Resumo
O cuidado em saúde mental no Brasil vem mudando ao longo da história, instituindo novas práticas, formando a Rede de Atenção Psicossocial, afirmando o protagonismo dos usuários na produção do cuidado, seus direitos sociais e sua cidadania. Dentre os profissionais envolvidos nessas mudanças, estão os terapeutas ocupacionais. Esta pesquisa qualitativa teve como objetivo compreender a atuação desses profissionais na RAPS do estado da Paraíba, Brasil. Foram entrevistadas 13 terapeutas ocupacionais utilizando um questionário semiestruturado, aplicado de forma remota. Essas profissionais são, em sua maioria, mulheres, com experiência profissional e interesse pelo trabalho em saúde mental e atuam em Centros de Atenção Psicossocial I. Foi evidenciado um baixo número de profissionais nos serviços do estado, apenas 17 em uma rede de 124 serviços. Quanto às ações desenvolvidas, elencaram: atendimentos individualizados, acolhimento/triagem, grupos, Projetos Terapêuticos Singulares, participação em reuniões de equipe, manejo de crise e a realização de oficinas. A precarização das condições de trabalho foi percebida, em especial, pela insuficiência dos recursos para a realização das intervenções. Somente eventualmente elas se sentem apoiadas pelas entidades representativas (conselho de classe, sindicato e associação profissional estadual). Os coordenadores dos serviços compreendem a atuação profissional, mas são os usuários quem mais a valorizam, seguidos pelos familiares, equipes e coordenadores do serviço. Essa valorização e reconhecimento pelos principais agentes envolvidos na produção da vida comunitária demonstra que as terapeutas ocupacionais são parte integrante e atuante nesse processo de acolhimento, convivência e inclusão das pessoas vulnerabilizadas e fragilizadas diante de sua condição de sofrimento mental.
Palavras-chave:
Prática Profissional; Saúde Mental; Terapia Ocupacional
Abstract
Mental health care in Brazil has been changing throughout history, establishing new practices, forming the Psychosocial Care Network, affirming the protagonism of users in the production of care, their social rights and their citizenship. Among the professionals involved in these changes are occupational therapists. This qualitative research aimed to understand the performance of these professionals in this Psychosocial Care Network in the Paraíba state, Brazil. Thirteen occupational therapists were interviewed using a semi-structured questionnaire, applied remotely. These professionals are mostly women, with professional experience and interest in working in Mental Health, as well as work in Psychosocial Care Centers I. A low number of professionals in state services was evidenced, being only 17 in a Network of 124 services. As for the actions developed, they listed: individualized care, reception/screening, groups, Unique Therapeutic Projects, participation in team meetings, crisis management and workshops. The precariousness of working conditions was perceived, in particular, by the lack of resources to carry out the interventions. Only occasionally they feel supported by the representative entities (class council, union, and state professional association). The service coordinators understand the professional performance, but it is the users who value it the most, followed by family members, teams, and service coordinators. This appreciation and recognition by the main agents involved in the production of community life demonstrates that occupational therapists are an integral and active part in this process of reception, coexistence and inclusion of vulnerable and fragile people facing their condition of mental suffering.
Keywords:
Professional Practice; Mental Health; Occupational Therapy
Introdução
A Reforma Psiquiátrica brasileira se caracterizou pela concepção e proposição de novos valores, práticas e instituições orientados para a superação do modelo e lógica asilar e para a afirmação da defesa dos direitos humanos e da cidadania das pessoas com experiência de sofrimento psíquico (Brasil, 2005Brasil. (2005). Reforma Psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil. Brasília: Ministério da Saúde., 2016Brasil. (2016). Saúde mental no SUS: cuidado em liberdade, defesa de direitos e Rede de Atenção Psicossocial: relatório de gestão 2011-2015. Brasília: Ministério da Saúde.). Nos últimos 40 anos, esse processo tem trazido para a sociedade a necessidade de invalidar o hospital psiquiátrico como local de tratamento das pessoas com transtornos mentais, por este ser fundamentado em um modelo manicomial baseado na segregação, exclusão e violação de direitos. O processo da Reforma Psiquiátrica traz a participação dos usuários, familiares e profissionais que compõem os serviços da Rede de Atenção Psicossocial - RAPS, além de agentes dos setores da educação, justiça, assistência social e outros na proposição, articulação e realização de ações de caráter mais humanizado (Braga, 2019Braga, C. P. (2019). A perspectiva da desinstitucionalização: chaves de leitura para compreensão de uma política nacional de saúde mental alinhada à reforma psiquiátrica. Saúde e Sociedade, 28(4), 198-213.; Sousa & Jorge, 2019Sousa, F. S. P.., & Jorge, M. S. B. (2019). O retorno da centralidade do hospital psiquiátrico: retrocessos recentes na política de saúde mental. Trabalho, Educação e Saúde, 17(1), 1-19.).
A Lei Federal n. 10.216, de 06 de abril de 2001, também aponta para a necessidade de que a atenção às pessoas com transtornos mentais ocorra em liberdade e seja redirecionada para serviços substitutivos extra-hospitalares, no território. Já a Portaria n. 3.088/2011 instituiu a Rede de Atenção Psicossocial - RAPS - e estabeleceu os critérios para sua organização e implementação em todo o país, integrando a saúde mental em todos os níveis e pontos de atenção do Sistema Único de Saúde (Brasil, 2001Brasil. (2001, 6 de abril). Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial [da] União, Brasília., 2012Brasil. (2012, 12 de dezembro). Resolução nº 466/12, de 12 de dezembro de 2012 do Conselho Nacional de Saúde. Sobre Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisa envolvendo seres humanos. Diário Oficial [da] União, Brasília.).
Assim, a política de saúde mental redireciona a assistência pautada na remissão de sintomas e coloca o sujeito como protagonista de seu processo de cuidado, versando sobre a reconstrução dos vínculos familiares e sociais e de sua autonomia diante da vida, o que implica a definição de novos perfis profissionais. Nesse novo modelo de cuidado, insere-se a RAPS, composta pelos Centros de Atenção Psicossocial - CAPS, Serviços Residenciais Terapêuticos, Centros de Convivência e Cultura, Leitos de atenção integral em Hospitais Gerais, Programa de Volta para Casa, Geração de Renda em Saúde Mental e Unidades de Acolhimento Adulto e Infantil (Brasil, 2011Brasil. (2011, 23 de dezembro). Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial [da] União, Brasília.; Lins, 2015Lins, S. R. A. (2015). Formação Acadêmica do Terapeuta Ocupacional no campo da Saúde Mental (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Paulo.).
As práticas desenvolvidas na rede de serviços substitutivos exigem a constituição de equipes multiprofissionais, cujo objetivo central seja promover a inclusão social dos usuários por meio de ações multidisciplinares que envolvam educação, trabalho, esporte, cultura e lazer, elaborando estratégias conjuntas e intersetoriais de enfrentamento dos problemas (Brasil, 2004Brasil. (2004). Saúde mental no SUS: os centros de atenção psicossocial. Brasília: Ministério da Saúde.).
