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Mortalidade por homicídios nas unidades da federação e nos municípios brasileiros de 2005 a 2015: uma análise socioespacial

Homicide mortality in Brazilian states and municipalities from 2005 to 2015: a socio-spatial analysis

Resumo

Introdução:

A violência no Brasil é um problema complexo e multifacetado, afetando diversas regiões e grupos sociais de maneira desigual. Entre os diferentes tipos de violência, os homicídios representam uma das formas mais graves e impactantes, refletindo questões sociais, econômicas e políticas.

Objetivo:

Realizar uma análise socioespacial e temporal da mortalidade por homicídios no Brasil, considerando distribuição territorial, meios de agressão e perfil das vítimas no período de 2005 a 2015. Hipotetiza-se uma disseminação espacial e interiorização dos homicídios no país.

Método:

Estudo ecológico retrospectivo com dados da população brasileira, e homicídios do Sistema de Informações sobre Mortalidade (2005-2015), cujas taxas médias anuais foram padronizadas por município e unidade da federação e plotadas em mapas com uso do sofwtare R.

Resultados:

As taxas padronizadas de homicídios revelam ser maiores entre homens, jovens (15 a 29 anos) e negros (pretos e pardos). Para ambos os sexos, as armas de fogo foram o principal meio de agressão, com mais de 70% dos óbitos. Clusters de municípios acima da média concentram-se nas regiões mais populosas delimitadas, com taxas muito acima do esperado, tais como capitais e suas regiões metropolitanas, e aqueles que compõem a faixa litorânea Leste. Isoladamente, também se destacam municípios de fronteira internacional (especialmente com Paraguai) e regiões da fronteira agrícola amazônica.

Conclusões:

A identificação de perfis predominantes das vítimas e regiões/municípios mais expostos aos homicídios possibilita concentrar estratégias/políticas públicas específicas nessas regiões e grupos populacionais para prevenir o problema.

Palavras-chave:
homicídio; desenvolvimento; território; violência; Brasil

Abstract

Background:

Violence in Brazil is a complex and multifaceted problem, affecting different regions and social groups unequally. Among the various types of violence, homicides represent one of the most serious and impactful forms, reflecting social, economic and political issues.

Objective:

To conduct a socio-spatial and temporal analysis of homicide mortality in Brazil, considering territorial distribution, means of aggression and victims’ profile, between 2005 and 2015. We hypothesize that there is a spatial spread of homicides in the country.

Method:

A retrospective, ecological study with data concerning the Brazilian population, and homicides from the Mortality Information System (2005-2015), whose average annual rates were standardized by municipality and state, and plotted on maps using the R software.

Results:

Standardized homicide rates by sex, age group and race/ethnicity are higher among men, young (15 to 29 years) and Black people (including Black and mixed/pardo). For both men and women, firearms were the main means of aggression, with more than 70% of deaths. Clusters of above-average municipalities are concentrated in the most populous, well-delimited regions that have rates much higher than expected, such as state capitals and their metropolitan areas, and along the Eastern coastal strip. Isolated municipalities appear also close to international borders (mainly with Paraguay) and the Amazonian agricultural frontier.

Conclusions:

The identification of predominant victim profiles and regions/municipalities most exposed to homicides enable to target specific strategies/public policies in these regions and population groups to prevent the problem.

Keywords:
homicide; development; territory; violence; Brazil

INTRODUÇÃO

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a violência é “o uso intencional de força física ou poder, real ou como ameaça contra si próprio, outra pessoa, um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tem grande probabilidade de resultar em ferimentos, morte, danos psicológicos, desenvolvimento prejudicado ou privação”11. World Health Organization. Global status report on violence prevention 2014. Geneva: World Health Organization; 2014. 292 p..

A violência é reconhecida há várias décadas como um problema para setores ligados à justiça e segurança pública, passando mais recentemente à agenda da saúde pública. A Organização das Nações Unidas (ONU) inseriu a violência na agenda internacional da Assembleia Mundial de Saúde, em 1996, em Genebra, declarando a violência como um importante problema de saúde pública em todo o mundo. Nesta ocasião, solicitou aos Estados membros que enfrentassem imediatamente a problemática da violência, requerendo à OMS o desenvolvimento de uma abordagem científica para compreender e prevenir a violência11. World Health Organization. Global status report on violence prevention 2014. Geneva: World Health Organization; 2014. 292 p.. Em 2002, a OMS lança o Relatório Mundial sobre Violência e Saúde, considerado um marco acerca dos impactos da violência para a saúde, cuja publicação tem sido amplamente utilizada no estudo dos desdobramentos da violência para a área da saúde22. Krug EG, Mercy JA, Dahlberg LL, Zwi AB. The world report on violence and health. Lancet. 2002;360(9339):1083-8. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(02)11133-0
https://doi.org/https://doi.org/10.1016/...
.

Dentre os diferentes tipos de violência que se manifestam na sociedade, neste estudo a violência homicida será focalizada. Os homicídios são considerados a ponta do iceberg da questão da violência, sendo o resultado mais gritante de comportamentos violentos registrados em estatísticas oficiais. Estima-se que, em 2012, 475 mil pessoas foram vítimas de homicídio no planeta, o que equivale a uma taxa total de 6,7 pessoas em cada 100 mil habitantes no mundo. Em 2012, essas taxas no Brasil, segundo dados do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde (MS), foram de 29 homicídios a cada 100 mil habitantes. Ao todo, ocorreram 56.337 homicídios em 2012, ou seja, no Brasil a taxa é 4,33 vezes maior do que a média mundial, sendo que o país concentra mais de 10% de todos homicídios do planeta11. World Health Organization. Global status report on violence prevention 2014. Geneva: World Health Organization; 2014. 292 p.,33. Waiselfisz JJ. Os jovens do Brasil: mapa da violência 2014. Brasília: FLACSO; 2014. 190 p..

