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A construção do Método Terapia Ocupacional Dinâmica: uma produção não-dicotômica entre conhecimento e prática

Resumo

Introdução

A terapia ocupacional chegou ao Brasil sob a lógica da reabilitação e distanciada da realidade brasileira. Por isso, terapeutas ocupacionais lançaram-se à aventura de pensar a profissão e seus aspectos teórico-práticos a partir de seus contextos. Jô Benetton figura entre essas profissionais. Formada em 1970, iniciou um projeto de investigação que culminou na construção do Método Terapia Ocupacional Dinâmica – MTOD. Revisões recentes da literatura que se debruçam sobre a temática das construções epistemológicas, ao se utilizarem de mecanismos de indexação de revistas, apenas citam a obra da autora, sem explicitar suas contribuições ao campo e seu processo de construção de conhecimento.

Objetivo

Elucidar aspectos do processo de construção do MTOD, de modo a compreender como foi ocorrendo a produção do saber a partir das situações práticas colocadas como objeto de estudo, que resultou na proposição de um referencial teórico-metodológico específico da e na terapia ocupacional brasileira.

Método

Pesquisa qualitativa, com dados provenientes de duas entrevistas com Jô Benetton e uma com Sonia Ferrari, analisadas tematicamente.

Resultados

Foram identificados três temas principais que expressam como o MTOD foi sendo construído à luz de uma epistemologia pragmatista: 1) Inquietações, buscas e experimentações; 2) Invenções; 3) Emergência de um modo de pensar-fazer na prática.

Conclusão

A construção do MTOD ocorreu de modo não-dicotômico entre produção de conhecimento e de cuidado, permitindo instaurar novas relações entre teoria e prática.

Palavras-chave:
Terapia Ocupacional; Terapia Ocupacional/História; Epistemologia; Prática Profissional; Filosofia

Abstract

Introduction

Occupational Therapy arrived in Brazil under the logic of rehabilitation and distanced from the Brazilian reality. Therefore, occupational therapists embarked on the adventure of thinking about the profession and its theoretical-practical aspects based on their contexts. Jô Benetton is among these professionals. Formed in 1970, she began a research project that culminated in the construction of the Method Dynamic Occupational Therapy - DOTM. Recent literature reviews that focus on the theme of epistemological constructions, when using journal indexing mechanisms, only cite the author's work, without explaining her contributions to the field and her knowledge construction process.

Objective

To elucidate aspects of the DOTM construction process, to understand how the production of knowledge occurred based on practical situations placed as an object of study, which resulted in the proposition of a theoretical-methodological framework specific to and in Brazilian Occupational Therapy.

Method

Qualitative research, with data from two interviews with Jô Benetton and one with Sonia Ferrari, analyzed thematically.

Results

Three main themes were identified that express how the DOTM was constructed in the light of a pragmatist epistemology: 1) Concerns, searches and experiments; 2) Inventions; 3) Emergence of a way of thinking-doing in practice.

Conclusion

The construction of the DOTM occurred in a non-dichotomous way between the production of knowledge and care, allowing the establishment of new relationships between theory and practice.

Keywords:
Occupational Therapy; Occupational Therapy/History; Epistemology; Professional Practice; Philosophy

Introdução

A profissão terapia ocupacional (TO)1 1 Neste artigo, serão utilizadas as grafias: “Terapia Ocupacional”, com iniciais em letra maiúscula, para se referir à profissão, e “terapia ocupacional”, com iniciais em letra minúscula, para se referir à prática profissional/ clínica/ assistencial, conforme sugerido por Benetton (1994). teve seu início nos EUA do século XX, imersa em um efervescente movimento social e civilizatório de expansão da participação social de pessoas que se encontravam em situações de exclusão – migrantes, pessoas com transtornos mentais, pessoas com deficiência (Morrison, 2014Morrison, R. (2014). La filosofía pragmatista en la terapia ocupacional de Eleanor Clarke Slagle: antecedentes epistemológicos e históricos desde los estudios feministas sobre la ciencia (Tese de doutorado). Universidad de Salamanca, Espanha.). Também presente no início da profissão, o pensamento pragmatista prima por colocar a experiência como centro da aprendizagem e das possibilidades de transformação social, sob uma perspectiva não-dicotômica. Nesse sentido, aspectos da experiência cotidiana fornecem o empirismo a ser tomado para reflexão, na construção de soluções para os problemas sociais (De Wall, 2021De Wall, C. (2021). Introducing pragmatism: a tool for rethinking philosophy. London: Routledge.). As primeiras terapeutas ocupacionais, com destaque para Eleonor Slagle, construíram as bases para a profissão a partir das experimentações com ocupações considerando a relevância da ação para a vida humana. Assim, a crença de que a realização de atividades poderia favorecer a saúde, o desenvolvimento e a participação social contribuiu para a construção de práticas voltadas aos que se encontravam excluídos dessa participação, com o intuito maior de restaurar e manter o bem-estar (Creek & Allen, 2022Creek, J., & Allen, M. (2022). History and early development of occupational therapy. In J. Creek, N. Pollard & M. Allen (Eds.), Theorising occupational therapy practice in diverse settings (pp. 143-164) London: Routledge.; Lima, 2021Lima, E. M. F. A. (2021). Terapia ocupacional: uma profissão feminina ou feminista? Saúde em Debate,45(spe1), 154-167.; Melo, 2015Melo, D. O. C. V. (2015). Em busca de um Ethos: narrativas da Fundação da Terapia Ocupacional na cidade de São Paulo (1956-1969) (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Paulo, São Paulo.; Morrison, 2014Morrison, R. (2014). La filosofía pragmatista en la terapia ocupacional de Eleanor Clarke Slagle: antecedentes epistemológicos e históricos desde los estudios feministas sobre la ciencia (Tese de doutorado). Universidad de Salamanca, Espanha.).

Desse modo, a epistemologia pragmatista foi central para o desenvolvimento da terapia ocupacional no início do século passado (Morrison, 2014Morrison, R. (2014). La filosofía pragmatista en la terapia ocupacional de Eleanor Clarke Slagle: antecedentes epistemológicos e históricos desde los estudios feministas sobre la ciencia (Tese de doutorado). Universidad de Salamanca, Espanha.). Particularmente para Dewey (1985)Dewey, J. (1985). Lógica: a teoria da investigação. São Paulo: Abril Cultural., colaborador na Hull House, a perplexidade – ou a dúvida, surgida em uma situação conflituosa vivenciada pelo ser humano, é uma situação indeterminada. O conhecimento, por sua vez, é o elemento de controle, de determinação dessa situação. Conhecer, assim, é uma operação em que uma situação indeterminada se torna determinada, ou seja, fica sob controle em razão do conhecimento adquirido (Teixeira, 1955). Nesse sentido, Dewey recupera “a dignidade da prática, sem contudo subordinar o pensamento e o conhecimento a ela” (Mogilka, 2010, pMogilka, M. (2010). O que é uma experiência educativa? Revista Tempos e Espaços em Educação, 3(5), 125-137.. 127). O pensamento, então, representa uma etapa da ação, enquanto uma capacidade do organismo humano para resolver problemas de sua existência social, e não somente por mera especulação ou prazer. Em vista disso, o filósofo termina por se distanciar da metafísica, bem como das filosofias racionalistas que separam a racionalidade da experiência e a prática do pensamento (Marcolino, 2022Marcolino, T. Q. (2022). O pragmatismo de Jô Benetton: uma perspectiva não-dualista para a Terapia Ocupacional. In Anais do XVII Congresso Brasileiro de Terapia Ocupacional. Brasília: CREFITO-7. Comunicação Oral.; Mogilka, 2010Mogilka, M. (2010). O que é uma experiência educativa? Revista Tempos e Espaços em Educação, 3(5), 125-137.).

