Resumo
Introdução
No Brasil, as mulheres quilombolas foram e são essenciais para a sobrevivência dos quilombos. Elas são as responsáveis por transmitir as tradições, preservar os recursos naturais e cuidar do lar e da terra. Assim, os marcadores históricos de organização social e familiar orientam a produção e reprodução de seus papéis ocupacionais nesse contexto.
Objetivos
Neste artigo, refletimos sobre a insurgência das mulheres quilombolas a partir da peculiaridade da sororidade, dororidade e disparidade de gênero nas ocupações de mulheres quilombolas.
Método
Esta reflexão resultou de estudo conduzido com nove mulheres residentes em um quilombo localizado no interior do estado da Bahia, Brasil, através de entrevistas, escrevivências e uso do método Photovoice.
Resultados
O estudo evidenciou que as ocupações realizadas pelas participantes são atravessadas pelo gênero e condicionadas pelo racismo e sexismo, além dos modos peculiares de funcionamento interno do grupo e das formas tradicionais de vida no quilombo.
Conclusões
As mulheres assumem a maior parte do gerenciamento do quilombo da Pinguela através do senso de coletividade e união, que permite que elas articulem uma contínua rede de solidariedade e apoio. No Brasil, os estudos sobre o trabalho de terapeutas ocupacionais com mulheres quilombolas são escassos; portanto, sugerimos que, em sua prática profissional, terapeutas ocupacionais assumam um compromisso ético-político e adotem perspectivas críticas articuladas a partir do feminismo afro-latino-americano para desenvolver práticas coletivas como forma de intervenção.
Palavras-chave:
Quilombolas; Quilombolas/Mulheres; Feminismo; Terapia Ocupacional; Atividades Cotidianas; Escrita
Abstract
Introduction
In Brazil, the quilombola women have been essential for the survival of the quilombo communities. They are responsible for transmitting traditions, preserving natural resources, and caring for the home and the land. Thus, the historical markers of social and family organization guide the production and reproduction of their occupational roles in this context.
Objectives
In this article, we reflect on the insurgence of quilombola women from the peculiarity of sisterhood, dororidade, and gender disparity in these women’s occupations.
Method
This reflection resulted from a study conducted with nine women residing in a quilombo community located in the interior of the state of Bahia, Brazil, through interviews, escrevivências (live writing) and Photovoice.
Results
The study evidenced that occupations performed by the participants are crossed by gender and conditioned by racism and sexism, in addition to the peculiar modes of the internal functioning of the group and the traditional ways of life in this community.
Conclusions
Women assume most of the management of the Pinguela quilombo community through the sense of collectivity and union that allows them to combine a continuous network of solidarity and support. In Brazil, studies on the work of occupational therapists with quilombola women are scarce; therefore, we suggest that occupational therapists, in their professional practice, assume an ethical-political commitment and adopt critical perspectives from Afro-Latin-American feminism to develop collective practices as a form of intervention.
Keywords:
Quilombolas; Quilombolas/Women; Feminism; Occupational Therapy; Activities of Daily Living; Writing
Introdução
A Terra é povoada, mas também sou terra.
A gente também é terra de povoar.
(Povoada, 2021, canção de Sued Nunes)
A população negra africana escravizada criou formas de resistência contra as opressões impostas pela escravidão. Assim, com o desejo de conquistar a liberdade, homens, mulheres e crianças negras se refugiavam nos quilombos (Gomes, 2015Gomes, F. S. (2015). Mocambos e quilombos: uma história do campesinato negro no Brasil. São Paulo: Claro Enigma.), palavra de origem da língua banto que significa acampamento, casa sagrada onde acontecia o ritual de iniciação (Nascimento, 2016Nascimento, B. (2016). O conceito de quilombo e a resistência cultural negra. In A. Ratts (Ed.), Eu sou Atlântica sobre a trajetória da vida de Beatriz Nascimento (pp. 117-121). São Paulo: Imprensa Oficial/Kuanza.). Conforme Nascimento (2018, pNascimento, A. (2018). O Quilombismo. Rio de Janeiro: Ipeafro.. 289-290), no Brasil, a compreensão do quilombo contemporâneo não remete apenas à escravidão: “quilombo quer dizer reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência, comunhão existencial. Repetimos que a sociedade quilombola representa uma etapa no progresso humano e sócio-político em termos de igualitarismo econômico”.
As mulheres assumem a maior parte da administração dos quilombos brasileiros, pois desde o período colonial elas desenvolveram várias estratégias de preservação da cultura afro-brasileira, proteção da natureza, bem como lutam em defesa dos direitos, do território e das políticas públicas (Dealdina, 2020Dealdina, S. S. (2020). Mulheres quilombolas: defendendo o território, combatendo o racismo e despatriarcalizando a política. In S. S. Dealdina (Org.), Mulheres quilombolas: territórios de existências negras femininas (pp. 25-44). São Paulo: Sueli Carneiro: Jandaíra.). Elas também se posicionam contra o racismo, sexismo, violência, violação de direitos e tentativas de expropriação do território. Da mesma forma, são elas as responsáveis por transmitir os valores sociais, políticos, religiosos, culturais, medicinais e educacionais do quilombo entre as gerações (Dias, 2020Dias, V. F. (2020). Eu Kalunga: pluralismo jurídico e proteção da identidade étnica e cultural quilombola. In S. S. Dealdina (Org.), Mulheres quilombolas: territórios de existências negras femininas (pp. 75-85). São Paulo: Sueli Carneiro: Jandaíra.; Silva, 2020Silva, G. M. (2020). Mulheres quilombolas: afirmando o território na luta, resistência e insurgência negra feminina. In S. S. Dealdina (Org.), Mulheres quilombolas: territórios de existências negras femininas (pp. 51-58). São Paulo: Sueli Carneiro: Jandaíra.). Cotidianamente, as mulheres quilombolas lidam com opressões específicas como:
A sobrecarga do trabalho para o sustento, do trabalho na terra e do cuidado do lar e da coletividade; o engajamento na luta pelo território e pela sobrevivência; o enfrentamento da violência de gênero, doméstica e dos conflitos territoriais. São mulheres que sempre trabalharam no campo e em outras atividades para garantir seu sustento e da família. Mulheres que cuidam dos afazeres do lar e, no entanto, mesmo de forma indireta, não deixam de ser lideranças e trabalhar pela proteção da comunidade, agindo pela defesa e promoção de outras mulheres — ações que caracterizariam como feministas, um termo, aliás, estranho para muitas comunidades (Sousa et al., 2020, pSousa, A. C., Lima, D. G., & Sousa, M. A. (2020). Da comunidade à universidade: trajetórias de luta e resistência de mulheres quilombolas universitárias no Tocantins. In S. S. Dealdina (Org.), Mulheres quilombolas: territórios de existências negras femininas (pp. 87-96). São Paulo: Sueli Carneiro: Jandaíra.. 90).
A união, o diálogo e o senso de coletividade demandam que as mulheres quilombolas articulem uma rede de suporte e apoio. Dessa forma, enquanto as lideranças femininas estão na linha de frente das pautas em prol dos direitos da comunidade, um grupo de mulheres permanece no quilombo cuidando das crianças e dos idosos, do plantio e das tarefas a serem desempenhadas (Sousa et al., 2020Sousa, A. C., Lima, D. G., & Sousa, M. A. (2020). Da comunidade à universidade: trajetórias de luta e resistência de mulheres quilombolas universitárias no Tocantins. In S. S. Dealdina (Org.), Mulheres quilombolas: territórios de existências negras femininas (pp. 87-96). São Paulo: Sueli Carneiro: Jandaíra.). No entanto, com frequência, as lutas dessas mulheres são vistas como apolíticas e, mesmo no quilombo, elas são vítimas de violência, racismo e sexismo (Dealdina, 2020Dealdina, S. S. (2020). Mulheres quilombolas: defendendo o território, combatendo o racismo e despatriarcalizando a política. In S. S. Dealdina (Org.), Mulheres quilombolas: territórios de existências negras femininas (pp. 25-44). São Paulo: Sueli Carneiro: Jandaíra.).