Importantes estudos têm se debruçado sobre a questão dos homicídios no Brasil contemporâneo, revelando que o problema atinge mais homens do que mulheres, mais acentualmente a população jovem e com grande relação com o crime organizado, envolvimento de facções criminosas e disputas relacionadas ao tráfico de drogas44. Wanzinack C, Signorelli MC, Reis C. Homicides and socio-environmental determinants of health in Brazil: a systematic literature review. Cad Saude Publica. 2018;34(12):e00012818. https://doi.org/10.1590/0102-311X00012818
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
,55. United Nations Office on Drugs and Crime. global study on homicide. Vienna: Unodoc; 2019. 108 p.,66. Nsoesie EO, Lima Neto AS, Jay J, Wang H, Zinszer K, Saha S, et al. Mapping disparities in homicide trends across Brazil: 2000-2014. Inj Epidemiol. 2020;7(1):47. https://doi.org/10.1186/s40621-020-00273-y
https://doi.org/https://doi.org/10.1186/...
,77. Corrêa RSS, Lobo MAA. Distribuição espacial dos homicídios na cidade de Belém (PA): entre a pobreza/vulnerabilidade social e o tráfico de drogas. Rev Bras Gest Urbana. 2019;11:e20180126. https://doi.org/10.1590/2175-3369.011.e20180126
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
. Os impactos incluem, além da perda da vida das vítimas, prejuízos gerados aos seus familiares e até impactos na economia, uma vez que grande quantidade de recursos são deslocados para ações de combate à violência, desde a prevenção, até cuidados em saúde e gastos com o sistema jurídico e penal88. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2017. São Paulo: Fórum Bras Segurança Pública; 2017. 108 p..

Inicialmente, a violência homicida no Brasil se concentrava em grandes cidades, como Rio de Janeiro e São Paulo. Porém, nos últimos anos, essas cidades já não lideram mais os rankings, e observa-se tendência de interiorização dos homicídios e também de disseminação, que é a propagação da violência de um local para outro vizinho (municípios, regiões ou estados)99. Steeves GM, Petterini FC, Moura GV. The interiorization of Brazilian violence, policing, and economic growth. EconomiA. 2015;16(3):359-75. https://doi.org/10.1016/j.econ.2015.09.003
https://doi.org/https://doi.org/10.1016/...
,1010. Andrade LT, Diniz AMA. A reorganização espacial dos homicídios no Brasil e a tese da interiorização. Rev Bras Estud Popul 2013;30(suppl):S171-S191. https://doi.org/10.1590/S0102-30982013000400011
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
.

Todavia, ainda existem lacunas no estudo dessas tendências, especialmente no que tange a estudos com abrangência nacional, analisando-se todos os municípios ou Estados do país, e que levem em conta um período mais prolongado. Portanto, diante desse cenário desafiador, objetivou-se neste estudo realizar uma análise socioespacial e temporal da mortalidade por homicídios no Brasil no período de 2005 a 2015, considerando a distribuição territorial dessas mortes por municípios e Unidades da Federação (UF), assim como o perfil das vítimas, buscando refletir sobre os grupos e locais mais expostos a esse problema. Hipotetiza-se, com este estudo, que os homicídios têm se disseminado entre municípios vizinhos, e também se interiorizado das capitas para o interior do Brasil.

MÉTODOS

Trata-se de um estudo ecológico do tipo exploratório e retrospectivo, no qual se analisou espacialmente a evolução temporal da mortalidade por homicídio por faixa etária, sexo, raça/etnia e local de ocorrência (Unidades da Federação e municípios), no período de 2005 a 2015. Um período de análise mais prolongado auxilia a compreender as evoluções ou declínios dos homicídios nos municípios brasileiros com maior precisão dos dados. Nos Estudos Ecológicos, as medidas usadas representam características de grupos populacionais. Portanto, a unidade de análise é a população, e não o indivíduo1111. Morgenstern H, Thomas D. Principles of study design in environmental epidemiology. Environ Health Perspect. 1993;101(Suppl 4):23-38. https://doi.org/10.1289/ehp.93101s423
https://doi.org/https://doi.org/10.1289/...
. Por se tratar de pesquisa utilizando exclusivamente dados secundários de domínio público, está dispensada de submissão e aprovação por Comitê de Ética de Pesquisa com Seres Humanos, de acordo com a Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde.

Variáveis dependentes

Foram selecionados os óbitos por ocorrência de Agressões (código X85 a Y09 e Y35 e 36 da CID-10), aqui referidos como homicídios, do SIM1212. Brasil. Ministério da Saúde. Departamento de informática do Sistema Único de Saúde do Brasil. Estatísticas vitais [Internet]. Brasília (DF); 2017. [citado 2021 Fev 15]. Disponível em: Disponível em: https://datasus.saude.gov.br/estatisticas-vitais/
https://datasus.saude.gov.br/estatistica...
, que, juntamente com estimativas populacionais, estão disponibilizados no sítio eletrônico do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS) do Ministério da Saúde.