Todavia, a profissão passou a se expandir pelo mundo sob uma outra lógica paradigmática: a da reabilitação e da recuperação funcional (Benetton, 2005Benetton, M. J. (2005). Além da opinião: uma questão de investigação para a historicização da Terapia Ocupacional. Revista CETO, 9(9), 4-8.; Melo, 2015Melo, D. O. C. V. (2015). Em busca de um Ethos: narrativas da Fundação da Terapia Ocupacional na cidade de São Paulo (1956-1969) (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Paulo, São Paulo.; Morrison, 2014Morrison, R. (2014). La filosofía pragmatista en la terapia ocupacional de Eleanor Clarke Slagle: antecedentes epistemológicos e históricos desde los estudios feministas sobre la ciencia (Tese de doutorado). Universidad de Salamanca, Espanha.). Nesse sentido, Morrison (2014)Morrison, R. (2014). La filosofía pragmatista en la terapia ocupacional de Eleanor Clarke Slagle: antecedentes epistemológicos e históricos desde los estudios feministas sobre la ciencia (Tese de doutorado). Universidad de Salamanca, Espanha. reflete que as relações da profissão com suas fundações filosóficas iniciais nem sempre são devidamente consideradas na formação profissional, embora tais fundamentos epistemológicos sejam essenciais e relevantes para a compreensão da disciplina. Em consequência disso, a profissão emergente foi se alinhando cada vez mais com a medicina, distanciando-se, assim, do ativismo social de suas fundadoras e fundadores.

No Brasil, a terapia ocupacional se iniciou na década de 1950, com a implantação de cursos decorrentes do Movimento Internacional de Reabilitação, e portanto sob a lógica da reabilitação. Desde a década de 1970, tal concepção passou a ser fortemente criticada, uma vez que não respondia às necessidades brasileiras. A lógica normativa e biomédica de causa-efeito/ queixa-conduta não respondia às questões postas pela necessidade de transformação da sociedade, em um período de importante restrição de direitos em razão da ditadura militar (Cardinalli, 2017Cardinalli, I. (2017). Conhecimentos da terapia ocupacional no Brasil: um estudo sobre trajetórias e produções (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.; Mello, 2023Mello, A. C. C. O. (2023). Método Terapia Ocupacional Dinâmica e o Modello Vivaio: histórias de construções inventivas para a prática de terapia ocupacional (Tese de doutorado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.). Em virtude disso, muitas terapeutas ocupacionais, a partir das décadas de 1970 e 1980, lançaram-se à aventura de pensar a terapia ocupacional e seus aspectos teórico-práticos a partir da realidade de seus contextos (Mello, 2023Mello, A. C. C. O. (2023). Método Terapia Ocupacional Dinâmica e o Modello Vivaio: histórias de construções inventivas para a prática de terapia ocupacional (Tese de doutorado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.).

Jô Benetton figura entre essas profissionais. Formada em 1970, foi a primeira terapeuta ocupacional a assumir uma vaga pública de TO no Estado de São Paulo, na área da Psiquiatria. Insatisfeita com sua formação inicial, uma conhecida passagem de sua história marca também sua trajetória profissional. Jô conta que, logo que finalizou a graduação, chegou aos prantos para sua mãe – historiadora e museóloga –, dizendo que havia se formado em uma profissão que não existia (Cardinalli, 2017Cardinalli, I. (2017). Conhecimentos da terapia ocupacional no Brasil: um estudo sobre trajetórias e produções (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.). À época, conforme registrado na tese de Cardinalli (2017)Cardinalli, I. (2017). Conhecimentos da terapia ocupacional no Brasil: um estudo sobre trajetórias e produções (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos., sua mãe lhe respondeu: “pois então, faça-a existir, seja você sua personagem”. Entretanto, mais recentemente, na aula do tema “terapeuta ocupacional” do curso de especialização clínica no Método Terapia Ocupacional Dinâmica (MTOD), do dia 24 de junho de 2023, Jô confessou que adoraria que tivesse sido sua mãe a lhe dizer isso. Ela, que usualmente nos diz que gostaria de ter tido uma supervisora terapeuta ocupacional, agora também nos diz que queria ter tido uma mãe que tivesse lhe mostrado caminhos. A nova história contada por ela nesse dia nos permite saber que, depois que sua mãe lhe disse: “toda profissão tem uma história”, foi ela mesma, Jô, quem afirmou: “serei eu sua personagem”.

Tassara (1993)Tassara, E. T. O. (1993). Terapia ocupacional: ciência ou tecnologia? Revista de Terapia Ocupacional da USP, 4(7), 43-52. e Benetton (1995)Benetton, M. J. (1995). Terapia ocupacional: conhecimento em evolução. Revista CETO, 1(1), 5-7. nos ajudam a pensar que a construção do saber em terapia ocupacional abarca um conhecimento que se direciona para a prática profissional, com vistas a resolver os problemas oriundos desta. Assim, ao longo de pouco mais de 50 anos de investigação, a principal contribuição de Jô foi e tem sido a construção de um método específico para pensar-fazer terapia ocupacional: o Método Terapia Ocupacional Dinâmica (MTOD). Embora seja uma das autoras mais conhecidas na história da terapia ocupacional brasileira e tenha feito todo o percurso acadêmico de formação e consolidação em pesquisa (mestrado, doutorado e pós-doutorado), a maior parte da trajetória profissional de Jô Benetton ocorreu fora dos espaços acadêmicos formais (Cardinalli, 2017Cardinalli, I. (2017). Conhecimentos da terapia ocupacional no Brasil: um estudo sobre trajetórias e produções (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.).

Jô Benetton foi docente do curso de terapia ocupacional da Universidade de São Paulo entre 1996 e 2002, mas sua vasta produção extrapola este pequeno período na universidade. Além disso, parte considerável de sua obra ainda se encontra em sua tese de doutorado (não publicada em artigos) e em trabalhos apresentados na revista publicada pelo CETO, a qual se manteve ativa de 1995 a 2012. Essa revista não ingressou no sistema de indexação dos periódicos acadêmicos, dificultando, assim, a circulação de sua produção por meio de mecanismos de busca e resgate das produções de um campo específico.

Nessa direção, revisões recentes da literatura, que se debruçam sobre a temática das construções epistemológicas na terapia ocupacional em âmbito nacional, ao se utilizarem de tais mecanismos de indexação de revistas a partir da década de 1990 (Galheigo et al., 2018Galheigo, S. M., Braga, C. P., Arthur, M. A., & Matsuo, C. M. (2018). Produção de conhecimento, perspectivas e referências teórico-práticas na terapia ocupacional brasileira: marcos e tendências em uma linha do tempo. Cadernos Brasileiros De Terapia Ocupacional, 26(4), 723-738.), ou na realização de um mapeamento temático de produções brasileiras ao longo da história (Cardinalli & Silva, 2019Cardinalli, I., & Silva, C. R. (2019). Considerações epistemológicas da produção de conhecimento da terapia ocupacional no Brasil. In C. R. Silva (Org.), Atividades humanas e terapia ocupacional: saber-fazer, cultura, política e outras resistências (pp. 33-58). São Paulo: Hucitec.), apenas citam a obra de Jô Benetton de modo descontextualizado. Fato este que não permite elucidar tanto suas contribuições ao campo, como o próprio processo de construção de conhecimento assumido por ela.

