - HCAI, fungal infection and catheter-related bloodstream infection), length of stay in the PICU and hospital, and death. Poisson regression was performed with adjustment by progressive models, with a significance level of 5%, calculation of relative risk (RR) and confidence interval (95% CI).
RESULTS A total of 894 hospitalizations were analyzed, with a predominance of males (54.3%), non-malnourished children (70.7%) and without a diagnosis of chronic disease (55.1%). Infants accounted for half of the population. The outcomes that were associated with continuous sedoanalgesia in the final model were: MPV time > 4 days (RR=2.74; 95%CI=1.90-3.93), HCAI (RR=1.91; 95%CI=.32-2.80), fungal infection (RR=2.00; 95%CI=1.12-3.58), length of stay in the PICU > 3 days (RR=1.81; 95%CI=1.51-2.17) and hospital stay > 10 days (RR=1.52; 95%CI=1.27-1.84), and death (RR=0.64; 95%CI=0.43-0.95).
CONCLUSION MPV time longer than four days, diagnosis of HCAI, diagnosis of fungal infection, length of stay in the PICU longer than three days, and hospitalization time longer than 10 days were factors more present in children who received continuous infusion of sedoanalgesia. Death, on the other hand, was more related to severity variables than to the use of psychoactive drugs.
Keywords: Analgesia; Artificial ventilation; Cross infection; Deep sedation; Intensive Care Units; Length of stay
INTRODUÇÃO
As unidades de terapia intensiva (UTI) são ambientes em que pessoas gravemente enfermas permanecem sob cuidados de equipe multiprofissional até que obtenham melhora ou estabilização de seu quadro clínico. Devem dispor de recursos tecnológicos para diagnóstico, monitorização e tratamento da pessoa hospitalizada. A UTI é classificada de acordo com o grupo etário em: neonatal, para atendimento de pacientes de zero a 27 dias completos; pediátrica, para crianças de 28 dias a 14 ou 18 anos; e mista, quando atende desde recém-nascidos a adolescentes de 14 a 18 anos, conforme normas institucionais1.
As peculiaridades das UTI, associadas aos procedimentos invasivos inerentes ao estado de gravidade do paciente, culminam em maior estresse, ansiedade e agitação, sobretudo em crianças2. Assim, sedação e analgesia são imprescindíveis no processo terapêutico da UTI pediátrica (UTIP)3. Contudo, o ajuste da dose ideal nessa população é um desafio pela grande diferença das faixas etárias de crianças admitidas em UTIP de perfil misto4. A sedoanalgesia pode ser realizada de forma contínua ou intermitente, ou seja, com intervalo mínimo entre as doses. As classes de fármacos mais utilizadas são os benzodiazepínicos e opioides4,5.
Efeitos adversos decorrentes do uso contínuo desses fármacos podem ser observados em consequência dos efeitos cumulativos que possuem e que resultam em maior incidência de sintomas de abstinência e delirium, assim como maior tempo de ventilação mecânica e estadia hospitalar. Contudo, a literatura enfatiza essas consequências por meio da análise de fármacos específicos e/ou combinação entre eles4,6,7.
Conhecer como o uso desses fármacos está associado a desfechos negativos, independentemente da classe do fármaco, em crianças admitidas em UTIP de perfil misto por meio de controle de variáveis confundidoras, contribuirá para melhor direcionamento da assistência prestada, com criação de protocolos que permitam manejos diferenciados desses pacientes. Dessa forma, o objetivo deste estudo foi analisar a relação entre uso de sedoanalgesia em infusão contínua e desfechos de saúde em uma UTIP mista.