Variáveis independentes

Foram considerados dados do Censo Brasileiro realizado no ano de 2010 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os dados da população por sexo, faixas etárias e raça/etnia foram obtidos diretamente do Sistema IBGE de Recuperação Automática - SIDRA1313. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica. Sistema IBGE de Recuperação Automática - SIDRA. Banco de Tabelas Estatísticas. Censo demográfico 2022 [Internet]. Brasília (DF): IBGE; 2024. [citado 2021 Fev 15]. Disponível em: Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/home/pms/brasil
https://sidra.ibge.gov.br/home/pms/brasi...
.

Procedimentos estatísticos

Os dados de homicídios foram obtidos a partir do site do DATASUS. As informações foram extraídas diretamente do TabNet Win32 2.7, salvas em planilhas eletrônicas (Excel) versão Office Professional Plus 2019, posteriormente transferidos para o software R Versão 3.2.0 para análise estatística dos dados e análise espacial.

Distribuição da população

Na construção da população de referência, a população com raça/cor não declarada em cada faixa etária foi distribuída proporcionalmente nas demais classes, considerando a proporção de pessoas de cada raça/cor naquela faixa etária. Assim, temos a distribuição de frequências da população masculina e população feminina.

Distribuição dos homicídios

Há dados de homicídios com variáveis ignoradas de raça/cor e idade. Esses homicídios foram distribuídos para as classes de idade e raça/cor, respectivamente, proporcionalmente à frequência em cada classe.

Taxas de homicídio

A taxa média anual de homicídios por sexo, faixa etária e raça/cor para o Brasil, UF (26 estados e o Distrito Federal) e municípios (5570 municípios) no período de 2005 a 2015 foi calculada com os dados de população e homicídios padronizados. Utilizou-se a média entre os anos 2005 a 2015, calculando-se a taxa média anual proporcional a cada 100 mil habitantes.

Taxa de mortalidade padronizada (SMR)

O número esperado de óbitos foi obtido a partir das taxas específicas calculadas para o Brasil no período de 2005 a 2015, nas populações específicas (por sexo, faixa etária e raça/cor) de cada UF e município. Assim, pode-se comparar a diferença para cada município, comparando o número observado de óbitos no município com esse número esperado. Essa razão entre o número esperado e o número observado é chamada de taxa de mortalidade padronizada, do inglês Standardized Mortality Rate (SMR). A análise é feita bastando considerar se o SMR é maior ou menor que 1 (um).

Assim, um valor de SMR igual a 1,0 significa que o número de mortes observadas foi igual ao esperado pelo padrão geral de ocorrência de homicídios no Brasil por gênero, idade e raça no período. Se for maior que 1,0, então o número de homicídios foi maior que o esperado e vice-versa. A SMR constitui uma forma indireta de padronização. Ela tem uma vantagem sobre o método direto de padronização, uma vez que o ajuste de idade é permitido em situações em que a estratificação de idade pode não estar disponível para o estudo ou onde dados específicos de estratos estão sujeitos à variabilidade aleatória excessiva.

A relação entre a SMR de homicídio e os possíveis fatores associados foi considerada através de um modelo de regressão linear generalizado com efeito aleatório espaço-temporal, considerando a distribuição de Poisson para o número de homicídios.

Para o efeito aleatório espaço-temporal assumiu-se um modelo autorregressivo temporal com estrutura espacial do tipo Besag-York-Mollié - BYM, considerando a padronização1414. Riebler A, Sørbye SH, Simpson D, Rue H. An intuitive Bayesian spatial model for disease mapping that accounts for scaling. Stat Methods Med Res. 2016;25(4):1145-65. https://doi.org/10.1177/0962280216660421
https://doi.org/https://doi.org/10.1177/...
.

O número de homicídios no município i e ano t, o i,t , foi considerado como desfecho. O número esperado de óbitos obtido da padronização indireta, e i,t , foi considerado para levar em conta as diferenças demográficas entre os municípios e também utilizado em casos onde as vítimas tem dados ignorados no registro de óbito como idade, raça/cor e sexo.

Um valor de risco, r i,t maior que 1 indica que o município i observou mais homicídios no ano t que o esperado por sua demografia. Mais especificamente, foi assumido uma distribuição de Poisson para o o,t . O produto entre o valor esperado de óbitos e o risco de mortalidade padronizado é o parâmetro dessa distribuição. Assim, temos

o i , t ~ P o i s s o n e i , t r i , t .

Os dados da SMR foram então plotados em mapas, permitindo a análise espacial dos homicídios em UF e municípios. Foram utilizados modelos lineares generalizados que têm como função analisar a relação entre uma variável reposta e uma ou mais variáveis explicativas, para identificar uma função que a descreva. Sua finalidade é compreender as causas de variação de um fenômeno e predizer seu comportamento de acordo com as variáveis explicativas. Já as regressões de Poisson são utilizadas para modelar dados de contagem, neste caso, os números de homicídios dos municípios brasileiros1515. Tadano YS, Ugaya CML, Franco AT. Método de regressão de Poisson: metodologia para avaliação do impacto da poluição atmosférica na saúde populacional. Ambient Soc. 2009;12(2):241-55. https://doi.org/10.1590/S1414-753X2009000200003
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
.

