Saúde mental na gestação, no nascimento e na primeira infância: análise crítica de políticas públicas brasileiras

Vescovi, Gabriela; Flach, Katherine; Teodózio, Andressa Milczarck; Maia, Gabriela Nunes; Levandowski, Daniela Centenaro

doi:10.1590/1414-462X202230040502

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Sumário

ARTIGO ORIGINAL • Cad. saúde colet. 30 (4) • Oct-Dec 2022 • https://doi.org/10.1590/1414-462X202230040502 copiar

Saúde mental na gestação, no nascimento e na primeira infância: análise crítica de políticas públicas brasileiras

Mental health during pregnancy, childbirth, and early childhood: a critical analysis of Brazilian public policy

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Resumo

Introdução

Gestação, nascimento e primeira infância são momentos da vida familiar que envolvem expressivas transformações e desafios para a assistência à saúde.

Objetivo

O presente artigo propõe uma análise crítica das principais políticas públicas de saúde brasileiras relacionadas à saúde mental neste período desenvolvimental das famílias.

Método

Trata-se de um estudo documental, exploratório e analítico, no qual 13 documentos do Ministério da Saúde foram analisados quanto a duas categorias temáticas definidas a priori: 1) concepções de saúde mental e 2) atores e práticas envolvidos no cuidado em saúde mental.

Resultados

Os termos saúde mental e humanização foram citados de forma ampla, sem clareza de suas definições e aplicações. A equipe multidisciplinar foi destacada, no entanto não foram encontradas especificações a respeito dos profissionais que deveriam compô-la e nem da capacitação para atuação nessa área.

Conclusão

Propõe-se a diferenciação do conceito de humanização e do cuidado em saúde mental relacionados à gestação, ao nascimento e à primeira infância, destacando-se o papel do psicólogo e a importância da aproximação entre pesquisa e políticas públicas de saúde.

Palavras-chave:
saúde mental; gravidez; nascimento; política pública; assistência à saúde da mulher e da criança

Título/Nome do documento	Ano, Tipo de documento e instituição emissora	Objetivos/Temas abordados
Portaria 1.067 - Política Nacional de Atenção Obstétrica e Neonatal	2005, Portaria/Ministério da Saúde	Ações de promoção, prevenção e assistência à saúde de gestantes e neonatos, promovendo a ampliação do acesso e o incremento da qualidade da assistência obstétrica e neonatal.
Portaria 426/GM – Política Nacional de Atenção Integral em Reprodução Humana Assistida	2005, Portaria/Ministério da Saúde	Considera a necessidade de estruturar no SUS rede de serviços regionalizada e hierarquizada à atenção em reprodução assistida, baseada nos princípios da Política Nacional de Humanização em todos os níveis de atenção.
Atenção Humanizada ao Abortamento: Norma técnica	2011, Normas e Manuais Técnicos/Ministério da Saúde	Normas para a atenção humanizada ao abortamento, incluindo atenção clínica, aspectos ético-jurídicos, acolhimento e planejamento reprodutivo.
Portaria 650 - Planos de Ação regional e municipal da Rede Cegonha	2011, Portaria/Ministério da Saúde	Dispõe sobre Planos de Ação regional e municipal da Rede Cegonha, com orientações para implementação da rede, repasse de recursos, monitoramento e avaliação.
Portaria 1.459 - Rede Cegonha	2011, Portaria/Ministério da Saúde	Institui a Rede Cegonha, rede de cuidados para assegurar à mulher o direito ao planejamento reprodutivo e à atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério, ao nascimento seguro à criança e ao desenvolvimento saudável.
Saúde da Criança: Crescimento e desenvolvimento (Número 33)	2012. Caderno de Atenção Básica (CAB)/Ministério da Saúde	Orientações para a organização do processo de trabalho relativo aos cuidados infantis na APS e ao acompanhamento do desenvolvimento infantil.
Gestação de Alto Risco: Manual técnico	2012, Normas e Manuais Técnicos/Ministério da Saúde	Discute as principais condições clínicas e diagnósticos da gestação de alto risco e as intervenções de cuidado das equipes de saúde.
Atenção ao Pré-natal de Baixo Risco (Número 32)	2013. CAB/Ministério da Saúde	Orienta o atendimento à gestação e ao puerpério com base em evidências científicas e práticas humanizadas. Aborda a organização dos serviços, condições básicas para a assistência, papel da equipe, intercorrências clínicas frequentes, assistência ao parto iminente e aspectos legais.
Portaria 1.020 - Atenção à Saúde na Gestação de Alto Risco	2013, Portaria/Ministério da Saúde	Trata da organização e estrutura de funcionamento para acompanhamento da gestante de alto risco.
Diretriz Nacional de Assistência ao Parto Normal	2016, Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas/Ministério da Saúde	Orientação às mulheres e aos profissionais e gestores (âmbito público ou privado) sobre as vias de parto e condutas, baseadas nas melhores evidências científicas disponíveis.
Guia do Pré-Natal do Parceiro para Profissionais de Saúde	2016, Ações Programáticas Estratégicas (APE)/Ministério da Saúde	Difunde, entre profissionais, o pré-natal do parceiro que visa envolver os homens nas ações de planejamento reprodutivo, ampliação e qualificação do acesso aos serviços de saúde.
O Cuidado às Crianças em Desenvolvimento: Orientações para as famílias e cuidadores	2017, APE/Ministério da Saúde	Instruir famílias e cuidadores sobre a importância dos primeiros anos, orientando sobre estimulação, vinculação e detecção de alterações no desenvolvimento infantil.
Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança	2018, APE/Ministério da Saúde	Proteger e promover a saúde da criança, mediante cuidado integral, visando à redução da morbimortalidade e à promoção de ambiente facilitador à vida.