MÉTODOS
Esse estudo foi conduzido conforme recomendações das diretrizes internacionais para estudos observacionais (Strengthening the Reporting of Observational Studies in Epidemiology - STROBE). Trata-se de uma coorte retrospectiva composta por internações de crianças e adolescentes de zero a 14 anos em uma UTIP de hospital terciário, localizado em uma cidade do sul do Brasil. Na ocasião da pesquisa, o município possuía 36 leitos de UTIP, dos quais sete estavam na rede pública, local desta pesquisa, e 31 em hospitais particulares ou filantrópicos. A UTIP estudada é referência para atendimentos prestados às crianças e adolescentes da cidade e região, oferecendo assistência de nefropediatria, cirurgia infantil, trauma pediátrico, neurocirurgia, grandes queimados, entre outros.
As internações abrangeram o período entre 01 de janeiro de 2012 e 31 de dezembro de 2017, as quais foram listadas e fornecidas pelo serviço de arquivo médico do hospital. Foram excluídas internações de crianças e adolescentes que receberam bloqueadores neuromusculares e fármaco dissociativo (cetamina) contínuos, por via endovenosa, pelas particularidades farmacocinéticas desses fármacos. Também não foram consideradas infusões de sedativos e/ou analgésicos que duraram menos de 24h, período considerado insuficiente para associação com os desfechos analisados. Pacientes com diagnóstico de morte encefálica foram excluídos por caracterizar condução diagnóstica peculiar com potencial de interferir nas análises propostas. Prontuários não localizados e informação sobre infusão contínua de sedoanalgesia ignorada foram considerados perdas.
As variáveis analisadas nesta pesquisa foram: sexo (masculino e feminino); idade em anos (< 1; 1 a 3; 4 a 6; 7 e mais); Escore-Z classificado segundo medida de peso aferido na admissão, por idade (desnutrido: <-2; não desnutrido: ≥-2), diagnóstico de doença crônica na admissão, considerada como aquela com evolução superior a 30 dias e com necessidade de acompanhamento especializado pediátrico (sim e não); principais diagnósticos admissionais, avaliados separadamente, como insuficiência respiratória, pós-operatório, sepse, síndrome respiratória aguda grave (SRAG) e traumatismo cranioencefálico (TCE) (sim e não); necessidade de ventilação pulmonar mecânica (VPM) (sim e não); e necessidade de fármaco vasoativo (sim e não). Esses fatores foram analisados segundo necessidade de uso de sedativos e/ou analgésicos em infusão contínua (sim e não). Os fármacos sedativos neste estudo foram midazolam, tionembutal, clonidina, propofol e dexmedetomidina. Fentanil, morfina e remifentanil foram os analgésicos considerados.
O uso de sedoanalgesia contínua (sim e não) foi considerado fator para os seguintes desfechos hospitalares: tempo de VPM, em dias, segundo a mediana (≤4 e >4); falha de extubação, ou seja, necessidade de nova intubação traqueal em até 48h da retirada do suporte ventilatório invasivo (sim e não); infecções hospitalares, representadas por infecções relacionadas à assistência à saúde (IRAS), infecção fúngica e infecção de corrente sanguínea relacionada a cateter (ICSRC) (sim e não); tempo de internação em UTI, segundo a mediana, maior que três dias (sim e não); tempo de internação hospitalar, segundo a mediana, maior que 10 dias (sim e não); e óbito (sim e não).
Os dados foram obtidos em prontuários médicos e transcritos para um formulário com informações sobre características sociodemográficas dos pacientes, antecedentes de saúde, dados admissionais na UTIP, informações sobre a internação e os desfechos em saúde. A equipe de coleta dos dados foi composta por acadêmicos de enfermagem e medicina, além de residentes de enfermagem da área de saúde da criança e do adolescente e residentes de medicina da área de pediatria. Todos foram treinados pelos coordenadores da pesquisa previamente ao início da coleta dos dados. Após essa etapa, os formulários eram conferidos e codificados para posterior digitação.
Essa pesquisa seguiu as normas referentes às Resoluções nº 466/2012 e nº 510/2016 e obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos da instituição (CAAE: 83069418.7.0000.5231).