Ainda que a sociedade brasileira tenha se alterado um pouco, nos dias atuais, as características femininas e as habilidades sociais, intelectuais e morais das mulheres quilombolas permanecem estigmatizadas. Esse estigma confirma o quanto o racismo desumaniza e inferioriza as mulheres negras, pois elas estão situadas na base da pirâmide social, ao contrário da população branca, que está no topo da pirâmide (Carneiro, 2003Carneiro, S. (2003). Mulheres em Movimento. Estudos Avançados, 17(49), 117-133.).
De acordo com Carneiro (2011, pCarneiro, S. (2011). Enegrecer o Feminismo: a situação da mulher negra na américa latina a partir de uma perspectiva de gênero. Recuperado em 13 de fevereiro de 2022, de http://www.campogrande.ms.gov.br/semu/downloads/artigo-enegrecer-o-feminismo-a-situacao-da-mulher-negra-na-america-latina-a-partir-de-uma-perspectiva-de-genero/.
http://www.campogrande.ms.gov.br/semu/do...
. 2)
[...] um feminismo negro, construído no contexto de sociedades multirraciais, pluriculturais e racistas — como são as sociedades latino-americanas — tem como principal eixo articulador o racismo e seu impacto sobre as relações de gênero, uma vez que ele determina a própria hierarquia de gênero em nossas sociedades.
Desse modo, nos espaços de poder político, educacional e econômico, a mulher negra segue sendo rejeitada. Cabe reconhecer, entretanto, que quando esses lugares são ocupados pela mulher branca, isso se deve às reivindicações do movimento feminista branco. No entanto, nesse feminismo, as pautas das mulheres negras são desvalorizadas e negligenciadas (Bambirra & Lisboa, 2019Bambirra, N. V., & Lisboa, T. K. (2019). “Enegrecendo o feminismo”: a opção descolonial e a interseccionalidade traçando outros horizontes teóricos. Revista Ártemis, 27(1), 270-284.). Vale, portanto, articular leituras da realidade contemporânea a partir do feminismo afro-latino-americano, que considera as mulheres negras, quilombolas, latinas e indígenas como protagonistas da própria história, e que visibiliza perspectivas insurgentes que denunciam racismo, patriarcado, colonialismo, capitalismo e sexismo (Gerlach & Magalhães, 2020Gerlach, A., & Magalhães, L. (2020). Intersectionality: feminist theorizing in the pursuit of justice and equity. In S. D. Taff (Ed.), Philosophy and occupational therapy: informing education, research, and practice (pp. 209-220). Thorofare: Slack, Incorporated.; Gonzalez, 1988aGonzalez, L. (1988a). A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, 92(93), 69-82.).
O racismo, as violências e as violações de direitos afetam o desempenho ocupacional das mulheres não brancas. Terapeutas e cientistas ocupacionais têm discutido a relação entre a terapia e a ciência ocupacional e a população negra (Beagan & Etowa, 2009Beagan, B. L., & Etowa, J. (2009). The impact of everyday racism on the occupations of African Canadian women. Canadian Journal of Occupational Therapy, 76(4), 285-293.; Correia et al., 2018Correia, R. L., Costa, S. L., & Akerman, M. (2018). Processo de inclusão e participação Quilombola nas políticas urbanas da cidade. Revisbrato, 2(4), 827-839.; Costa, 2012Costa, S. L. (2012). Terapia Ocupacional Social: dilemas e possibilidades da atuação junto a Povos e Comunidades Tradicionais. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, 20(1), 43-54.; Costa et al., 2020Costa, M. C., Santos, A. C., Souza, J. V., Costa, J. C., Costa, R. M. P., & Freire, S. R. (2020). Laboratório ISẸ́: construções de estratégias para restituição histórica e existencial de pessoas negras. Revisbrato, 4(5), 734-741.; Farias et al., 2018Farias, M. N., Leite Junior, J. D., & Costa, I. R. B. B. (2018). Terapia Ocupacional e população negra: possibilidades para o enfrentamento do racismo e desigualdade racial. Revisbrato, 2(1), 228-243.; Farias & Simaan, 2020Farias, L., & Simaan, J. (2020). Introduction to the anti-racism virtual issue of the Journal of Occupational Science. Journal of Occupational Science, 27(4), 454-459.; Johnson & Lavalley, 2021Johnson, K. R., & Lavalley, R. (2021). From racialized thinkpieces toward anti-racist praxis in our science, education, and practice. Journal of Occupational Science, 28(3), 404-409.; Jones et al., 2020Jones, D. R., Nicolaids, C., Ellwood, L. J., Garcia, A., Johnson, K. R., Lopez, K., & Waisman, T. C. (2020). An expert discussion on structural racism in autism research and practice. Autism in Adulthood, 2(4), 273-281.; Pereira et al., 2021, 2022Pereira, A. S., Lima, M. A. C., Lacerda, R. S., Teixeira-Machado, L., Oliveira, H. F., & Hernandes, R. S. (2021). Sistema prisional e saúde mental: atuação da terapia ocupacional com mulheres autodeclaradas negras e pardas vítimas do racismo. Revista Eletrônica Acervo Saúde, 13(3), 1-8.; Santos & Ricci, 2020Santos, G.C., & Ricci, E.C. (2020). Saúde mental da população negra: relato de uma relação terapêutica entre sujeitos marcados pelo racismo. Revista de Psicologia da UNESP, 19(Esp), 220-241.). Essas autoras e autores salientam que as demandas da população negra devem ser priorizadas, assim como os saberes produzidos pelos povos não brancos precisam ser valorizados. Além disso, apontam que, nas intervenções, terapeutas e cientistas ocupacionais devem adotar o referencial das ocupações coletivas em substituição às práticas individualizantes (Allegretti, 2020Allegretti, M. M. (2020). Práticas de Terapia Ocupacional: uma investigação a partir do conceito de ocupação coletiva (Tese de doutorado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos. ; Costa et al., 2020Costa, M. C., Santos, A. C., Souza, J. V., Costa, J. C., Costa, R. M. P., & Freire, S. R. (2020). Laboratório ISẸ́: construções de estratégias para restituição histórica e existencial de pessoas negras. Revisbrato, 4(5), 734-741.; Correia et al., 2018Correia, R. L., Costa, S. L., & Akerman, M. (2018). Processo de inclusão e participação Quilombola nas políticas urbanas da cidade. Revisbrato, 2(4), 827-839.).
Este artigo tem como objetivo refletir sobre a insurgência das mulheres quilombolas, a partir da peculiaridade da sororidade, dororidade e disparidade de gênero nas ocupações de mulheres quilombolas. Esta discussão faz parte de um projeto mais amplo (Pereira, 2022Pereira, A. S. (2022). Racismo e justiça ocupacional: construção de identidade e engajamento ocupacional de mulheres negras quilombolas (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.) desenvolvido junto a uma comunidade quilombola que investigou o impacto do racismo nas ocupações cotidianas de mulheres quilombolas.