Título/Ano	Concepções de saúde mental
Portaria 1067 (2005)	Não aborda diretamente. Refere-se apenas à integralidade da atenção e à assistência humanizada.
Portaria 426/GM (2005)	Não aborda. Apenas refere que esta política deve seguir os princípios da Política Nacional de Humanização.
Atenção Humanizada ao Abortamento: Norma técnica (2011)	Saúde mental referida como cuidado emocional às mulheres que vivenciaram um abortamento. Compreende esta experiência como “física, emocional e social”, sendo uma de suas possíveis consequências os “transtornos subjetivos” (sem definição). Trata dos aspectos emocionais como influenciadores da percepção da dor.
Portaria 650 (2011)	Não aborda.
Portaria 1459 (2011)	Não aborda. No componente “Parto e nascimento”, foca em questões ligadas à humanização do cuidado.
Cadernos de Atenção Básica - Saúde da Criança: Crescimento e desenvolvimento (2012)	Relaciona a saúde mental na primeira infância a relacionamentos familiares saudáveis e afetuosos. Considera o nascimento de um filho como crise vital da família. Cita importância de atentar-se à vulnerabilidade e às situações de violência na gestação e no puerpério.
Gestação de Alto Risco: Manual técnico (2012)	Não aborda definição específica de saúde mental. No entanto, pode-se compreender que há uma visão ampliada, ao serem considerados aspectos intrassubjetivos (reações emocionais comuns), intersubjetivos (relação familiar e com equipe) e contextuais (hospitalização como estressor).
Caderno de Atenção Básica - Atenção ao Pré-Natal de Baixo Risco (2013)	Saúde mental associada a “aspectos psicoafetivos e emocionais” da gestação, considerando-se questões físicas, emocionais e dos contextos familiar, comunitário e social. Apesar de não terem sido identificadas definições específicas sobre estes termos, estão relacionados às questões emocionais: transtornos mentais, situações de violência, gestação na adolescência, adoção e abortamento.
Portaria 1020 (2013)	Não aborda diretamente saúde mental, porém inclui os aspectos “físicos, sociais e emocionais” na compreensão da gestação, do parto e do nascimento. Trata da importância dos serviços de atenção às mulheres vítimas de violência sexual.
Diretriz Nacional de Assistência ao Parto Normal (2016)	Não aborda diretamente a saúde mental, mas aponta evidências científicas sobre a importância dos aspectos emocionais para a percepção da dor e da satisfação com o parto. Questiona o modelo atual de atenção ao nascimento, que, devido ao excesso de intervenções, tem deixado de lado os aspectos emocionais, humanos e culturais.
Guia do Pré-Natal do Parceiro para Profissionais de Saúde (2016)	Não aborda diretamente saúde mental, mas apresenta visão ampliada de saúde, para além do enfoque biológico. Defende maior participação dos homens em todo o processo reprodutivo, a fim de melhorar o acesso desta população aos serviços e garantir melhor experiência para a mulher e para o bebê.
O Cuidado às Crianças em Desenvolvimento: Orientações para as famílias e cuidadores (2017)	A saúde mental infantil é debatida enquanto sintomas que podem denunciar dificuldades na criança (sintomas psicofuncionais). Associa o termo saúde mental a problemas no desenvolvimento, ao passo que trata de aspectos saudáveis sem relacioná-los à saúde mental (como vínculo e comunicação).
Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança (2018)	Saúde mental referida como aspectos “afetivos e emocionais”, estabelecidos durante o desenvolvimento psíquico (este ligado a fatores emocionais, cognitivos e sociais da criança). Associa o termo saúde mental a problemas no desenvolvimento, sem especificar. Aborda a humanização como qualificação das práticas de cuidado e saúde mental.