Índice de Moran univariado

Foi calculado o Índice de Moran Univariado1616. Almeida E. Econometria espacial. Campinas: Alínea; 2012. 498 p., obtendo-se o mapa de autocorrelação espacial. Essa análise permite estabelecer o padrão espacial do objeto de estudo, investigando-se a hipótese de disseminação espacial e interiorização dos homicídios. O Índice de Moran é uma medida global de autocorrelação espacial, indicando grau de associação espacial presente no conjunto de dados. Ele identifica os municípios com altas (baixas) taxas de homicídios circundados por outros também com altas (baixas) taxas, portanto, destacando alto-altos e baixo-baixos, os quais foram utilizados para identificar aglomerados de alto e baixo risco para homicídios1717. Rodrigues RAP, Chiaravalloti-Neto F, Fhon JRS, Bolina AF. Análise espacial da violência contra idosos em um município brasileiro. Rev Bras Enferm. 2021;74(Suppl 2):e20190141. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2019-0141
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
. Considerou-se um nível de significância de p<0,0001.

RESULTADOS

Taxas de homicídio por sexo, faixa etária e raça/cor

A taxa média anual de homicídios por sexo, faixa etária e raça/cor para o Brasil no período de 2005 a 2015 foi calculada com os dados de população e homicídios padronizados. Na Tabela 1, temos as taxas de homicídios por 100 mil habitantes por sexo, faixa etária e raça/cor, destacando alguns aspectos significativos sobre os homicídios de homens e mulheres no Brasil. O achado mais significativo refere-se às taxas desproporcionalmente mais altas nos grupos de homens pretos e pardos (negros), comparados aos demais. A diferença inicia desde as faixas etárias a partir dos 10 anos, acentuando-se nas faixas dos 15 aos 29 anos, quando atingem os picos de 138,4 homicídios/100 mil (homens pretos de 20-24 anos) e 177,3/100 mil (homens pardos de 20-24 anos), mas cuja diferença persiste até próximo à idade de 50 anos. Para os homens brancos, o pico atinge 70,2 homicídios/100 mil (20-24 anos), sendo menos da metade da taxa do grupo negro para essa faixa etária, enquanto para os amarelos tem menos de um décimo da taxa dos negros (12,2/100 mil) para a mesma faixa etária dos 20-24 anos.

Tabela 1.
Taxa anual média padronizada de homicídios por 100 mil homens e mulheres por faixa etária e raça/cor no Brasil (2005 a 2015)

Outro aspecto que chama a atenção na Tabela 1 é a taxa de homicídio do sexo masculino infantil (0 a 4 anos) no grupo indígena, de 25,6 por 100 mil habitantes indivíduos do sexo masculino. Essa taxa é 24,4 vezes maior que a população não indígena. Nas faixas etárias de jovens e adultos, os homens indígenas seguem a tendência dos demais grupos raciais, com picos também dos 15 aos 29 anos. Porém, novamente, a população indígena masculina se distingue nos idosos, com 70 anos ou mais, com a maior taxa (24,4 por 100 mil) comparada com outros grupos étnico/raciais.

Com relação aos homicídios contra mulheres, a Tabela 1 exibe taxas elevadas de mortes de mulheres indígenas comparadas com as não indígenas, particularmente na faixa etária entre 0 a 4 anos, com 23,7 por 100 mil mulheres indígenas. Essa taxa é quase 30 vezes maior do que as taxas da população de mulheres não indígenas. As mulheres indígenas também possuem maiores taxas de homicídios comparadas às demais raças/etnias, tanto em idades jovens (meninas de 5 a 14 anos), quanto em mulheres mais velhas (50 a 69 anos), e até mesmo na faixa etária das mais idosas, com mais de 70 anos (8,1/100 mil), cuja taxa de homicídio é mais de três vezes a taxa de homicídio das não indígenas para essa faixa etária. Já entre as idades de 15 a 49 anos, as maiores taxas se concentram na raça/cor parda, evidenciando sua taxa mais elevada, de 9,9 por 100 mil mulheres nas idades entre 25 e 29 anos. As mulheres pretas também apresentam taxas de homicídio maiores que as brancas desde os 10 até os 49 anos, realçando, portanto, as desigualdades étnico/raciais relacionadas aos homicídios femininos no Brasil.

A Tabela 1 mostra também a difença em porcentagem de homicídios de homens e mulheres entre 2005 e 2015. Os homens são 11,2 vezes mais propensos a esses casos do que mulheres. No quesito raça/cor, a partir dos números absolutos dessas mortes registrados no recorte temporal 2005-2015, a raça/cor parda detém 62,43% dos homicídios entre homens e 54% entre mulheres, seguido da raça/cor branca com 28,52% homens e 37,75% mulheres. No Brasil atual, é comum adotar-se o termo “raça negra”, uma denominação que alberga as categorias pretos e pardos da classificação do IBGE. Se for contabilizada a proporção de vítimas de homicídios considerando essa denominação (negros), chega-se a 71,07% das vítimas entre homens e 61,32% entre mulheres. Em outras palavras, entre 2005 e 2015, a quantidade de pessoas negras vítimas de homicídios foi 2,5 vezes maior do que a quantidade de homens brancos e 1,62 vezes maior em mulheres.

Meios de agressão

A Tabela 2 mostra os meios de agressão dos homicídios por sexo. Nos homens, a agressão por disparo de armas de fogo chega a 72%; agressão por objeto cortante, penetrante ou contundente a 19,5%; agressão por meios não especificados a 3,6%; intervenção legal a 1,3% e agressão por meio de força corporal a 1,1%. Já no sexo feminino, 50,2% das mortes foram por disparo de armas de fogo; 32,6% foram por objeto cortante, penetrante ou contundente; 6% foram agressão por enforcamentos, estrangulamento ou sufocação; 5,2% foram agressão por meios não especificados; 1,6% agressão por meio de força corporal e 1,1% agressão por meio de fumaça, fogo e chamas.