O Método Terapia Ocupacional Dinâmica

O Método Terapia Ocupacional Dinâmica (MTOD) é um referencial teórico-metodológico direcionado para a prática que começou a ser construído no Brasil na década de 1970, sendo hoje o empreendimento de pesquisa mais antigo no campo da terapia ocupacional brasileira. Em 1972, Jô Benetton, interessada na investigação da prática de terapia ocupacional e “em construir uma lógica interna para os procedimentos da terapia ocupacional” (Benetton, 2006), iniciou ciclos de estudos com outras terapeutas ocupacionais. Em 1980, em parceria com a terapeuta ocupacional Sonia Ferrari, Jô Benetton fundou o CETO2 2 Centro de Estudos de Terapia Ocupacional, atualmente, Centro de Especialidades em Terapia Ocupacional. , uma instituição privada de ensino, pesquisa e assistência que oferece a formação clínica no MTOD. Embora a construção teórico-conceitual e metodológica deste método seja da autoria de Jô Benetton, Sonia foi sua colaboradora mais antiga, utilizando sua própria prática como campo empírico para o desenvolvimento do MTOD (Benetton et al., 2021Benetton, M. J., Ferrari, S. M. L., Mastroprietro, A. P., Bertolozzi, R. C., & Marcolino, T. Q. (2021). Método terapia ocupacional dinâmica. In A. Martini, A. Vizotto, P. Cotting & P. Buchain (Eds.), Terapia Ocupacional em Neuropsiquiatria e Saúde Mental (pp. 370-377). São Paulo: Editora Manole.). Sonia Ferrari, formada na Universidade de São Paulo, em 1975, foi estagiária de Jô Benetton na área de psiquiatria, na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (Mello, 2023Mello, A. C. C. O. (2023). Método Terapia Ocupacional Dinâmica e o Modello Vivaio: histórias de construções inventivas para a prática de terapia ocupacional (Tese de doutorado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.). Atualmente com 49 anos de experiência profissional, é diretora do Instituto A Casa, professora da formação no MTOD e possui vasta bibliografia sobre terapia ocupacional no campo da saúde mental, com foco na prática sustentada pelo MTOD (Ferrari, 2002Ferrari, S. M. L. (2002). A-Tua-Ação da Terapia Ocupacional no corpo contido. Revista CETO, 7(7), 9-13., 2012Ferrari, S. M. L. (2012). Saúde mental: acompanhamentos terapêuticos, reabilitação psicossocial e clínica. Revista CETO, 13, 9-13., 2015Ferrari, S. M. L. (2015). Grupos de terapia ocupacional em saúde mental: novas reflexões. In V. S. Maximino & F. Liberman (Orgs.), Grupos e terapia ocupacional: formação, pesquisa e ações (pp. 226-237). São Paulo: Summus Editorial.; Ferrari et al., 2022Ferrari, S. M. L., Pywell, S. D., Costa, A. L. B., & Marcolino, T. Q. (2022). Grupos de terapia ocupacional em telessaúde na pandemia de Covid-19: perspectivas de um Hospital-Dia de Saúde Mental. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 30, 1-11.).

Nesse sentido, o MTOD foi construído com o objetivo de propor um aparato teórico e metodológico utilizando uma linguagem capaz de agir como estrutura para a prática em terapia ocupacional, sustentando o pensar-fazer profissional e possibilitando o ensino-aprendizagem (Benetton, 1994Benetton, M. J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas.). A construção do MTOD parte do pressuposto de que a terapia ocupacional “tem no empirismo, muitas vezes, um elemento dificultador de sua transmissão” (Benetton, 1994, pBenetton, M. J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas.. i), e justamente por isso, é necessário que a própria prática seja objeto de pesquisa (Benetton, 2010Benetton, M. J. (2010). O encontro do sentido do cotidiano na Terapia Ocupacional para a construção de significados. Revista CETO, 12(12), 32-39., 2012Benetton, M. J. (2012). A narrativa clínica no Método Terapia Ocupacional Dinâmica. Revista CETO, 13(13), 4-8.). Assim, o MTOD tem sido constantemente construído, reformulado e ampliado por meio da investigação empírica da prática, em um processo denominado “teoria da técnica” (Benetton, 1994Benetton, M. J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas., 2010Benetton, M. J. (2010). O encontro do sentido do cotidiano na Terapia Ocupacional para a construção de significados. Revista CETO, 12(12), 32-39.). A teoria da técnica consiste na observação e análise da prática, para construir generalizações com explicações teóricas que sustentem um arcabouço teórico-metodológico que se volte novamente para a prática (Benetton 1994Benetton, M. J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas.; Benetton, 2010Benetton, M. J. (2010). O encontro do sentido do cotidiano na Terapia Ocupacional para a construção de significados. Revista CETO, 12(12), 32-39.; Benetton & Marcolino, 2013Benetton, M. J., & Marcolino, T. Q. (2013). As atividades no Método Terapia Ocupacional Dinâmica. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional da UFSCar, 21(3), 645-652.).

Atualmente, o MTOD já possui uma grade conceitual própria e consolidada, apresentada em múltiplas publicações teóricas e teórico-práticas (Marcolino & Fantinatti, 2014Marcolino, T. Q., & Fantinatti, E. N. (2014). A transformação na utilização e conceituação de atividades na obra de Jô Benetton. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 25(2), 142-150.; Benetton et al., 2021Benetton, M. J., Ferrari, S. M. L., Mastroprietro, A. P., Bertolozzi, R. C., & Marcolino, T. Q. (2021). Método terapia ocupacional dinâmica. In A. Martini, A. Vizotto, P. Cotting & P. Buchain (Eds.), Terapia Ocupacional em Neuropsiquiatria e Saúde Mental (pp. 370-377). São Paulo: Editora Manole.). Para apresentá-lo sucintamente, optamos por não detalhá-lo conceitualmente, mas, sim, apresentar o caminho que ele propõe para as intervenções em terapia ocupacional. Assim, parte-se do diagnóstico situacional, processo descritivo e analítico contínuo, para identificação das necessidades e desejos do sujeito-alvo. Para sua composição, leva-se em conta os aspectos relativos ao próprio sujeito, às outras pessoas de sua convivência, além de informações provenientes da percepção da(o) terapeuta ocupacional, em uma relação triádica – terapeuta ocupacional, sujeito-alvo e atividades (Benetton et al., 2021Benetton, M. J., Ferrari, S. M. L., Mastroprietro, A. P., Bertolozzi, R. C., & Marcolino, T. Q. (2021). Método terapia ocupacional dinâmica. In A. Martini, A. Vizotto, P. Cotting & P. Buchain (Eds.), Terapia Ocupacional em Neuropsiquiatria e Saúde Mental (pp. 370-377). São Paulo: Editora Manole.).

A intervenção é guiada pelo estabelecimento e manejo dessa relação triádica. Trata-se de um processo dinâmico que se baseia na ação e reação dos três elementos desta mesma relação, em um setting subjetivo-objetivo que a sustente. A ação educativa possui um papel central na função terapêutica, apoiada pela transferência positiva do terapeuta ocupacional, na busca pelo estabelecimento do afeto e do desejo do sujeito em aprender e se desenvolver (Benetton et al., 2021Benetton, M. J., Ferrari, S. M. L., Mastroprietro, A. P., Bertolozzi, R. C., & Marcolino, T. Q. (2021). Método terapia ocupacional dinâmica. In A. Martini, A. Vizotto, P. Cotting & P. Buchain (Eds.), Terapia Ocupacional em Neuropsiquiatria e Saúde Mental (pp. 370-377). São Paulo: Editora Manole.). A avaliação da intervenção se dá em um processo de construção dialógico de sentidos sustentado na existência de um espaço de historicidade, que permite não somente avaliar, mas também contar a história dos acontecimentos em uma perspectiva narrativa e não cronológica. Trata-se de um processo contínuo a partir do qual novos sentidos são construídos por meio da análise que o sujeito-alvo faz de sua situação, de suas atividades/produções, bem como na tomada de decisões sobre o processo terapêutico e sobre sua vida. Na técnica de Trilhas Associativas, associações são suscitadas por meio da análise das atividades realizadas, que são, posteriormente, agrupadas pelo próprio sujeito-alvo, possibilitando diálogo e reflexão para o reconhecimento de si em termos de suas habilidades, capacidades e limitações (Benetton et al., 2021Benetton, M. J., Ferrari, S. M. L., Mastroprietro, A. P., Bertolozzi, R. C., & Marcolino, T. Q. (2021). Método terapia ocupacional dinâmica. In A. Martini, A. Vizotto, P. Cotting & P. Buchain (Eds.), Terapia Ocupacional em Neuropsiquiatria e Saúde Mental (pp. 370-377). São Paulo: Editora Manole.).

