Morfologia das células endoteliais corneanas bovinas obtidas com alizarina vermelha e microscopia óptica

Resumo

O objetivo deste estudo foi determinar a morfologia das células endoteliais nas diferentes regiões do endotélio da córnea bovina saudável por meio de microscopia óptica. Foram estudados 20 globos oculares de 10 bovinos machos da raça Brangus, com idade de 24 meses. O endotélio da córnea foi corado com o corante vital vermelho de alizarina e, em seguida, examinado no microscópio óptico e fotografado. Trinta células endoteliais de cada região da córnea foram incluídas na análise. A morfologia das células endoteliais foi analisada nas regiões central, superior, inferior, lateral e medial da córnea. As comparações entre as regiões foram realizadas usando medidas repetidas de análise de variância (ANOVA). As diferenças foram consideradas estatisticamente significativas em P < 0,05. As células endoteliais normais eram principalmente hexagonais (83,7%), pentagonais (7,45%) e heptagonais (8,8%), com um número mínimo de células de outras formas presentes. Não foram observadas diferenças estatísticas na morfologia das células endoteliais quando comparadas as diferentes regiões da córnea. Em relação à morfologia das células endoteliais não houve diferenças entre as regiões da córnea estudadas.

Palavras-chave:
córnea; endotélio; morfologia; corante vital; bovinos

Abstract

The aim of this study was to determine the endothelial cell morphology in the different regions of healthy bovine corneal endothelium using optical microscopy. Twenty eyeballs from 10 male Brangus cattle, aged 24 months, were studied. The corneal endothelium was stained with the vital dye alizarin red and then examined with an optical microscope and photographed. Thirty endothelial cells from each corneal region were included in the analysis. Endothelial cell morphology was analysed in the central, superior, inferior, lateral and medial regions of the cornea. Comparisons between regions were performed using repeated measures analysis of variance (ANOVA). Differences were considered statistically significant at P < 0.05. Normal endothelial cells were mainly hexagonal (83.7%), pentagonal (7.45%) and heptagonal (8.8%), with a minimal number of cells of other shapes present. No statistical differences were observed in the endothelial cell morphology when comparing different regions of the cornea. Regarding endothelial cell morphology, there were no differences between the corneal regions.

Keywords:
cornea; endothelium; morphology; vital dye; cow

1. Introdução

O endotélio corneano é composto por células poligonais dispostas em uma única camada na porção posterior da córnea. Na maioria dos vertebrados, o mosaico endotelial é formado por células com seis lados(¹). A densidade e a morfologia das células endoteliais mudam ao longo da vida(²). Além disso, o número dessas células diminui com o avanço da idade, processos traumáticos, inflamação e outras distrofias. Essa diminuição celular resulta em um deslocamento e remodelamento das células a fim de preencher os espaços restantes sem deixar lacunas no mosaico(³). O objetivo da avaliação corneana é determinar a condição geral do tecido, particularmente a das células endoteliais(⁴). O conhecimento da forma e do tamanho das células endoteliais corneanas é importante, pois são os melhores indicadores da função e integridade celular. Esses parâmetros morfológicos, que estimam a saúde corneana, foram referenciados em outros estudos com diferentes espécies, incluindo galinhas(⁵), coelhos(⁶), chinchilas(⁷), ovinos(⁸,⁹), cabras(¹⁰), cães(¹¹,¹²,¹³,¹⁴), marmosets(¹⁵), equinos(¹⁶,¹⁷), corujas(¹⁸), penguins de Magalhães(¹⁹), avestruzes(²⁰), jacarés do Pantanal(²¹) e suínos(²²), entre outras.

A coloração com vermelho de alizarina e a observação sob microscopia óptica é uma técnica ex vivo fácil, rápida e econômica(²³,²⁴). O vermelho de alizarina tem sido utilizado em diversos estudos e demonstrou ser eficaz como um indicador específico das bordas intercelulares das células endoteliais(¹²,¹⁶,²⁴,²⁵). Como há variações nos parâmetros endoteliais corneanos entre as espécies, o conhecimento dos parâmetros normais para cada espécie é fundamental. Estudos sobre a córnea bovina são escassos(²⁶). Existem poucos estudos nos quais a morfologia das células endoteliais corneanas bovinas foi analisada. (²⁷,²⁸). O objetivo deste estudo foi determinar a morfologia das células endoteliais nas diferentes regiões do endotélio corneano bovino saudável.