Tabela 2.
Porcentagem de homicídios vitimados no Brasil no período de 2005 a 2015 segundo o meio de agressão (Classificação Internacional de Doenças - CID-10)

Evolução temporal dos homicídios e análise por regiões

A Figura 1 demonstra que o Brasil teve um aumento de 22,7% no número de homicídios, comparando o ano de 2005 com o ano de 2015. Em relação às regiões do Brasil, no período de 2005 a 2015, a região Norte foi a que registrou o maior aumento dentre todas regiões brasileiras, com incremento de 88,4%. Na sequência, a região Nordeste registrou aumento de 78,4%, a região Centro-Oeste aumentou 52%, enquanto na região Sul aumentou 21,4%. A única região que registrou uma diminuição de números de homicídios no período analisado foi a região Sudeste, com uma redução de 25,7%.

Figura 1.
Evolução temporal do número de homicídios vitimados no Brasil e por região no período de 2005 a 2015

A análise temporal em nível Unidade da Federação, que compreende estados e Distrito Federal, revelou que os Estados que tiveram maior aumento (de 2005 a 2015) foram, em ordem decrescente: Rio Grande do Norte (278,2%), Maranhão (169,7%), Sergipe (163,2%), Ceará (145,9%), Amazonas (145,6%), Tocantins (142,6%), Roraima (115,6%), Goiás (109%), Bahia (107,7%) e Paraíba (105,5%). Houve, também, estados em que o número de homicídios diminuiu no período analisado, como o caso de São Paulo (-39,2%), Rio de Janeiro (-31,7%), Pernambuco (-10%), Espírito Santo (-9%) e Paraná (-1,6%).

Regionalmente, comparando-se as taxas médias anuais de homicídios no mesmo período nas cinco regiões brasileiras, temos a região Nordeste com a maior taxa média anual do Brasil. Sua taxa chega a 35,4 homicídios por 100 mil habitantes. Entre os estados com maior taxa média anual estão Alagoas (60,7), Pernambuco (43,7), Sergipe (37,4) e Bahia com 35,9 homicídios por 100 mil habitantes. Em segundo lugar vem a região Norte, com uma taxa anual média de 33,8 homicídios por 100 mil habitantes. Os estados com maiores taxas são Pará (39), Rondônia (33,5), Amapá (33,3) e Roraima com 30,5 homicídios por 100 mil habitantes.

O Centro-Oeste apresenta a terceira maior taxa de homicídios dentre as regiões brasileiras. Sua taxa anual média no período foi de 33,6 por 100 mil habitantes. Os estados com maiores taxas são Goiás (35,2) e Distrito Federal (34,6). A região Sul tem uma taxa de 23,1 por 100 mil habitantes, segunda menor entre as regiões brasileiras. Entre os estados sulistas, o que apresenta a maior taxa é o Paraná com taxa de 31,1 homicídios por 100 mil habitantes.

Apesar da região Sudeste ter a menor taxa (22,8) por 100 mil habitantes entre as regiões brasileiras e apresentar um declínio no número de homicídios no período analisado, o estado do Espírito Santo tem a segunda maior taxa entre todos os estados brasileiros (49,3 homicídios por 100 mil habitantes); e o Rio de Janeiro, com taxa de 36,1 homicídios por 100 mil habitantes, também demonstra valor elevado. Portanto, também fica evidente as desigualdades intrarregionais em relação à ocorrência de homicídios nas regiões brasileiras.

Análise da taxa de mortalidade padronizada (SMR) por UF e município

Num primeiro momento, foi calculado o SMR por UF. Para isso, foi calculada a diferença entre os homicídios observados e esperados em cada UF. O valor obtido da SMR por UF pode ser visualizado no mapa da Figura 2 (à esquerda). Percebe-se que há estados com SMR maior e menor que 1 em todas as cinco regiões, portanto, a distribuição regional é bastante heterogênea. Salienta-se que o número ocorrido de homicídios no período foi muito menor que o esperado considerando as taxas específicas do Brasil nos estados de Santa Catarina, São Paulo, Tocantins e Piauí. Por outro lado, nos estados de Alagoas, Pernambuco, Espírito Santo, Rio de Janeiro e Paraná, o número observado de homicídios foi muito maior que o esperado, sendo, portanto, estados considerados críticos para esta problemática.

Figura 2.
Mapa das taxa de mortalidade padronizada considerando Unidades da Federação e municípios de ocorrência dos homicídios (2005-2015) no Brasil

No mapa seguinte (Figura 2, à direita) consta a SMR para todos os municípios brasileiros durante o período compreendido entre os anos de 2005 e 2015. É possível observar se o número de homicídios registrados foi maior ou menor que o esperado de acordo com a média brasileira, já levando em conta o efeito de atenuação dos fatores demográficos (sexo, raça/cor e faixa etária) por meio da padronização indireta (SMR). A maioria dos municípios apresentou SMR menor que 1, isto é, a ocorrência de homicídios na maioria dos municípios brasileiros foi menor que o esperado segundo as taxas específicas do Brasil no período. Nota-se que, em geral, isso ocorreu no Acre, Amazonas, norte do Pará, oeste da Bahia, e na maior parte dos estados de Minas Gerais, São Paulo, Santa Catarina, Piauí, Maranhão e Tocantins. Assim, o fato de haver um número menor de municípios que tiveram SMR maior que 1 ocorre por serem aqueles que concentraram a maior parte dos homicídios no recorte temporal 2005-2015.