Esses processos vão possibilitando a ampliação de espaços de saúde. Com base nas experimentações da relação triádica, a terapeuta ocupacional sustenta a identificação e qualificação singular pelo sujeito do que ele considera saudável e fonte de bem-estar. A realização das atividades consideradas saudáveis vai sendo expandida em seu cotidiano, ampliando-se sua participação e inserção social. Embora considerado em sua singularidade, compreende-se o sujeito-alvo em sua situacionalidade, o que envolve também outras pessoas que compõem seu mundo social. As intervenções com essas pessoas, quando necessárias, busca integrá-las à relação triádica como novos termos dessa relação – os quarto-termos. Isso não apenas no sentido de orientar famílias, empregadores, equipes ou amigos, mas para que essas pessoas possam participar de um novo sistema relacional que permita que o sujeito possa ser reconhecido em suas potências e limitações reais (Benetton, 1994Benetton, M. J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas.; Marcolino et al., 2020; Benetton et al., 2021Benetton, M. J., Ferrari, S. M. L., Mastroprietro, A. P., Bertolozzi, R. C., & Marcolino, T. Q. (2021). Método terapia ocupacional dinâmica. In A. Martini, A. Vizotto, P. Cotting & P. Buchain (Eds.), Terapia Ocupacional em Neuropsiquiatria e Saúde Mental (pp. 370-377). São Paulo: Editora Manole.; Araújo, 2022Araújo, A. S. (2022). Construções teóricas sobre o raciocínio clínico de terapeutas ocupacionais experts que utilizam o Método Terapia Ocupacional Dinâmica (Tese de doutorado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.).

O processo de construção desse arcabouço teórico-metodológico pode ser visto em Marcolino & Fantinatti (2014)Marcolino, T. Q., & Fantinatti, E. N. (2014). A transformação na utilização e conceituação de atividades na obra de Jô Benetton. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 25(2), 142-150.. Tais autoras apresentam um mapeamento epistemológico do desenvolvimento do MTOD e sistematizam a dinâmica de sua transformação ao longo do tempo, identificando três fases principais. A primeira delas compreende o período entre os anos de 1984 e 1993, caracterizada pelo uso de atividades embasadas na teoria psicanalítica, cujo marco é a dissertação de mestrado de Jô Benetton, posteriormente publicada como o livro “Trilhas Associativas”, em 1991. Nessa fase, as atividades passam a ser compreendidas como parte do sistema relacional da relação triádica, composta pelo terapeuta ocupacional, paciente e atividades, e a “expressão, a comunicação e a mediação entre mundo interno e mundo externo foram as características mais associadas às atividades” nesse período (Marcolino & Fantinatti, 2014, pMarcolino, T. Q., & Fantinatti, E. N. (2014). A transformação na utilização e conceituação de atividades na obra de Jô Benetton. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 25(2), 142-150.. 144).

A segunda fase de desenvolvimento do MTOD, de 1994 a 1999, está relacionada à tese de doutorado de Benetton (1994)Benetton, M. J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas., na qual se dedica à sistematização do conhecimento proveniente dos processos empíricos, descritos na tese por meio de casos clínicos que conduziu ou supervisionou, e a elaboração conceitual por meio da teoria da técnica. Foram definidos e conceituados os três termos da relação triádica, e delineados procedimentos para a instauração e o manejo dessa relação, assim como os principais processos para a prática, como o diagnóstico situacional e as trilhas associativas (Marcolino & Fantinatti, 2014Marcolino, T. Q., & Fantinatti, E. N. (2014). A transformação na utilização e conceituação de atividades na obra de Jô Benetton. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 25(2), 142-150.). Já a terceira fase teve início nos anos 2000, após realizar sua pesquisa de pós-doutorado em História da Saúde, na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, por meio da qual o MTOD adquire um delineamento mais refinado, situado paradigmaticamente nas propostas iniciais da fundação da profissão, no início do século XX, nos Estados Unidos. Nessa fase, identifica-se maior robustez dos fundamentos que sustentam o MTOD na prática social, na busca pela inserção de pessoas em situações de exclusão social, ao que são mais bem trabalhados os conceitos de saúde e de cotidiano (Marcolino & Fantinatti, 2014Marcolino, T. Q., & Fantinatti, E. N. (2014). A transformação na utilização e conceituação de atividades na obra de Jô Benetton. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 25(2), 142-150.).

Embora avance no desvelamento do processo de construção do MTOD, a análise de Marcolino & Fantinatti (2014)Marcolino, T. Q., & Fantinatti, E. N. (2014). A transformação na utilização e conceituação de atividades na obra de Jô Benetton. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 25(2), 142-150. se pautou em produtos bibliográficos estáticos, por meio dos quais não é possível apreender o processo vivo de construção. Desse modo, este artigo busca elucidar aspectos desse mesmo processo, para compreender como foi ocorrendo a construção do saber por meio das situações práticas que estavam colocadas enquanto objeto de estudo, e do processo que sustentou as soluções/ invenções que culminaram na construção de um referencial teórico-metodológico específico da e na terapia ocupacional brasileira.

Metodologia

Este estudo se desenvolveu no bojo de duas pesquisas de doutorado (Araújo, 2022Araújo, A. S. (2022). Construções teóricas sobre o raciocínio clínico de terapeutas ocupacionais experts que utilizam o Método Terapia Ocupacional Dinâmica (Tese de doutorado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.; Mello, 2023Mello, A. C. C. O. (2023). Método Terapia Ocupacional Dinâmica e o Modello Vivaio: histórias de construções inventivas para a prática de terapia ocupacional (Tese de doutorado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.) voltadas à compreender o processo de construção do MTOD e as características do processo de pensar-fazer na prática, do raciocínio clínico de terapeutas ocupacionais experts que fundamentam a prática profissional no MTOD. Trata-se de pesquisas qualitativas, imersas na perspectiva de buscar entender, descrever e explicar fenômenos por meio da compreensão sobre como as pessoas constroem o mundo à sua volta, para acessar experiências, geralmente considerando casos reais para entender a questão de estudo (Barbour, 2009Barbour, R. (2009). Grupos focais. Porto Alegre: Artmed.).

Os dados analisados neste artigo são provenientes de duas entrevistas realizadas com Jô Benetton e uma entrevista com Sonia Ferrari, ambas audiogravadas, transcritas e validadas. Esses dados foram organizados e analisados tematicamente no NVivo®, versão 12.6.0, um software virtual criado para organizar e analisar dados qualitativos. Para a análise, os dados foram codificados com auxílio do software NVivo®, que permitiu a identificação de núcleos de sentido sobre o processo de construção do MTOD (Minayo, 2014Minayo, M. C. S. (2014). O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec.).

Aspectos éticos

Ambas as pesquisas de doutorado foram aprovadas no Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da UFSCar, sob pareceres favoráveis n. 3.382.934 e n. 4.473.156, tendo explicitadas as autorizações para o uso público do nome das participantes, a saber: Jô Benetton e Sonia Ferrari.

Resultados

A Tabela 1 apresenta a composição dos temas e subtemas decorrentes da análise temática.

Tabela 1
Temas e subtemas sobre o processo de construção do MTOD.