Na primeira parte, as concepções, os percursos metodológicos e as participantes do trabalho original são brevemente apresentadas. A segunda parte descreve as metodologias das escrevivências e do método Photovoice para a produção coletiva das narrativas. Na terceira parte, apresentamos o cotidiano das mulheres quilombolas e suas práticas de resistência. Na quarta parte, tentamos aprofundar essa discussão, trazendo para o debate os conceitos do feminismo afro-latino-americano e a insurgência das mulheres quilombolas. Na quinta parte, a ocupação feminina no quilombo é trabalhada a partir de uma investigação sobre sororidade, dororidade e ocupação. Ao final, fazemos uma reflexão sobre as eventuais implicações das práticas profissionais articuladas a partir de compromissos ético-políticos fundamentadas em perspectivas críticas alinhadas ao feminismo afro-latino-americano e em práticas coletivas, como formas transformadoras dos modelos e perspectivas da intervenção promovida por terapeutas ocupacionais.
As Mulheres do Quilombo da Pinguela: Concepção e Desenho do Estudo
Quem falou que eu ando só?
Tenho em mim mais de muitos.
Sou uma, mas não sou só.
(Povoada, 2021, canção de Sued Nunes)
Este artigo é decorrente de pesquisa acadêmica, desenvolvida pela primeira autora, Amanda Pereira, que objetivou compreender como o racismo interfere na construção da identidade e no engajamento ocupacional de mulheres negras quilombolas. A autora conheceu o quilombo da Pinguela através do website da Fundação Cultural Palmares. Esse website mencionava que esse quilombo está localizado no município de Amélia Rodrigues, no interior do estado da Bahia. Dessa forma, todas as mulheres residentes no quilombo da Pinguela foram convidadas a participar de uma reunião com o objetivo de apresentar-lhes a pesquisa. A amostra do estudo é composta por mulheres negras quilombolas maiores de 18 anos, residentes no quilombo da Pinguela e que aceitaram participar da pesquisa. Não foram incluídas as mulheres residentes no quilombo que não se consideram negras e/ou quilombolas e que se recusaram a assinar o Termo de Consentimento Livre Esclarecido.
Participaram do estudo nove mulheres negras residentes do quilombo da Pinguela. Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa, combinada com metodologia visual. As escrevivências e fotografias permitiram conhecer a história dessas mulheres, suas visões de mundo, o funcionamento interno do grupo e a história e cultura do quilombo. A análise temática do material, inspirada em Braun & Clarke (2006)Braun, V., & Clarke, V. (2006). Using thematic analysis in psychology. Qualitative Research in Psychology, 3(2), 77-101., resultou na categoria: A insurgência das mulheres quilombolas: sororidade, dororidade e disparidade de gênero nas ocupações.
A pesquisa foi iniciada mediante a aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, sob parecer nº 4.556.191, conforme a resolução ética n° 510/16 do Conselho Nacional de Saúde. Todas as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A principal questão ética desta pesquisa refere-se ao anonimato das participantes, solicitado e pactuado com elas. Todas as participantes receberam pseudônimos, escolhidos por elas.
Apresentação das Participantes
Eu vim da mãe África,
eu vim do quilombo.
Já fizeram tanto pra eu tombar,
mas eu não tombo.
(Quilombo, 2021, canção de Samba de Dandara)
Nesta seção, caracterizamos as nove mulheres quilombolas que participaram do estudo (Tabela 1). Elas possuem idades entre 22 e 56 anos e a religião predominante é a evangélica. Sete mulheres são mães e têm de 1 a 3 filhas e filhos. Apenas duas mulheres não são mães. Oito mulheres se autodeclaram negras, e uma mulher se apresentou como morena.
Imagem, Reflexão e Histórias: a Escrevivência e o Photovoice na Construção de Narrativas Coletivas
Cantei, trabalhei, labutei nesse terreiro.
(Quilombo, 2021, canção de Samba de Dandara)
A metodologia das escrevivências e do Photovoice foi adotada para construir narrativas que expressassem as ocupações desempenhadas pelas participantes do estudo. O conceito de escrevivência, criado por Conceição Evaristo (2017)Evaristo, C. (2017). Becos da Memória. Rio de Janeiro: Pallas. a partir de sua história de vida, convida as mulheres negras a escreverem a própria história. Essa visão rompe com o paradigma hegemônico, branco, colonial, cisgênero, heterossexual e rico, que reconhece apenas a escrita dos homens (Evaristo, 2017Evaristo, C. (2017). Becos da Memória. Rio de Janeiro: Pallas.). Conforme essa autora, o contexto social, cultural, histórico, político, econômico e de gênero desconsidera a escrita de mulheres negras, mas essas discriminações não devem impedir as mulheres de escreverem: “(...) ao escrever a si próprio, seu gesto se amplia e, sem sair de si, colhe vidas, histórias do entorno. Por isso é uma escrita que não se esgota em si, mas, aprofunda, amplia, abarca a história de uma coletividade” (Evaristo, 2020, pEvaristo, C. (2020). A Escrevivência e seus subtextos. In C. L. Duarte & I. R. Nunes (Orgs.), Escrevivência: a escrita de nós: reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo (pp. 26-46). Rio de Janeiro: Mina Comunicação e Arte.. 35). Escreviver é criar narrativas a partir das experiências pessoais, mas que também expressa a história de um grupo de mulheres negras, pois a relação entre a mulher negra e o coletivo é indissociável, uma vez que a mulher negra e o coletivo caminham juntos, partilhando os mesmos marcadores sociais e/ou as mesmas vivências, ainda que em posições distintas (Evaristo, 2017Evaristo, C. (2017). Becos da Memória. Rio de Janeiro: Pallas.).
Outro recurso de trabalho utilizado foi o Photovoice, metodologia visual criada nos Estados Unidos na década de 90 pelas professoras Wang & Burris (1977)Wang, C., & Burris, M. (1977). Photovoice: Concept, methodology, and use for participatory needs assessment. Health Education & Behavior, 24(3), 369-387.. O método é baseado nas teorias sobre educação para a consciência crítica, na teoria feminista e na participação comunitária e possibilita que os sujeitos e os coletivos, que são estigmatizados na sociedade, sejam protagonistas da sua história, registrem e compartilhem a realidade dos seus cotidianos através da fotografia (Berinstein & Magalhães, 2009Berinstein, S., & Magalhães, L. (2009). A study of the essence of play experience to children living in Zanzibar, Tanzania. Occupational Therapy International, 16(2), 89-106.; Mamede & Esser, 2015Mamede, F. V., & Esser, M. A. M. da S. (2015). Photovoice: uma proposta para pesquisa qualitativa. In M. R. Lacerda & R. G. S. Costenaro (Orgs.), Metodologias de pesquisa para enfermagem e saúde: da teoria à prática. Porto Alegre: Moriá.; Touso et al., 2017Touso, M. F. S., Mainegra, A. B., Martins, C. H. G., & Figueiredo, G. L. A. (2017). Photovoice como modo de escuta: subsídios para a promoção da equidade. Ciência & Saúde Coletiva, 22(12), 3883-3892.; Wang & Burris, 1977Wang, C., & Burris, M. (1977). Photovoice: Concept, methodology, and use for participatory needs assessment. Health Education & Behavior, 24(3), 369-387.). As imagens ultrapassam as barreiras linguísticas, culturais e da alfabetização, bem como capturam as emoções, significados e percepções que o sujeito tem da sua realidade (Bertagnoni & Galheigo, 2021Bertagnoni, L., & Galheigo, S. M. (2021). Retratos, relatos e impressões de crianças moradoras da periferia de São Paulo sobre a cidade. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 29, 1-25.)