2. Materiais e métodos

Vinte bulbos oculares de 10 bovinos da raça Brangus, machos, com idade de 24 meses, foram estudados. Os olhos foram obtidos de um matadouro inspecionado pela Divisão de Inspeção de Produtos de Origem Animal (CISPOA). De acordo com a Resolução Normativa Concea n°. 55, de 5 de outubro de 2022, que atualiza o texto da Diretriz Brasileira para o Cuidado e a Utilização de Animais em Atividades de Ensino ou Pesquisa Científica, a validação pelo CEUA (Comitê de Ética no Uso de Animais) para este estudo não foi necessária, uma vez que envolve um método substitutivo de ensino e o uso ético de cadáveres obtidos de forma ética(²⁹). A enucleação foi realizada imediatamente após o abate, e os bulbos oculares foram armazenados individualmente em câmaras umedecidas. Todos os olhos passaram por exame oftalmológico, incluindo biomicroscopia com lâmpada de fenda (Kowa SL-15, Japão) e coloração com fluoresceína (Fludiag; 1% de fluoresceína sódica, Brasil) no Serviço de Oftalmologia Veterinária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Olhos que apresentaram qualquer opacidade, observada no exame com lâmpada de fenda, ou coloração positiva da córnea com corante de fluoresceína foram descartados e não incluídos no estudo. O botão córneo-escleral foi removido e colocado em uma placa de Petri com o endotélio voltado para cima. A coloração foi realizada com alizarina vermelha diluída a 0,2% (Alizarin Red S, Sigma-Aldrich, St. Louis, EUA). A preparação do corante envolveu a homogeneização de 0,2 g de pó de alizarina vermelha em 100 ml de solução salina a 0,9% usando um agitador magnético por duas horas. O pH da mistura foi ajustado para 4,2 usando hidróxido de amônio diluído (0,1% da substância em solução salina isotônica), com o pH controlado usando um medidor de pH digital portátil (PH-100B, Phtek). Para a técnica de coloração, foram instiladas quatro gotas do corante, cobrindo toda a superfície posterior da córnea. Após 2 minutos, o endotélio corneano foi lavado com solução salina a 0,9%. O botão córneo-escleral foi colocado sobre uma lâmina de vidro, com a face epitelial em contato com a lâmina de vidro e a face endotelial voltada para cima. Fotomicrografias das regiões central, superior, inferior, lateral e medial das córneas foram capturadas aleatoriamente (Figura 1). Um microscópio óptico (Nikon Eclipse E200) com um sistema de captura de imagem acoplado (EO-0813C Edmund Optics) foi utilizado. Com uma ampliação de 40×, uma imagem foi obtida para cada região estudada. Com o software de edição de imagens, a morfologia de 30 células endoteliais de cada região da córnea foi analisada. As informações foram registradas em uma planilha de dados, e todas as análises foram realizadas pelo mesmo avaliador. Os dados foram inseridos no Microsoft Excel e posteriormente exportados para o SPSS v. 20.0 para análise estatística. As percentagens celulares foram descritas usando média e desvio padrão(¹²).

Figura 1
Fotomicroscopia óptica de endotélio corneano saudável de bovinos corados com alizarina vermelha e magnificação de 40x. A: Região inferior do endotélio da córnea; B: Região lateral do endotélio da córnea; C: Região superior do endotélio da córnea; D: Região medial do endotélio da córnea; E: Região central do endotélio da córnea.

Análise estatística

As comparações entre as regiões foram realizadas utilizando análise de variância de medidas repetidas (ANOVA). O teste t Student para amostras pareadas foi utilizado para comparações entre os olhos. Um nível de significância de 5% foi considerado para as comparações estabelecidas.