Inquietações, buscas e experimentações na prática

Jô Benetton e Sonia Ferrari falaram sobre suas insatisfações com as produções teóricas e com a prática em terapia ocupacional que vigoravam no Brasil nas décadas de 1970 e 1980, quando eram recém-formadas. Tais produções propunham que a(o) terapeuta ocupacional construísse sua prática de modos normativos e adaptativos, além de não indicarem claramente como pensar e agir na prática.

[...] o curso de terapia ocupacional, na época quando eu fiz, era sustentado em três livros, três autores [...] era o que a gente tinha na faculdade [...] era uma terapia ocupacional normativa, adaptativa. [...] trabalho com sintoma, modelo médico, tal atividade para tal patologia, tal indicação, tal contraindicação, era isso (Sonia Ferrari).

Em uma terapia ocupacional normativa o raciocínio clínico é um raciocínio clínico médico. Totalmente colado no modelo médico. Num dos livros que a gente tinha na faculdade [...] ele coloca: patologia - Esquizofrenia; sintomas; indicações de atividade; contraindicação de atividades. Totalmente colado no modelo médico. Uma bula. [...] quer dizer, não tem sujeito. Tem doença (Sonia Ferrari).

[...] eu não tinha uma profissão, e eu queria ter. Eu não sabia o que fazer (Jô Benetton).

Essas insatisfações mobilizaram Jô Benetton a buscar ativamente diversos materiais teóricos, tanto específicos da terapia ocupacional quanto conteúdos relacionados, que contribuíssem para ampliar seu modo de pensar e praticar terapia ocupacional. Jô Benetton e Sonia Ferrari foram se deparando com materiais teóricos psicodinâmicos, os quais iam além de uma busca pela normatividade e pela adaptação, considerando também os conteúdos internos (subjetivos, emocionais e intrapsíquicos) das pessoas atendidas.

Eu fui buscar em teorias até fora da terapia ocupacional, como recurso [...] (Jô Benetton).

[...] nos anos 80 [...] eu estudava Fidler, Winnicott, Wittkower, Ázima, que eram pessoas que falavam da Terapia Ocupacional Psicodinâmica (Jô Benetton).

O que foi vindo depois [materiais teóricos] foi muito de uma busca que a Jô foi fazendo. [...] viajando, ela entrava nas livrarias, ela olhava os livros, ela trazia os livros, a gente lia. O Fidler chegou para nós desse jeito (Sonia Ferrari).

Quando a gente descobriu os psicodinâmicos foi uma maravilha. Porque eles propunham outra coisa. Não era adaptar ninguém, não era colocar ninguém para trabalhar dentro das indústrias hospitalares. Era: ‘esse sujeito tem mundo interno, ele está se comunicando através da atividade, ele está falando coisas de si’. Isso foi uma descoberta fantástica. [...] veio muito por esse mérito da Jô, de buscar essas coisas nas viagens e nas livrarias. A gente devorava tudo aquilo. Traduzia caseiramente, estudava, tentando decifrar cada palavrinha e encontrando um outro mundo. Essa passagem pela psicodinâmica foi importante porque foi um descolamento de uma terapia ocupacional super normativa [...] (Sonia Ferrari).

Implicada em resolver suas insatisfações e construir uma prática diferente do que se tinha na época, Jô Benetton, com base em seus estudos e na observação do que acontecia na prática, começou a ampliar seu modo de pensar e a experimentar novos modos de praticar.

[...] quando eu comecei a trabalhar, eu já tinha muita dificuldade pessoal de me encaixar em programas pré-estabelecidos, protocolares. [...] no hospital [no qual ela trabalhava] [...] era proibido [...] dar atividades artísticas para os pacientes porque [diziam que] isso fazia aumentar o delírio. E eu escondido fui fazer. [...] observando isso eu vi como as pessoas ficavam diferentes [...] eu sou muito curiosa, eu já estava experimentando coisas (Jô Benetton).

Contudo, Jô Benetton conta que não aplicava acriticamente os conteúdos teóricos que estudava, mas ia observando os acontecimentos dos processos terapêuticos que estava acompanhando e questionando aspectos teóricos que ela julgava que não respondiam às demandas com as quais ela estava se deparando. Jô Benetton e Sonia Ferrari iam, assim, estudando, experimentando e buscando identificar o que funcionava ou não em suas próprias práticas situadas.

[...] mas eu nunca apliquei aquilo [teorias] da forma como eles propunham (Jô Benetton).

Você entra numa questão de experimentar alguma coisa. Se dava certo a gente continuava. Se não dava, a gente voltava atrás (Jô Benetton).

[...] eu adorei a tríade dos Fidler [...] Só que eles colocavam objeto como relação objetal. Eu decidi que, ‘vamos experimentar’, falei com a Sonia, ‘quero experimentar que isso aqui não seja um objeto, seja atividade. Paciente, terapeuta e atividade. Vamos ver se tem dinâmica nisso.’. Nos anos 1980. [...] Eu estava pesquisando, eu estava curiosa para saber se eu poderia dizer de uma relação triádica com a atividade de fato, não com o objeto do ponto de vista fantasioso, inconsciente, psicodinâmico. [...] Eu também buscava essa associação. Se esses três termos podiam ser trabalhados associativamente (Jô Benetton).

Invenções

Diante de suas insatisfações e críticas aos conteúdos teóricos com os quais tinha contato, Jô Benetton percebeu que seria profícuo se manter aberta para observar o que o sujeito-alvo fazia no processo terapêutico, dando menos ênfase ao que ele estava falando e buscando ao máximo não interferir em seu fazer.

Eu simplesmente tentava observar o que acontecia na minha situação (Jô Benetton).

[...] eu comecei a olhar o que o sujeito fazia, e não o que o sujeito falava. [...] a partir de 1985 [...] ficou clara para mim essa questão [...] que tinha no fazer (Jô Benetton).

Quando eu observei que aquilo era possível... quando ele me pediu os trabalhos, eu peguei os trabalhos calada, eu não fiz nada. Apenas quando ele começou a espalhar eu falei 'vamos pôr na sala inteira que daí cabe tudo'. Foi isso que eu falei, o resto foi tudo dele (Jô Benetton).

Observando o que o sujeito-alvo estava fazendo, Jô Benetton ia se surpreendendo e se encantando com os fenômenos inusitados que surgiam na prática. Ela enfatizou que muitas vezes ela mesma não pensava nas possibilidades que foram emergindo. Os próprios sujeitos demonstravam capacidades para encontrar soluções – afirmando sua posição de terapeuta, de não impor rigidamente suas ideias/ interpretações ou mesmo o curso do processo terapêutico. A proposta foi a de permanecer aberta e responder aos fenômenos que aconteciam na situação prática, aprendendo com esses acontecimentos.

[...] é um caminho que vem desde a infância até a velhice. Pacientes [...] me ensinaram muito [...] eram surpreendentes. Eles conseguiam fazer coisas que eu nunca tinha pensado em fazer. [...] Lembro-me de um caso [...] a paciente tinha todas as dificuldades que você pode imaginar por causa da idade. [...] A mulher conseguia fazer caixinha de biscuit, uma maravilha! A mulher não tinha condição, olhando de fora [...] eu jamais pensei em dar uma caixinha de biscuit para ela. Eu não pensava. Mas aconteceu a caixinha de biscuit e eu fiquei parada (Jô Benetton).

Eu tenho que ver o outro como é. [...] as pessoas são muito diferentes. [...] As pessoas me surpreendem com as suas coisas, suas novidades, suas coisas que acontecem. E sempre são legais. Por exemplo, um dos casos que eu acho superlegal da minha vida. [...] o paciente tinha melhorado. Esquizofrênico. Perguntei se ele queria carpir minha chácara [...] aí vem ele e o pai. O pai fala ‘ele faz tão bem o trabalho de casa. Ele está cuidando... nossa casa, nosso barraco não foi mais roubado desde que ele fica lá, faz comida, limpa, lava. Então deixa eu carpir a sua chácara e ele fica em casa.'. Olha que solução incrível. As pessoas me davam isso como solução, quando eu olhava para todas elas. [...] o sujeito toma conta de si mesmo. Essas coisas me encantaram a vida inteira (Jô Benetton).