No entanto, em dezembro de 2017, foi aprovada a Portaria n. 3.588 (Brasil, 2017Brasil. (2017, 21 de dezembro). Portaria nº 3.588, de 21 de dezembro de 2017. Altera as Portarias de Consolidação no 3 e nº 6, de 28 de setembro de 2017, para dispor sobre a Rede de Atenção Psicossocial, e dá outras providências. Diário Oficial [da] União, Brasília.), que preconiza o atendimento em hospitais psiquiátricos, divergindo totalmente dos princípios que alicerçam a atual política de Reabilitação Psicossocial. Tal resolução assegura a manutenção dos leitos em hospitais psiquiátricos e estabelece acréscimos nos valores pagos para internação nessas instituições, recolocando-as na RAPS, juntamente às comunidades terapêuticas. Ainda naquele ano, foi constatado um aumento de 49% nas denúncias sobre maus tratos, imposições religiosas e trabalho forçado, simulado como laborterapia, em algumas instituições dessas modalidades. Logo, essa proposta se configura como um grande retrocesso, pois se contrapõe ao movimento da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial, que vislumbra a defesa dos direitos humanos dos usuários e o cuidado em liberdade, ao resgatar um paradigma obsoleto e segregador, limitando o usuário ao diagnóstico, à prescrição medicamentosa e a violações de variados tipos (Associação Brasileira de Saúde Mental, 2018Associação Brasileira de Saúde Mental - ABRASME (2018). Crônicas da Resistência: em tempos de desconfiguração da Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas. São José: ABRASME. Boletim da Saúde Mental 01.; Guimarães & Rosa, 2019Guimarães, T. de A., & Rosa, L. C. S. (2019). A manicomialização do cuidado em saúde mental no Brasil no período de 2010-2019: análise de uma conjuntura antirreformista. O Social em Questão, 21(44), 111-138. ; Lussi et al., 2019Lussi, I. A. de O., Ferigato, S. H., Gozzi, A. P. N. F., Fernandes, A. D. S. A., Morato, G. G., Cid, M. F. B., Furlan, P. G., Marcolino, T. Q., & Matsukura, T. S. (2019). Saúde mental em pauta: afirmação do cuidado em liberdade e resistência aos retrocessos. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 27(1), 1-3. ).
É nesse campo de disputas que os terapeutas ocupacionais são reconvocados a se somarem às múltiplas formas de resistência dos trabalhadores, usuários, familiares e movimentos sociais, para defesa da manutenção dos princípios da Reforma Psiquiátrica e do modelo de atenção em saúde mental dela decorrente, por meio de práticas que alcançam o cotidiano dos sujeitos e promovem seu protagonismo social (Ribeiro & Machado, 2008Ribeiro, M. C., & Machado, A. L. (2008). A Terapia Ocupacional e as novas formas do cuidar em saúde mental. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 19(2), 72-75.; Lussi et al., 2019Lussi, I. A. de O., Ferigato, S. H., Gozzi, A. P. N. F., Fernandes, A. D. S. A., Morato, G. G., Cid, M. F. B., Furlan, P. G., Marcolino, T. Q., & Matsukura, T. S. (2019). Saúde mental em pauta: afirmação do cuidado em liberdade e resistência aos retrocessos. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 27(1), 1-3. ).
Acredita-se que conhecer as práticas dos terapeutas ocupacionais nos serviços da RAPS possibilita identificar se, e como, esses princípios estão presentes em sua atuação, bem como a repercussão de suas ações para a assistência produzida nos serviços e seus possíveis rebatimentos para a RAPS. Historicamente, a terapia ocupacional tem contribuído para a ampliação das trocas afetivas e materiais entre as pessoas em sofrimento psíquico, com os profissionais e demais usuários de diferentes serviços e com a sociedade em geral. Ao organizar, coordenar e acompanhar ações nos dispositivos da RAPS e em espaços de circulação pela cidade, os profissionais têm viabilizado o cuidado em liberdade e promovido oportunidades de reconhecimento e exercício da cidadania dessas pessoas. O desenvolvimento da autonomia e do protagonismo dos usuários frente às suas necessidades cotidianas, ao seu projeto singular de tratamento e a produção de uma vida com sentido e significado, bem como sua inclusão social, têm sido objetivos da atuação da terapia ocupacional. Nessa direção, observa-se que os princípios que fundam uma lógica de cuidado territorial se aproximam dos valores que sustentam as ações da terapia ocupacional, reafirmando o potencial da profissão para atuar nos serviços da atenção psicossocial (Morato & Lussi, 2018Morato, G. G., & Lussi, I. A. de O. (2018). Contributions from the perspective of Psychosocial Rehabilitation for occupational therapy in the field of mental health. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 26(4), 943-951.).
O presente texto tem como objetivo apresentar parte dos resultados da pesquisa intitulada “Atuação da terapia ocupacional na Rede de Atenção Psicossocial da Paraíba”, referentes aos dados socioprofissionais; ações desenvolvidas nos serviços; gestão; disponibilidade de recursos; reconhecimento profissional por parte dos usuários, familiares, demais profissionais e gestores; e papel das entidades representativas no apoio às ações dos profissionais.
Métodos
A pesquisa apresentada é de abordagem qualitativa, do tipo exploratória e descritiva, visto ter se proposto a compreender a atuação das terapeutas ocupacionais na RAPS do estado da Paraíba. O termo compreender é um dos principais verbos para a pesquisa qualitativa, pois a compreensão exige levar em conta a singularidade do indivíduo; os resultados desta pesquisa partiram das concepções, atribuições de significados e opiniões das terapeutas ocupacionais participantes a respeito das vivências e experiências em seus contextos de prática profissional. Por ser de natureza aplicada, buscou gerar conhecimentos que contribuíssem para o avanço da prática dessas trabalhadoras, ao delinear e caracterizar os processos de cuidado em saúde mental por elas desenvolvidos (Minayo, 1994Minayo, M. C. S. (1994). Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes.; Gerhardt & Silveira, 2009Gerhardt, T. E., & Silveira, D. T. (2009). Métodos de pesquisa. Porto Alegre: Editora da UFRGS.). Optou-se pela adoção do gênero feminino para se referir às participantes da pesquisa, pelo fato de serem, em sua maioria, mulheres.
O estado da Paraíba é composto por 233 municípios que compõem 16 regiões (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2010Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (2010). Sinopse do censo demográfico 2010. Brasília: Ministério do Planejamento e Orçamento.). Desses municípios, 78 possuem algum equipamento de saúde mental, dentre eles: Centros de Atenção Psicossocial em suas diversas modalidades (CAPS I, CAPS II, CAPS III, CAPS AD, CAPS AD III, CAPSi), Unidades de Acolhimento Adulto e Infantil, Residências Terapêuticas, Programa de Volta para Casa1 1 Os dados sobre o Programa de Volta para Casa e os Leitos de Saúde Mental em Hospital Geral não foram inseridos no estudo, pois ainda não estão sendo monitorados pela coordenação de saúde mental do estado, o que dificulta a acessibilidade aos serviços e a identificação dos profissionais que compõem suas equipes. Consultório na Rua e Leitos de Saúde Mental em Hospital Geral, totalizando 125 serviços em todo o estado.
A partir do Relatório de Monitoramento da RAPS da Paraíba, referente ao segundo semestre de 2018, elaborou-se uma ficha de mapeamento na qual foram listados os responsáveis por cada um dos serviços da Rede, que foram contatados por telefone e/ou e-mail, levantando-se o número de 11 terapeutas ocupacionais atuantes no interior da Paraíba no ano de 2020. Paralelamente, realizou-se o mapeamento das terapeutas ocupacionais da RAPS da região metropolitana de João Pessoa-PB, por meio da rede de contatos profissionais e pessoais das proponentes da pesquisa, sendo identificadas outras 6 profissionais também no respectivo ano de 2020. Dessa forma, levantou-se o número de 17 terapeutas ocupacionais na RAPS de todo o estado da Paraíba, que foram convidadas a participar da pesquisa.