Wang & Burris (1997, p. 370, tradução nossa) afirmam que:
O Photovoice tem três objetivos principais: (1) capacitar as pessoas a registrar e refletir os pontos fortes e as preocupações de sua comunidade, (2) promover diálogo crítico e conhecimento sobre importantes questões da comunidade através de grandes grupos e pequenas discussões de fotografias e (3) para alcançar formuladores de políticas).
Assim, a criação dos espaços de discussão possibilita que as imagens sejam analisadas a partir das narrativas do sujeito sobre a fotografia capturada, assim como as reflexões realizadas com o coletivo permitem que as demandas da comunidade sejam debatidas nas esferas públicas (Bertagnoni & Galheigo, 2021Bertagnoni, L., & Galheigo, S. M. (2021). Retratos, relatos e impressões de crianças moradoras da periferia de São Paulo sobre a cidade. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 29, 1-25.; Touso et al., 2017Touso, M. F. S., Mainegra, A. B., Martins, C. H. G., & Figueiredo, G. L. A. (2017). Photovoice como modo de escuta: subsídios para a promoção da equidade. Ciência & Saúde Coletiva, 22(12), 3883-3892.). No caso deste projeto, durante a geração de dados, as participantes foram proativas, participativas e assumiram o protagonismo dos relatos sobre a própria vida, o que permitiu que narrativas coletivas fossem construídas com essas mulheres, a partir de suas vivências, razão pela qual as histórias são contadas em primeira pessoa. Dessa forma, buscamos honrar suas narrativas, respeitando os limites e o ritmo de cada participante, assim como tentamos evitar avaliar ou fazer julgamentos sobre suas opiniões e seus modos de vida.
As escrevivências e fotografias nos trouxeram uma ideia muito detalhada das ocupações individuais e coletivas das participantes realizadas no quilombo da Pinguela. O cuidado com a terra, com os filhos e com a casa, a sobrecarga do trabalho doméstico, o funcionamento interno do grupo e as formas de viver no quilombo foram temas recorrentes nos relatos dessas mulheres. Além disso, as narrativas evidenciaram os modos de gerenciamento das atividades no quilombo, examinadas aqui a partir das narrativas e imagens produzidas pelas participantes.
O Cotidiano de Mulheres Quilombolas e as Práticas de Resistência
Eu tenho a cor do meu povo,
a cor da minha gente
(Bluesman, 2018, canção de Baco Exu do Blues)
As ocupações realizadas pelas participantes são atravessadas pela disparidade de gênero, pois as mulheres dividem o tempo entre a realização das atividades domésticas, a criação dos filhos e família, e o trabalho na roça, todas de sua exclusiva responsabilidade, com raríssimas exceções.
Meu dia a dia é o trabalho de casa, cuidar de criança, cuidar da família, cuidar da casa [...] Eu tenho uma roça, estávamos vendendo aipim, a gente para tirar o aipim saia daqui de madrugada umas cinco horas da manhã (Eunice).
O meu dia a dia é assim eu acordo pela manhã, vou trabalhar na roça, eu planto aipim, amendoins, milho e mandioca2 2 A mandioca e o aipim são vegetais usados para fazer farinha, as mulheres diferenciam os vegetais através do formato das folhas e pelo caule das plantas, pois têm formatos diferentes. . Da roça cuido da menina, ajudo ela a fazer atividade, faço as coisas do dia a dia normal, também (Fernanda).
Nota-se a sobrecarga do trabalho doméstico e a dificuldade de conciliar esse trabalho com outras atividades:
[...] Esse trabalhozinho que a gente não cansa de fazer, porque é todos os dias [...] tem que arrancar mandioca, voltar para casa, fazer comida, cuidar da casa, porque nem assim você diz: não, hoje eu vou cuidar só da mandioca ou hoje eu vou cuidar só da casa, mas não é só da mandioca, é da casa, sai da casa vai para comida, da comida volta para mandioca para raspar (Eunice).
Para as participantes, a sobrecarga do trabalho influencia o autocuidado, pois fica explícito nas escrevivências que elas disponibilizam a maior parte do seu tempo para o cuidado da casa, dos filhos, dos maridos e da roça, deixando pouco ou nenhum tempo para o autocuidado.
[...] Só não me cuido muito, porque não tenho condições de estar toda arrumada, porque tenho que ir para roça, mas eu cuido de mim sim. Agora nessa pandemia que a gente se descuidou mais um pouco, porque não pode estar em lugar nenhum (Marina).
[...] A situação, também, não pede para gente fazer, não dá para eu fazer [...] você para e olha o dinheiro que você ganha ou você come, ou você arruma o cabelo, ou faz as unhas (Eunice).
A gente tem momentos para tudo, mas não temos momentos para se cuidar, porque você acorda de manhã e pensa que tem que lavar roupa, tem que limpar a casa e fazer comida, porque o marido vai chegar e você nunca tira um tempo para você e quando você vai tirar um tempo para você não tem nem mais graça, você já está cansada (Jose).
Apesar da sobrecarga do trabalho, algumas mulheres revelaram que insistem em destinar um tempo do seu dia para se cuidar.
Eu gosto de tirar os meus cochilos, eu gosto de fazer minhas unhas, minha sobrancelha, meu cabelo, e não é só porque moramos aqui que vamos sair toda maltrapilho e acabada, porque não é assim não, eu gosto de me cuidar (Bianca).
Tem momentos, tem final de semana que eu cuido de mim, eu dou alisante no meu cabelo [...] faço minhas unhas e pinto, faço as sobrancelhas, final de semana eu cuido de mim (Marina).
Silva et al. (2009, pSilva, I. J., Oliveira, M. F. V., Silva, S. E. D., Polaro, S. H. I., Radünz, V., Santos, E. K. A., & Santana, M. E. (2009). Cuidado, autocuidado e cuidado de si: uma compreensão paradigmática para o cuidado na enfermagem. Revista da Escola de Enfermagem da USP,43(3), 697-703.. 699) definem o autocuidado como: “uma ação desenvolvida em situações concretas da vida, e que o indivíduo dirige para si mesmo ou para regular os fatores que afetam o seu próprio desenvolvimento, atividades em benefício da vida, saúde e bem-estar”. Ressaltamos que o autocuidado é um foco de intervenção da terapia ocupacional quando há fatores internos e externos que impedem a realização das ocupações. Os momentos de cuidado de si elevam a autoestima, envolvem os cuidados com a aparência e higiene pessoal, melhoram a saúde e proporcionam bem-estar (Castanharo & Wolff, 2014Castanharo, R. C. T., & Wolff, L. D. G. (2014). O autocuidado sob a perspectiva da Terapia Ocupacional: análise da produção científica. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, 22(1), 175-186.).
Pode-se considerar que o foco de pesquisa e intervenção de terapeutas ocupacionais - o desempenho humano - sugere que, em diferentes ciclos de vida, os indivíduos apresentam ou desenvolvem a autonomia frente às atividades de vida diária (AVDs), passando a ser dependentes em situações de vulnerabilidade, como de doenças e de exclusão social. Porém esses indivíduos podem ser auxiliados por terapeutas ocupacionais em suas rotinas diárias, utilizando-se de adaptações, modificações, recursos de tecnologia assistiva e/ou reabilitação funcional. Os terapeutas ocupacionais promovem a independência funcional do indivíduo, favorecendo a sua autonomia, assim como a retomada de rotinas (Castanharo & Wolff, 2014, pCastanharo, R. C. T., & Wolff, L. D. G. (2014). O autocuidado sob a perspectiva da Terapia Ocupacional: análise da produção científica. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, 22(1), 175-186.. 184).
