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Raciocínio clínico de terapeutas ocupacionais brasileiras experts: um estudo da teoria fundamentada em dados construtivista 1 1 Disponibilidade dos dados: Os dados brutos que dão suporte aos resultados e conclusões deste estudo permanecem confidenciais e não serão compartilhados por razões éticas. Todas as informações necessárias que dão suporte aos resultados apresentados são fornecidas neste manuscrito.

Resumo

Introdução

Modelos ou teorias baseadas na prática são elementos relevantes para a compreensão dos processos de pensamento deliberado na individualização do cuidado a um cliente específico na prática do terapeuta ocupacional. O Método de Terapia Ocupacional Dinâmica (MTDO) é um arcabouço conceitual-metodológico em andamento desenvolvido no Brasil desde a década de 1970.

Objetivo

Examinar os processos de raciocínio clínico de terapeutas ocupacionais experts que utilizam o MTDO.

Método

Uma abordagem construtivista da teoria fundamentada em dados norteou este estudo. Os dados foram coletados e analisados ​​simultaneamente através da Análise Comparativa Constante. Entrevistas individuais e em grupo e um diário reflexivo compuseram os instrumentos de coleta de dados. Os participantes foram 10 terapeutas ocupacionais experts com: mínimo de 10 anos de experiência prática, mínimo de cinco anos desde a conclusão do treinamento clínico do MTDO, que empregam o MDTO como estrutura principal em sua prática, e considerados experts por seus colegas.

Resultados

Duas categorias principais emergiram da análise dos dados: (1) processos de raciocínio do MDTO – construção diagnóstica situacional, estabelecimento e gestão de relações triádicas e avaliação dialógica do processo terapêutico/percursos associativos; (2) pensar ético-esteticamente, associativa e dinamicamente.

Conclusão

Esta pesquisa avança no conhecimento sobre os processos de raciocínio de terapeutas ocupacionais experts, demonstrando a importância do conhecimento teórico e metodológico para informar o raciocínio clínico. Foi desenvolvida uma teoria sobre o raciocínio clínico de terapeutas ocupacionais experts que empregam o MDTO, detalhando como esse referencial conceitual-metodológico sustenta o raciocínio, fornecendo conceitos operacionais valiosos para apoiar uma prática dinâmica centrada na singularidade dos clientes e no contexto situado.

Palavras-chave:
Raciocínio Clínico; Terapia Ocupacional; Teoria Fundamentada em Dados; Pensamento; Prática Profissional

Abstract

Introduction

Practice-based models or theories are relevant elements for understanding deliberate thinking processes in individualizing care for a specific client in occupational therapists' practice. The Dynamic Occupational Therapy Method (DOTM) is an ongoing conceptual-methodological framework developed in Brazil since the 1970s.

Objective

To examine the clinical reasoning processes of expert occupational therapists employing the DOTM.

Method

A constructivist grounded theory approach guided this study. Data were collected and analyzed simultaneously through Constant Comparative Analysis. Individual and in-group interviews, and a reflective journal, comprised the data collection instruments. Participants were ten expert occupational therapists with: minimum of 10 years of practice experience, minimum of five years since completion of the DOTM clinical training, employing the DOTM as the main framework in practice, and considered by peers as experts.

Results

Two major categories emerged from data analysis: (1) the DOTM reasoning processes – construction of the situational diagnosis, establishment and management of the triadic relationship, and dialogical assessment of the therapeutic process/associative paths; (2) thinking ethical-aesthetically, associatively, and dynamically.

Conclusion

This research advances knowledge about the reasoning processes of expert therapists, demonstrating the importance of theoretical and methodological knowledge to inform clinical reasoning. A theory on the clinical reasoning of expert occupational therapists employing the DOTM was developed, detailing how this conceptual-methodological framework underpins reasoning by providing valuable operational concepts to support a dynamic practice centered on the clients' uniqueness and situated context.

Keywords:
Clinical Reasoning; Occupational Therapy; Grounded Theory; Thinking; Professional Practice

Introdução

O raciocínio clínico é um processo que envolve operações cognitivas (observar, coletar e analisar informações) relacionadas à necessidade de tomar decisões para agir (referida como tomada de decisão) em uma situação clínica específica (ten Cate & Durning, 2018ten Cate, O., & Durning, S. J. (2018). Understanding clinical reasoning from multiple perspectives: a conceptual and theoretical overview. In O. ten Cate, E. J. F. M., Custers & S. J. Durning (Eds.), Principles and practice of case-based clinical reasoning education: a method for preclinical students (pp. 35-46). London: Springer Open.). A terapia ocupacional é uma profissão prática, pragmática e ativa na qual terapeutas recorrem a processos complexos de raciocínio clínico que combinam teoria, evidências e detalhes contextuais para tomar decisões na prática numa perspectiva centrada na pessoa, contextual e baseada na ocupação (Taylor , 2012Taylor, C. (2012). Foreword. In G. Fish & A. Boniface (Eds.), Using occupational therapy theory in practice (pp. xi - xii). Hoboken: John Wiley & Sons.). O raciocínio clínico em Terapia Ocupacional é estudado desde a década de 1980. O primeiro grande estudo identificou a 'Mente de Três Trilhas', caracterizando o funcionamento interligado entre os raciocínios processual (para encontrar a melhor ação terapêutica), interativo (para promover a prática colaborativa com as pessoas atendidas) e condicional (para imaginar a pessoa em uma vida social mais ampla) (Mattingly & Fleming, 1994Mattingly, C., & Fleming, M. H. (1994). Clinical reasoning: forms of inquiry in a therapeutic process. Philadelphia: F. A. Davis.).

Um estudo de revisão recente identificou muitos estudos abordando tipos clássicos de raciocínio clínico – processual, condicional, interativo, pragmático, narrativo, ético e científico (Araujo et al., 2022Araujo, A. S., Kinsella, E. A., Thomas, A., Gomes, L. D., & Marcolino, T. Q. (2022). Clinical reasoning in occupational therapy practice: A scoping review of qualitative and conceptual peer-reviewed literature. The American Journal of Occupational Therapy, 76(3), 7603205070. http://dx.doi.org/10.5014/ajot.2022.048074.
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). Esse estudo também apontou perspectivas emergentes que incluem a corporificação, a estética, a intuição, as emoções e as interações entre terapeuta, paciente e ambiente (Araujo et al., 2022Araujo, A. S., Kinsella, E. A., Thomas, A., Gomes, L. D., & Marcolino, T. Q. (2022). Clinical reasoning in occupational therapy practice: A scoping review of qualitative and conceptual peer-reviewed literature. The American Journal of Occupational Therapy, 76(3), 7603205070. http://dx.doi.org/10.5014/ajot.2022.048074.
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). Essas perspectivas emergentes apelam à necessidade de aumentar a visibilidade dos aspectos corporificados, tanto através do sentimento como da ação, assim como por meio de perspectivas críticas para análise contextual, como o pensamento consciente sobre questões sociais e políticas envolvidas nas decisões profissionais (Araujo et al., 2022Araujo, A. S., Kinsella, E. A., Thomas, A., Gomes, L. D., & Marcolino, T. Q. (2022). Clinical reasoning in occupational therapy practice: A scoping review of qualitative and conceptual peer-reviewed literature. The American Journal of Occupational Therapy, 76(3), 7603205070. http://dx.doi.org/10.5014/ajot.2022.048074.
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). Essas questões estiveram presentes nos estudos iniciais sobre raciocínio clínico em terapia ocupacional (Fleming & Mattingly, 1994Fleming, M. H., & Mattingly, C. (1994). Action and inquiry: reasoned action and active reasoning. In C. Mattingly & M. H. Fleming. Clinical reasoning: forms of inquiry in a therapeutic process (pp. 316-342). Philadelphia: F. A. Davis.), mas foram menos exploradas em pesquisas subsequentes. Apesar dos esforços para melhor conceituar diferentes processos relacionados à tomada de decisão na prática (Araujo et al., 2022Araujo, A. S., Kinsella, E. A., Thomas, A., Gomes, L. D., & Marcolino, T. Q. (2022). Clinical reasoning in occupational therapy practice: A scoping review of qualitative and conceptual peer-reviewed literature. The American Journal of Occupational Therapy, 76(3), 7603205070. http://dx.doi.org/10.5014/ajot.2022.048074.
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; Burke et al., 2024Burke, H. K., Sample, P. L., Bundy, A. C., & Lane, S. J. (2024). Defining reasoning, reflective practice, and evidence-based practice in occupational therapy education: a Delphi study. Journal of Occupational Therapy Education, 8(1), 1-29. https://doi.org/10.26681/jote.2024.080107.
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; ten Cate & Durning, 2018ten Cate, O., & Durning, S. J. (2018). Understanding clinical reasoning from multiple perspectives: a conceptual and theoretical overview. In O. ten Cate, E. J. F. M., Custers & S. J. Durning (Eds.), Principles and practice of case-based clinical reasoning education: a method for preclinical students (pp. 35-46). London: Springer Open.), o termo raciocínio clínico tem sido mais utilizado e compreendido de amplamente.