Das 11 profissionais do interior, 10 responderam ao contato telefônico inicial da pesquisadora e 7 participaram do estudo. Na região metropolitana, as 6 terapeutas ocupacionais contatadas concordaram em colaborar com a pesquisa, que totalizou, assim, 13 participantes.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Centro de Ciências Médicas (CCM) da Universidade Federal da Paraíba, sob o parecer de n. 4.066.899 e CAAE 31997920.5.0000.8069. Após o primeiro contato com as terapeutas ocupacionais e a sinalização do interesse em contribuir, foi enviado, via e-mail, o instrumento da pesquisa, sendo o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) o primeiro item do questionário a ser preenchido. Prezando pela privacidade e sigilo das informações, no sentido de evitar a identificação das participantes, utilizou-se a sigla TO, acrescida dos números de 1 a 13 para se referir aos relatos das profissionais.
O período da coleta de dados foi de agosto a outubro de 2020, no interior do estado, e de outubro de 2020 a março de 2021, na região metropolitana de João Pessoa. O questionário foi elaborado pelas proponentes da pesquisa, por meio da ferramenta Google forms, e continha perguntas semiestruturadas sobre: dados socioprofissionais; ações desenvolvidas nos serviços; gestão; disponibilidade de recursos; reconhecimento profissional por parte dos usuários, familiares, demais profissionais e gestores; papel das entidades representativas; embasamento teórico adotado para fundamentar as práticas desenvolvidas; especificidade da terapia ocupacional na atuação profissional; trabalho em equipe; potencialidades e dificuldades encontradas pelos terapeutas ocupacionais para a atuação na RAPS. Conforme mencionado no tópico anterior, o presente texto se dedica à apresentação dos resultados referentes aos seis primeiros itens mencionados.
Com relação às participantes do interior, a partir de uma análise preliminar das respostas do questionário, identificou-se a necessidade de aprofundamento das questões por elas narradas. Então, foram realizadas entrevistas com duas terapeutas ocupacionais, selecionadas por possuírem mais tempo de vínculo empregatício com os serviços da RAPS, a partir de um roteiro elaborado com base nas respostas já enviadas. As entrevistas foram realizadas por chamada de voz, via aplicativo de mensagens, e gravadas por meio de um dispositivo de gravação instalado em outro celular; posteriormente, os relatos foram transcritos e analisados.
A análise considerou a amostra completa do estudo, correspondente às 13 participantes. As respostas provenientes das questões objetivas do questionário semiestruturado foram descritas e organizadas em tabelas. Os dados provenientes das respostas às questões abertas passaram por análise de conteúdo, tendo sido, em um primeiro momento, sistematizados segundo as categorias preestabelecidas pelo instrumento, norteadas pelos objetivos da pesquisa, e apresentados descritivamente. Em seguida, esses resultados foram interpretados e discutidos em diálogo com a literatura sobre as temáticas abordadas na pesquisa, possibilitando a produção de novos conhecimentos, reflexões e interpretações sobre elas (Gibbs, 2009Gibbs, G. (2009). Análise de dados qualitativos. Porto Alegre: Artmed.).
Resultados
Após caracterização socioprofissional das participantes da pesquisa, serão apresentados seus principais resultados referentes à compreensão e à valorização da profissão, disponibilidade de recursos, apoio recebido das entidades representativas da profissão e ações desenvolvidas pelas terapeutas ocupacionais na RAPS. Os dados dispostos nas tabelas e figuras trazem o panorama da atuação das terapeutas ocupacionais participantes no estado da Paraíba, sendo feitas no texto algumas comparações entre os achados da região metropolitana e do interior, no sentido de apontar as diferenças que foram significativas.
Caracterização socioprofissional das participantes da pesquisa
Das 13 participantes terapeutas ocupacionais inseridas em diferentes equipamentos de saúde mental da Paraíba, 12 são mulheres, têm entre 25 e 47 anos, 61,5% (8) são pardas, 23% (3) brancas e 8% (1) das pessoas se autodeclararam negras, conforme apresentado na Tabela 1.
A maioria das terapeutas ocupacionais trabalha em CAPS na modalidade I. Uma das respondentes trabalha em dois serviços da RAPS da Paraíba, porém, respondeu o questionário considerando sua atuação em um único serviço. A carga horária de trabalho das terapeutas ocupacionais, em sua maioria, é de 20 a 30 horas semanais.
Sobre o vínculo empregatício, três são concursadas e as demais estão em situações temporárias de trabalho, caracterizadas pela ausência de contratos documentados e realização de acordos verbais. Acerca do tempo de atuação no serviço, verificou-se desde profissionais atuando há um tempo mínimo de três meses e outras com um tempo máximo de 15 anos. A maioria das profissionais (85%) apresentava interesse e experiência na saúde mental.
Das participantes, 12 se graduaram em universidades no Nordeste, sendo a maioria em universidade pública; 69% (9) têm pós-graduação, distribuídas nas seguintes áreas: Transtorno de Desenvolvimento Infantil e autismo; Análise do Comportamento aplicada ao Autismo e pós-graduação em Saúde Mental e Terapias Cognitivas; três possuem Residência em Saúde Mental e uma em Saúde da Família; uma é mestre em Educação, Trabalho e Inovação em Medicina e outra tem mestrado em Ensino em Ciências da Saúde com pesquisa voltada para a RAPS.
O tempo de formação das terapeutas ocupacionais, no momento da realização deste estudo, variou entre 4 e 18 anos, como apresentado na Tabela 2. Quanto às atividades de capacitação para atuarem nos serviços, 77% (10) mencionaram que realizam estudos autodirigidos sobre o campo da saúde mental e 38% (5) também estudam por meio dos cursos oferecidos pela gestão dos serviços.
Em relação às produções teóricas realizadas pelas terapeutas ocupacionais, tanto as produzidas com objetivos de publicações científicas acerca da prática profissional, quanto a produção de conteúdo para divulgação da profissão, o estudo apontou que estas práticas são realizadas eventualmente ou nunca foram realizadas pelas entrevistadas.
Compreensão e valorização da profissão
No que se refere ao reconhecimento profissional, as Figuras 1 e 2 apresentam as opiniões das terapeutas ocupacionais sobre a compreensão e a valorização da profissão pelos usuários, familiares, profissionais e coordenadores dos serviços em que atuam e, ainda, pelos gestores municipais e estaduais.
Os resultados evidenciam que, na opinião das entrevistadas, a maioria dos usuários, colegas de trabalho, familiares e gestores municipais e estaduais compreendem parcialmente o trabalho da terapia ocupacional. Comparativamente, os gestores municipais e estaduais e os familiares são os que apresentam menor compreensão a esse respeito, ao contrário dos gestores/coordenadores dos serviços, única categoria em que mais respondentes assinalaram “sim” do que “parcialmente”. No entanto, ao comparar as respostas das terapeutas ocupacionais da região metropolitana com as do interior do estado, nota-se que um número bem maior do primeiro grupo (66,7%) considera ter sua atuação compreendida pela coordenação do serviço, em contraposição aos 28,6% das colegas do interior com essa mesma opinião.