3. Resultados

Com a microscopia óptica, e após a coloração com alizarina vermelha, foi possível obter imagens de todas as amostras e regiões examinadas. Além disso, foi possível documentar e estudar a morfologia das células endoteliais corneanas. Das 20 córneas estudadas, as células endoteliais normais eram principalmente hexagonais (74,1%), pentagonais (14,17%) e heptagonais (10,95%), com um número mínimo de células de outras formas presentes (quadradas, octogonais, eneagonais). A média percentual de células hexagonais foi de 72,3±9,1% na região central, 73,5±8,4% na região inferior, 72,8±9,3% na região lateral, 75,0±7,0% na região medial e 76,8±9,7% na região superior. A média percentual de células pentagonais foi de 15,6±5,7% na região central, 15,0±4,8% na região inferior, 15,3±5,4% na região lateral, 12,7±5,2% na região medial e 12,1±5,0% na região superior. A média percentual de células heptagonais foi de 11,2±3,5% na região central, 11,1±4,2% na região inferior, 10,8±5,5% na região lateral, 11,0±4,2% na região medial e 10,6±4,1% na região superior. Não foi observada diferença significativa na forma celular do endotélio ao comparar os olhos direito e esquerdo. Não foram observadas diferenças estatísticas na morfologia das células endoteliais ao comparar diferentes regiões da córnea.

4. Discussão

A camada endotelial corneana é crucial para manter a transparência da córnea. Como os parâmetros endoteliais da córnea variam entre as espécies, é importante conhecer os parâmetros normais para cada espécie. Para estudos in vivo, a microscopia especular e a microscopia confocal destacam-se como algumas das técnicas mais aplicadas para análise endotelial (⁴). Para análise ex vivo, as técnicas mais utilizadas são a microscopia eletrônica de varredura e a microscopia óptica utilizando corantes vitais(¹,⁷,¹²-¹⁴,¹⁶,²⁵,³⁰-³³).

A microscopia especular é o método padrão para a avaliação das células endoteliais da córnea(²,⁴,²²). No entanto, a microscopia especular apresenta uma limitação, a qual se dá pela dificuldade em obter imagens de córneas não transparentes. Portanto, nessas condições, estudos ex vivo são frequentemente necessários para analisar as células endoteliais corneanas.

No presente estudo, olhos obtidos de descartes de abatedouros foram avaliados, o que representa uma alternativa prática para o desenvolvimento de pesquisa científica sem a necessidade de sacrificar animais exclusivamente para esse fim. No estudo atual, a manutenção do bulbo ocular em uma câmara úmida mostrou-se eficaz, pois todas as córneas permaneceram transparentes até o momento da análise por microscopia óptica. Estudos anteriores mencionaram que a técnica de enucleação subconjuntival, combinada com o armazenamento das amostras em uma câmara úmida e análise dos bulbos oculares dentro de seis horas após a morte, preservou a integridade da córnea(¹²,¹⁴,¹⁶,¹⁹). Embora este estudo tenha sido conduzido em olhos enucleados, os dados obtidos no presente estudo podem ser comparados com aqueles encontrados em análises futuras com microscopia especular e confocal. A morfologia endotelial não é alterada como resultado da coloração com alizarina vermelha.

O conhecimento da forma e do tamanho das células endoteliais da córnea é importante, pois são os melhores indicadores da função e integridade celular. Esses parâmetros morfológicos, que estimam a saúde corneana, têm sido referenciados. Estudos sobre os parâmetros do endotélio corneano de bovinos são raros(²⁶). No presente estudo, a análise do endotélio de córneas bovinas saudáveis foi realizada utilizando 0,2% de alizarina vermelha, o que permitiu a nítida identificação das bordas celulares. A técnica de coloração descrita por Taylor & Hunt(²⁵) foi utilizada, com apenas uma modificação no tempo de imersão da amostra, juntamente com microscopia óptica para captura de imagens. A avaliação do endotélio corneano através da coloração vital é um método simples, de baixo custo, rápido e prático(¹²,¹⁶,²⁵). O número de células que devem ser contadas para obter dados reprodutíveis e confiáveis não foi estabelecido, mas estudos anteriores recomendaram analisar pelo menos 30 células de cada córnea(¹²). Neste estudo, 30 células endoteliais foram analisadas em cada uma das regiões da cornea.

Na pesquisa atual, imagens nítidas do endotélio corneano de bovinos das regiões central, inferior, lateral, medial e superior foram capturadas com sucesso utilizando microscopia óptica em todas as córneas avaliadas. Apenas córneas de bovinos machos foram examinadas neste estudo. No entanto, o gênero não foi considerado como uma variável, pois há relatos em pesquisas com outras espécies que não encontraram diferenças significativas no endotélio corneano entre animais machos e fêmeas(⁶,³⁴-³⁶).