Alguns estudos também têm discutido o uso de modelos ou teorias baseadas na prática e proposto modelos ou estruturas para orientar o raciocínio clínico, baseando-se em modelos de prática clássicos ou focando nos resultados práticos (Araujo et al., 2022Araujo, A. S., Kinsella, E. A., Thomas, A., Gomes, L. D., & Marcolino, T. Q. (2022). Clinical reasoning in occupational therapy practice: A scoping review of qualitative and conceptual peer-reviewed literature. The American Journal of Occupational Therapy, 76(3), 7603205070. http://dx.doi.org/10.5014/ajot.2022.048074.
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; Boniface & Seymour, 2012Boniface, G., & Seymour, A. (2012). Introduction. In G. Fish & A. Boniface (Orgs.), Using occupational therapy theory in practice (pp. 1-5). Hoboken: John Wiley & Sons.). Teorias e modelos informam suposições sobre como o mundo funciona e orientam o modo como os profissionais avaliam, identificam e resolvem problemas (Reagon, 2012Reagon, C. (2012). Using occupational therapy theory within evidence-based practice. In G. Fish & A. Boniface (Eds.), Using occupational therapy theory in practice (pp. 155-164). Hoboken: John Wiley & Sons.). Kramer (2020)Kramer, P. (2020). Philosophical and theoretical influences on evaluation. In P. Kramer & N. Grampurohit (Eds.), Hinojosa and Kramer’s evaluation in occupational therapy: obtaining and interpreting data (pp. 13-24). American Occupational Therapy Association Press. destaca que quando terapeutas ocupacionais têm clareza teórica, há uma escolha clara sobre o âmbito dos problemas a serem abordados. Terapeutas ocupacionais, no entanto, podem não reconhecer essas influências no seu raciocínio (Thompson, 2012Thompson, B. (2012). Abductive reasoning and case formulation in complex case. In L. Robertson (Ed.). Clinical reasoning in occupational therapy: controversies in practice (pp. 15-30). Hoboken: Wiley-Blackwell.). Em outro estudo de revisão, Márquez-Alvarez et al. (2019)Márquez-Alvarez, L. J., Calvo-Arenillas, J. I., Talavera-Valverde, M. A., & Moruno-Millares, P. (2019). Professional reasoning in occupational therapy: A scoping review. Occupational Therapy International, 6238245, http://dx.doi.org/10.1155/2019/6238245.
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constataram que os aspectos teóricos do raciocínio clínico são uma das principais linhas de estudo sobre essa temática. Compreender como os referenciais teórico-metodológicos influenciam as ações práticas e o raciocínio clínico pode ajudar os profissionais a serem criticamente mais competentes (Higgs & Trede, 2019Higgs, J., & Trede, F. (2019). Clinical reasoning and models of practice. In J. Higgs, G. M. Jensen, S. Loftus, N. Christensen (Eds.), Clinical reasoning in the health professions (4th ed, pp. 140-162). Amesterdã: Elsevier.).

Uma vez que teorias e/ou modelos conceituais são um componente importante do raciocínio clínico, compreender como esses aspectos fundamentam as operações cognitivas e a tomada de decisão de terapeutas ocupacionais é importante para aprofundar a compreensão da prática profissional. Um dos referenciais empregados na prática profissional de terapeutas ocupacionais é o Método de Terapia Ocupacional Dinâmica (MTOD) – um referencial teórico e metodológico desenvolvido no Brasil desde a década de 1970 pela terapeuta ocupacional Jô Benetton. A Dra. Benetton estava insatisfeita com as abordagens de terapia importadas e descontextualizadas utilizadas no Brasil (Mello et al., 2023Mello, A. C. C., Marcolino, T. Q., & Pollard, N. (2023). Change in occupational therapy. In J. Creek, N. Pollard & M. Allen. Theorizing occupational therapy practice in diverse settings (pp. 143-164). London: Routledge Taylor & Francis Group.).

Através da Teoria da Técnica, processo sustentado por uma epistemologia pragmatista (Dewey, 1991Dewey, J. (1991). Logic: the theory of inquiry. Carbondale: Southern Illinois University Press. (Original work published 1938); Marcolino, 2022Marcolino, T. Q. (2022). The pragmatism of Jo Benetton: a non-dualistic perspective for occupational therapy. In Annals of the 17th Brazilian Congress of Occupational Therapy [no prelo].), Benetton colocou a “prática” como objeto de estudo. A partir da observação e análise de fenômenos práticos, ela passou a construir generalizações para um arcabouço conceitual-metodológico que se mostrou útil para a prática ao longo dos anos (Marcolino et al., 2020Marcolino, T. Q., Benetton, J., Cestari, L. M. Q., Mello, A. C. C., & Araujo, A. S. (2020). Dialogues with Benetton and Latour: possibilities for an understanding of social insertion. British Journal of Occupational Therapy, 28(4), 1322-1334. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoARF2032.
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; Mello et al., 2020Mello, A. C. C., Dituri, D. R., & Marcolino, T. Q. (2020). The meaning making of what is meaningful: dialogues with Wilcock and Benetton. British Journal of Occupational Therapy, 28(1), 356-377. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoEN1896.
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, 2022Mello, A. C. C., Marcolino, T. Q., & Pollard, N. (2022). Change in occupational therapy. In J. Creek, N. Pollard & M. Allen (Orgs.), Theorising occupational therapy practice in diverse settings (pp. 1-22). Routledge: Taylor & Francis. https://dx.doi.org/10.4324/9781003016755-8
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). Sua principal preocupação não era construir um modelo de prática, que simplificasse os fenômenos da prática, mas construir um referencial teórico e metodológico para apoiar terapeutas ocupacionais a pensar e agir dentro das complexidades, singularidades e contextos situados de prática (Marcolino et al., 2020Marcolino, T. Q., Benetton, J., Cestari, L. M. Q., Mello, A. C. C., & Araujo, A. S. (2020). Dialogues with Benetton and Latour: possibilities for an understanding of social insertion. British Journal of Occupational Therapy, 28(4), 1322-1334. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoARF2032.
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; Mello et al., 2020Mello, A. C. C., Dituri, D. R., & Marcolino, T. Q. (2020). The meaning making of what is meaningful: dialogues with Wilcock and Benetton. British Journal of Occupational Therapy, 28(1), 356-377. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoEN1896.
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).

O MTOD foi sistematizado através de pesquisas acadêmicas nos estudos de mestrado e doutorado da Dra. Benetton. Após o seu pós-doutorado em História da Saúde na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales na França, ela identificou semelhanças entre suas proposições e as de Eleanor Slagle nos primeiros anos da terapia ocupacional nos Estados Unidos. A principal semelhança abrange o reconhecimento de ideais e práticas para promover a saúde por meio de atividades/ocupações. Nessa direção, Benetton situou o MTOD como pertencente ao Paradigma da Terapia Ocupacional (Benetton, 2005Benetton, J. (2005). Além da opinião: uma questão de investigação para a historicização da terapia ocupacional. Revista CETO, 9(9), 4-8.; Marcolino et al., 2020Marcolino, T. Q., Benetton, J., Cestari, L. M. Q., Mello, A. C. C., & Araujo, A. S. (2020). Dialogues with Benetton and Latour: possibilities for an understanding of social insertion. British Journal of Occupational Therapy, 28(4), 1322-1334. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoARF2032.
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). A ênfase no substantivo “terapia” qualificado pela ocupação, levou-a a colocar a intervenção prática como eixo de análise dos diferentes paradigmas da profissão (Benetton, 2005Benetton, J. (2005). Além da opinião: uma questão de investigação para a historicização da terapia ocupacional. Revista CETO, 9(9), 4-8.). Ela considera três paradigmas para a prática da terapia ocupacional: o paradigma médico, existente desde antes da fundação da profissão, sustentando práticas orientadas a sintomas; o paradigma da terapia ocupacional, em razão do surgimento de uma forma de tratar hábitos (e não doenças ou sintomas) – buscando por saúde, bem-estar e bem viver – por meio da ocupação, à semelhança do paradigma da ocupação visto em Kielhofner (2009)Kielhofner, G. (2009). The early development of occupational therapy practice: the preparadigm and occupation paradigm period. In G. Kielhofner. Conceptual foundations of occupational therapy practice (4th ed., pp. 17-31). F.A. Philadelphia: Davis Company.; o paradigma da reabilitação, sob o qual a profissão se espalhou pelo mundo com práticas centradas na recuperação funcional, como uma reabilitação, um “voltar a ser” antes da deficiência (Benetton, 2005Benetton, J. (2005). Além da opinião: uma questão de investigação para a historicização da terapia ocupacional. Revista CETO, 9(9), 4-8.).

O termo “ocupação” não está incluído na estrutura conceitual do MTOD. Isso pode, inicialmente, ser um desafio para a sua apresentação à comunidade internacional, mas é também uma oportunidade para ampliar as possibilidades situadas de construção de conhecimento no campo longe das produções do Norte Global. Como será apresentado, o MTOD é uma proposta teórica e metodológica altamente baseada na ocupação e centrada na pessoa (Araujo et al., 2022Araujo, A. S., Kinsella, E. A., Thomas, A., Gomes, L. D., & Marcolino, T. Q. (2022). Clinical reasoning in occupational therapy practice: A scoping review of qualitative and conceptual peer-reviewed literature. The American Journal of Occupational Therapy, 76(3), 7603205070. http://dx.doi.org/10.5014/ajot.2022.048074.
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), sustentada por processos dinâmicos, relacionais, situados e dialógicos.