Com base em suas observações cuidadosas dos acontecimentos do processo terapêutico, e não tentando simplesmente encaixar os fenômenos vivenciados nas teorias que estudava, Jô Benetton refletia sobre os fenômenos que estavam ocorrendo em sua prática, afirmando que é a observação empírica que leva à teoria.

Eu gosto da palavra pensar, refletir. Eu fazia uma observação, de uma coisa, de um fenômeno qualquer que estava ocorrendo, na minha relação com um paciente. A partir disso eu ficava refletindo sobre, por exemplo, por que é que aquilo aconteceu, aquele fenômeno, e não outro (Jô Benetton).

[...] é a observação que leva à teoria. [...] Por que de outra maneira você já vai estar presa a uma teoria [...] (Jô Benetton)

Essas reflexões na prática (no momento que a prática estava acontecendo) e sobre a prática (após a prática), somadas aos seus estudos, permitiram que Jô Benetton construísse um novo modo de pensar e propusesse ou “inventasse” novos conceitos. Essa construção conceitual se aproximava das demandas que ela estava vivenciando na prática, como relação triádica, dinâmica da relação triádica, associação e trilhas associativas.

Nossa, isso é surpreendente! Em cima disso [das observações] eu começava uma nova forma de ver aquele fenômeno, que normalmente tinha a ver com três termos: paciente, terapeuta e atividades. Há muitos anos que eu penso nessa relação triádica, na dinâmica dessa relação, entre o humano e não humano (Jô Benetton).

O caso G. [...] acho que foi a coisa mais interessante para eu sempre pensar que existia uma possibilidade de associação livre com os pacientes [...] qualquer paciente [...]. De repente esse rapaz [G.] me deu essa coisa, porque ele selecionou os trabalhos dele e começou a contar histórias. [...] Aquilo lá é fantástico! Eu mesma não acredito naquilo. [...] foi exatamente pelo inusitado dele [...] reunir trabalhos, ELE pegar os trabalhos [...] quando ele separa [...] aquilo me permitiu, por exemplo, trabalhar para o resto da minha vida com as trilhas [associativas] (Jô Benetton).

O [caso] S. é consequência da minha descoberta de que poderia ser avaliado através das atividades, da relação triádica. O que [ele] sentia por mim, o que achava das atividades, o que elas contavam de histórias de nós três. Acho isso um fenômeno absolutamente fortuito, mas porque eu estava tendo um raciocínio clínico. Eu não quero definir o que é [raciocínio clínico]. Eu quero te mostrar o que é (Jô Benetton).

[...] posso dizer um monte de conceitos que eu cheguei à conclusão com o uso das atividades, inclusive na definição do conceito de atividade, de relação triádica, de dinâmica da relação triádica, tudo isso são conceitos, com certeza, que foram tirados desse olhar da observação (Jô Benetton).

Os conceitos que Jô Benetton propôs/ inventou a partir de seus estudos e de suas reflexões na e sobre a prática, e que compõem o aparato teórico-metodológico do MTOD, são abertos. Isso significa que eles não devem ser usados para definir, explicar, preencher lacunas ou encerrar possibilidades, mas, sim, para sustentar um caminho particular que será trilhado pela(o) terapeuta ocupacional em parceria com cada sujeito-alvo em sua singularidade, de modo a abrir possibilidades para que o inusitado possa surgir.

Olha o que eu consegui! [...] existiam três termos, e eu conceituei e defini esses três termos. Paciente, terapeuta, atividades. [...] eu consegui enxergar que fazia sentido aquela dinâmica desses três termos. [...] conceitos de saúde, a posição de exclusão e não o excluído. Na hora que eu comecei a conceituar cada uma dessas coisas, influencia profundamente no meu raciocínio clínico. Quando eu falo da ética, da transferência, da associação, da memorização, da observação, da informação, no caso da terapeuta ocupacional. [...] Isso aí é o núcleo central de tudo que eu penso. Eu tenho um pensamento nuclear nesse sentido. [...] Quando chega um paciente para mim [...] eu estou sempre tentando ver quem é aquele sujeito, qual é a situação dele, onde é o ponto de exclusão, onde é o ponto de inserção. A inserção é muito importante para mim. A pessoa tem que estar sempre inserida. [esses conceitos] já fazem parte de mim. [...] Praticar o conhecimento. [...] isso aí já está dentro de mim, eu converso com as pessoas com esses conceitos já dentro da minha cabeça. [...] esses conceitos são abertos, eles não definem um sujeito, por exemplo. Eles são abertos (Jô Benetton).

Emergência de um modo de pensar-fazer na prática

Apesar de nas décadas de 1970 e 1980 os conteúdos teóricos psicodinâmicos terem sido disparadores de uma transformação importante em seus modos de pensar e de agir, Jô Benetton e Sonia Ferrari foram percebendo que esses conteúdos não respondiam a aspectos que deveriam ser essencialmente considerados na prática. Dentre eles, não respondiam à necessidade de trabalhar com as concretudes da vida e de pensar de um modo que se afasta do que é moral, pré-estabelecido, protocolar e exclusivamente teórico.

[...] se eu pensar nos inícios onde eu estava [...] muito mais identificada com um pensamento psicodinâmico, tem uma mudança fundamental. Porque no pensamento psicodinâmico o que estava muito mais em jogo eram as questões subjetivas, intrapsíquicas. Então todo o foco das intervenções era para trabalhar com o mundo interno [...] e com pouca intervenção no externo, no cotidiano, nas organizações necessárias, para dar conta disso. O trânsito era outro. [...] tudo foi mudando à medida que foi sendo possível constatar que só essa visão do interno não era suficiente para lidar com as concretudes da vida (Sonia Ferrari).

Todo mundo estava pensando num aspecto teórico, pré-estabelecido (Jô Benetton).

Quando se usa a moral, não tem a ver com isso, com o fenômeno observado, da prática, tem a ver com a coisa teórica. [...] O que eu quero dizer é que realmente o que está pré-estabelecido numa relação da ciência, do conhecimento, da vida, para mim não serve (Jô Benetton).

[...] seguir um protocolo? Isso é um absurdo, isso não existe, isso para mim, é o vazio. [...] impede a existência do raciocínio clínico. Impede o pensar. Uma coisa simples que é pensar. Observar e falar 'nossa, isso existe', 'olha como foi feito', 'olha…'. Impede isso. Admiração, curiosidade, invenção, ficção (Jô Benetton).

Para ter como foco a inserção social como principal proposta da terapia ocupacional, pensando em como lidar com as concretudes da vida e em como considerar a dinâmica entre os três termos da relação triádica, Sonia Ferrari enfatizou que era necessário construir um modo de pensar, um raciocínio clínico específico que, por sua vez, também trazia especificidades de seu modo de agir.

[A terapia ocupacional] tem como proposta as concretudes, as organizações, a construção de um lugar no social, as inserções possíveis no mundo. Quer dizer, [as teorias psicodinâmicas] davam conta de um pedaço, mas não davam conta desse outro que era um propósito. Então nessa medida é óbvio que foi mudando muito a forma de entender o paciente, a forma de se utilizar das atividades, o entendimento de como se estabelecia a relação triádica, toda essa passagem aí de entender a atividade como mediadora, para eu poder entender a atividade como termo da relação, como um dos termos da relação triádica e esse movimento da ação e reação. Isso muda totalmente as intervenções, e muda totalmente o raciocínio clínico (Sonia Ferrari).