Também é possível observar, na Figura 2 à direita, como a distribuição de homicídios pode ser bastante heterogênea dentro de um mesmo estado. Na Bahia, por exemplo, há regiões com SMR menores, com menos da metade da taxa esperada nacionalmente (como na porção Oeste, próximo à divisa com Tocantins). E, por outro lado, há regiões com SMR maiores, tais como ao norte na divisa com Pernambuco, na região litorânea e principalmente ao sul, onde o SMR chega ao dobro do esperado.

No mapa por UF, notamos Rio Grande do Sul com SMR em torno de 1, porém, no mapa com detalhamento municipal, temos a maioria do estado com SMR menor ou em torno de 1 e apenas alguns poucos municípios, principalmente na região metropolitana de Porto Alegre, com SMR maior que 1. Isso demonstra uma concentração de homicídios numa região específica do estado, todavia, a maior parte do estado apresenta valores abaixo do esperado para a média nacional. Esse efeito das capitais e suas regiões metropolitanas, com taxas superiores ao restante das UF, também é observado em outros estados, como Paraná, Espírito Santo e Alagoas.

Chama atenção, ainda, as taxas de homicídios muito acima do esperado para municípios de fronteira internacional, particularmente com o Paraguai (fronteira dos estados do Paraná e Mato Grosso do Sul) e Venezuela (fronteira com estado de Roraima). Outro aspecto que também realça a violência homicida é a chamada “fronteira agrícola Amazônica”, que compreende municípios dos estados do Mato Grosso (porção norte do estado), Pará (sul e leste do estado) e norte de Rondônia.

Já na Figura 3 consta o mapa de autocorrelação espacial obtido a partir do Índice de Moran, cujo índice calculado foi de 0,034 (p<0,001), com extremos de distribuição considerados estatisticamente significativos. O mapa revela uma concentração heterogênea de regiões com altas taxas de homicídios circundados por vizinhos com taxas também elevadas (high-high), destacando-se algumas capitais e suas regiões metropolitanas (Manaus, Belém, Fortaleza, Recife, Maceió, Salvador, Vitória, Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Porto Alegre e a região que circunda o Distrito Federal). Por outro lado, vastas áreas semicontíguas do interior dos estados apresentam clusters de baixas taxas de homicídios (low-low), ocupando a porção oeste da região Nordeste, notadamente Piauí, oeste da Bahia, espalhando-se por Tocantins, norte de Minas Gerais e Goiás; mais uma faixa que ocupa desde a porção oeste dos estados de Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Santa Catarina até o Rio Grande do Sul.

Figura 3.
Mapa de autocorrelação espacial obtido a partir do cálculo do Índice de Moran Univariado dos municípios de ocorrência dos homicídios no Brasil entre 2005 e 2015

DISCUSSÃO

Os resultados deste estudo revelam como homens, jovens e negros estão mais expostos à violência homicida do que os demais grupos populacionais. No quesito raça/cor, como já descrito, no Brasil atual é comum adotar-se o termo “raça negra”, que alberga as categorias pretos e pardos da classificação do IBGE. Se for contabilizada a proporção de vítimas de homicídios da população negra, chega-se a 70,2% do total das vítimas. Em outras palavras, entre 2005 e 2015, a quantidade de pessoas negras vítimas de homicídios foi 2,4 vezes maior do que a quantidade de pessoas brancas, sendo inclusive utilizada a expressão “genocídio da população negra”44. Wanzinack C, Signorelli MC, Reis C. Homicides and socio-environmental determinants of health in Brazil: a systematic literature review. Cad Saude Publica. 2018;34(12):e00012818. https://doi.org/10.1590/0102-311X00012818
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
,1818. Tavares R, Catalan VDB, Romano PMM, Melo EM. Homicídios e vulnerabilidade social. Cien Saude Colet. 2016;21(3):923-34. https://doi.org/10.1590/1413-81232015213.12362015
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
,1919. Soares Filho AM. Vitimização por homicídios segundo características de raça no Brasil. Rev Saúde Pública. 2011;45(4):745-55. https://doi.org/10.1590/S0034-89102011005000045
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
. O presente estudo reforça essa hipótese por meio desta inédita análise temporal dos homicídios, incluindo um período de análise maior que 10 anos e abrangendo todos os municípios e UF do Brasil. Portanto, tal genocídio não é um fenômeno isolado geograficamente nem delimitado temporalmente, mas sim um fenômeno perene na sociedade brasileira.

Em relação ao quesito raça/cor, também são notáveis as taxas de homicídios contra crianças indígenas (tanto do sexo masculino quanto feminino), assim como de mulheres indígenas em distintas faixas etárias, comparadas às não indígenas, com destaque para mulheres indígenas de faixas etárias mais avançadas (idosas). Esses achados já vêm sendo debatidos na literatura, sendo recomendada parcimônia e levando-se em conta as questões culturais próprias das comunidades indígenas, compostas por mais de 300 etnias e que são diferentes da cultura ocidental2020. Wanzinack C, Signorelli MC, Shimakura S, Pereira PPG, Polidoro M, Oliveira LB, et al. Indigenous homicide in Brazil: geospatial mapping and secondary data analysis (2010 to 2014). Cien Saude Colet. 2019;24(7):2637-48. https://doi.org/10.1590/1413-81232018247.23442017
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
,2121. Segato RL. Que cada povo teça os fios da sua história: o pluralismo jurídico em diálogo didático com legisladores. Direito UnB. 2016;1(1):65-92..