Análise estatística
Os dados foram digitados no programa Epi Info® versão 3.5.4 e analisados no programa Statistical Package for Social Sciences (SPSS)® versão 26.0. Para análise estatística, considerou-se nível de significância de 5%, com cálculo do risco relativo (RR) e intervalo de confiança (IC 95%). Foi utilizado modelo de regressão de Poisson com variância robusta, o qual é recomendado quando o desfecho é dicotômico e tem frequência elevada. Para análises entre fator (uso de sedoanalgesia em infusão contínua) e desfechos, o RR foi ajustado por inserções progressivas de grupo de variáveis (modelos) que se associaram a esses desfechos, com valor de p < 0,20.
Os modelos foram agrupados em variáveis demográficas (modelo 1: sexo e idade categórica dividida em 1 a 11, e ≥ 12 meses). No segundo modelo, foram adicionadas as variáveis do primeiro, mais os diagnósticos admissionais, inseridos individualmente (modelo 2). Já no terceiro modelo, além das variáveis prévias, somaram-se uso de VPM invasiva e fármaco vasoativo, caracterizadas como variáveis de gravidade (modelo 3).
RESULTADOS
Nos cinco anos analisados, ocorreram 1182 internações. Foram contabilizadas 61 perdas, sendo que 60 foram prontuários não localizados e uma pela desinformação sobre uso de sedação e analgesia em infusão contínua, restando 1121 internações. Dessas, foram excluídas 142 e 19 pelo uso contínuo de fármaco dissociativo e bloqueador neuromuscular, respectivamente, 52 por infusão contínua de sedativo e/ou analgésico por período inferior a 24h, e 14 pela confirmação do diagnóstico de morte encefálica, resultando para análise 894 internações.
As admissões caracterizaram-se pela maior frequência do sexo masculino (54,3%), internações de crianças não desnutridas (70,7%) e sem diagnóstico de doença crônica (55,1%). Metade das crianças eram lactentes (50,0%). A insuficiência respiratória foi o diagnóstico admissional mais observado (44,2%), seguido por cuidados no pós-operatório imediato (39,8%). Pouco mais da metade (51,1%) das admissões necessitaram de VPM invasiva por meio de cânula orotraqueal e 20,8% utilizaram suporte cardiocirculatório por meio de fármaco vasoativo. A necessidade de uso de sedoanalgesia contínua foi associada significativamente com lactentes, com todos os diagnósticos admissionais e nas crianças com necessidade de uso de VPM (RR=10,25; IC95%=7,31-14,37) e fármaco vasoativo (RR=2,59; IC95%=2,28-2,95) (Tabela 1).
Variáveis demográficas, de saúde e admissionais segundo necessidade de sedoanalgesia em infusão contínua em uma unidade de terapia intensiva pediátrica, Paraná, Brasil, 2012 a 2017
Todos os desfechos da tabela 2 associaram-se ao uso de sedoanalgesia em infusão contínua, exceto falha de extubação, destacando-se as IRAS (RR=3,76; IC95%=2,80-5,06), as infecções fúngicas (RR=3,63; IC95%=2,23-5,89), as ICSRC (RR=3,51; IC95%=1,96-6,28) e o tempo de internação na UTIP maior que três dias (RR=3,31; IC95%=2,83-3,88).
Análise bruta dos desfechos associados ao uso de sedoanalgesia em infusão contínua em uma unidade de terapia intensiva pediátrica, Paraná, Brasil, 2012 a 2017
Na tabela 3, encontram-se os desfechos significativos associados ao uso de sedoanalgesia contínua com ajuste gradativo de variáveis de confusão. Todas as variáveis, exceto ICSRC, permaneceram estatisticamente significativas no modelo final, com inversão do risco relativo para o óbito (RR=0,64; IC95%=0,43-0,95). Houve impacto na magnitude da associação, após o modelo 3, sobre as variáveis IRAS (RR=1,91; IC95%=1,32-2,80), infecção fúngica (RR=2,00; IC95%=1,12-3,58) e tempo de internação na UTIP superior a três dias (RR=1,81; IC95%=1,51-2,17).