O MTOD busca compreender situacionalmente o que limita ou impede o sujeito-alvo de fazer o que deseja ou precisa fazer em sua vida a partir de uma perspectiva dinâmica e contínua (Marcolino et al., 2020Marcolino, T. Q., Benetton, J., Cestari, L. M. Q., Mello, A. C. C., & Araujo, A. S. (2020). Dialogues with Benetton and Latour: possibilities for an understanding of social insertion. British Journal of Occupational Therapy, 28(4), 1322-1334. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoARF2032.
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; Mello et al., 2020Mello, A. C. C., Dituri, D. R., & Marcolino, T. Q. (2020). The meaning making of what is meaningful: dialogues with Wilcock and Benetton. British Journal of Occupational Therapy, 28(1), 356-377. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoEN1896.
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). Considerando os “problemas para realizar atividades/ocupações” na vida em sua amplitude e complexidade, não é possível nomear previamente o foco da intervenção. Benetton (1994)Benetton, M. J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Faculdade de Ciências Médicas, Universidade de Campinas, Campinas. propõe a realização de um diagnóstico situacional como um processo contínuo de identificação das necessidades e desejos do sujeito-alvo através de múltiplas informações disponíveis (observação do fazer da pessoa, os sentimentos do terapeuta ocupacional e outras percepções corporificadas, as crenças da pessoa, informações de outras pessoas e profissionais, e até avaliações de défices específicos quando necessário). Trata-se de um mapa dinâmico, descritivo e analítico que busca situar a pessoa em relação ao que pode estar limitando/dificultando o seu fazer em todos os aspectos relevantes (Marcolino et al., 2020Marcolino, T. Q., Benetton, J., Cestari, L. M. Q., Mello, A. C. C., & Araujo, A. S. (2020). Dialogues with Benetton and Latour: possibilities for an understanding of social insertion. British Journal of Occupational Therapy, 28(4), 1322-1334. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoARF2032.
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; Mello et al., 2020Mello, A. C. C., Dituri, D. R., & Marcolino, T. Q. (2020). The meaning making of what is meaningful: dialogues with Wilcock and Benetton. British Journal of Occupational Therapy, 28(1), 356-377. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoEN1896.
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).

A intervenção, portanto, também é dinâmica e centrada em um fenômeno totalmente específico da terapia ocupacional: a relação triádica, composta pelo terapeuta ocupacional, o sujeito-alvo e as atividades. Benetton (1994)Benetton, M. J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Faculdade de Ciências Médicas, Universidade de Campinas, Campinas. identificou que ao introduzir atividades na relação terapeuta-paciente, ocorriam novos movimentos relacionais. Estabelecer a relação triádica e manejá-la é o que permite ao terapeuta ocupacional sustentar a possibilidade da pessoa viver uma experiência. O foco da intervenção não está no desempenho, mas na experiência, para que o que se precisa aprender a fazer e o que se deseja fazer possam ser integrados à terapia ocupacional (Marcolino, 2022Marcolino, T. Q. (2022). The pragmatism of Jo Benetton: a non-dualistic perspective for occupational therapy. In Annals of the 17th Brazilian Congress of Occupational Therapy [no prelo].; Marcolino et al., 2020Marcolino, T. Q., Benetton, J., Cestari, L. M. Q., Mello, A. C. C., & Araujo, A. S. (2020). Dialogues with Benetton and Latour: possibilities for an understanding of social insertion. British Journal of Occupational Therapy, 28(4), 1322-1334. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoARF2032.
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; Mello et al., 2020Mello, A. C. C., Dituri, D. R., & Marcolino, T. Q. (2020). The meaning making of what is meaningful: dialogues with Wilcock and Benetton. British Journal of Occupational Therapy, 28(1), 356-377. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoEN1896.
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). Sendo um método pragmatista, a terapia ocupacional para o MTOD é vista como um processo ético-estético que sempre considera as particularidades da situação, suas consequências e o que tem utilidade prática na vida das pessoas, distanciando-se de normatividades morais e estéticas (Marcolino, 2022Marcolino, T. Q. (2022). The pragmatism of Jo Benetton: a non-dualistic perspective for occupational therapy. In Annals of the 17th Brazilian Congress of Occupational Therapy [no prelo].).

No processo de realização de atividades na relação triádica, as atividades que o sujeito-alvo considera trazer bem-estar são realizadas com maior regularidade, ampliando a participação das pessoas no meio social (Marcolino et al., 2020Marcolino, T. Q., Benetton, J., Cestari, L. M. Q., Mello, A. C. C., & Araujo, A. S. (2020). Dialogues with Benetton and Latour: possibilities for an understanding of social insertion. British Journal of Occupational Therapy, 28(4), 1322-1334. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoARF2032.
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). Para o MTOD, esse é um processo de ampliação dos espaços de saúde e de participação do sujeito-alvo, fomentando sua inserção social. Conceitualmente, saúde é definida como um conceito singular e não normativo atribuído pela pessoa àquilo que lhe traz bem-estar e regula suas possibilidades de fazer (Marcolino et al., 2020Marcolino, T. Q., Benetton, J., Cestari, L. M. Q., Mello, A. C. C., & Araujo, A. S. (2020). Dialogues with Benetton and Latour: possibilities for an understanding of social insertion. British Journal of Occupational Therapy, 28(4), 1322-1334. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoARF2032.
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; Mello et al., 2020Mello, A. C. C., Dituri, D. R., & Marcolino, T. Q. (2020). The meaning making of what is meaningful: dialogues with Wilcock and Benetton. British Journal of Occupational Therapy, 28(1), 356-377. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoEN1896.
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). Ampliar a realização de atividades implica ampliar a participação da pessoa no meio social. Essa participação, porém, não é necessariamente garantida na sociedade por aspectos diversos e complexos (Marcolino et al., 2020Marcolino, T. Q., Benetton, J., Cestari, L. M. Q., Mello, A. C. C., & Araujo, A. S. (2020). Dialogues with Benetton and Latour: possibilities for an understanding of social insertion. British Journal of Occupational Therapy, 28(4), 1322-1334. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoARF2032.
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). O conceito de inserção social dialoga com a Sociologia das Associações de Bruno Latour (Marcolino et al., 2020Marcolino, T. Q., Benetton, J., Cestari, L. M. Q., Mello, A. C. C., & Araujo, A. S. (2020). Dialogues with Benetton and Latour: possibilities for an understanding of social insertion. British Journal of Occupational Therapy, 28(4), 1322-1334. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoARF2032.
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), e pode ser entendido como um processo contínuo “no movimento dinâmico, fluido e instável do social, por meio de processos ativos de participação dos sujeitos na construção do coletivo.” (Marcolino et al., 2020, pMarcolino, T. Q., Benetton, J., Cestari, L. M. Q., Mello, A. C. C., & Araujo, A. S. (2020). Dialogues with Benetton and Latour: possibilities for an understanding of social insertion. British Journal of Occupational Therapy, 28(4), 1322-1334. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoARF2032.
http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoA...
. 1333). Um exemplo de um novo coletivo em construção pode ser visto quando não se espera que os funcionários de um supermercado se comuniquem através de dispositivos de Comunicação Aumentativa e Alternativa (CAA). Uma pessoa que usa CAA e começa a fazer compras no supermercado “obriga” os funcionários a se comunicarem com ela. Essa transformação não tem estabilidade no meio social, mas permite a construção de um novo coletivo, mobilizado por ações humanas e não humanas (o dispositivo CAA), que apresenta potencial para transformação social (Marcolino et al., 2020Marcolino, T. Q., Benetton, J., Cestari, L. M. Q., Mello, A. C. C., & Araujo, A. S. (2020). Dialogues with Benetton and Latour: possibilities for an understanding of social insertion. British Journal of Occupational Therapy, 28(4), 1322-1334. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoARF2032.
http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoA...
).

O processo de transformação exige ampliação da consciência e construção de novos significados, o que é essencial para as práticas da terapia ocupacional (Mello et al., 2021Mello, A. C. C., Araujo, A. S., Costa, A. L. B., & Marcolino, T. Q. (2021). Meaning-making in occupational therapy interventions: a scoping review. British Journal of Occupational Therapy, 29, e2859. http://dx.doi.org/10.1590/2526-8910.ctoAR2158.
http://dx.doi.org/10.1590/2526-8910.ctoA...
). No MTOD, as atividades realizadas são analisadas constante e colaborativamente, centradas em um processo dialógico de construção de sentido que permite refletir sobre a experiência vivida para que a pessoa possa reconhecer habilidades, capacidades e limites. Esse processo está centrado nas associações desencadeadas pelas atividades desenvolvidas. Embora o processo de construção de sentidos possa ocorrer a partir de análises contínuas e rotineiras, existe uma técnica específica no MTOD chamada Trilhas Associativas. Essa técnica envolve agrupar as atividades pelos sentidos atribuídos a elas pelo sujeito alvo e conversar sobre elas, permitindo novos agrupamentos de sentidos em um processo dialógico. As Trilhas Associativas abrem espaço para a historicidade e para a construção de uma narrativa sobre o que foi vivido na terapia ocupacional (Mello et al., 2020Mello, A. C. C., Dituri, D. R., & Marcolino, T. Q. (2020). The meaning making of what is meaningful: dialogues with Wilcock and Benetton. British Journal of Occupational Therapy, 28(1), 356-377. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoEN1896.
http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoE...
).

Na década de 1980, Benetton, em parceria com Sonia Ferrari, passou a oferecer o curso de formação no MTOD. Atualmente, esse é um curso de dois anos que terapeutas ocupacionais podem concluir após a obtenção do bacharelado em Terapia Ocupacional.