No que diz respeito à valorização da terapia ocupacional, para as participantes são os usuários os que mais reconhecem a importância da atuação da terapia ocupacional nos serviços, seguidos de perto pelas coordenações e equipes de onde atuam, apresentando números mais expressivos também entre as participantes da região metropolitana. Mais da metade delas considera ser valorizada, também, pelos familiares dos usuários, e a maior desvalorização se dá entre os gestores municipais e estaduais. Nenhuma terapeuta ocupacional da região metropolitana considera ser totalmente valorizada pelos gestores; já entre as do interior, 42,8% e 28,2% referiram essa valorização pelos gestores estaduais e municipais, respectivamente. Nenhuma participante assinalou que os usuários e as equipes dos serviços desvalorizaram sua atuação.
Disponibilidade de recursos para a atuação profissional
Os recursos disponibilizados nos serviços para a realização das atividades profissionais foram considerados insuficientes pela maioria das terapeutas ocupacionais: oito delas (61,5%%) afirmam que eventualmente os recursos disponíveis são suficientes, e outras duas (15,4%), ambas do interior do estado, apontam a grave realidade de eles nunca o serem. Somente duas participantes (15,4%) avaliam que os recursos são frequentemente suficientes e, uma (7,7%), que tal suficiência ocorre sempre.
Entre os recursos cuja escassez tem dificultado a realização das atividades estão os materiais e ferramentas, assinalados por 92,3% das 13 participantes, seguidos pelo espaço físico (46,1%), transporte (38,5%) e mobiliário (38,5%). Uma participante selecionou a opção “outros” e acrescentou a falta de recursos humanos na equipe. Comparando os dois grupos de participantes, somente duas que atuam no interior (15,4% do total) selecionaram o espaço físico como um problema para a atuação dos serviços, em contraposição às quatro terapeutas ocupacionais da região metropolitana (30,8% do total) que o fizeram. Já o mobiliário foi considerado por apenas uma participante desta região (7,7% do total) como um empecilho para o desenvolvimento das atividades, contrapondo-se aos 30,8% de profissionais do interior que o assinalaram.
A questão dos recursos e materiais sempre pesa, eu não sei se é porque as pessoas não entendem, ou porque não querem investir, acho que é dos dois. [...] ainda hoje para fazer um atendimento eu trago materiais de casa, diminuí bastante, trago um ou outro hoje, porque tem que trabalhar com o que tem, porque eu notei que não adianta trazer, não valorizam, eu gasto minhas coisas né, então é melhor a gente deixar sem, para ver se o pessoal começa a reclamar e começa a chegar. [...] a gente faz uma lista, passa anos, mas quando chega é um material de péssima qualidade, muito infantilizado. [...] fica mais penalizado com o grupo adulto, [...] tem essa dificuldade para colocar o projeto terapêutico em dia. [...] é um sofrimento, chega a ser cansativo, [...] eu vou montar minha lista, explico o porquê, mas nem tudo chega e a gente sabe que às vezes é uma questão de não entender, porque se entendesse, investia, porque dinheiro tem [risos] (TO2).
Entidades representativas
As Figuras 3, 4 e 5 demonstram as opiniões das participantes sobre o apoio que recebem das entidades representativas da profissão, respectivamente, do Conselho Regional de Fisioterapia e Terapia Ocupacional da Região 1 (CREFITO-1), do Sindicato de Fisioterapia e Terapia Ocupacional da Paraíba (SINFITO-PB) e da Associação de Terapeutas Ocupacionais da Paraíba (ABRATO-PB). Nessa categoria, buscou-se investigar o quanto as participantes se percebiam amparadas e assistidas em suas necessidades profissionais pelas entidades representativas.
Comparando-se os dois grupos de profissionais, as terapeutas ocupacionais do interior encontram maior apoio no CREFITO-1 e no SINFITO-PB que as colegas atuantes na região metropolitana. Para a maioria das participantes de ambos os grupos, o apoio das três entidades representativas ocorre em caráter eventual; o apoio mais frequente é dado pela ABRATO-PB e pelo SINFITO-PB. Houve seis respostas que referiram nunca tê-lo recebido, estando metade delas relacionada ao CREFITO-1.
Ações desenvolvidas pelas profissionais nos serviços
Foram elencadas, no formulário da pesquisa, as seguintes ações desenvolvidas por terapeutas ocupacionais nos serviços da RAPS, a serem assinaladas pelas respondentes a partir da sua atuação: acolhimento/triagem, manejo da crise, Projeto Terapêutico Singular, assembleia de usuários, grupo de família, visitas domiciliares, atividades intersetoriais em articulação com outros serviços e atividades externas, matriciamento, reunião de equipe, oficinas, grupos, atendimento individualizado, interconsulta, referências e contra referência, formação e capacitação para a equipe do serviço, alta e desligamento; acrescido da opção “Outras atividades desenvolvidas”, caso houvesse ações não contempladas pelas opções disponíveis.
As ações elencadas como mais desenvolvidas pelas terapeutas ocupacionais atuantes na RAPS do estado da Paraíba são os atendimentos individualizados (92,3%), seguidos por acolhimento/triagem e grupos, selecionados, cada um, por 84,6% das participantes, e por Projetos Terapêuticos Singulares, reuniões de equipe e oficinas, assinalados, cada um, por 76,9% das respondentes.
A maior discrepância verificada entre as respostas dos dois grupos diz respeito ao manejo da crise, que foi assinalado por todas as terapeutas ocupacionais da região metropolitana e por somente três profissionais atuantes no interior. Outra diferença marcante foi a atuação nos processos de alta/desligamento dos usuários, elencado por somente uma das participantes do interior, em contraposição às cinco do outro grupo que referiram desenvolver esta ação.
Uma das participantes relatou, a partir da opção “Outras atividades desenvolvidas”, que não vinha realizando matriciamentos e grupos com familiares durante os últimos meses por conta da pandemia, e que as assembleias com usuários também precisam de adaptações. Outras respondentes referiram desenvolver ações como: acompanhamento individualizado de familiares; auriculoterapia; ações de redução de danos; práticas corporais; participação em campanhas do Setembro Amarelo; e oferta de capacitações para equipes de Atenção Básica.
Os relatos a seguir, sobre as práticas desenvolvidas no cotidiano do trabalho, ilustram a ampla gama de possibilidades de atuação da terapia ocupacional na RAPS, ao trazer ações, objetivos e princípios comuns a todos os profissionais que nela atuam, como o trabalho em equipe e em rede, a construção de projetos terapêuticos singulares, o matriciamento, o manejo da crise, o trabalho intersetorial, o exercício da cidadania, o direito à convivência e o protagonismo dos usuários. Além disso, são citados atendimentos individuais e grupais realizados no serviço e fora dele, com usuários e seus familiares, e intervenções terapêuticas ocupacionais de ampliação de repertórios, aprendizado de novas habilidades, ampliação da autonomia e da independência (inclusive financeiras), aprimoramento da comunicação e expressão e estimulação cognitiva.
Acolhimento individual e familiar; Oficinas e Grupos voltados para a estimulação cognitiva; para a convivência; para a ampliação da capacidade expressiva e reflexiva; para o exercício da cidadania (direitos); para o reconhecimento ou descoberta de habilidades manuais; Construção e Acompanhamento de Projetos Terapêuticos Singulares; Reuniões de Equipe; Formação/capacitação para a equipe; Visitas Domiciliares; Articulação com outros serviços (de saúde e de assistência social); Manejo de crise; interconsulta. Em todos os momentos, o foco na ampliação dos repertórios de vida atravessa a minha atuação clínica, assim como o trabalho em equipe voltado para o protagonismo dos usuários do serviço e os seus direitos perante o SUS. Não foi possível realizar mais ações externas, culturais, esportivas, de trabalho etc., por conta do período de pandemia (TO4).