Análise ajustada dos desfechos associados ao uso de sedoanalgesia em infusão contínua em uma unidade de terapia intensiva pediátrica, Paraná, Brasil, 2012 a 2017
DISCUSSÃO
Foram analisadas 894 admissões na UTIP. A necessidade de sedoanalgesia foi frequente em lactentes, em todos os diagnósticos admissionais analisados e nas crianças que necessitaram de VPM e fármaco vasoativo. Quantos aos desfechos, o tempo de VPM maior que quatro dias, diagnóstico de IRAS, diagnóstico de infecção fúngica, tempo de internação na UTIP maior que três dias e tempo de internação hospitalar maior que 10 dias foram mais incidentes entre os que fizeram uso desses fármacos. Ao final, o uso de sedativos e analgésicos se mostrou protetor ao óbito.
A sedoanalgesia em infusão contínua é prática frequente nos ambientes de terapia intensiva, principalmente quando há diagnósticos clínicos de difícil manejo, com necessidade de estratégias ventilatórias específicas. Porém, quanto maior a dose e o tempo de uso, maior será o risco de eventos adversos desses fármacos5. Nesse contexto, destaca-se a abstinência iatrogênica, resultado da descontinuação de fármacos opioides e benzodiazepínicos8. Essa condição, isoladamente, pode associar-se a piores desfechos hospitalares por desencadear, nas crianças, agitação psicomotora, confusão mental, descoordenação para alimentação, dificuldade respiratória, entre outras situações que acabam prolongando seu tempo de permanência dentro da UTIP9.
Nesta pesquisa, a maior necessidade de fármacos psicoativos em lactentes condiz com as desvantagens fisiológicas que podem ser agravadas na presença de comorbidades. Além disso, como é da própria característica do setor admitir crianças criticamente doentes que necessitam de suporte ventilatório e fármacos vasoativos, espera-se que o uso desses fármacos ocorra de forma mais frequente, exceto em situações específicas, como em pós-operatórios, em que a estada no setor acaba sendo menor após curto período de observação.
Algumas estratégias buscam minimizar os eventos adversos da sedoanalgesia contínua. A primeira delas é a adequada escolha dos fármacos a serem utilizados. Estudo chinês, por exemplo, comparou uso de midazolam isolado (Grupo 1) e combinado com remifentanil (Grupo 2), concluindo que a sedação satisfatória foi alcançada nos dois grupos, porém o Grupo 2 teve um despertar mais rápido e menor tempo de extubação, duração da ventilação mecânica e internação na UTIP. Assim, esta seria uma boa estratégia para crianças ventiladas mecanicamente para alcance de melhores desfechos, com menor dose para manutenção da sedação e analgesia6.
Autores10, ao compararem os efeitos sedativos e anti-inflamatórios da dexmedetomidina com midazolam em crianças graves com politrauma, identificaram que a dexmedetomidina diminuiu o nível de citocinas pró-inflamatórias, permitiu menor duração da ventilação mecânica (4,7 dias versus 6,6 dias) e do tempo de internação na UTIP (9,5 dias versus 12,3 dias), além de menor proporção de sepse (33,3% versus 53,1%). Outra pesquisa comparou o uso isolado de midazolam e fentanil (soluções diferentes), com o uso combinado numa mesma solução e identificou que, nesse último caso, ocorreu uma dose acumulativa mais elevada desses fármacos, maior tempo de necessidade de drogas vasopressoras e maior número de crianças desenvolveram tolerância à terapêutica adotada11.