Objetivo

Este estudo teve como objetivo examinar os processos de raciocínio clínico de terapeutas ocupacionais experts que utilizam o MTOD. A questão de pesquisa foi: Quais são os processos de raciocínio clínico utilizados por terapeutas ocupacionais experts que utilizam o MTOD como principal referencial teórico-metodológico na prática profissional?

Métodos

Ética

A aprovação ética (parecer número 3.382.934) foi obtida do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Carlos. As participantes assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e, para garantir o anonimato, foram identificados por pseudônimos.

Delineamento do estudo

Utilizamos a abordagem construtivista da Teoria Fundamentada nos Dados para orientar este estudo (Charmaz, 2014Charmaz, K. (2014). Constructing grounded theory (2nd ed). Newcastle upon Tyne: Sage.). A Teoria Fundamentada nos Dados é um método sistemático de condução de pesquisa qualitativa que fornece estratégias explícitas para coleta e análise de dados; o objetivo é construir indutivamente proposições teóricas que ofereçam uma compreensão abstrata do tema estudado (Charmaz & Thornberg, 2021Charmaz, K., & Thornberg, R. (2021). The pursuit of quality in grounded theory. Qualitative Research in Psychology, 18(3), 305-327. http://dx.doi.org/10.1080/14780887.2020.1780357.
http://dx.doi.org/10.1080/14780887.2020....
). A abordagem construtivista enfatiza a interpretação e prioriza mais a compreensão conceitual do que a explicação. Procura compreender ações, significados e como as pessoas os constroem. Além disso, reconhece as interpretações tanto dos participantes quanto dos pesquisadores, situando a pesquisa em contextos históricos, sociais, interacionais e situados (Charmaz, 2014Charmaz, K. (2014). Constructing grounded theory (2nd ed). Newcastle upon Tyne: Sage.). Promove a construção e o desenvolvimento de novos insights, aprofundando-se no fenômeno estudado e afastando-se das teorias existentes (Charmaz, 2014Charmaz, K. (2014). Constructing grounded theory (2nd ed). Newcastle upon Tyne: Sage.).

Escolhemos a Teoria Fundamentada nos Dados por ser uma metodologia de pesquisa frequentemente utilizada para estudar o raciocínio clínico (Araujo et al., 2022Araujo, A. S., Kinsella, E. A., Thomas, A., Gomes, L. D., & Marcolino, T. Q. (2022). Clinical reasoning in occupational therapy practice: A scoping review of qualitative and conceptual peer-reviewed literature. The American Journal of Occupational Therapy, 76(3), 7603205070. http://dx.doi.org/10.5014/ajot.2022.048074.
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; Márquez-Alvarez et al., 2019Márquez-Alvarez, L. J., Calvo-Arenillas, J. I., Talavera-Valverde, M. A., & Moruno-Millares, P. (2019). Professional reasoning in occupational therapy: A scoping review. Occupational Therapy International, 6238245, http://dx.doi.org/10.1155/2019/6238245.
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) e porque o raciocínio clínico dos profissionais que empregam o MTOD nunca tinha sido investigado.

Participantes e recrutamento

Para compreender melhor o raciocínio clínico de terapeutas ocupacionais que orientam sua prática utilizando o MTOD, optamos por trabalhar com terapeutas ocupacionais experts. Consideram-se experts aqueles profissionais, geralmente reconhecidos como tal por seus colegass, que são capazes de resolver novos problemas ou abordar questões de maneira inovadora para atender às necessidades complexas dos clientes em situações de imprevisibilidade ou incerteza. Para tanto, eles utilizam um conjunto de conhecimentos, características pessoais, competências e habilidades (King et al., 2008King, G., Bartlett, D. J., Currie, M., Gilpin, M., Baxter, D., Willoughby, C., Tucker, M. A., & Strachan, D. (2008). Measuring the expertise of paediatric rehabilitation therapists. International Journal of Disability Development and Education, 55(1), 5-26. http://dx.doi.org/10.1080/10349120701654522.
http://dx.doi.org/10.1080/10349120701654...
). A vantagem de realizar pesquisas com profissionais experts permite avaliar conhecimentos práticos mais robustos e fundamentados, bem como utilizar a teoria na prática (King et al., 2008King, G., Bartlett, D. J., Currie, M., Gilpin, M., Baxter, D., Willoughby, C., Tucker, M. A., & Strachan, D. (2008). Measuring the expertise of paediatric rehabilitation therapists. International Journal of Disability Development and Education, 55(1), 5-26. http://dx.doi.org/10.1080/10349120701654522.
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).

As participantes foram 10 terapeutas ocupacionais experts que utilizavam o MTOD como principal referencial teórico-metodológico na sua prática profissional. Os seguintes critérios de inclusão foram usados para o recrutamento: 1. Mínimo de 10 anos de experiência prática em terapia ocupacional; 2. Mínimo de cinco anos desde a conclusão da especialização clínica no MTOD; 3. Utilizar o MTOD como principal referencial teórico-metodológico na prática; 4. Ser nomeada como expert por pares.

Seguindo as diretrizes da Teoria Fundamentada nos Dados (Morse, 2007Morse, J. M. (2007). Sampling in grounded theory. In A. Bryant & K. Charmaz (Eds.), The SAGE handbook of grounded theory (pp. 229-244). Newcastle upon Tyne: Sage.), utilizamos três tipos de amostragem:

Amostragem por conveniência: No início da pesquisa, recrutamos terapeutas ocupacionais que atendiam aos critérios de inclusão e eram professoras do curso de especialização clínica no MTOD.

Amostragem proposital: Solicitamos às primeiras participantes que indicassem outras terapeutas ocupacionais que atendessem aos critérios de inclusão e fossem consideradas experts de acordo com a definição encontrada em King et al. (2008)King, G., Bartlett, D. J., Currie, M., Gilpin, M., Baxter, D., Willoughby, C., Tucker, M. A., & Strachan, D. (2008). Measuring the expertise of paediatric rehabilitation therapists. International Journal of Disability Development and Education, 55(1), 5-26. http://dx.doi.org/10.1080/10349120701654522.
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.

Amostragem teórica: Em consonância com a amostragem teórica, que busca envolver participantes específicos que possam aprofundar as interpretações, realizamos uma entrevista em grupo com as quatro professoras do curso de especialização clínica no MTOD - as mesmas que compuseram a amostragem por conveniência. Essas experts foram chamadas para essa etapa em razão da sua experiência no ensino do MTOD e de seu profundo conhecimento sobre esse método.

Procedimentos de coleta de dados

Seguindo as diretrizes da Teoria Fundamentada nos Dados (Charmaz, 2014Charmaz, K. (2014). Constructing grounded theory (2nd ed). Newcastle upon Tyne: Sage.), os dados foram coletados e analisados ​​simultaneamente pela primeira autora (ASA), que era terapeuta ocupacional com sete anos de experiência, possuia especialização clínica no MTOD e era estudante de doutorado. As outras autoras, membros da equipe de pesquisa (EAK, ACCM e TQM), contribuíram para a análise dos dados e interpretações emergentes.

A coleta de dados iniciou-se com o preenchimento de um formulário demográfico pelas participantes. Os instrumentos de coleta de dados incluíram: 1. Dez entrevistas individuais semiestruturadas, realizadas em português, nas quais as participantes foram solicitadas a descrever seus processos de raciocínio clínico e a dar exemplos de sua prática profissional, esclarecendo particularidades da utilização do MTOD. Os roteiros de entrevistas foram sendo modificados à medida que os conceitos foram surgindo e outras experts participaram a fim de tornar a Teoria Fundamentada nos Dados emergente mais robusta. A Tabela 1 traz exemplos de perguntas feitas às participantes das três amostras; 2. Uma entrevista em grupo, também realizada em português, com quatro professoras do curso de especialização clínica no MTOD, na qual foram apresentados aos resultados preliminares e as participantes foram solicitadas a discutir e fornecer reflexões adicionais sobre eles. Suas ideias foram utilizadas para esclarecer e aprofundar a teoria emergente; 3. Um diário reflexivo para registrar insights, reflexões e interpretações emergentes ao longo do processo de pesquisa. Essas anotações foram utilizadas para fomentar reflexões sobre escolhas metodológicas, códigos emergentes e categorias conceituais (Charmaz, 2014Charmaz, K. (2014). Constructing grounded theory (2nd ed). Newcastle upon Tyne: Sage.).

Tabela 1
Exemplos de perguntas feitas nas entrevistas.

As entrevistas duraram de 60 a 120 minutos, foram gravadas em áudio e transcritas. As primeiras quatro entrevistas individuais foram realizadas presencialmente no local de trabalho das participantes. As outras seis entrevistas individuais e a entrevista em grupo foram realizadas por meio de videoconferência por conta da distância geográfica e da pandemia de COVID-19.

Análise dos dados

A Análise Comparativa Constante (Charmaz, 2014Charmaz, K. (2014). Constructing grounded theory (2nd ed). Newcastle upon Tyne: Sage.) foi utilizada para a análise dos dados, gerenciada com o software NVivo® (versão 12.7.0), e envolveu codificaçaõ inicial, focalizada e teórica (Charmaz, 2014Charmaz, K. (2014). Constructing grounded theory (2nd ed). Newcastle upon Tyne: Sage.; Thornberg & Charmaz, 2014Thornberg, R., & Charmaz, K. (2014). Grounded theory and theoretical coding. In: U. Flick (Ed.), The SAGE handbook of qualitative data analysis (pp. 153-69). Newcastle upon Tyne: Sage.). Ao longo desse processo, o diário de campo e as anotações foram utilizados para apoiar a análise emergente.