Realizo diariamente o acolhimento inicial aos usuários, através de atendimento em grupo por roda de conversa, e logo após desenvolvemos uma oficina terapêutica, sempre envolvendo práticas expressivas, comunicativas e corporais. Quando necessário e/ou solicitado, realizar atendimento individual e/ou visita domiciliar. Por ter experiência em CAPS III, também sou solicitada nos manejos de crise dos nossos usuários. As reuniões de equipe acontecem semanalmente e o matriciamento acontecia mensalmente, porém, com a pandemia, foram cancelados (TO1).
Geralmente atividades de acolhimento, atendimentos individuais, grupo com crianças e atividades em grupos com adultos, visita domiciliar e participei de reunião de equipe e discussão de casos com alguns profissionais e dependendo da necessidade resolução de problemas no Ministério Público (TO3).
Uma das principais [atividades] em minha atuação são oficinas e grupos, onde geralmente eu busco levar atividades que estimulem os usuários cognitivamente e trabalhos manuais que possam estimular sua autonomia e independência, até mesmo financeiramente, levando atividades que possam ser realizadas e utilizadas como fonte de renda (TO5).
Ao serem questionadas se consideravam ser capazes de atuar como gestoras nos respectivos serviços, 61,5% das participantes sinalizaram que sim, e 38,5%, que não, sendo esse número mais expressivo entre as participantes do interior (71,4% das sete profissionais), comparando-se à metade das terapeutas ocupacionais da região metropolitana que acredita ser capaz de ocupar cargos de gestão nos serviços onde atuam.
Sobre a possibilidade de participação democrática dos profissionais no manejo das situações vivenciadas pelos usuários e pela equipe no cotidiano do serviço, permitida pela gestão dos serviços em que atuam, 46,1% das participantes afirmaram sempre haver essa oportunidade, 23,1% relataram que a situação em questão ocorre frequentemente, outros 23,1% consideram que isso se dá de forma eventual e somente uma das participantes (7,7%) refere que a participação democrática nunca é possibilitada pela gestão.
Discussão
Considerando a formação das profissionais participantes desse estudo, a maioria se graduou em universidades públicas e, posteriormente, cursou uma pós-graduação em áreas variadas. Elas relataram lacunas na graduação em terapia ocupacional, apontando a insuficiência da formação teórico-prática no campo da saúde mental e suas repercussões na atuação profissional nos serviços da RAPS. Isso indica a necessidade de maiores investimentos no processo de formação no campo da saúde mental, em especial nas Instituições de Ensino Superior (IES) em que se graduaram. Cientes dessas lacunas e de seus impactos, essas terapeutas ocupacionais têm se capacitado para aprimorar sua atuação no serviço, o que condiz com a exigência de aperfeiçoamento posta pela complexidade do campo (Lins, 2015Lins, S. R. A. (2015). Formação Acadêmica do Terapeuta Ocupacional no campo da Saúde Mental (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Paulo.).
O contexto universitário deve propiciar aos profissionais um processo formativo humanista, crítico-reflexivo e ético, baseado na apropriação e produção do conhecimento pelo estudante e no desenvolvimento de competências que os preparem plenamente para a vida cidadã e profissional (Zimmermann et al., 2019Zimmermann, A. B., Moreira, A. B., da Silva, D. B., Jorge, I. M. P., Camargo, M. J. G. D., Mariotti, M. C., Castanharo, R. C. T., & Pereira, R. A. B. (2019). Reformulação curricular dos cursos de Terapia Ocupacional: resultados e desafios de um percurso. Interface: Comunicacao, Saude, Educacao, 23, 1-16.). As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação de terapia ocupacional (Brasil, 2002Brasil. (2002, 19 de fevereiro). Resolução nº 6 do CNE/CES, de 19 de fevereiro de 2002. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Terapia Ocupacional. Diário Oficial [da] União, Brasília.) orientam que a formação profissional seja realizada de forma integrada e contínua com as demais instâncias do sistema de saúde, e que os terapeutas ocupacionais em formação sejam capazes de pensar criticamente, analisar os problemas da sociedade e procurar soluções. A formação do terapeuta ocupacional voltada para o Sistema Único de Saúde, vislumbrando a atenção comunitária, prepara os profissionais para lidar com as exigências teóricas e técnicas das demandas nos serviços (Mângia et al., 2010Mângia, E. F., Muramoto, M. T., & Marques, A. L. M. (2010). Formação profissional e serviços de saúde mental no SUS: estudo sobre a inserção de egressos do Curso de Terapia Ocupacional da FMUSP. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 21(2), 148-157.).
A coordenação dos serviços em que as participantes trabalhavam é quem mais compreendia a atuação da terapia ocupacional, e os usuários são os que mais a valorizavam, seguidos de perto pelas coordenações e equipes desses locais. O fato de 61,5% e 53,8% das participantes acreditarem que as gestões municipais e estadual, respectivamente, compreendem parcialmente sua atuação, e 30,8% afirmarem não haver essa compreensão por parte de ambas, pode refletir o desconhecimento dos gestores - excetuando-se os dos serviços - sobre a terapia ocupacional e suas possibilidades de atuação no campo da saúde mental. Um dos aspectos dificultadores apontados pelas participantes foi o desconhecimento da gestão sobre a profissão, apontando-se a falta de vagas nos quadros de profissionais nos serviços como uma de suas consequências.
Uma pesquisa que analisou a percepção dos gestores da Secretaria Municipal de Saúde de João Pessoa sobre a atuação dos terapeutas ocupacionais, na rede de saúde dos cinco distritos sanitários do município, evidenciou um razoável nível de compreensão quanto à sua atuação profissional. Os termos mais citados pelos gestores ao se referirem à profissão foram “cotidiano”, “atividades” e “ocupação”, tendo sido mencionado, também, que a profissão se volta para as atividades diárias do sujeito e realiza adaptações de utensílios. No entanto, verificou-se que eles confundem práticas e atribuições da terapia ocupacional com as da fisioterapia, o que aponta, também, para seu desconhecimento acerca da especificidade da profissão (Miranda et al., 2019Miranda, E. F. S., Amado, C. F., & Ferreira, T. P. S. (2019). Percepção de gestores acerca da atuação e inserção de terapeutas ocupacionais na atenção básica à saúde. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 27(3), 522-533.).
Algumas participantes da pesquisa trouxeram, em seus relatos, a experiência de serem confundidas com recreadoras e/ou oficineiras, o que também demonstra a compreensão insuficiente da gestão, dos usuários dos serviços e de seus familiares sobre os princípios e práticas que constituem a atuação da terapia ocupacional no campo da saúde mental. O desconhecimento e a visão equivocada da profissão exigem que os terapeutas ocupacionais expliquem continuamente suas intervenções, sendo a divulgação de sua atuação profissional uma das formas possíveis para transformar essa realidade (Gozzi, 2012Gozzi, A. P. N. F. (2012). O processo de trabalho do terapeuta ocupacional na rede de saúde mental: focalizando a avaliação inicial (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.; Marcolino et al., 2016Marcolino, T. Q., Fantinatti, E. N., Gozzi, A. P. N. F., & Cid, M. F. B. (2016). Comunidade de prática em terapia ocupacional para o cuidado em saúde mental na atenção básica em saúde: expectativas e impactos. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 24(4), 733-741.), o que vem sendo feito de forma incipiente pelas participantes da pesquisa.