Ao descrever o modo de pensar-agir que foi sendo construído, Jô Benetton e Sonia Ferrari falam da própria construção do MTOD. Jô Benetton salientou o foco na ética-estética, na necessidade de abrir espaço para que o inusitado pudesse surgir, de considerar os fatos situacionalmente, de buscar encontrar a singularidade das pessoas atendidas e de seus modos de fazer e de se relacionar com pessoas e com objetos.

Eu já tinha a ideia de que tudo era da situação, e da situação para mim, implicava no social. [...] Você não pode separar nada da condição humana. [...] A descoberta da singularidade das situações que existem, que estão aí, no contexto. Nós temos um trabalho que lida bastante com a realidade. A realidade entra nas nossas quatro paredes toda vez que o paciente entra, com tudo que ele tem de fora: social, político, econômico, regional, seja lá o que for (Jô Benetton).

[...] o raciocínio clínico tem que fazer parte do inédito, da invenção, da observação (Jô Benetton).

Tem uma palavra que eu gosto muito da nova ciência que é a singularidade [...], o singular [...]. Como é que existem novos fenômenos, novas ocorrências, a singularidade do uso dos objetos, por exemplo. Isso eu acho fundamental, a singularidade no uso dos objetos. E isso vale para vida inteira. Quando você pensa numa pessoa mais velha que faz o tricô, o crochê, que são atividades artesanais. Isso não tem nenhum sentido: 'nossa!'. Mas para a pessoa pode ser outra coisa. Tem muita colocação de si mesmo em cada objeto (Jô Benetton).

[...] encontra a singularidade, é isso, ele vai encontrar (Jô Benetton).

A ética [...] é você olhar para dentro daquilo que você faz e descobrir a beleza. [...] quanto eu estou falando da ética, não posso deixar de colocar estética junto. Elas são unas. A terapia ocupacional é bonita (Jô Benetton).

Discussão

A preocupação com a fundamentação da prática era crescente no cenário internacional na década de 1970 (Kielhofner & Burke, 1977Kielhofner, G., & Burke, J. P. (1977). Occupational therapy after 60 years: an account of changing identity and knowledge. The American Journal of Occupational Therapy, 31(10), 675-689.). Como exemplo, o Modelo da Ocupação Humana – um dos modelos de prática mais utilizados e pesquisados no campo da terapia ocupacional – vinha se desenvolvendo, tendo em vista as contribuições iniciais de Mary Reilly, na década de 1960, sendo este formalmente apresentado em 1980 (Kielhofner & Burke, 1980Kielhofner, G., & Burke, J. P. (1980). A Model of Human Occupation, Part 1. Conceptual Framework and Content. The American Journal of Occupational Therapy, 34(9), 572-581.). No Brasil, os cursos de formação começaram a se expandir nos anos de 1970 e, a partir de 1990, começaram as publicações nacionais na área. Havia importante enfoque para a fundamentação da prática, em uma perspectiva crítica e centrada na realidade sócio-política brasileira, com base no diálogo com as ciências humanas e sociais (Galheigo et al., 2018Galheigo, S. M., Braga, C. P., Arthur, M. A., & Matsuo, C. M. (2018). Produção de conhecimento, perspectivas e referências teórico-práticas na terapia ocupacional brasileira: marcos e tendências em uma linha do tempo. Cadernos Brasileiros De Terapia Ocupacional, 26(4), 723-738.).

Jô Benetton, por sua vez, seguiu por um caminho diferente. Diante de uma situação bastante indeterminada de não saber como praticar terapia ocupacional, e da precariedade de materiais bibliográficos disponíveis no Brasil para sustentar a prática, ela deu início a um projeto de construção de conhecimento em terapia ocupacional. Suas preocupações estiveram centradas na solução de questões absolutamente oriundas da prática, sob uma perspectiva contra-hegemônica, de afastamento do paradigma biomédico e da reabilitação, distanciada das práticas protocolares e voltadas para normatização. Esse projeto de investigação, que se apresenta aberto e, portanto, ainda em curso, pode ser considerado o empreendimento de pesquisa mais antigo no campo da terapia ocupacional brasileira e, possivelmente, um dos mais antigos do mundo do próprio campo.

Nessa empreitada, a autora se empenhou em grupos de estudos, estágios e supervisões com psicanalistas, bem como na tradução de textos de terapeutas ocupacionais norte-americanos, canadenses e europeus, além da literatura proveniente de psiquiatras, psicanalistas, sociólogos e antropólogos (Marcolino & Fantinatti, 2014Marcolino, T. Q., & Fantinatti, E. N. (2014). A transformação na utilização e conceituação de atividades na obra de Jô Benetton. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 25(2), 142-150.). Entretanto, a base do processo de construção de conhecimento se ancorou na observação dos acontecimentos da terapia ocupacional. Não se tratava, portanto, de encaixar os fenômenos nas teorias, mas, sim, de utilizá-las para se pensar sobre os fenômenos e, principalmente, para encontrar maneiras de agir que demonstrassem favorecer com que os pacientes fizessem atividades. Ao colocar como objeto de investigação sua própria prática – e a prática de suas estudantes e colegas que passaram a formar-se com ela (Cardinalli, 2017Cardinalli, I. (2017). Conhecimentos da terapia ocupacional no Brasil: um estudo sobre trajetórias e produções (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.) – também se apoiando na importante parceria com Sonia Ferrari – instaurou-se um amplo laboratório, que permitiu experimentar modos diferentes de fazer e observar os acontecimentos do processo terapêutico. Vale destacar a parceria com Sonia Ferrari, em sua presença afetiva e respeitosa constante, sendo a primeira terapeuta ocupacional a experimentar na prática as proposições de Jô Benetton, recebendo, assim, o reconhecimento de que “se não fosse a Sonia, acho que o Método (MTOD) não teria saído nada da maneira que saiu” (Mello, 2023, pMello, A. C. C. O. (2023). Método Terapia Ocupacional Dinâmica e o Modello Vivaio: histórias de construções inventivas para a prática de terapia ocupacional (Tese de doutorado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.. 78).

Desse modo, o processo de construir o MTOD e um novo modo de pensar-fazer na prática foi acontecendo simultaneamente, ou seja, ao mesmo tempo em que iam mudando seus modos de pensar a prática e de nela agir, o aparato teórico-metodológico do MTOD também ia sendo construído e, por conseguinte, seus modos de pensar a prática e de agir. Nesse sentido, Jô Benetton relata a centralidade do ato de se permitir surpreender com o inusitado da prática, na perspectiva de que o novo acontecimento demandasse compreensão, abrindo, assim, espaço para construções conceituais que, de uma nova forma, permitissem voltar à prática. Trata-se, portanto, de um ciclo virtuoso de perceber, principalmente pela observação perscrutadora (Benetton, 1994Benetton, M. J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas.), buscar encontrar proposições teóricas existentes ou analisar a invenção de algo novo, experimentar tais ideias na prática e analisar suas repercussões e consequências, até que o conceito inventado se mostrasse fértil em outras situações práticas a partir de seus efeitos na terapia ocupacional (Marcolino et al., 2021Marcolino, T. Q., Benetton, M. J., Ferrari, S. M. L., Mastropietro, A. P., & Bertolozzi, R. C. (2021). O cotidiano como um conceito instrumental para intervenções em terapia ocupacional. In Anais do VI Seminário Nacional de Pesquisa em Terapia Ocupacional - SNPTO. Brasília: RENETO.).