Primeiramente, as gravações das entrevistas foram ouvidas repetidamente e as transcrições foram lidas buscando uma imersão aprofundada nos dados. Mantendo a questão da pesquisa em primeiro plano, a codificação foi iniciada por meio da análise parágrafo por parágrafo, gerando códigos provisórios. A seguir, realizou-se a codificação focalizada, selecionando os códigos iniciais mais significativos/frequentes e gerando categorias e subcategorias. Por fim, a codificação teórica foi realizada após a entrevista em grupo com a amostragem teórica. Esse processo envolveu a reanálise de todos os dados para confirmar as categorias e subcategorias geradas, modificá-las e aprofundá-las.

O processo de análise foi realizado de forma indutiva, conforme propõe a Teoria Fundamentada nos Dados (Charmaz & Thornberg, 2021Charmaz, K., & Thornberg, R. (2021). The pursuit of quality in grounded theory. Qualitative Research in Psychology, 18(3), 305-327. http://dx.doi.org/10.1080/14780887.2020.1780357.
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). Ao longo da análise, especialmente entre as etapas da codificação focalizada e da codificação teórica, o referencial teórico-metodológico do MTOD foi emergindo naturalmente. Assim, foi possível identificar que o tema investigado (raciocínio clínico) refletia a estrutura do MTOD – referencial teórico-metodológico que também foi construído indutivamente a partir da análise dos fenômenos da prática. Como discutido abaixo, consideramos que esse é um dos achados desta pesquisa.

A Tabela 2 exemplifica o processo de análise de dados.

Tabela 2
Exemplo do processo de análise de dados.

Confiabilidade

A confiabilidade foi abordada por meio da aplicação rigorosa das diretrizes da Teoria Fundamentada nos Dados construtivista, da realização de múltiplas entrevistas e da verificação, pelas pesquisadoras dos roteiros das entrevistas; transcrições; códigos, categorias e subcategorias geradas. As pesquisadoras também realizaram diversas reuniões para discutir a análise até atingir um consenso. As participantes recrutadas para amostragem teórica/entrevista em grupo também forneceram feedback sobre a análise. Elas revisaram os resultados provisórios da pesquisa ao longo de duas semanas e expressaram suas ideias sobre o conteúdo, definições e precisão das categorias e subcategorias durante a entrevista em grupo. Esse processo agregou confiabilidade à análise, pois as participantes sugeriram mudanças que permitiram o aprofundamento da teoria emergente.

Conflito de interesse

As participantes e quase todas as autoras possuem formação no MTOD. Isso precisa ser explicitado, pois é do interesse de todas as envolvidas que o MTOD ganhe mais visibilidade e evidências científicas acerca de seu uso na prática da terapia ocupacional.

Possível viés

Para evitar viés, a equipe de pesquisa buscou seguir rigorosamente as diretrizes da Teoria Fundamentada nos Dados, bem como manter uma postura de incentivo à reflexividade, como um processo contínuo de exame de nossos conhecimentos anteriores e experiências (Stanley & Nayar, 2023Stanley, M., & Nayar, S. (2023). Tenets of qualitative research deepening understandings. In S. Nayar & M. Stanley (Eds.), Qualitative research methodologies for occupational science and occupational therapy (pp. 12-29). New York: Routledge Taylor & Francis Group.). As oportunidades de reflexividade aconteceram regularmente por meio do diário reflexivo e das reuniões da equipe de pesquisa. Além disso, uma das autoras não possui formação no MTOD e não é brasileira. Seu questionamento sobre nossas descobertas ampliou as oportunidades de reflexão para ampliar as discussões sobre viés.

Resultados

Dez terapeutas ocupacionais que utilizavam o MTOD como principal referencial teórico-metodológico em sua prática profissional participaram deste estudo. O tempo de experiência prática das participantes variou de 13 a 50 anos (média: 27,5; desvio padrão: 12). Elas possuíam formação no MTOD de 6 a 39 anos (média de 21,0). Todas atuavam em consultórios particulares, em diversas áreas (saúde mental, reabilitação física e atendimento domiciliar), com crianças, adultos, adolescentes e pessoas idosas. Elas também tinham experiência anterior considerável em serviços públicos. Quatro participantes também eram professoras do curso de especialização clínica no MTOD.

Duas categorias principais emergiram da análise dos dados: (1) Os processos de raciocínio do MTOD e (2) Empregando o pensamento ético-estético, associativo e dinâmico (Figura 1). Trechos das entrevistas foram utilizados para ilustrar os resultados.

Figura 1
Categorias e subcategorias.

Categoria 1: Os processos de raciocínio do MTOD

O raciocínio clínico dos participantes foi estruturado em torno de três processos propostos no MTOD: (1) construção do diagnóstico situacional, (2) estabelecimento e manejo da relação triádica e (3) avaliação dialógica do processo terapêutico/trilhas associativas. As participantes indicaram que, apesar de diversos conhecimentos teóricos informarem seu raciocínio clínico, o MTOD se destacou como o principal referencial teórico-metodológico que o sustenta.

A partir do momento em que concluí minha formação no MTOD, os conceitos e a estrutura do MTOD são o que utilizo o tempo todo. Às vezes utilizo alguns recursos de estimulação sensorial para, por exemplo, melhorar a alimentação de uma criança, ou recursos de comunicação alternativa para estabelecer comunicação com a criança e para que ela também possa estabelecê-la com outras pessoas. Mas uso essas teorias com alguns pacientes quando acho que eles precisam. Não são teorias que utilizo o tempo todo. (Flora).

Construção do diagnóstico situacional

As participantes destacaram a construção do diagnóstico situacional como o principal processo do MTOD que sustenta o seu raciocínio clínico: “A base de todo o meu raciocínio é o diagnóstico situacional”. (Lílian).

As participantes descreveram como empregam o pensamento investigativo para construir o diagnóstico situacional. Destacaram-se dois processos, a coleta de informações (de diversas fontes) e as observações feitas ao longo do processo terapêutico. A construção do diagnóstico situacional auxiliou as participantes a compreenderem a situação da pessoa como um todo, situando as repercussões do problema em suas atividades cotidianas e relações interpessoais: “Parto da observação para identificar como essa criança está fazendo as coisas, como ela reage, se ela reage. Isso vai começar a me trazer informações” (Flora); “O diagnóstico situacional que faço está impregnado de informações que abrangem um espectro enorme de campos, desde a extensão do pé da criança até a criança na escola, todo o dia a dia da criança” (Olívia); “É entender, compreender a situação. Para fazer um bom diagnóstico situacional daquele momento.” (Violeta).

As informações que compõem o diagnóstico situacional não são apenas racionais ou cognitivas, mas também corporificadas, baseadas em sentimentos, afetos e intuição.

É difícil colocar em palavras. Ontem conduzi uma sessão online com uma criança de cinco anos com Síndrome de Down. A mãe sempre fica com ele porque ele precisa de ajuda. Ontem, por causa de reformas na casa, estava tudo fora do lugar. Então, no meio da nossa sessão, ele trocou de roupa. Ele pegou algumas roupas no armário, tirou as roupas e jogou-as no chão. E a mãe dele não disse nada. Quando a sessão acabou, eu disse: “Meu Deus!”. Isso estava me dando angústia! Como fui afetada por aquela situação! Quando trago isso para o campo das minhas ideias, já estou entendendo cognitivamente o processo. Vai para o diagnóstico situacional: 'Tem uma dinâmica nessa família, que não estabelece limites, que tudo pode ser feito!' A partir do que senti, procuro construir significado (Lílian).

As participantes compartilharam como o diagnóstico situacional não é algo fixo ou definitivo, mas que vai sendo reformulado iterativamente ao longo das sessões à medida que novas informações surgem: “Primeiro, esboço um primeiro rascunho do que penso. E vou para as próximas sessões com esse raciocínio. Novas informações virão para compor meu diagnóstico. A todo momento esse diagnóstico está sendo reformulado.” (Íris).

Estabelecimento e manejo da relação triádica

Muitas participantes descreveram como pensavam sobre os movimentos dinâmicos da relação triádica (sujeito-alvo, terapeuta ocupacional e atividades) como o cerne do processo terapêutico. Elas descreveram a constante tomada de decisões em relação ao estabelecimento e manejo dessa relação para facilitar a realização das atividades: “Eu me concentro na relação triádica e no raciocínio que está envolvido. No começo estou mais preocupada em estabelecer essa relação, atenta aos movimentos que acontecem, ao que vai mudando à medida que coloco a pessoa em atividade” (Carina); “Vejo claramente a relação triádica estabelecida. Há sempre muito movimento, que flui o tempo todo.” (Sol).

Muitas participantes descreveram como as decisões para manejar a relação triádica foram baseadas no diagnóstico situacional e na singularidade da relação. Suas ações, como indicar e ensinar atividades, foram discutidas como apoiando a pessoa, por exemplo, para aprender habilidades, descobrir novos desejos, explorar formas de fazer e se relacionar, ser mais ativa ou visível em sua vida/mundo social: “Quando eu indico atividades, faço alguma intervenção, digo 'vai por aqui e não por ali', tudo isso está respaldado na relação triádica, no processo e na história que tenho com a pessoa.” (Violeta).