A percepção de não possuírem capacidade de atuar na gestão dos serviços da RAPS, apontada por 38,5% das participantes no geral e por 71,4% das que atuam no interior paraibano, aponta para a necessidade de investimentos da formação profissional no que concerne à preparação para gestão.
Os profissionais graduados têm amplo conhecimento de como se relacionar com o paciente/grupos (alvo da intervenção) e de que forma intervir, mas podem não ter conhecimento de como gerenciar o serviço que abrange essa clientela. Para tanto, necessitam ainda, em sua formação, ter conhecimento de ferramentas que favoreçam a avaliação do desempenho para facilitar a tomada de decisões, como redução de custos, distribuição de recursos, formação de recursos humanos (Cruz et al., 2014, pCruz, D. M. C., Souza, F., & Emmel, M. L. G. (2014). Formação do terapeuta ocupacional para a gestão. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 25(3), 309-316.. 311).
O papel do gestor inclui a responsabilidade na tomada de decisões relativas aos recursos humanos e materiais, a fim de alcançar determinados objetivos e, para tal, faz-se necessário o desenvolvimento de competências, como planejamento estratégico e organizacional, liderança, supervisão e inovação. As Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de fisioterapia, fonoaudiologia e terapia ocupacional preconizam que esses profissionais desenvolvam aspectos não somente voltados à área da assistência, mas também diretamente ligados ao gerenciamento de serviços (Brasil, 2001Brasil. (2001, 6 de abril). Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial [da] União, Brasília.; Cruz et al., 2014Cruz, D. M. C., Souza, F., & Emmel, M. L. G. (2014). Formação do terapeuta ocupacional para a gestão. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 25(3), 309-316.).
A afirmação de que para apenas 15,4% das participantes os recursos para realização de atividades são frequentemente suficientes evidencia uma realidade de trabalho precarizado, em que os recursos apontados como mais escassos são os materiais e ferramentas, o espaço físico e o transporte. Material em terapia ocupacional, segundo Benetton (1994, pBenetton, M. J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de Saúde Mental (Tese de doutorado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas.. 32), é “todo arsenal instrumental utilizado na realização de atividades: a matéria-prima, os instrumentos para a sua manipulação e todo o aparato que constitui o setting terapêutico”. Para que os terapeutas ocupacionais consigam, junto aos demais membros das equipes, atuar de forma alinhada aos princípios da Reabilitação Psicossocial, construindo com os usuários projetos que transformem suas vidas e promovam sua participação e inclusão social, uma das premissas básicas é a garantia de condições apropriadas de trabalho.
A escassez desses recursos básicos pode reduzir as possibilidades de intervenções, impactar na qualidade da assistência aos usuários dos serviços e gerar insatisfação no trabalho dos profissionais. A despeito das importantes conquistas de superação do modelo asilar e manicomial e de transformações das relações da sociedade com as experiências de adoecimento e sofrimento psíquicos, tal situação mostra que ainda há muito a ser feito, no sentido da garantia das condições de trabalho dos profissionais e da qualificação da assistência aos usuários da RAPS (Batista, 2016Batista, E. C. (2016). A saúde mental no Brasil e o atual cenário dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Revista Eletrônica Interdisciplinar, 2(16), 29-35.; Batista et al., 2018Batista, E., Ferreira, D., & Batista, L. (2018). O cuidado em saúde mental na perspectiva de profissionais de um caps i da amazônia. Revista PsicoFAE: Pluralidades em Saúde Mental, 7(1), 77-92.).
Soma-se a esse quadro a fragilidade dos vínculos empregatícios das participantes, caracterizados quase que exclusivamente por contratos não documentados com os municípios. A ausência de concursos públicos e a precariedade dos vínculos e condições de trabalho foram relatadas como aspectos dificultadores de sua atuação na RAPS e podem causar insatisfação dessas terapeutas ocupacionais com seu trabalho, dificultando sua permanência nos serviços e comprometendo a qualidade da assistência prestada. Os órgãos representativos da profissão poderiam desempenhar um papel central na luta por melhores condições de trabalho para essas terapeutas ocupacionais, promovendo ações de divulgação e mobilização junto a órgãos públicos para abertura de vagas; no entanto, oferecem apoio eventual aos desafios colocados pela atuação cotidiana na RAPS.
A quantidade de terapeutas ocupacionais atuantes na RAPS da Paraíba é incipiente; o último relatório de monitoramento dos serviços da rede demonstra um percentual inferior de terapeutas ocupacionais, se comparado ao das outras categorias profissionais de nível superior. O relatório menciona somente 12 terapeutas ocupacionais atuantes nos 124 serviços da RAPS, em contraposição aos 119 psicólogos, 115 enfermeiros, 83 assistentes sociais, 69 psiquiatras e 33 pedagogos (Paraíba, 2020Paraíba. Secretaria de Estado da Saúde. Gerência Executiva de Atenção à Saúde. Coordenação Estadual de Saúde Mental - SES/PB. (2020). Relatório do Monitoramento dos Serviços da Rede de Atenção Psicossocial da Paraíba em 2018.2. Recuperado em 23 de dezembro de 2022, de https://paraiba.pb.gov.br/diretas/saude/arquivos-1/relatorio-do-monitoramento-da-rede-de-atenacao-psicossocial-na-paraiba-2018-2.pdf
https://paraiba.pb.gov.br/diretas/saude/...
).
A precariedade das condições de trabalho, que vem se perpetuando nas gestões estaduais e municipais há décadas, é agravada pelo cenário de desmonte das políticas públicas de saúde mental, que recoloca na rede e direciona recursos a serviços que operam a partir de uma lógica manicomial e propõem o deslocamento das ações de um cuidado territorial e comunitário para um tratamento excludente, restrito e violador de direitos humanos (Associação Brasileira de Saúde Mental, 2018Associação Brasileira de Saúde Mental - ABRASME (2018). Crônicas da Resistência: em tempos de desconfiguração da Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas. São José: ABRASME. Boletim da Saúde Mental 01.).
A despeito disso, verificou-se que as práticas desenvolvidas nos serviços mais citadas pelas profissionais mantêm sua relação com os procedimentos e ações próprios dos serviços da RAPS, fundamentados nos princípios da Reforma Psiquiátrica e na Reabilitação Psicossocial, como: atendimentos individuais, acolhimento, grupos, Projeto Terapêutico Singular (PTS), reuniões de equipe, manejo da crise e oficinas.
A totalidade das participantes apontou o acolhimento como estratégia de cuidado realizada. Essa prática consiste na escuta humanizada para além da demanda trazida pelo usuário e na disponibilidade para fortalecimento do vínculo durante o andamento da intervenção. Os serviços devem elaborar meios de acolhimento em todas as fases do processo de cuidado e não apenas nos momentos de crise ou de entrada dos usuários nos serviços, uma vez que ele promove espaços de escuta e de trocas, assim como a expressão de interesses e necessidades. Quando ele não acontece, torna-se difícil a criação de vínculo, afetando significativamente o processo de cuidado do usuário (Franco et al., 1999Franco, T. B., Bueno, W. S., & Merhy, E. E. (1999). O acolhimento e os processos de trabalho em saúde: o caso de Betim, Minas Gerais, Brasil. Cadernos de Saude Publica, 15(2), 345-353.).