Título/Ano	Atores e práticas envolvidos no cuidado em saúde mental
Portaria 1067 (2005)	Profissionais de saúde. Na atenção ao pré-natal, assinala sobre importância do acolhimento à gestante e ao acompanhante, da promoção de atividades educativas, saúde mental, atenção em situações de violência. Orienta o monitoramento e a “promoção do bem-estar físico e emocional” da mulher.
Portaria 426/GM (2005)	Não aborda.
Atenção Humanizada ao Abortamento: Norma técnica (2011)	Equipe multiprofissional. “Escuta qualificada” como responsabilidade de todos os profissionais. Diferencia o papel da equipe como um todo do papel dos “profissionais de saúde mental e serviço social”. “Suporte emocional” entendido como uma das faces da atenção humanizada, mas também papel dos profissionais de saúde mental e serviço social.
Portaria 650 (2011)	Não aborda atores específicos. Implementação da garantia de acompanhante durante o acolhimento, trabalho de parto, parto e pós-parto imediato.
Portaria 1459 (2011)	“Equipes horizontais” (sem definição). Garantia de acompanhante. Busca ativa de crianças vulneráveis e implementação de programas educativos relacionados à saúde sexual e reprodutiva. Aborda estes aspectos a partir de um enfoque principalmente biológico.
Cadernos de Atenção Básica - Saúde da Criança: Crescimento e desenvolvimento (2012)	Profissional de saúde e equipe multiprofissional. Aponta práticas em saúde mental como a visita domiciliar, a construção do genograma familiar e a atuação em rede para os casos de violência. Compreende a necessidade de atuação para a formação da parentalidade, o fortalecimento da rede de apoio social e condução atividades educativas.
Gestação de Alto Risco: Manual técnico (2012)	Profissionais de saúde e equipe multidisciplinar, constituída por especialistas da Enfermagem, Psicologia, Nutrição e Serviço Social, em trabalho articulado e planejado. Orienta sobre reações emocionais esperadas e alternativas de cuidado, como: discussões de casos em equipe, apoio psicológico e educativo, intervenção psicossocial. Assistência psicológica, se disponível, oferecida em situações específicas (como óbito fetal).
Caderno de Atenção Básica - Atenção ao Pré-Natal de Baixo Risco (2013)	Profissionais da APS. Detecção precoce do sofrimento psíquico na gestação, parto e puerpério e ações de prevenção, promoção e tratamento em saúde mental da gestante. Cita o apoio psicológico, a visita domiciliar (situações de violência e de óbito fetal), ações educativas, apoio matricial. “Corresponsabilização” em casos de internação psiquiátrica.
Portaria 1020 (2013)	Profissionais da APS. Como prática em saúde ressalta a atenção ao pré-natal de alto risco. Psicólogo como um dos profissionais que devem compor a equipe de atenção à Gestação de Alto Risco. Na atenção básica, as práticas incluem a identificação, o acolhimento, o encaminhamento para pré-natal de alto risco e a continuidade do cuidado.
Diretriz Nacional de Assistência ao Parto Normal (2016)	Profissionais de saúde, referindo apenas médicos e enfermeiros. O psicólogo é citado como envolvido indiretamente na assistência ao parto. Práticas de saúde voltadas ao manejo da dor do trabalho de parto.
Guia do Pré-Natal do Parceiro para Profissionais de Saúde (2016)	Profissionais da APS, sendo referidos médico ou enfermeiro. Acolhimento, escuta e criação de vínculo entre homens e profissionais de saúde. Acolhimento humanizado. Traz a necessidade de desenvolver ações para além do “binômio mãe-criança”.
O Cuidado às Crianças em Desenvolvimento: Orientações para as famílias e cuidadores (2017)	Não cita os profissionais de saúde. Refere apenas a família como importante na estimulação da criança e oportunidades de aprendizagem. Cuidado em relação ao desenvolvimento infantil e indicação de quando buscar serviços de saúde para a avaliação.
Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança (2018)	Profissionais da APS, Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) e agentes comunitários de saúde. Cita profissionais da Assistência Social e da Educação. Práticas voltadas à integralidade do cuidado à criança e articulação em rede. Não refere práticas específicas em saúde mental, embora entenda que estas são abarcadas na integralidade do cuidado. Aborda a importância da humanização principalmente nos contextos de risco/vulnerabilidade.

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[1] Correspondência: Gabriela Vescovi. E-mail: gabriela.vescovi@gmail.com