As participantes Marina e Bianca revelaram que uma das práticas de autocuidado que realizam com frequência é o alisamento dos fios. Vale refletir, entretanto, que esse é um hábito comum entre a maioria das mulheres negras, porque no Brasil o fenótipo da população negra é inferiorizado, enquanto que o padrão estético da branquitude é considerado superior. Desse modo, para se aproximarem desse padrão imposto na sociedade e para serem aceitas, muitas mulheres realizam vários procedimentos estéticos e cosméticos. Santos (2019, pSantos, F. (2019). Lugares de afeto da mulher afrodescente. In E. M. Lima, F. F. Santos, A. H. Y. Nakashima & L. A. Tedeschi (Orgs.), Ensaios sobre racismos: pensamento de fronteira (pp. 63-69). São Paulo: Balão Editorial.. 67) afirma que:
O padrão de beleza que o Brasil adotou (o europeu: pele branca, cabelo liso e olhos verdes ou azuis) leva as que diferem desta norma a passar anos da vida alisando e clareando cabelos, usando maquiagem de tons mais claros que o da pele, fazendo cirurgia no nariz. Buscando por mudanças momentâneas (alisamentos e maquiagens) ou permanentes (cirurgias) que as façam se aproximar da beleza instituída e assim, quem sabe, podendo encontrar um companheiro digno, um trabalho à altura da capacidade e do conhecimento adquirido com o estudo, de não seguir sendo considerada como um objeto, que pode ser usado e descartado. Sei que a busca por um padrão de beleza inalcançável é comum às mulheres como um todo. Mas para as mulheres afrodescendentes, o objetivo almejado além de ser bem mais difícil de chegar, esbarra na crueldade, uma vez que é impossível se desvestir da própria pele.
Muitas mulheres alisam o cabelo desde criança, mas ao longo do tempo, quando se libertam das imposições da sociedade racista sobre a política do “cabelo perfeito”, começam a se orgulhar dos seus traços fenotípicos, iniciam o processo de transição capilar para assumir o cabelo natural. Assumir o cabelo crespo e/ou cacheado, ou trançar os fios é um ato de coragem, resistência, rebeldia contra o sistema racista, assim como permite uma conexão com a ancestralidade africana, sendo essas atividades objeto de muito interesse em estudos sobre mulheres negras (Gomes, 2002Gomes, N. L. (2002). Educação e identidade negra. Aletria: Revista de Estudos de Literatura, 9(1), 38-47.).
Feminismo Afro-Latino-Americano e a Insurgência das Mulheres Quilombolas: Violação de Direitos e Desigualdade de Gênero nas Ocupações
Não sou livre enquanto alguma mulher não o for,
mesmo que suas correntes sejam
diferentes das minhas.
Audre Lorde
No quilombo da Pinguela, há trabalhos que apenas os homens realizam, como o trabalho de construção civil.
A atividade que os homens realizam e as mulheres não, é fazer casa (Ana Paula).
[...] Tem atividades que só os homens realizam, porque quando vai ter festa mesmo, só os homens montam as barracas, só os homens organizam as coisas e a gente só participa quando é para colocar as coisas de vender (Elaine).
Contudo, enquanto os homens migram para os centros urbanos em busca de melhores condições de trabalho nas indústrias de construção civil, as mulheres permanecem no território educando os filhos e netos, realizando as atividades domésticas, cuidando da família e do coletivo (Sousa et al., 2020Sousa, A. C., Lima, D. G., & Sousa, M. A. (2020). Da comunidade à universidade: trajetórias de luta e resistência de mulheres quilombolas universitárias no Tocantins. In S. S. Dealdina (Org.), Mulheres quilombolas: territórios de existências negras femininas (pp. 87-96). São Paulo: Sueli Carneiro: Jandaíra.). De acordo com as participantes, as mulheres mais velhas e as adolescentes realizam as mesmas atividades; no entanto, as mais novas auxiliam apenas no período das férias escolares.
Não tem divisão, todas as mulheres de todas as idades realizam as mesmas atividades (Bianca).
A roça só quem cuida são as mulheres mais velhas, são bem poucas jovens que cuidam, até mesmo, porque não está estudando, porque quando está estudando não vai é só as mães que faz (Eunice).
As narrativas indicam que, antigamente, as mulheres quilombolas não conheciam os seus direitos, eram vítimas de violência doméstica e familiar e muitas acreditavam que o papel da mulher se resumia ao cuidado do lar. Ao longo dos anos, elas passaram a conhecer seus direitos:
Depois que conseguimos a certidão vieram muitas pessoas aqui para dar curso para a gente, para a gente saber quais os direitos das mulheres negras, tudo sobre empoderamento, que também muitas pessoas não conheciam, sobre os nossos direitos [...] eles passaram para as mulheres aqui da comunidade que a gente pode ser o que a gente quiser, porque tem pessoas aqui que não tem esse entendimento todo sobre as coisas. Tem mulheres que sofrem agressões verbais e isso também foi passado, muitas pessoas até sofreram isso e depois disso aí a gente passou a amadurecer e a ver que a gente pode, porque muitas de nós pensávamos que o direito da mulher era só ficar em casa dentro de quatro paredes e acabou, mas depois desses cursos que eles foram trazendo, a gente foi amadurecendo cada vez mais, porque algumas que estudaram tem um entendimento, mas algumas que não estudaram não tem esse entendimento (Elaine).
[...] Tem mulheres assim que não gosta de se abrir para outra e contar sua vida pessoal o que se passa em casa com o seu marido e as palestrantes falaram que de manhã mesmo como uma mora ao lado da outra perguntar para sua vizinha como ela passou a noite, se está sentindo o algo, o que está acontecendo. Depois disso muitas coisas mudaram entre as mulheres aqui, mudou até o jeito de falar umas com as outras, porque antigamente não era unido assim [...] às vezes, a gente olha assim e pensa porque ela está triste, mas a gente não sabe o que está acontecendo e tem muita gente que não gosta de ser abrir e também fica com medo (Jose).
Marina relata que a primeira presidente da associação do quilombo da Pinguela foi uma mulher, que assumiu esse posto pois são as mulheres que gerenciam as atividades do quilombo:
Eu não queria ser uma das fundadoras porque no início quando a gente foi reconhecido, o advogado falou que tinha que ter a associação e que a associação era o porte da comunidade e alguém tinha que ser responsável, tinha que ter uma fundadora disso, aí me disseram que tinha que ser eu, não podia ser outra [...] eu acho que tinha que ser eu, por ser mulher, porque os homens que tem aqui eles saem para trabalhar, a gente mulher sempre está em casa, sempre a gente está ali naquela luta do dia a dia. E eu porque por não ter muito estudo até, mas eu tenho habilidade nas coisas, sei chegar nos lugares e se eu não entender eu pergunto para que, o porquê, e tem aquela coisa que eu sempre fui assim, apesar de não ter muito estudo, mas eu sempre corri atrás das coisas [...] aqui nesse cargo eu nunca sofri discriminação, por ser mulher e negra. Ainda não, que eu percebesse não, só se já teve e eu passei de relance e não percebi (Marina).
Nas escrevivências, as participantes relataram que antes acreditavam que o papel da mulher se resumia às atividades domésticas e cuidado dos filhos e cônjuge. Por isso elas desempenhavam ocupações consideradas “femininas”, como o cuidado da casa e do esposo, educação dos filhos, por exemplo. Além disso, algumas mulheres do quilombo da Pinguela referiram ter sofrido violência doméstica e familiar. Após fazerem um curso sobre os direitos da mulher, elas começaram a compreender que a mulher pode ocupar outros espaços, bem como podem desempenhar as ocupações que desejarem.