O acesso do usuário ao serviço e a responsabilização da equipe devem ocorrer da forma mais ágil e humanizada possível, e de maneira sensível à demanda apresentada e formulada pelo usuário ao procurar espontaneamente o serviço ou ser encaminhado a ele. Nas práticas de acolhimento, devem ser instaurados processos terapêuticos que formulem as primeiras respostas às necessidades identificadas em conjunto com o usuário, e continuem criando estratégias de qualificação da vida facilitadas pela equipe e protagonizadas pelo usuário (Mângia & Muramoto, 2006Mângia, E. F., & Muramoto, M. (2006). Integralidade e construção de novas profissionalidades no contexto dos serviços substitutivos de saúde mental. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 17(3), 115-122.).
O manejo da crise também foi citado como uma prática desenvolvida por aproximadamente 70% das participantes da pesquisa em seus respectivos serviços de atuação, principalmente pelas terapeutas ocupacionais da região metropolitana. As situações de crise correspondem à grave sintomatologia psiquiátrica aguda; interrupção de vínculo com familiares e/ou atividades sociais; rejeição das intervenções, porém, com aceitação em manter contato com a equipe; e situações críticas no contexto familiar e/ou social. Estratégias como a aproximação, a presença e a disponibilidade da equipe para criação e fortalecimento de vínculos, identificando e intervindo nas necessidades, mediando contatos, lidando com os conflitos, podem ocasionar um novo contexto de relações e de oportunidades. A terapia ocupacional atua na produção de movimentos e estratégias de suporte, proteção e resolução de problemas que contribuam para a superação das situações que tenham possibilitado a manifestação da crise ou a permanência do usuário em situações de fragilidade e vulnerabilidade (Mângia, 2002Mângia, E. F. (2002). Contribuições da abordagem canadense “prática de terapia ocupacional centrada no cliente” e dos autores da desinstitucionalização italiana para a terapia ocupacional em saúde mental. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 13(3), 127-134.; Nicácio & Campos, 2004Nicácio, F., & Campos, G. W. de S. (2004). A complexidade da atenção às situações de crise: contribuições da desinstitucionalização para a invenção de práticas inovadoras em saúde mental. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 15(2), 71-81.).
Ao assumir como objeto da ação terapêutica a pessoa e suas necessidades e não a doença e os sintomas da crise, a ação terapêutica se complexifica e deve buscar apreender e investir não mais na contenção dos sintomas, mas na criação de possibilidades de transformação, crescimento e mudanças capazes de redimensionar a situação existencial da pessoa, em seu conjunto (Mângia, 2002Mângia, E. F. (2002). Contribuições da abordagem canadense “prática de terapia ocupacional centrada no cliente” e dos autores da desinstitucionalização italiana para a terapia ocupacional em saúde mental. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 13(3), 127-134., pp. 131-132).
Destacou-se, nos relatos das participantes, a realização de grupos e oficinas, nos quais propunham atividades que promovessem a autonomia e independência dos usuários, entre elas atividades que pudessem lhes gerar renda. Um grupo é muito mais que uma coleção de pessoas, pois potencializa os encontros, e o terapeuta ocupacional é um profissional com capacidade para facilitar atividades em grupo e conduzi-las de maneira a produzir sentidos concretos para os indivíduos que dele participem, a partir de suas necessidades (Gozzi, 2012Gozzi, A. P. N. F. (2012). O processo de trabalho do terapeuta ocupacional na rede de saúde mental: focalizando a avaliação inicial (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.; Silva & Araújo, 2013Silva, M. C., & Araújo, M. K. V. (2013). Terapia ocupacional em saúde mental: evidências baseadas nas Portarias do SUS. Revista Baiana de Terapia Ocupacional, 2(1), 41-52.).
Parte dos grupos mencionados vinha sendo realizada em parceria com outros profissionais dos serviços. Quando as ações são desenvolvidas de forma interprofissional e colaborativa entre diferentes membros das equipes, os usuários são os maiores beneficiários das intervenções (Gozzi, 2012Gozzi, A. P. N. F. (2012). O processo de trabalho do terapeuta ocupacional na rede de saúde mental: focalizando a avaliação inicial (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.).
Nas oficinas terapêuticas desenvolvidas nos CAPS, o terapeuta ocupacional direciona o cuidado para os aspectos individuais, coletivos, contextuais e territoriais que envolvem os usuários (Silva & Araújo, 2013Silva, M. C., & Araújo, M. K. V. (2013). Terapia ocupacional em saúde mental: evidências baseadas nas Portarias do SUS. Revista Baiana de Terapia Ocupacional, 2(1), 41-52.). No âmbito da geração de renda, ele pode contribuir nos processos de (re)inserção de pessoas que se encontram excluídas do mundo do trabalho e/ou para delinear novas percepções dos sujeitos acerca de si mesmos, promovendo satisfação e realização pessoal e concretização de projetos de vida (Bregalda & Lopes, 2011Bregalda, M. M., & Lopes, R. E. (2011). O programa de reabilitação profissional do inss: apontamentos iniciais a partir de uma experiência. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 19(2), 249-261.).
Outra ação bastante mencionada pelas profissionais foi o Projeto Terapêutico Singular (PTS). Essa prática é definida como uma estratégia de cuidado planejada por meio de ações estruturadas e elaboradas por uma equipe multiprofissional e estabelecida a partir da singularidade do indivíduo, podendo se direcionar também a uma família, a um coletivo ou a determinada situação vivenciada por um território, considerando suas necessidades e seu contexto social. A partir dessa singularidade e das demandas colocadas pelo indivíduo e identificadas pela equipe, são estabelecidas metas de curto, médio e longo prazo, que devem ser protagonizadas pelo usuário com apoio dos profissionais, os quais se dividem na responsabilização pelo acompanhamento e facilitação da concretização dessas metas. A construção de um PTS deve considerar o indivíduo em sofrimento psíquico, seus familiares e suas redes sociais, num processo constante, integrado e firmado em ações voltadas ao desenvolvimento de independência, protagonismo e inclusão social (Boccardo et al., 2011Boccardo, A. C. S., Zane, F. C., Rodrigues, S., & Mângia, E. F. (2011). O projeto terapêutico singular como estratégia de organização do cuidado nos serviços de saúde mental. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 22(1), 85-92.).
Nesse contexto, profissionais de diferentes áreas fazem, frequentemente, uso de estratégias em comum, como escuta, conversa e acolhimento. No entanto, um indivíduo pode ser entendido e abordado de maneiras distintas em um mesmo serviço, o que reforça a essencialidade do diálogo e da partilha de conhecimentos entre os membros da equipe, potencializados quando os serviços adotam a construção do PTS como parte da organização do trabalho. Alguns obstáculos à realização dessa prática que podem ser mencionados são a falta de espaços para discutir o PTS com o usuário e sua família; a resistência da equipe em se predispor a entender e assistir às demandas do usuário; a escassez de registros nos prontuários; a formação profissional incompatível com as premissas da nova política assistencial e a rotatividade da equipe (Barros, 2010Barros, J. O. (2010). A construção de projetos terapêuticos no campo da saúde mental: apontamentos acerca das novas tecnologias de cuidados (Dissertação de mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo.; Filizola et al., 2009Filizola, C. L. A., Milioni, D. B., & Pavarini, S. C. I. (2009). A vivência dos trabalhadores de um CAPS diante da nova organização do trabalho em equipe. Revista Eletrônica de Enfermagem, 10(2), 491-503.).