Uma criança que tinha diagnóstico clínico de autismo. Mas seu diagnóstico situacional, além dos sintomas autistas, ele tinha outras necessidades. Ofereci alguns materiais de pintura e ele não sabia pintar. Primeiro, ele olhou para o lápis e fez apenas uma linha, explorando o objeto. Começamos com apenas uma cor, experimentando. Depois de algumas sessões, misturei as cores dos lápis e ele gostou. Para mim essas ações educativas, essas ampliações, são muito importantes. [...] Aos poucos ele foi descobrindo que gostava de pintar desenhos detalhados. Em casa, seus pais ampliavam o que fazíamos nas sessões. Hoje, quando há exposições na escola, seus desenhos estão sempre em destaque. Ele se tornou alguém reconhecido por uma atividade que faz bem (Flora).

As participantes destacaram como o que é corporificado, sentido e intuído por elas se sobrepõe ao que é racional ou puramente cognitivo e informa seu raciocínio nos atendimentos. Esses aspectos foram discutidos como ligados às particularidades da relação triádica. Por exemplo, foi descrito como um engajamento relacional, um investimento afetivo, acreditar na melhoria do outro: “Tem a ver com o meu desejo de melhoria da pessoa. Você gerencia esse carinho, essa proximidade com o outro.” (Íris).

Entendo que tudo isso tem a ver com a relação, com um sentimento, com uma atitude que não pode ser transferida para outros lugares ou para outras relações. É muito específico e está relacionado com a forma como somos afetadas pelo que a pessoa nos traz. Isso não tem nada a ver com cognição. Filtramos algo para poder responder ou agir terapeuticamente. Não somos apenas nós. Pertence a essa relação triádica específica (Violeta).

Avaliação dialógica do processo terapêutico/trilhas associativas

As participantes falaram sobre a avaliação dialógica como um momento em que elas, em parceria com o sujeito-alvo (e às vezes com a família), constroem significados sobre o processo terapêutico.

Pelo menos uma vez por semestre tenho uma sessão para conversar sobre o que trabalhamos durante o processo terapêutico. É uma forma de os sujeitos (e às vezes convidamos as suas famílias) se apropriarem do processo. É um momento de reflexão, de conversa, para identificar qual caminho estamos construindo. O que avançamos ou não? (Olívia).

Nessa avaliação dialógica, as experts discutiram a construção do pensamento associativo (trilhas). Elas descreveram a integração do que foi vivenciado/feito/sentido durante o processo terapêutico com a vida mais ampla da pessoa.

A trilha associativa é uma forma de construir narrativa. Quando você propõe: ‘Olha, aqui, a partir dessas atividades que a gente fez, vamos tentar agrupá-las? Vamos pensar no que estávamos vivendo aqui?'. E é uma construção narrativa que nunca traz apenas os elementos da relação triádica. Sempre traz elementos da vida e da história da pessoa (Maia).

Categoria 2: Empregando o pensamento ético-estético, associativo e dinâmico

Ao longo do processo terapêutico, as experts também descreveram o emprego de três tipos de pensamento apoiados na estrutura do MTOD: ético-estético, associativo e dinâmico.

Pensamento ético-estético

As participantes falaram sobre como a atenção às dimensões ético-estéticas esteve sempre presente em seu raciocínio clínico, descrevendo-a como: “sempre presente [...], faz parte do MTOD”. (Olívia); “presente o tempo todo.” (Flora).

O pensamento ético-estético foi descrito de diversas maneiras como: construído com cada pessoa, a partir da situação que ela vive, focando na singularidade da pessoa e abrangendo seus desejos e necessidades: “A ética-estética da relação terapêutica é algo que não é transferido de um para outro. É por isso que se separa da questão moral. O que é ético-estético se define na singularidade de cada relação.” (Olívia); “Meu raciocínio clínico sempre foi construir o que era importante para ela. O ético-estético está nessa relação triádica.” (Sofia).

Para cada pessoa é individual. É impossível ter uma receita do tipo ‘vou fazer isso porque ele tem essa idade e tem esse diagnóstico clínico’. É construído dependendo da situação que cada cliente está vivendo (Flora).

O pensamento ético-estético das terapeutas afastou-se das ideias prontas, dos pré-julgamentos e dos preconceitos, e do que é exclusivamente teórico: "O que é protocolar, moral ou pré-estabelecido numa relação, na ciência, no conhecimento, na vida, isso não faz parte do meu pensamento.” (Rosa); “O que tem que ficar de fora é a valoração normativa, moral, daquilo que a pessoa está vivenciando.” (Violeta).

Pensamento associativo

As experts descreveram as formas como faziam associações relacionadas a: (1) observações sobre as particularidades dos sujeitos-alvo (ou seja, como eles se comportam, o que compõe seu cotidiano, como se relacionam com objetos e pessoas), (2) informações coletadas (ou seja, o que os sujeitos dizem sobre si mesmos, o que outras pessoas relevantes dizem sobre eles), (3) os eventos ao longo do processo terapêutico e (4) os sentimentos corporificados que vivenciaram ao longo dos atendimentos: “Associamos o que vimos com o que ouvimos, com o que já vivemos com a pessoa. Meu raciocínio clínico também tem essa característica associativa.” (Lilian).

Associando sempre uma palavra a uma ação, uma atividade a uma forma de fazer, com a participação do sujeito-alvo. Isso nunca para. Não dá lugar só à palavra, ou só à ação, ou só à atividade, ou só ao sujeito, ou só a mim. Mas está sempre considerando tudo isso junto (Rosa).

As associações foram construídas não apenas a partir de informações racionais e cognitivas, mas também a partir do sentimento, do afeto e da intuição, que emergem à medida que a relação se desenvolve: “A associação é mais livre. Talvez mais emocional, intuitiva, sem essa cognição prévia [...] mais ligada às sensações, aos sentimentos, do que à racionalidade.” (Íris).

'Por que é que quando ela repete, repete, isso me dá uma sensação de irritabilidade?' Acho que essa informação é muito importante [...] quanto mais coisas a gente vive, mais as associações se expandem, maior a chance de ter uma coisa a ver com a outra. Quanto mais vivemos, mais vivenciamos, mais faço associações (Íris).

As participantes destacaram a importância da memória para fazer associações. Elas descreveram a lembrança de observações, informações, experiências e informações corporificadas, e o uso disso para fazer associações sobre o que é semelhante ou diferente como base para a ação: “Essa informação que fica unida, que está associada, me ajuda porque eu associei antes, acrescentei antes, vi o que é parecido e o que é diferente, e aí também me ajudou a agir.” (Íris); “A gente constrói o diagnóstico situacional e ele fica guardado em algum lugar [...] utilizo esses registros sempre que necessário.” (Lílian).

Pensamento dinâmico

Ao mesmo tempo em que as participantes empregaram o pensamento ético-estético e associativo, também descreveram o uso do pensamento dinâmico. Elas discutiram como os três se interligam, de forma complexa, ao longo de toda a prática. Elas salientaram que os processos e conceitos do MTOD são dinâmicos e fluidos, em vez de lineares e estáticos: “Absolutamente dinâmicos. Não existe um momento fixo onde um processo começa e o outro termina.” (Rosa); “A construção do diagnóstico situacional, identificando as necessidades do sujeito, manejando a dinâmica da relação triádica e alcançando as trilhas associativas. Você não pode separar esses processos.” (Flora).

A relação triádica não é linear. A relação triádica pode começar já durante a construção do diagnóstico situacional. Acho também que o diagnóstico situacional é uma fotografia inicial, é a nossa avaliação inicial, mas fazemos isso ao longo de todo o processo terapêutico (Olívia).

Na Figura 2 apresentamos uma representação do raciocínio clínico de terapeutas ocupacionais experts que utilizam o MTOD mostrando como os três processos do MTOD estão presentes de forma dinâmica e fundamentados nos pensamentos ético-estético associativo e dinâmico, buscando ampliar os espaços de saúde no cotidiano visando favorecer a inserção social.

Figura 2
Representação dos processos de raciocínio clínico de terapeutas ocupacionais experts que utilizam o Método da Terapia Ocupacional Dinâmica.

Discussão

Nossa pesquisa gera evidências sobre como o MTOD informa o raciocínio clínico, mostrando como terapeutas experts descrevem seu raciocínio usando uma linguagem amplamente fundamentada no referencial conceitual-metodológico do MTOD. Esses resultados podem ser compreendidos na medida em que o próprio desenvolvimento do MTOD ocorreu a partir da conceituação dos fenômenos da prática (Marcolino et al., 2020Marcolino, T. Q., Benetton, J., Cestari, L. M. Q., Mello, A. C. C., & Araujo, A. S. (2020). Dialogues with Benetton and Latour: possibilities for an understanding of social insertion. British Journal of Occupational Therapy, 28(4), 1322-1334. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoARF2032.
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). Assim, podemos considerar nossos dados robustos quanto à viabilidade dessa linguagem para descrever e organizar o raciocínio clínico das participantes – o MTOD foi construído justamente para isso. Considerando que as teorias e os modelos de prática permanecem implícitos nos processos de raciocínio clínico (Reagon, 2012Reagon, C. (2012). Using occupational therapy theory within evidence-based practice. In G. Fish & A. Boniface (Eds.), Using occupational therapy theory in practice (pp. 155-164). Hoboken: John Wiley & Sons.; Thompson, 2012Thompson, B. (2012). Abductive reasoning and case formulation in complex case. In L. Robertson (Ed.). Clinical reasoning in occupational therapy: controversies in practice (pp. 15-30). Hoboken: Wiley-Blackwell.), o MTOD auxilia profissionais a tornarem a teoria mais explícita, pois os conceitos do MTOD são operacionais, foram construídos para apoiar o pensar e o agir (Marcolino et al., 2021Marcolino, T. Q., Benetton, J., Ferrari, S. M. L., Mastropietro, A. P., & Bertolozzi, R. C. (2021). O cotidiano como um conceito instrumental para intervenções em terapia ocupacional. In Anais do VI Seminário Nacional de Pesquisa em Terapia Ocupacional – SNPTO (pp. 347-348). Brasília: SNPTO. Recuperado em 15 de agosto de 2024, de http://reneto.org.br/wp-content/uploads/2021/09/Anais-VI-SNPTO-Edicao-Final-3.pdf
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). Nossos resultados indicam ainda que a utilização do MTOD permite a inclusão de vários elementos necessários à intervenção, favorecendo uma abordagem centrada na singularidade da pessoa e no contexto situado, afastando-se do risco de reduzir as complexidades da prática (Fish & Boniface, 2012Fish, G., & Boniface, A. (2012). Reconfiguring professional thinking and conduct: a challenge for occupational therapists in practice. In G. Fish & A. Boniface (Eds.), Using occupational therapy theory in practice (pp. 9-20). Hoboken: John Wiley & Sons.).