Em relação às questões de gênero, embora os homens estejam muito mais expostos à violência homicida do que as mulheres, fato também revelado por outros estudos1818. Tavares R, Catalan VDB, Romano PMM, Melo EM. Homicídios e vulnerabilidade social. Cien Saude Colet. 2016;21(3):923-34. https://doi.org/10.1590/1413-81232015213.12362015
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
,2222. Bastos MJRP, Pereira JA, Smarzaro DC, Costa EF, Bossanel RCL, Oliosa DMS, et al. Análise ecológica dos acidentes e da violência letal em Vitória, ES. Rev Saúde Pública. 2009;43(1):123-32. https://doi.org/10.1590/S0034-89102009000100016
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, é preciso observar que as mulheres encontram-se em condições assimétricas de poder na sociedade quando comparadas aos homens. Enquanto os homens são mais propensos a homicídios nas ruas, as mulheres são mais mortas dentro de casa, em ambiente que deveria supostamente ser mais seguro2323. Leites GT, Meneghel SN, Hirakata VN. Female homicide in Rio Grande do Sul, Brazil. Rev Bras Epidemiol. 2014;17(3):642-53. https://doi.org/10.1590/1809-4503201400030006
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. Os homicídios de mulheres estão fortemente associados à violência praticada pelo parceiro íntimo, sendo, neste caso, denominados feminicídios2424. Garcia LP, Freitas LRS, Silva GDM, Höfelmann DA. Estimativas corrigidas de feminicídios no Brasil, 2009 a 2011. Rev Panam Salud Publica. 2015;37(4/5):251-7.. A base de dados do SIM não traz informações a respeito do autor do homicídio, portanto, não é possível categorizar qual proporção desses homicídios femininos são feminicídios.

Em relação aos meios como foram cometidos os homicídios, tanto para o sexo masculino quanto para o sexo feminino, destacou-se agressão por disparo de armas de fogo, chegando a 72% no caso dos homens e mais de 50% para mulheres. Esses dados acendem um alerta para o cenário político atual, em que tanto o governo federal, quanto a indústria armamentista e setores do congresso nacional alinhados a este setor (a denominada “bancada da bala”) vêm atuando em sinergia para criação de medidas legais que flexibilizam o porte e a posse de armas de fogo. Num país que já apresenta recorde no numero de homicídios do planeta, o aumento da disponibilidade e oferta de armas pode potencializar as taxas trazidas neste estudo, piorando um cenário que já é caótico.

A análise espacial revelou que são poucos e bem delimitados os municípios que concentram a maioria dos homicídios brasileiros. Cento e cinquenta municípios brasileiros, que correspondem a apenas 2,7% dos municípios do país, concentram 62,53% dos homicídios. A maioria desses municípios possui uma população acima de 290 mil habitantes. Esses dados também devem ser analisados com cautela, não significando necessariamente que municípios menores estejam livres de homicídios, mas busca-se realçar aqui o padrão predominante.

Territorialmente, observou-se, ao longo do período analisado, que enquanto a região Sudeste conseguiu reduzir suas taxas de homicídio, principalmente nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, as regiões Nordeste e Norte aumentaram consideravelmente. Tal achado corrobora importantes estudos que têm analisado o crescimento dos homicídios nas regiões Norte e Nordeste do país77. Corrêa RSS, Lobo MAA. Distribuição espacial dos homicídios na cidade de Belém (PA): entre a pobreza/vulnerabilidade social e o tráfico de drogas. Rev Bras Gest Urbana. 2019;11:e20180126. https://doi.org/10.1590/2175-3369.011.e20180126
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
,2525. Plassa W, Paschoalino PAT, Santos MP. Determinantes socioeconômicos das taxas de homicídios no nordeste brasileiro: uma análise espacial. Planejamento e Políticas Públicas. 2019;53:479-505.. Algumas regiões mais críticas incluem a faixa ao longo do litoral leste do Brasil (de Nordeste a Sul do país), a fronteira internacional (principalmente com o Paraguai) e a fronteira agrícola amazônica, que inclui parte dos estados do Pará, Mato Grosso e Rondônia. Essas áreas agrícolas são conhecidas por disputas de terra, e esse fenômeno também tem sido descrito em outros estudos66. Nsoesie EO, Lima Neto AS, Jay J, Wang H, Zinszer K, Saha S, et al. Mapping disparities in homicide trends across Brazil: 2000-2014. Inj Epidemiol. 2020;7(1):47. https://doi.org/10.1186/s40621-020-00273-y
https://doi.org/https://doi.org/10.1186/...
. A análise do presente estudo por meio do modelo da SMR reforça, em certa medida, a interiorização dos homicídios no Brasil, embora de maneira isolada em alguns municípios do interior.

Já a análise espacial por meio da autocorrelação espacial/Índice de Moran não corrobora essa última hipótese. Revelou clusters muito bem delimitados de correlação alta-alta em capitais e suas regiões metropolitanas, em consonância com estudos prévios que apontam o que se denomina “dependência espacial da violência”, significando que a proximidade de áreas de alta criminalidade aumenta as taxas de homicídios na região em questão2626. Griffiths E, Chavez JM. Communities, street guns and homicide trajectories in Chicago, 1980-1995: merging methods for examining homicide trends across space and time. Criminology. 2004;42(4):941-78. https://doi.org/10.1111/j.1745-9125.2004.tb00541.x
https://doi.org/https://doi.org/10.1111/...
.