Este estudo não identificou os desfechos hospitalares conforme o fármaco utilizado, nem de acordo com a forma em que foram administrados, apesar do serviço em que os dados foram coletados não adotar soluções combinadas de sedoanalgesia. Por outro lado, os resultados consistem em população abrangente de crianças de uma UTIP de perfil misto, em que o fato de usar sedativos e analgésicos em infusão contínua, indiferente de qual foi o fármaco de escolha, favoreceu maior tempo de VPM, incidência de infecções hospitalares e maiores tempos de internações em UTIP e no hospital, independentemente de fatores demográficos, diagnóstico admissional e variáveis relacionadas à gravidade.
Encontrar o equilíbrio entre oferta ou restrição desses fármacos é uma meta complexa de ser alcançada. Pesquisa realizada em uma UTIP na Holanda verificou número médio de 11 procedimentos dolorosos e estressantes por paciente por dia. Os mais frequentes foram aspiração de vias aéreas (endotraqueal, oral e nasal), punções arterial e lombar e inserção de cânula intravenosa periférica. Também concluíram que pacientes em VM são submetidos a duas vezes mais procedimentos dolorosos que pacientes não ventilados e, ainda assim, não há um controle adequado da dor nessas situações12.
Outro estudo realizado na Filadélfia (EUA) identificou que crianças graves com deficiência cognitiva receberam menos sedoanalgesia em relação às demais, porém sem clareza se há menor incidência de dor nessa população ou se há uma inadequação dos instrumentos de avaliação comportamental desses pacientes quanto aos sinais clínicos de desconforto13. Essa dificuldade de avaliação das necessidades individuais em pediatria, principalmente pela heterogeneidade das UTIP de perfil misto, de acordo com faixa etária, agravo e seleção de fármacos mais seguros em cada caso, pode desfavorecer profissionais menos experientes na condução clínica em ambientes infantis de terapia intensiva12,14.
Essa dificuldade também é observada dentro do setor analisado, pois trata-se de um hospital-escola com alta rotatividade de profissionais e menor adesão às práticas de mensurações objetivas por meio de escalas apropriadas para esse fim. Dessa forma, o uso indiscriminado de determinados fármacos psicoativos em busca de sedoanalgesia imediata ignora efeitos adversos farmacológicos precoces e tardios e sua subutilização repercute diretamente na condição clínica e psicológica da criança internada. Revisão sistemática15 sugere que a sedação na UTIP frequentemente não é adequada às demandas da criança grave e que há escassez de avaliação dessa condição nesse cenário. A sedação excessiva é a situação mais comumente observada e pode prolongar a hospitalização, além de aumentar incidência de complicações.
Nesta pesquisa, destaca-se que a sedoanalgesia contínua foi protetora ao óbito no modelo de ajuste final. Isso significa que esse desfecho se relaciona mais com as condições de gravidade da criança do que com os fármacos psicoativos, os quais muitas vezes entram como adjuvantes para estabilização da condição clínica e melhor condução terapêutica dos casos de maior complexidade.
Estudo16 em sua revisão recomenda como alvo para desfechos hospitalares favoráveis em UTIP uso de sedação guiada por escalas de avaliação, gerenciamento de protocolos para interrupção diária de sedativos e analgésicos e garantia de testes de respiração espontânea para crianças mecanicamente ventiladas. Essas medidas encurtam o tempo de ventilação mecânica, bem como o tempo de internação hospitalar, além de ajudar no controle da abstinência e delirium, sem aumentar o risco de morbidade e mortalidade17.
Planejar a descontinuidade da sedoanalgesia é tão importante quanto a sua utilização a fim de diminuir incidência de desfechos negativos na população pediátrica. A metadona, por exemplo, é um fármaco aliado na prevenção da síndrome de abstinência em pacientes que utilizaram opioides em infusão contínua durante a internação, apesar da dose terapêutica ideal e tempo de tratamento não estarem bem elucidados na literatura18. Outra opção é a rotatividade dos fármacos para contrabalancear os efeitos acumulativos e adversos19. Estudo20 verificou que a interrupção diária dos fármacos psicoativos contínuos em crianças gravemente doentes é opção terapêutica viável, resulta na diminuição do uso de sedação, favorece a extubação precoce e diminui tempo de permanência na UTIP.