A literatura aborda o papel central das pessoas assistidas por terapeutas ocupacionais, destacando a importância de respeitar seus valores, perspectivas, habilidades e experiências (Mattingly & Fleming, 1994Mattingly, C., & Fleming, M. H. (1994). Clinical reasoning: forms of inquiry in a therapeutic process. Philadelphia: F. A. Davis.; Araujo et al., 2022Araujo, A. S., Kinsella, E. A., Thomas, A., Gomes, L. D., & Marcolino, T. Q. (2022). Clinical reasoning in occupational therapy practice: A scoping review of qualitative and conceptual peer-reviewed literature. The American Journal of Occupational Therapy, 76(3), 7603205070. http://dx.doi.org/10.5014/ajot.2022.048074.
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; Restall & Egan, 2021Restall, G. J., & Egan, M. Y. (2021). Collaborative relationship-focused occupational therapy: evolving lexicon and practice. Canadian Journal of Occupational Therapy, 88(3), 220-230. http://dx.doi.org/10.1177/0008417421102288.
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; Unsworth, 2004Unsworth, C. (2004). Clinical reasoning: how do pragmatic reasoning, worldview and client-centredness fit? British Journal of Occupational Therapy, 67(1), 10-19. http://dx.doi.org/10.1177/030802260406700103.
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). Nossos resultados demonstram que, no raciocínio das experts, o sujeito-alvo permanece no centro quando descrevem o pensamento ético-estético desvinculado da valoração moral da experiência de uma pessoa. Para Benetton (1994)Benetton, M. J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Faculdade de Ciências Médicas, Universidade de Campinas, Campinas., dada a complexidade da prática, muitas vezes é difícil identificar de forma objetiva e antecipada o que pode causar danos ao sujeito-alvo. Ela propõe que as decisões éticas sejam tomadas de forma singular e em parceria com o sujeito-alvo. São as necessidades e desejos do sujeito-alvo que precisam ser consideradas, pois as decisões precisam ter um propósito que também seja estético. Considerando as proposições de Wittgenstein (Benetton, 1994Benetton, M. J. (1994). A terapia ocupacional como instrumento nas ações de saúde mental (Tese de doutorado). Faculdade de Ciências Médicas, Universidade de Campinas, Campinas.), esta é uma estética que permite identificar a beleza pelo que funciona na vida, distanciando-a, assim, de um padrão estético normativo. O pensamento ético-estético parece relacionar-se mais com o que aponta Rogers (1983, pRogers, J. C. (1983). Eleanor clarke slagle lectureship—1983; clinical reasoning: the ethics, science, and art. The American Journal of Occupational Therapy, 37(9), 601-616. http://dx.doi.org/10.5014/ajot.37.9.601.
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. 602), que a terapia ocupacional “[...] deve ser o mais congruente possível com o conceito de 'boa vida' do paciente”, como uma ética prática devido ao seu foco na individualização (Mattingly & Fleming, 1994Mattingly, C., & Fleming, M. H. (1994). Clinical reasoning: forms of inquiry in a therapeutic process. Philadelphia: F. A. Davis.).

A terapia ocupacional centrada na pessoa não se volta apenas para a singularidade. A terapia ocupacional pode ser caracterizada como uma prática voltada para a resolução de problemas, consciente de que soluções práticas e valiosas serão mais facilmente encontradas se houver um processo de tomada de decisão compartilhada (Mattingly & Fleming, 1994Mattingly, C., & Fleming, M. H. (1994). Clinical reasoning: forms of inquiry in a therapeutic process. Philadelphia: F. A. Davis.). De acordo com Thomas et al. (2020), aThomas, A., Kuper, A., Chin-Yee, B., & Park, M. (2020). What is “shared” in shared decision-making? Philosophical perspectives, epistemic justice, and implications for health professions education. Journal of Evaluation in Clinical Practice, 26(2), 409-418. http://dx.doi.org/10.1111/jep.13370.
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tomada de decisão compartilhada reconhece o lugar central do paciente no processo de tomada de decisão, dando atenção explícita ao papel que os pacientes desempenham e espera-se que desempenhem num processo dialógico de co-construção de significado. Em nossos resultados, o compromisso das terapeutas com a participação explícita da pessoa pode ser observado nas decisões compartilhadas que residem no envolvimento na relação triádica e no processo de construção de sentidos. As participantes destacaram como o envolvimento no diálogo através de atividades permite que o sujeito-alvo se aproprie do processo, reconheça habilidades e limites para se tornar alguém a ser reconhecido, e decida ações futuras. Kinsella (2012)Kinsella, E. A. (2012). Practitioner reflection and judgment as phronesis: a continuum of reflection and considerations for phronetic judgment. In: E. A. Kinsella & A. Pitman (Eds.), Phronesis as professional knowledge (pp. 35-52). Boston: Sense Publishers. chama isso de reflexividade: momentos de negociação social de significados, questionamentos, conexão com outros por meio do diálogo, busca de construção de novos conhecimentos e desconstrução de perspectivas diversas.

Para um processo dialógico, as participantes explicaram que seu raciocínio clínico reside no pensamento associativo. Eles também explicaram o pensamento associativo como um processo altamente corporificado e centrado no fazer. Todos os inputs sensoriais e emocionais são ativados - associam o que viram, ouviram e sentiram - caracterizando-o como um processo mais emocional e intuitivo do que puramente cognitivo, embora isso implique em explicitar esses fenômenos para analisá-los criticamente. É possível relacionar estes resultados com teorias de sistema dual, que descrevem dois sistemas diferentes que os humanos utilizam para raciocinar e tomar decisões (Frankish, 2010Frankish, K. (2010). Dual-process and dual-system theories of reasoning. Philosophy Compass, 5(10), 914-926. http://dx.doi.org/10.1111/j.1747-9991.2010.00330.x.
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). O Sistema 1 é evolutivamente mais antigo, não consciente, rápido, intuitivo, associativo e contextualizado e o Sistema 2, evolutivamente mais recente, consciente, lento, analítico, reflexivo, abstrato e descontextualizado (Frankish, 2010Frankish, K. (2010). Dual-process and dual-system theories of reasoning. Philosophy Compass, 5(10), 914-926. http://dx.doi.org/10.1111/j.1747-9991.2010.00330.x.
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).

O pensamento associativo (Sistema 1) é essencial para a arte e a criação, incentivando a geração de novas ideias (Sowden et al., 2015Sowden, P. T., Pringle, A., & Gabora, L. (2015). The shifting sands of creative thinking: connections to dual-process theory. Thinking & Reasoning, 21(1), 40-60. http://dx.doi.org/10.1080/13546783.2014.885464.
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). Nossas participantes utilizam o pensamento associativo para encontrar conexões como um processo aberto ao novo, ligando-se a ideias, imagens, situações e elementos inusitados. As associações parecem ser sustentadas pela memória associativa para reter informações de cada caso singular obtidas por meio da percepção e de outras fontes e deixá-las livres para serem associadas a novos eventos, apoiando a construção dialógica de sentido.

Os estudos também destacaram que a criação de novas ideias para tomada de decisão e raciocínio requer o Sistema 1 e refinamento dinâmico, avaliação e seleção de ideias pelo Sistema 2. Eles também discutem a dificuldade de compreensão desse processo dinâmico (Frankish, 2010Frankish, K. (2010). Dual-process and dual-system theories of reasoning. Philosophy Compass, 5(10), 914-926. http://dx.doi.org/10.1111/j.1747-9991.2010.00330.x.
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; Sowden et al., 2015Sowden, P. T., Pringle, A., & Gabora, L. (2015). The shifting sands of creative thinking: connections to dual-process theory. Thinking & Reasoning, 21(1), 40-60. http://dx.doi.org/10.1080/13546783.2014.885464.
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). Nossos resultados caracterizam o pensamento dinâmico, particularmente quando as experts apresentam o raciocínio em ação como fluido, constante e não separado entre os três processos do MTOD, corroborando evidências da dinâmica do raciocínio clínico já relatada em vários estudos (Carrier et al., 2012Carrier, A., Levasseur, M., Bédard, D., & Desrosiers, J. (2012). Clinical reasoning process underlying choice of teaching strategies: A framework to improve occupational therapists’ transfer skill interventions. Australian Occupational Therapy Journal, 59(5), 355-366. http://dx.doi.org/10.1111/j.1440-1630.2012.01017.x.
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; Maruyama et al., 2021Maruyama, S., Sasada, S., Jinbo, Y., & Bontje, P. (2021). A concept analysis of clinical reasoning in occupational therapy. Asian Journal of Occupational Therapy, 17(1), 17-25. http://dx.doi.org/10.11596/asiajot.16.119.
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; Unsworth, 2005Unsworth, C. (2005). Using a head-mounted video camera to explore current conceptualizations of clinical reasoning in occupational therapy. The American Journal of Occupational Therapy, 59(1), 31-40. http://dx.doi.org/10.5014/ajot.59.1.31.
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).