De acordo com essa perspectiva, o homicídio seria como que “contagioso”, com locais geograficamente próximos de locais violentos experimentando níveis mais altos de violência2525. Plassa W, Paschoalino PAT, Santos MP. Determinantes socioeconômicos das taxas de homicídios no nordeste brasileiro: uma análise espacial. Planejamento e Políticas Públicas. 2019;53:479-505.. Isso confirma, portanto, a hipótese de disseminação espacial dos homicídios para municípios adjacentes. Já a hipótese da interiorização dos homicídios não foi plenamente confirmada, uma vez que o Índice de Moran revelou vastos clusters de correlação baixa-baixa de homicídios em regiões do interior dos estados, em uma extensa faixa paralela ao Oceano Atlântico, desde o Nordeste até o Sul do país. O que parece acontecer, conforme revelado pela análise de SMR, são municípios do interior com taxas mais elevadas de homicídios existindo isoladamente (nas fronteiras agrícolas e com o Paraguai), mas sem correlação espacial com seus vizinhos.

O efeito regional e temporal permitiu entender melhor o padrão de homicídios no país ao longo do tempo e também espacialmente. Assim, ao identificar regiões/municípios com maior risco para homicídios, pode-se concentrar esforços focados nessas regiões. A identificação de grupos populacionais mais expostos permite também o direcionamento de estratégias específicas na saúde pública e com envolvimento da rede intersetorial. Além disso, ao identificar tendências de aumento em alguma região/município, pode-se soar um alerta para medidas de intervenção mais direcionadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados encontrados no presente trabalho demonstram que o Brasil apresentou um aumento substancial nos números absolutos e taxas de homicídios comparando o ano de 2015 com o ano de 2005. Em relação às regiões do Brasil, a região Norte foi a que sofreu maior aumento no recorte temporal estudado, mas as regiões Nordeste, Centro-Oeste e Sul também aumentaram. Já a região Sudeste foi a única que demonstrou uma diminuição de números de homicídios, sendo, portanto, motivo para análises mais aprofundadas. Entre as UF que tiveram maior aumento no mesmo período destacam-se, em ordem decrescente, Rio Grande do Norte, Maranhão, Sergipe, Ceará e Amazonas. Por outro lado, houve redução em São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Espírito Santo e Paraná. Desta forma, percebe-se que a produção de homicídios não se desenvolve de forma homogênea no Brasil, nem mesmo dentro das regiões, parecendo haver um deslocamento dos homicídios da região Sudeste para as regiões Nordeste e Norte. Com base em nossa análise, poderíamos até propor um termo para isso, que seria a “nortificação dos homicídios” ou “norticídio/nordesticídio”.

A análise espacial revelou, ainda, achados adicionais, como o fato de a distribuição dos homicídios ocorrer de maneira bastante heterogênea dentro de um mesmo estado. Poucos municípios concentram a maior parte dos homicídios do país, a maioria se concentrando em torno de capitais e suas regiões metropolitanas, na faixa leste que acompanha o Oceano Atlântico (de Nordeste a Sul do país), confirmando a hipótese da disseminação dos homicídios para os municípios circundantes.

A análise do perfil das vítimas de homicídio chama a atenção para os jovens do sexo masculino, negros (pardos e pretos), que são as maiores vítimas de homicídios no Brasil. Homens são acima de 11 vezes mais propensos a sofrer homicídios do que mulheres. Também se destaca o homicídio de indígenas de ambos os sexos em diversas faixas etárias. Esses resultados demonstram grupos vulneráveis, incluindo grupos em idade produtiva, que demandam ações preventivas específicas.

O trabalho apresenta diversas limitações, como a falta de disponibilidade de dados mais atualizados e consolidados nos bancos de dados oficiais, como o censo demográfico ou dados sobre homicídios. O último censo, por exemplo, foi realizado pelo governo brasileiro em 2010, sendo, portanto, considerado defasado para pesquisas conduzidas em 2021, restando apenas estimativas populacionais para os anos mais recentes. Por esse motivo foi analisado o período temporal de 2005 a 2015, para que se pudesse fazer um retrato daquela realidade, que não é necessariamente a mais atualizada, mas a única disponível sem a adoção de meras projeções populacionais. As projeções, como o próprio nome informa, são estimativas, portanto, previsões. Optou-se por usar registros oficiais neste estudo, e não projeções.

Entretanto, mesmo diante dessas (e outras) limitações, os resultados desta pesquisa apresentam potencialidades. Não expõem tão somente taxas de homicídios, suas evoluções ou declínio de homicídios em partes do Brasil, mas alertam, acima de tudo, para a relevância e importância de se discutir a problemática da violência e dos homicídios em suas nuances interligadas à saúde e à segurança pública e com análises socioespaciais, com vistas a iluminar a proposição e implementação de políticas públicas.

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  • Como citar:

    Wanzinack C, Signorelli MC, Reis C. Mortalidade por homicídios nas unidades da federação e nos municípios brasileiros de 2005 a 2015: uma análise socioespacial. Cad Saude Colet. 2024;32(1):e32010192. https://doi.org/10.1590/1414-462X202432010192
  • Fonte de financiamento:

    nenhuma.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2021
  • Aceito
    18 Out 2021
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