Esse processo de tomar a experiência como objeto de estudos se alinha a uma perspectiva epistemológica pragmatista, e dialoga particularmente com a teoria da investigação de Dewey (1985)Dewey, J. (1985). Lógica: a teoria da investigação. São Paulo: Abril Cultural.. Dewey (1985)Dewey, J. (1985). Lógica: a teoria da investigação. São Paulo: Abril Cultural. defende que, para que não haja dicotomia entre o conhecimento produzido e a natureza do fenômeno estudado, é essencial que a investigação parta da experiência primária, dos fatos ou objetos de nossa experiência cotidiana, ainda não intelectualizada. O processo de investigação para transformar uma situação indeterminada em determinada, demanda, assim, um caminho sistemático que não se limita a análises racionais. Na medida em que se percebem novos elementos presentes na experiência, novas ideias sobre eles emergem, permitindo a realização de novas ações. As novas ações possibilitam a percepção de outros aspectos, produzindo esse ciclo virtuoso entre novas ideias e novas ações, até que a situação esteja determinada – e todos os envolvidos na então situação indeterminada estejam satisfeitos (Dewey, 1985Dewey, J. (1985). Lógica: a teoria da investigação. São Paulo: Abril Cultural.).

Marcolino (2022)Marcolino, T. Q. (2022). O pragmatismo de Jô Benetton: uma perspectiva não-dualista para a Terapia Ocupacional. In Anais do XVII Congresso Brasileiro de Terapia Ocupacional. Brasília: CREFITO-7. Comunicação Oral. aponta Jô Benetton como uma autora pragmatista justamente por ter investido na proposição de um método que permite incorporar a complexidade da prática, não com base em conceitos representativos ou explicativos dos fenômenos, mas de conceitos operacionais, que permitem agir e pensar a prática com base nas consequências dos eventos, cuja perspectiva das pessoas envolvidas é incluída e considerada. Marcolino (2022)Marcolino, T. Q. (2022). O pragmatismo de Jô Benetton: uma perspectiva não-dualista para a Terapia Ocupacional. In Anais do XVII Congresso Brasileiro de Terapia Ocupacional. Brasília: CREFITO-7. Comunicação Oral. enfatiza também que se trata de uma perspectiva não-dicotômica, por integrar processos de produção teórica e produção prática, colocando de modo complementar e indissociável a produção de conhecimento e de cuidado. Essa maneira de produzir cuidado e construir o conhecimento parece alinhado com o solo em que a terapia ocupacional emergiu, então inundado pelas perspectivas humanistas e ativistas, tendo em sua raiz a ligação com o pensamento pragmatista (Lima, 2021Lima, E. M. F. A. (2021). Terapia ocupacional: uma profissão feminina ou feminista? Saúde em Debate,45(spe1), 154-167.).

Além disso, outra característica pragmatista da obra de Jô Benetton abarca a valorização dos aspectos singulares e situacionais, e o afastamento de padrões coletivos de normatividade. Segundo Marcolino (2022)Marcolino, T. Q. (2022). O pragmatismo de Jô Benetton: uma perspectiva não-dualista para a Terapia Ocupacional. In Anais do XVII Congresso Brasileiro de Terapia Ocupacional. Brasília: CREFITO-7. Comunicação Oral., tanto em Dewey (1985)Dewey, J. (1985). Lógica: a teoria da investigação. São Paulo: Abril Cultural. como em Addams (1964), oAddams, J. (1964). Democracy and social ethics. Chicago: Harvard University Press. que é considerado ético é definido pelas suas consequências no enriquecimento da experiência e na designação do que é bom e traz bem-estar para os envolvidos. Nesse sentido, reconhece-se que a produção teórico-prática de Jô Benetton é ética e estética, pautada na funcionalidade e beleza do uso prático na vida das pessoas (Marcolino, 2022Marcolino, T. Q. (2022). O pragmatismo de Jô Benetton: uma perspectiva não-dualista para a Terapia Ocupacional. In Anais do XVII Congresso Brasileiro de Terapia Ocupacional. Brasília: CREFITO-7. Comunicação Oral.). Assim, ao mesmo tempo em que se permite a crítica e o distanciamento dos padrões coletivos de normatividade, busca-se uma “experiência de construção e integração” (Benetton, 2006, p. 23), na qual o sujeito construirá significados para seu cotidiano com base no que vai compreendendo que faz sentido para sua vida.

Essa produção não-dicotômica entre conhecimento e prática, ética e estética, distancia-se, assim, de perspectivas de terapia ocupacional que dissociam os sujeitos de seus ambientes, na lógica da “desresponsabilização comunitária, social, cultural e ecológica do ser-fazer-pensar-sentir no mundo em uma perspectiva individualista perpetrada pelo capitalismo neoliberal” (Cardinalli et al., 2017, p. 3). Tendo em vista que o capitalismo contemporâneo desprivilegia o exercício do livre pensamento e ação (Stengers, 2018Stengers, I. (2018). ‘Another Science is possible!’ A plea for slow science. In I. Stengers, Another science is possible: a manifesto for slow science (pp. 106-132). Cambridge: Polity Press.), compreende-se que esse modo de praticar e produzir conhecimento adotado pela autora pode ser também uma forma de resistência, pois parece investir na busca por se desviar ou mesmo romper com automatismos e padrões, de forma a sustentar outras formas de vida (Lima, 2022), permitindo aos outros essa mesma liberdade de ser e estar a seu modo no mundo.

Considerações Finais

Este artigo objetiva visibilizar o processo vivo de construção de conhecimento em terapia ocupacional realizado por Jô Benetton em parceria com Sonia Ferrari, um empreendimento de investigação de mais de 50 anos que colocou como objeto de estudos em terapia ocupacional a própria terapia ocupacional, e que culminou na construção de um referencial teórico-metodológico específico da e na terapia ocupacional brasileira. Discute-se esse modo de produzir conhecimento à luz de uma epistemologia pragmatista, de modo a reconhecer Jô Benetton como uma autora pragmatista. Por conseguinte, afirma-se que a construção de conhecimento em terapia ocupacional pode se dar de modo não-dicotômico entre teoria e prática, entre produção de conhecimento e de cuidado. Ao manter o forte compromisso ético com a terapia ocupacional, concretizado na busca por saídas teóricas atreladas à prática, Jô Benetton “dá vida” ao conhecimento que emerge do campo, contribuindo e favorecendo a construção de outras epistemologias, ao passo que reativa a dimensão ético-política que marcou fortemente a emergência da profissão.

Pesquisas futuras poderão contribuir para o avanço do estudo de perspectivas teórico-práticas não oficializadas nos meios formais de divulgação de conhecimento, cuja lógica privilegia e visibiliza publicações apenas de docentes-pesquisadoras. Estudos futuros também poderão favorecer a compreensão sobre o desenvolvimento histórico do MTOD, como as aproximações e distanciamentos das perspectivas psicodinâmicas; e também a elucidação da construção conceitual dos diversos conceitos operacionais do MTOD, investigando o efeito desta proposta teórico-metodológica na prática de terapeutas ocupacionais que a utilizam enquanto referencial, de modo a desvelar suas repercussões na prática, tendo em vista o contexto brasileiro.

  • 1
    Neste artigo, serão utilizadas as grafias: “Terapia Ocupacional”, com iniciais em letra maiúscula, para se referir à profissão, e “terapia ocupacional”, com iniciais em letra minúscula, para se referir à prática profissional/ clínica/ assistencial, conforme sugerido por Benetton (1994)Benetton, M. J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Universidade de Campinas, Campinas..
  • 2
    Centro de Estudos de Terapia Ocupacional, atualmente, Centro de Especialidades em Terapia Ocupacional.
  • Como citar:

    Mello, A. C. C., Araújo, A. S., & Marcolino, T. Q. (2024). A construção do Método Terapia Ocupacional Dinâmica: uma produção não-dicotômica entre conhecimento e prática. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 32, e3673. https://doi.org/10.1590/2526-8910.ctoAO286936731
  • Fonte de Financiamento

    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001 e 88881.622977/2021-01 (Doutorado Sanduíche) e recebeu financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo FAPESP 2021/14571-6.

Referências

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Editado por

Editora de Seção

Profa. Dra. Adriana Miranda Pimentel

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Out 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    27 Dez 2023
  • Revisado
    22 Jan 2024
  • Aceito
    05 Jul 2024
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