Essa característica de não haver um momento fixo “onde um processo começa e o outro termina” é um dos pontos mais difíceis de compreender na investigação do raciocínio. Kinsella (2012)Kinsella, E. A. (2012). Practitioner reflection and judgment as phronesis: a continuum of reflection and considerations for phronetic judgment. In: E. A. Kinsella & A. Pitman (Eds.), Phronesis as professional knowledge (pp. 35-52). Boston: Sense Publishers. pode nos ajudar a pensar sobre alguns de nossos resultados ao destacar a reflexão como um continuum: reflexão receptiva, intencional, corporificada e reflexividade. Discutimos a presença da reflexividade na resolução compartilhada de problemas e no processo dialógico de construção de sentidos. A reflexão intencional, cognitiva e estruturada, pode ser percebida quando as participantes falam sobre o diagnóstico situacional como um momento de “parar para pensar” sobre todas as informações disponíveis – desde percepções, emoções e outras pessoas relevantes – para compreender a situação que a pessoa está vivenciando dentro de um todo contextual.

O estabelecimento e o manejo da dinâmica da relação triádica envolvem reflexão receptiva e corporificada (Kinsella, 2012Kinsella, E. A. (2012). Practitioner reflection and judgment as phronesis: a continuum of reflection and considerations for phronetic judgment. In: E. A. Kinsella & A. Pitman (Eds.), Phronesis as professional knowledge (pp. 35-52). Boston: Sense Publishers.). A reflexão receptiva envolve intuição, insight, emoção e possibilidade de surpresa, necessitando da presença do terapeuta ocupacional pronto para agir em busca de conexão com o outro. Por outro lado, a reflexão corporificada é revelada na ação, no comportamento corporal do profissional e na corporeidade na conversa com a situação (Kinsella, 2012Kinsella, E. A. (2012). Practitioner reflection and judgment as phronesis: a continuum of reflection and considerations for phronetic judgment. In: E. A. Kinsella & A. Pitman (Eds.), Phronesis as professional knowledge (pp. 35-52). Boston: Sense Publishers.). Envolve aspectos cognitivo-corporificados, como dizem as experts ao abordarem os movimentos de ação e reação dos termos da relação triádica, como um fluxo. A interligação entre percepções corporificadas, emoções e o desdobramento de ações na relação triádica oferece evidências de como o conceito de corporeidade, uma perspectiva emergente na literatura (Araujo et al., 2022Araujo, A. S., Kinsella, E. A., Thomas, A., Gomes, L. D., & Marcolino, T. Q. (2022). Clinical reasoning in occupational therapy practice: A scoping review of qualitative and conceptual peer-reviewed literature. The American Journal of Occupational Therapy, 76(3), 7603205070. http://dx.doi.org/10.5014/ajot.2022.048074.
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; Unsworth & Baker, 2016Unsworth, C. A., & Baker, A. (2016). A systematic review of professional reasoning literature in occupational therapy. British Journal of Occupational Therapy, 79(1), 5-16. http://dx.doi.org/10.1177/0308022615599994.
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), pode informar o raciocínio clínico (Arntzen, 2018Arntzen, C. (2018). An embodied and intersubjective practice of occupational therapy. OTJR (Thorofare, N.J.), 38(3), 173-180. http://dx.doi.org/10.1177/1539449217727470.
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; Kinsella, 2018Kinsella, E. A. (2018). Embodied reasoning in professional practice. In B. Schell & J. Schell (Eds.), Clinical and professional reasoning in occupational therapy (2nd ed., pp. 105-126). Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins.).

Considerando os processos interconectados e dinâmicos do MTOD, nos arriscamos a associá-los à teoria da Mente de Três Trilhas de Mattingly & Fleming (1994)Mattingly, C., & Fleming, M. H. (1994). Clinical reasoning: forms of inquiry in a therapeutic process. Philadelphia: F. A. Davis., uma teoria bem aceita na área que descreve o raciocínio processual, interativo e condicional como tipos gerais de raciocínio empregados por terapeutas ocupacionais. Podemos discutir nossos resultados identificando outras três “trilhas” que estruturam o raciocínio clínico informado pelo MTOD: a) construção do diagnóstico situacional, b) estabelecimento e manejo da relação triádica e c) avaliação dialógica do processo terapêutico/trilhas associativas. Outra possibilidade é considerá-los como uma nova forma de operacionalizar a teoria da Mente de Três Trilhas de Mattingly & Fleming (1994)Mattingly, C., & Fleming, M. H. (1994). Clinical reasoning: forms of inquiry in a therapeutic process. Philadelphia: F. A. Davis.. De qualquer forma, são processos práticos que as experts utilizaram para estruturar suas percepções, ações e pensamentos ao longo do processo terapêutico.

Com base em nossos resultados em discussão com a literatura, pretendemos ampliar as discussões do raciocínio clínico na área. Propomos que o raciocínio clínico em terapia ocupacional pode ser informado e moldado por diferentes modelos e referenciais teórico-metodológicos, e que um referencial conceitual-metodológico frutífero no contexto brasileiro e potencialmente além é o MTOD. Propomos que o raciocínio clínico em terapia ocupacional possa ser compreendido como um processo dinâmico e situado de perceber-agir-pensar, composto por diferentes tipos de reflexão e centrado na tomada de decisão compartilhada.

Limitações e Pesquisas Futuras

Dado que as participantes eram experts em utilizar o MTOD como principal referencial conceitual-metodológico em sua prática profissional, os resultados destacam processos de raciocínio de terapeutas ocupacionais que utilizam esse estilo específico. Os resultados têm potencial para serem praticamente transferíveis para grupos em outros estágios do desenvolvimento profissional que utilizam o MTOD e podem oferecer novas formas de pensar para aqueles que utilizam outros tipos de raciocínio clínico. Recomendamos estudos adicionais sobre como outras teorias, referenciais ou modelos de prática sustentam o raciocínio clínico de terapeutas ocupacionais. Recomendam-se estudos sobre esse tema com profissionais em outras etapas do desenvolvimento profissional.

Conclusões

Esta pesquisa demonstra como o raciocínio clínico em terapia ocupacional é altamente moldado pelo referencial conceitual-metodológico empregado na prática profissional. Apresentamos uma Teoria Fundamentada sobre o raciocínio clínico de terapeutas ocupacionais experts que utilizam o MTOD, mostrando como o seu raciocínio é estruturado dinamicamente em torno de três processos conceituais e metodológicos e como três tipos específicos de pensamento são empregados. As participantes puderam afirmar explicitamente como o MTOD fornece ferramentas conceituais e metodológicas capazes de fornecer um caminho dinâmico para estruturar o seu pensamento e a sua prática; fundamentar o emprego, ao longo do processo terapêutico, de três tipos de pensamento; favorecer uma prática centrada na singularidade e no contexto situado da pessoa, respeitando seus valores, perspectivas, conhecimentos, habilidades e experiências.

O MTOD foi utilizado para apoiar práticas criativas e inovadoras, centradas nas necessidades do sujeito-alvo em seu mundo vivido, procurando intervenções no “ponto ideal”, satisfazendo as necessidades de todas as partes interessadas. As terapeutas ocupacionais refletem sobre a sua experiência através da análise crítica do conhecimento e da corporificação. Seu raciocínio clínico destaca uma forma adequada de aplicação da “arte” da terapia ocupacional, baseada em evidências geradas de modo situado, buscando aumentar a sintonia e a confiança na individualização do processo terapêutico ocupacional. Com base nesses resultados, é possível compreender o raciocínio clínico do terapeuta ocupacional como um processo dinâmico e situado de perceber-agir-pensar composto por diferentes tipos de reflexão e centrado na tomada de decisão compartilhada.

  • 1
    Disponibilidade dos dados: Os dados brutos que dão suporte aos resultados e conclusões deste estudo permanecem confidenciais e não serão compartilhados por razões éticas. Todas as informações necessárias que dão suporte aos resultados apresentados são fornecidas neste manuscrito.
  • Como citar:

    Araujo, A. S., Kinsella, E. A., Mello, A. C. C., & Marcolino, T. Q. (2024). Raciocínio clínico de terapeutas ocupacionais brasileiras experts: um estudo da teoria fundamentada em dados construtivista. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 32, e3750. https://doi.org/10.1590/2526-8910.ctoAO288837501
  • Fonte de financiamento

    Este estudo foi finaciado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) (Financiamento 2021/14571-6) e pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001 (Financiamento 88881.362267/2019-01).

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Editado por

Editor de seção

Prof. Dr. Daniel Marinho Cezar da Cruz

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    27 Jan 2024
  • Revisado
    14 Fev 2024
  • Aceito
    18 Jun 2024
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