Empoderar-se é o ato de tomar poder sobre si. O empoderamento feminino passa por vários caminhos: na sociedade, pelo conhecimento dos direitos da mulher, por sua inclusão social, instrução, profissionalização, consciência de cidadania e, também, por uma transformação no conceito (Azevedo & Sousa, 2019, pAzevedo, M. A., & Sousa, L. D. (2019). Empoderamento feminino: conquistas e desafios. SAPIENS - Revista de divulgação científica, 1(2), 1-12. . 9).
Os processos de conscientização possibilitam que as mulheres criem formas de resistência contra as opressões machistas e patriarcais impostas pela sociedade, lutem por igualdade de gênero e etnia, independência e autonomia. Azevedo & Sousa (2019)Azevedo, M. A., & Sousa, L. D. (2019). Empoderamento feminino: conquistas e desafios. SAPIENS - Revista de divulgação científica, 1(2), 1-12. apontam que “quando uma mulher reivindica seu direito, cobra mudança de postura, conquista mais espaço social, se empodera e emana poder feminino para que outras também assumam uma nova postura que não seja o patriarcalismo” (Azevedo & Sousa, 2019, pAzevedo, M. A., & Sousa, L. D. (2019). Empoderamento feminino: conquistas e desafios. SAPIENS - Revista de divulgação científica, 1(2), 1-12. . 10). As mulheres do quilombo da Pinguela lutam coletivamente em prol da comunidade, pela sua independência e autonomia e pela conquista de direitos. Essas posturas aproximam essas mulheres das feministas afro-latino-americanas.
O feminismo afro-latino-americano advoga que as mulheres negras e indígenas sejam protagonistas da própria história. Bambirra & Lisboa (2019)Bambirra, N. V., & Lisboa, T. K. (2019). “Enegrecendo o feminismo”: a opção descolonial e a interseccionalidade traçando outros horizontes teóricos. Revista Ártemis, 27(1), 270-284. afirmam que, na agenda política do feminismo branco, as discussões étnico-raciais eram inexistentes. A exclusão das mulheres negras, quilombolas, indígenas e latinas do feminismo hegemônico deveu-se ao racismo por omissão, conceito criado por Lélia Gonzalez, pautado na cosmovisão eurocêntrica e neocolonialista da realidade (Gonzalez, 1988aGonzalez, L. (1988a). A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, 92(93), 69-82., 1988bGonzalez, L. (1988b). Por um feminismo afrolatinoamericano. Revista Isis Internacional, 9(1), 133-141.). Dessa forma, essas ativistas incluíram nas pautas do feminismo as discussões das relações étnico-raciais, os estudos sobre o racismo e a urgência de terem acesso às políticas públicas. O feminismo afro-latino-americano é situado no Sul Global e possui uma perspectiva decolonial, antirracista e anti-héterocispatriarcal. Vale ressaltar que não existe feminismo se não houver estratégias de enfrentamento do racismo, patriarcado, capitalismo, sexismo e classismo (Cardoso, 2014Cardoso, C. P. (2014). Amefricanizando o feminismo: o pensamento de Lélia Gonzalez. Revista Estudos Feministas, 22(3), 965-986.; Gonzalez, 1988aGonzalez, L. (1988a). A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, 92(93), 69-82.).
Lélia Gonzalez criou o conceito de Amefricanidade em razão dos processos de violação de direitos e segregação sofridos pelas populações negra e indígena, localizadas nos países da América Latina, Caribe e Brasil. O termo permite que as barreiras territoriais, de linguagem e ideológicas sejam ultrapassadas. Para essa autora, todos os brasileiros são latinoamefricanos, e a negação da herança afro-ameríndia é uma manifestação do racismo. O conceito propõe, portanto, a proximidade com a África, bem como a valorização da própria cultura e ancestralidade (Gonzalez, 1984Gonzalez, L. (1984). Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, 2(1), 223-244., 1988aGonzalez, L. (1988a). A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, 92(93), 69-82.).
Para além do seu caráter puramente geográfico, a categoria de Amefricanidade incorpora todo um processo histórico de intensa dinâmica cultural (adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas formas) que é afrocentrada (Gonzalez, 1988a, pGonzalez, L. (1988a). A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, 92(93), 69-82.. 76-77).
Amefricanidade se refere à diáspora, à resistência e aos movimentos de luta dos povos negros e indígenas - sujeitos subalternizados e estigmatizados da sociedade. As mulheres amefricanas possuem as marcas da exploração racial, econômica e sexual, sendo que a consciência da opressão ocorre primeiro em razão da raça, pois o racismo e o sexismo são prejudiciais às mulheres (Cardoso, 2014Cardoso, C. P. (2014). Amefricanizando o feminismo: o pensamento de Lélia Gonzalez. Revista Estudos Feministas, 22(3), 965-986.; Gonzalez, 1988aGonzalez, L. (1988a). A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, 92(93), 69-82.). Na relação entre as mulheres do quilombo da Pinguela, o senso de coletividade é evidenciado, pois elas criaram uma rede de apoio que possibilita momentos de trocas de afeto, acolhimento das necessidades e emoções, quando criam estratégias coletivas para lutarem em prol dos direitos, proteção e preservação dos saberes afro-brasileiros. Além disso, elas continuamente se posicionam contra o racismo, o sexismo e as desigualdades sociais. Entendendo que as discriminações sociais e o racismo afetam o desempenho ocupacional, a saúde e o bem-estar, reiteramos a necessidade dessa temática ser abordada na terapia e ciência ocupacional. A importância do feminismo afro-latino-americano para a terapia ocupacional da América Latina e para a ciência ocupacional é reconhecer as desigualdades de gênero, classe social e raça que acarretam efeitos importantes nas ocupações femininas. Por isso, na sua prática profissional, é necessário que as terapeutas ocupacionais, a partir de cada lócus de enunciação, assumam compromissos ético-políticos e adotem uma perspectiva crítica e contra-hegemônica com ênfase nas práticas coletivas como forma de intervenção.
Ocupando Coletivamente o Quilombo: Uma Investigação sobre Sororidade, Dororidade e Ocupação
Tenho orgulho de onde eu vim,
da roça que eu vivi
e de quem ela me tornou.
Marianna Moreno
No quilombo da Pinguela, a maioria das ocupações realizadas pelas mulheres são coletivas, como o ato de raspar mandioca e manusear a casa de farinha, por exemplo. As ocupações individuais são pouco priorizadas, pois o senso de coletividade é valorizado no quilombo. “Não é raro ouvir de lideranças quilombolas a expressão “nosso povo”, demonstrando assim que a luta quilombola é um projeto de emancipação coletiva, imensurável e também ancestral” (Andrade & Fernandes, 2020, pAndrade, S. M. S., & Fernandes, A. C. A. (2020). “Eu sempre fui atrevida”: alguns movimentos de uma filha de Xangô na luta quilombola. In S. S. Dealdina (Org.), Mulheres quilombolas: territórios de existências negras femininas (pp. 109-127). São Paulo: Sueli Carneiro: Jandaíra.. 125). Ramugondo & Kronenberg (2015, pRamugondo, E. I., & Kronenberg, F. (2015). Explaining collective occupations from a human relations perspective: bridging the individual-collective dichotomy. Journal of Occupational Science, 22(1), 3-16.. 10, tradução nossa) enfatizam a importância de pensar os fenômenos coletivos na construção de conhecimento sobre as ocupações. Para esses autores, ocupações coletivas são:
Ocupações exercidas por indivíduos, grupos, comunidades e/ou sociedades em contextos cotidianos; estes podem refletir uma intenção de coesão ou disjunção social e/ou avanço ou aversão a um bem comum. As ocupações coletivas podem ter consequências que beneficiam algumas populações e não outras.