A terapia ocupacional, ao atuar na construção de PTS com os demais profissionais das equipes de que fazem parte, propõe e desenvolve intervenções que invistam em processos atrelados ao cotidiano e aos projetos de vida dos usuários, mediando a atribuição de novos sentidos às relações dessas pessoas com suas ocupações, consigo mesmos e com as pessoas de seu convívio, reduzindo os efeitos da segregação social e ampliando suas possibilidades de exercer a cidadania (Ferigato & Silva, 2016Ferigato, S. H., & Silva, M. C. (2016). Saúde mental e terapia ocupacional: a construção de um projeto terapêutico singular. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 24(2), 379-386.).
Em pesquisa realizada com terapeutas ocupacionais atuantes em CAPS do município de São Paulo, que buscou identificar como esses profissionais compreendem a especificidade do seu trabalho, os participantes mencionaram diversas práticas comuns, compartilhadas com as demais profissões, referindo-se à natureza interdisciplinar da atuação da equipe, ao compartilhamento da responsabilidade pelos projetos terapêuticos dos usuários e aos objetivos comuns relacionados à sua inclusão social. Como especificidade, afirmaram a propriedade da terapia ocupacional em observar e organizar atividades no CAPS e nos demais locais da vida cotidiana dos usuários, a partir de um olhar próprio sobre a atividade (Juns & Lancman, 2011Juns, A. G., & Lancman, S. (2011). O trabalho interdisciplinar no CAPS e a especificidade do trabalho do terapeuta ocupacional. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 22(1), 27-35.).
A presente pesquisa evidenciou que as terapeutas ocupacionais atuam como importantes agentes facilitadores das atividades desenvolvidas na RAPS, de acordo com as propostas das portarias e políticas públicas de saúde mental, e exercem sua prática profissional a partir da realização de atividades que possuam sentido para o sujeito atendido, e/ou possibilitem a construção de novos sentidos que sustentem sua existência no mundo. A terapia ocupacional possui potencial para transformar a ação, em conjunto com as pessoas em sofrimento psíquico, em formas de favorecer o seu protagonismo social, exatamente por ter como principal ferramenta de intervenção a atividade humana, produzida na vida cotidiana dos sujeitos. Além disso, a formação e a atuação em terapia ocupacional se alinham aos princípios e objetivos da Reabilitação Psicossocial, no sentido da inclusão social a partir do convívio, das trocas, do exercício da contratualidade nos diferentes cenários da vida e da circulação pelo território (Almeida & Trevisan, 2011Almeida, D. T., & Trevisan, É. R. (2011). Estratégias de intervenção da Terapia Ocupacional em consonância com as transformações da assistência em saúde mental no Brasil. Interface: Comunicacao, Saude, Educacao, 15(36), 299-308.; Morato & Lussi, 2018Morato, G. G., & Lussi, I. A. de O. (2018). Contributions from the perspective of Psychosocial Rehabilitation for occupational therapy in the field of mental health. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 26(4), 943-951.; Silva & Araújo, 2013Silva, M. C., & Araújo, M. K. V. (2013). Terapia ocupacional em saúde mental: evidências baseadas nas Portarias do SUS. Revista Baiana de Terapia Ocupacional, 2(1), 41-52.).
Conclusão
Investigar a atuação das terapeutas ocupacionais na RAPS da Paraíba evidenciou o baixo número desses profissionais nos serviços do estado, no período de realização do estudo, bem como sua concentração somente em Centros de Atenção Psicossocial. A atuação desse profissional no campo está na origem dos primeiros esforços de cuidado das populações em sofrimento mental e vem acompanhando os movimentos e conquistas da Reforma Psiquiátrica. A atuação de terapeutas ocupacionais tem sido de fundamental importância ao trazer contribuições como as referidas pelas participantes: intervenção direta na vida prática das pessoas, integração em atividades significativas para elas, auxílio para encontrar novos significados e formas de desempenhar os papéis ocupacionais, ressignificação de rotinas, consideração das ocupações na construção de projetos terapêuticos singulares e promoção da autonomia em atividades de autocuidado.
Faz-se necessária a inclusão de terapeutas ocupacionais em toda a RAPS paraibana, abarcando Serviços Residenciais Terapêuticos, Centros de Convivência e Cultura, Unidades de Acolhimento, leitos de atenção integral em Hospitais Gerais e CAPS III, Consultórios na Rua e profissionais vinculados ao Programa de Volta para Casa, entre outros.
Considerando os limites de uma pesquisa cujos dados foram coletados de modo virtual no período da pandemia de Covid-19, quando muitos serviços e equipes vivenciavam situações inesperadas e difíceis de serem administradas, os resultados possivelmente revelaram apenas parte das facetas da realidade cotidiana enfrentada pelas profissionais. No entanto, aspectos relacionados à precarização dos vínculos e das condições de trabalho, à escassez de recursos para a realização das intervenções, aliados ao pouco conhecimento e, consequentemente, à pouca valorização da atuação das terapeutas ocupacionais por parte dos gestores, possivelmente reduzem o alcance e a qualidade da assistência prestada à população. Nessa direção, verificou-se, ainda, que, frente aos desafios cotidianos, as profissionais eventualmente se sentem apoiadas pelos órgãos representativos da profissão.
Importante ressaltar que não foi explicitada no questionário a definição das pesquisadoras quanto ao que significaria ser a terapia ocupacional “uma profissão compreendida e valorizada”, e que, portanto, as respostas foram dadas pelas participantes de acordo com o entendimento de cada uma sobre esses termos. Também não foram detalhadas no questionário as funções específicas das Entidades Representativas e nem foi aprofundada junto às participantes a discussão acerca das expectativas delas quanto ao apoio oferecido por essas instituições, o que aponta limitações deste estudo e uma agenda importante para debates sobre essa temática.
As lacunas identificadas pelas profissionais em sua formação graduada para atuar no campo da saúde mental têm mobilizado as participantes da pesquisa a se aprimorarem por meio de atividades de educação permanente, especializações e cursos de mestrado. O empenho delas tem sido reconhecido e valorizado pelas famílias, pelos usuários e pelos demais profissionais das equipes, principais agentes envolvidos na produção da vida em comunidade, demonstrando que as terapeutas ocupacionais são parte integrante desse processo de acolhimento, convivência e inclusão das pessoas vulnerabilizadas e fragilizadas diante de sua condição de sofrimento mental.
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Os dados sobre o Programa de Volta para Casa e os Leitos de Saúde Mental em Hospital Geral não foram inseridos no estudo, pois ainda não estão sendo monitorados pela coordenação de saúde mental do estado, o que dificulta a acessibilidade aos serviços e a identificação dos profissionais que compõem suas equipes.
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Como citar: Mata, C. C., Bregalda, M. M., Freitas, R. O. S. N., & Veloso, V. C. F. (2023). Atuação de terapeutas ocupacionais na Rede de Atenção Psicossocial em um estado do nordeste brasileiro. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 31, e3484. https://doi.org/10.1590/2526-8910.ctoAO267034841
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Editora de seção
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
04 Dez 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
23 Dez 2022 -
Revisado
28 Abr 2023 -
Revisado
29 Maio 2023 -
Revisado
05 Jul 2023 -
Aceito
10 Jul 2023