Apesar do uso frequente desses fármacos à criança gravemente enferma, a escolha deve ser embasada em critérios e escores avaliativos para qualificar a assistência, facilitar a ventilação pulmonar mecânica, prevenir extubação acidental e minimizar o desconforto do paciente. Um plano terapêutico deve ser estabelecido de forma individualizada, com revisão constante das metas a serem alcançadas, e os fármacos devem ser rodiziadas e adequadas à clínica da criança. Estratégias de anestesia regional e analgesia controlada pelo paciente com condições cognitivas poderiam reduzir a necessidade de infusão intravenosa contínua e protocolos guiados por enfermeiros devem ser incorporados na rotina desses setores pelas vantagens já bem documentadas na literatura5,21.
Há, também, a possibilidade de titulação dos agentes sedativos e analgésicos para alcance da meta terapêutica desejada. Essas ações, em conjunto ou separadas, podem reduzir o impacto negativo do uso de sedoanalgesia contínua, independentemente do fármaco utilizado, sobre os desfechos hospitalares relatados5. No hospital locus de pesquisa, o rodízio de sedativos e analgésicos a cada 72h, assim como a interrupção diária desses fármacos, foram iniciados em meados de 2015, com maior fortalecimento dessas estratégias a partir de 2020, período que não foi contemplado na coleta dos dados.
Este estudo apresentou algumas limitações, que podem ser aperfeiçoadas em futuras abordagens metodológicas. A primeira refere-se ao fato de que a análise não foi categorizada de acordo com o fármaco utilizado, assim como as combinações entre eles, o que poderia identificar aqueles potencialmente mais associados aos desfechos hospitalares desfavoráveis. Também não foram investigadas consequências relevantes associadas ao uso de sedoanalgesia contínua, como incidências de tolerância, abstinência e delirium, desfechos esses que permitiriam maior comparabilidade da intensidade dessa relação com outras pesquisas do meio científico, pois a aplicabilidade de escalas objetivas para mensuração desses diagnósticos ainda não acontece rotineiramente no setor. Por último, não foi possível utilizar escores de gravidade por falha nos registros institucionais. Sugerem-se estudos prospectivos que abarquem essas demandas e acompanhem esses pacientes após a alta hospitalar para identificar os potenciais efeitos adversos em longo prazo no cérebro humano em desenvolvimento, principalmente quanto a danos neuropsicológicos.
Esses resultados refletem a caracterização de uma UTIP mista de hospital universitário de grande porte do sul do Brasil quanto aos desfechos associados à sedoanalgesia contínua, que poderá nortear melhor planejamento da assistência de crianças e adolescentes nessas condições. Ressalta-se, também, a importância de atualização dos profissionais que trabalham na assistência às crianças graves, capacitando-os para melhor qualificação do cuidado prestado, principalmente quanto à farmacodinâmica, farmacocinética e cuidados na administração desses fármacos.
CONCLUSÃO
Este estudo buscou identificar a associação do uso de sedativos e analgésicos em infusão contínua com desfechos hospitalares. Após todos os ajustes, o tempo de VPM maior que quatro dias, diagnóstico de IRAS, diagnóstico de infecção fúngica, tempo de internação na UTIP maior que três dias e tempo de internação hospitalar maior que 10 dias foram mais incidentes nessas crianças. Já o óbito apresentou maior relação com as variáveis de gravidade do que com uso de fármacos psicoativos.
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Fontes de fomento: não há.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
01 Jul 2022 -
Data do Fascículo
Apr-Jun 2022
Histórico
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Recebido
24 Ago 2021 -
Aceito
13 Maio 2022