A relação entre as mulheres quilombolas envolve muita empatia, união, respeito e solidariedade.
Minha relação com as mulheres daqui é boa, não tenho o que dizer porque a gente se dá bem graças a Deus, principalmente, quando a gente arranca mandioca e todo mundo vai raspar [...] ou quando a gente ia para igreja, aí vamos todas juntas ou então eu vou à casa de uma, a gente senta para conversar, não estamos toda hora na casa da outra, mas tem momentos que a gente se reúne. Então, estamos sempre em comunicação, não fica um dia sem ninguém falar com ninguém (Bianca).
A convivência com as mulheres aqui do quilombo é boa, mas precisa a gente melhorar mais e se juntar mais [...] porque se a gente se juntar mais a gente cresce mais. Então, a gente precisa se achegar mais, somos unidas em certas partes e em certas partes não, porque eu acho assim que a gente deve se juntar mais, ter mais ideias juntas que é para gente expandir [...] Eu acho que só quando tem esses cursos que a gente mais se aproxima ou quando vai raspar mandioca que elas se aproximam mais (Elaine).
Para as mulheres, um dos pontos fortes do quilombo da Pinguela é a sua união, pois a relação entre elas envolve muito respeito e solidariedade. Segundo elas, o ato de raspar a mandioca e o processo de produção da farinha de mandioca são os momentos em que elas estão mais próximas, pois dividem e compartilham as tarefas. É possível perceber que essa rede de suporte e apoio se relaciona com o conceito de sororidade, palavra defendida pelo movimento feminista (Piedade, 2020Piedade, V. (2020). Dororidade. São Paulo: Nós. ). Na visão da sociedade patriarcal, as mulheres devem competir entre si; todavia, grupos feministas sugerem que as mulheres devem ter sororidade, que é empatia e amorosidade, desse modo os julgamentos e a rivalidade feminina são desencorajados (Piedade, 2020Piedade, V. (2020). Dororidade. São Paulo: Nós. ). Entretanto, essa autora alerta que o conceito de sororidade não contempla todas as demandas das mulheres negras, por isso ela cunhou o conceito de dororidade, definido como o fenômeno que “contém as sombras, o vazio, a ausência, a fala silenciada, a dor causada pelo Racismo. E essa dor é Preta” (Piedade, 2020, pPiedade, V. (2020). Dororidade. São Paulo: Nós. . 16). A palavra dororidade se origina no prefixo dor, que remete às dores físicas, mentais, emocionais e morais às quais as mulheres negras são submetidas.
Nas fotos referentes a essa categoria, as participantes deixam evidente na sua escrevivência a união das mulheres quilombolas, explicando que, além da sororidade, elas também são unidas pela dororidade. Mariana (Figura 1) revela que as mulheres quilombolas são unidas pelos sofrimentos aos quais são expostas.
Eu estou vestindo uma camisa [...] está escrito Elas por Elas [...] essa frase para mim, representa o que acontece sempre que geralmente somos nós mulheres que sabemos a dor uma da outra, o que passamos no dia a dia, então é nós por nós mesmo (Mariana).
Essa foto para mim (Figura 2), representa a união das mulheres, uma mulher sozinha não consegue raspar tanta mandioca, então uma tem que ajudar outra, tem que compartilhar [...] Só as mulheres raspam, é muito raro um homem raspar. Raspamos a mandioca para fazer a farinha, eu vendo uma parte e também dou um pouco para as mulheres que ajudaram a raspar (Claudia).
Durante o período de colheita da mandioca e aipim, as mulheres do quilombo combinam entre si o dia que desejam ir à roça arrancar os vegetais. No dia seguinte, elas se reúnem para raspar mandioca e em seguida extrair a goma. Por fim, no terceiro dia, vão para a casa de farinha. Elas combinam as tarefas previamente, porque o quilombo da Pinguela só possui uma casa de farinha móvel que já está desgastada, por isso o equipamento não suporta trabalhar muitos dias sem pausa. Além disso, apenas duas mulheres sabem manusear esse equipamento, as outras mulheres apenas auxiliam durante o processo. Então, primeiro elas precisam saber a disponibilidade dessas mulheres e em seguida estabelecem o dia de arrancar e raspar (descascar) o vegetal. Geralmente elas convidam todas as mulheres do quilombo para raspar um dia antes ou no mesmo dia. Quem estiver disponível, ajuda, pois o processo de raspar o vegetal e manusear o equipamento da casa de farinha é uma ocupação coletiva realizada apenas pelas mulheres (Pereira, 2022Pereira, A. S. (2022). Racismo e justiça ocupacional: construção de identidade e engajamento ocupacional de mulheres negras quilombolas (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.).
Na plantação cada um tem a sua roça, só para raspar a mandioca que cada uma ajuda a outra. Para raspar uma avisa a outra e mesmo que não dei tempo avisar no dia, avisa depois ou na hora e quem estiver disponível vem chegando. Nessa parte uma ajuda a outra (Eunice).
A gente raspa mandioca para fazer farinha, aí é uma distração boa para as mulheres, porque só a gente raspa e manuseia a casa de farinha (Jose).
[...] Na parte de raspar os homens não participam, porque não querem e os homens também não participam para fazer a farinha (Fernanda).
Ramugondo & Kronenberg (2015)Ramugondo, E. I., & Kronenberg, F. (2015). Explaining collective occupations from a human relations perspective: bridging the individual-collective dichotomy. Journal of Occupational Science, 22(1), 3-16. apresentam o conceito de coletividade a partir da noção de Ubuntu (eu sou porque nós somos; nós somos porque eu sou), uma orientação ontológica africana que diverge da dicotomia indivíduo-coletivo preconizada pelo paradigma europeu, entendendo que, no contexto africano, a interconexão humana é formada a partir da interação com o outro (Ramugondo & Kronenberg, 2015Ramugondo, E. I., & Kronenberg, F. (2015). Explaining collective occupations from a human relations perspective: bridging the individual-collective dichotomy. Journal of Occupational Science, 22(1), 3-16.). A filosofia Ubuntu baseia-se na perspectiva emancipatória crítica, na ecologia de saberes, e nas epistemologias produzidas no Sul Global. Kronenberg et al. (2015)Kronenberg, F., Kathard, H., Rudman, D. L., & Ramugondo, E. L. (2015). Can post-apartheid South Africa be enabled to humanise and heal itself? South African Journal of Occupational Therapy, 45(1), 20-27. ponderam que o raciocínio profissional da cientista e da terapeuta ocupacional no desenvolvimento de intervenções com coletivos de pessoas, que nas relações de poder não são considerados humanos, o foco não pode recair nas consequências dos problemas, mas sobretudo, é necessário fazer uma análise crítica sobre a origem das desigualdades. Isso também exige que a profissional se comprometa com a transformação e emancipação social. Longe de ser compreendida de uma forma romantizada, a ocupação coletiva, amparada na noção de Ubuntu, pode revelar como as ocupações coletivas se manifestam em um contínuo entre as relações opressivas e as libertadoras. Ramugondo & Kronenberg (2015)Ramugondo, E. I., & Kronenberg, F. (2015). Explaining collective occupations from a human relations perspective: bridging the individual-collective dichotomy. Journal of Occupational Science, 22(1), 3-16. também criticam o entendimento de que as populações sejam subordinadas às perspectivas daqueles que “definem coletivos”, seja para fins de pesquisa, seja na distribuição de recursos e serviços. Ao mesmo tempo, sustentam que terapeutas ocupacionais têm buscado compreender o que está envolvido na concepção e sustentação das comunidades ou da sociedade, à medida que as ocupações são ou não inclusivas. A força política dessa lógica está na superação da dicotomia indivíduo-coletivo, com uma reorientação feita a partir das perspectivas sociais e culturais. Posto isso, as escrevivências produzidas mostram que as ocupações desempenhadas pelas participantes, como o trabalho na roça e o ato de descascar mandioca, possuem um significado simbólico e político fundamental. Todavia, essas ocupações são desvalorizadas e discriminadas pela sociedade, Estado e instituições. Isso impede que as mulheres quilombolas tenham sua importância reconhecida, bem como desempenhem suas ocupações em espaços fora do quilombo, o que pode ser descrito como uma injustiça ocupacional (Pereira, 2022Pereira, A. S. (2022). Racismo e justiça ocupacional: construção de identidade e engajamento ocupacional de mulheres negras quilombolas (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.).