Os parâmetros mais utilizados para a avaliação endotelial são a densidade celular e a morfologia endotelial(³⁷). No presente estudo, a morfologia das células endoteliais de diferentes regiões da córnea foi analisada. Visto que há retração celular e alterações na contagem de células endoteliais após a coloração com alizarina vermelha, a densidade não foi analisada neste estudo. A porcentagem de células hexagonais é um dos parâmetros mais utilizados para indicar a saúde do endotélio corneano.

No estudo relatado aqui, considerando todas as imagens analisadas, a variação na porcentagem de células hexagonais ficou entre 71% e 79%. Em córneas saudáveis de outras espécies em que a morfologia endotelial foi estudada, com diferentes métodos de avaliação, a maioria das células é hexagonal, conforme Tabela 1(⁶,¹²,¹⁴,¹⁶,¹⁹,²⁸,³⁶,³⁸).

Tabela 1
Comparação da porcentagem de hexagonalidade de células endoteliais corneanas em diferentes espécies e métodos de avaliação.

Autores	Idade	Espécie	Método de Avaliação	% Células Hexagonais
Hünning et al	Média: 3 anos	Cães	Microscopía óptica e coloração com vermelho de alizarina	Média de pleomorfismo: 78,4%
Bercht et al	Grupo 1: 2-4 meses Grupo 2: 48 meses Grupo 3: 10 anos	Chinchilas	Microscopía especular	Média de pleomorfismo grupo 1: 70,05% Média de pleomorfismo grupo 2: 65,18% Média de pleomorfismo grupo 3: 62,28%
Pigatto et al	6 anos	Cães	Microscopía especular	Média de pleomorfismo: 68%
Franzen et al	Grupo 1: 1-3 meses Grupo 2: 5-12 meses Grupo 3: 24- 40 meses	Gatos	Microscopía especular	Média de pleomorfismo: 39% - 74% (aumenta com a idade)
Pigatto et al	Juvenis	Pinguins	Microscopía eletrôni-ca de varredura	Média de pleomorfismo: 80%
Faganello et al	Média: 12 anos	Equinos	Microscopía óptica e coloração com vermelho de alizarina	Média de pleomorfismo: 57.5%
Gallicchio et al	Média: 12- 24 meses	Bovinos	Microscopía especular	Média de pleomorfismo: 74,3%
Bu et al	5 meses	Camundongos	Microscopía confocal	Média de pleomorfismo: 66%

Fonte: a própria autora.

A porcentagem de hexagonalidade encontrada depende da espécie e da idade dos animais avaliados. Em um estudo realizado em córneas equinas, Faganello e colaboradores (¹⁶) encontraram uma porcentagem de células hexagonais entre 55% e 57%. Hünning e colaboradores (¹²), em seu estudo sobre células endoteliais corneanas em cães, encontraram uma porcentagem média de células hexagonais entre 77% e 80%. Uma limitação do presente estudo é que todos os animais tinham a mesma idade. Isso ocorreu porque foram utilizados olhos doados após o abate. Todos os animais abatidos eram machos da mesma idade. Apesar dessa limitação, o estudo foi capaz de quantificar a morfologia das células endoteliais corneanas em bovinos de dois anos de idade. Além disso, foi possível comparar os dados obtidos de diferentes regiões de córneas saudáveis. Bu e colaboradores(³⁸) encontraram 66% de células hexagonais em camundongos. Na espécie humana, foi possível observar que a porcentagem de células hexagonais do endotélio corneano diminui com o envelhecimento(³⁷). Este estudo é essencial para possibilitar pesquisas semelhantes nas córneas de bovinos afetados por doenças que levam à opacidade corneana difusa, juntamente com outros sinais oftalmológicos que contribuem para a perda da transparência corneana em bovinos.

5. Conclusão

No presente estudo, a microscopia óptica e a coloração com alizarina vermelha permitiram a análise e documentação do endotélio corneano bovino. Em relação à morfologia das células endoteliais, não há diferenças entre as regiões da córnea bovina saudável. Essas informações sobre a morfologia endotelial serão fundamentais para futuros estudos clínicos e experimentais nos quais córneas bovinas serão analisadas.

Agradecimentos

Os autores gostariam de agradecer ao frigorífico Angus, por fornecerem os olhos utilizados nesta pesquisa gratuitamente, e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela concessão de bolsa de pesquisa para dois dos autores (M.P.S e A.F.S.).

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  05 Ago 2024
• Data do Fascículo
  2024

Histórico

• Recebido
  17 Ago 2023
• Aceito
  26 Jan 2024
• Publicado
  22 Mar 2024