Os conceitos de justiça e injustiça ocupacional se constituem como polos opostos, sendo justiça ocupacional a plena distribuição equitativa de recursos e oportunidades (Emery-Whittington, 2021Emery-Whittington, I. G. (2021). Occupational justice: colonial business as usual? Indigenous observations from Aotearoa New Zealand. Canadian Journal of Occupational Therapy, 88(2), 153-162.; Simaan, 2021Simaan, J. (2021). A critical reflexion on two conceptual tools from a global south perspective. Canadian Journal of Occupational Therapy, 88(2), 108-116.; Pereira, 2022Pereira, A. S. (2022). Racismo e justiça ocupacional: construção de identidade e engajamento ocupacional de mulheres negras quilombolas (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.), enquanto injustiça ocupacional constitui a desigualdade dessa distribuição, privilegiando determinados grupos em detrimento de outros. No caso da população negra, por exemplo, é primordial levar em consideração os direitos que permitem realizar ocupações significativas a partir de um referencial afro-centrado e diaspórico, isso porque essa população lida com demandas específicas (Martins & Magalhães, 2021Martins, S., & Magalhães, L. (2021). Vai arrumar este cabelo, neguinha! Mapeamento corporal narrado por Gabriela, mãe negra. Interface, 25, 1-18.). Desse modo, conforme mostra Pereira (2022)Pereira, A. S. (2022). Racismo e justiça ocupacional: construção de identidade e engajamento ocupacional de mulheres negras quilombolas (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos., ao atuar com as comunidades quilombolas, a terapeuta ocupacional deve considerar os saberes, valores e a cultura afro-brasileira, assim como o senso de coletividade e a relação dos quilombolas com o território deve ser evidenciado, pois esses são elementos centrais de qualquer troca social nos contextos quilombolas.
Nos países colonizados, as mulheres não brancas sofrem até os dias atuais os impactos da colonização, do capitalismo e da globalização. Assim, é necessário resgatar os valores tradicionais ligados às suas experiências, como a cultura e costumes. Do mesmo modo, perspectivas universalistas não devem ser preconizadas, porque não representam todas as mulheres. Portanto, é necessário pensar a partir do lócus da pessoa que enuncia suas particularidades. Sendo assim, o feminismo afro-latino-americano também se baseia na noção de coletividade das vozes insurgentes das mulheres negras e indígenas, assim como na resistência e na estratégia coletiva para enfrentar o racismo, o sexismo e o colonialismo (Gonzalez, 1984Gonzalez, L. (1984). Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, 2(1), 223-244., 1988bGonzalez, L. (1988b). Por um feminismo afrolatinoamericano. Revista Isis Internacional, 9(1), 133-141.). Assim, uma das estratégias preconizadas pelo feminismo afro-latino-americano e africano é sair da perspectiva individualizante, frequentemente enfatizada por perspectivas eurocentradas, radicalizando as ações que valorizam a coletividade (Andrade & Fernandes, 2020Andrade, S. M. S., & Fernandes, A. C. A. (2020). “Eu sempre fui atrevida”: alguns movimentos de uma filha de Xangô na luta quilombola. In S. S. Dealdina (Org.), Mulheres quilombolas: territórios de existências negras femininas (pp. 109-127). São Paulo: Sueli Carneiro: Jandaíra.; Gonzalez, 1988bGonzalez, L. (1988b). Por um feminismo afrolatinoamericano. Revista Isis Internacional, 9(1), 133-141.; Huff et al., 2018Huff, S., Rudman, D. L., Magalhães, L. V., & Lawson, E. (2018). ‘Africana womanism’: implications for transformtive research in ocupational science. Journal of Occupational Science, 25(4), 554-565.).
Considerações Finais
Nós, mulheres quilombolas,
sabemos a dor uma da outra
Mariana, participante
Nosso estudo mostrou que as mulheres assumem a maior parte das ocupações no quilombo da Pinguela, como aquelas realizadas para o sustento das famílias através da agricultura sustentável, principalmente, do cultivo da mandioca, e a organização das atividades na comunidade. O estudo evidenciou que a união entre elas permite a articulação de uma rede de solidariedade e apoio. Embora as mulheres reconheçam o significado do trabalho e do cuidado individual e coletivo dentro do quilombo, as injustiças ocupacionais também atravessam o cotidiano dessa população, marcada pelo racismo, sexismo, colonialismo, desvalorização do trabalho e, por consequência, violação de direitos. Um marco importante na história desse grupo foi ter uma mulher como primeira presidente da associação, escolhida por causa das suas habilidades de liderança e pelo gênero, pois na maior parte do tempo elas estão presentes no quilombo. Entretanto, essa luta não é apenas das mulheres negras, latinas, quilombolas e indígenas, pois refere-se à sociedade em geral. Portanto, é necessário que as mulheres não brancas se comprometam com a justiça ocupacional e lutem coletivamente em prol da cidadania e emancipação social. Assim, é necessário resgatar os valores, cultura e costumes afro-brasileiros, evitando universalismos que não representam todos os grupos étnicos. Entendendo que as ocupações são atravessadas pelas disparidades de gênero, desigualdades sociais e racismo, é necessário que a terapeuta ocupacional considere os marcadores sociais que incidem sobre os corpos das mulheres quilombolas, para que assim elas consigam desempenhar suas ocupações de modo a realizar seu potencial e garantir equidade em suas oportunidades. Vale ressaltar ainda que, no Brasil, estudos sobre as práticas de terapeutas ocupacionais com mulheres quilombolas são escassos; assim, é urgente que, em sua prática profissional, terapeutas ocupacionais assumam compromissos ético-políticos que se fundamentem na perspectiva crítica do feminismo afro-latino-americano, bem como nas perspectivas teórico-metodológicas das práticas coletivas, de modo a construir intervenções capazes de favorecer mudanças sociais.
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1
Pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos, sob parecer nº 4.556.191, conforme a resolução ética n° 510/16 do Conselho Nacional de Saúde. Todas as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A principal questão ética desta pesquisa refere-se ao anonimato das participantes, solicitado e pactuado com elas. Todas as participantes receberam pseudônimos, escolhidos por elas.
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2
A mandioca e o aipim são vegetais usados para fazer farinha, as mulheres diferenciam os vegetais através do formato das folhas e pelo caule das plantas, pois têm formatos diferentes.
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Como citar: Pereira, A. S., Allegretti, M., & Magalhães, L. (2022). “Nós, mulheres quilombolas, sabemos a dor uma da outra”: uma investigação sobre sororidade e ocupação. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 30, e3318. https://doi.org/10.1590/2526-8910.ctoAO254033181
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Fonte de Financiamento
O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
Referências
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Editado por
Editora de seção
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
28 Nov 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
-
Recebido
03 Maio 2022 -
Revisado
12 Maio 2022 -
Revisado
11 Jul 2022 -
Aceito
29 Ago 2022