Resumo
Neste artigo, objetivamos, a partir da Teoria Histórico-Cultural de Vigotski, situar a organização das artes como uma atividade educativa de vivências estéticas, desde seu caráter psicológico, propiciando espaços educativos intencionalmente organizados para este fim e que possibilitem a relação ativa e criadora com diversas expressões artísticas. Para isso, se discute a relação entre pessoa, educação e vivência estética, principalmente na infância.
Palavras-chave Educação Estética; Artes; Criação; Vivência; Infância
ABSTRACT
Based on Vygotsky’s Cultural-Historical Theory, the aim of this article is to situate the organization of art as an educational activity of aesthetic experiences, from its psychological character, providing educational spaces intentionally organized for this purpose and which enable an active and creative relationship with varied artistic expressions. In order to do this, the relationship between person, education and aesthetic experience is discussed, especially in childhood.
Keywords Aesthetic Education; Arts; Creation; Experience; Emotion; Childhood
Introdução
Este artigo tem por objetivo, a partir da Teoria Histórico-Cultural de Vigotski, situar a organização das artes1 como uma atividade educativa de vivências estéticas, desde seu caráter psicológico, propiciando espaços educativos intencionalmente organizados para este fim e que possibilitem a relação ativa e criadora com diversas expressões artísticas. A arte2 é, para Vigotski (2001a), a ferramenta das emoções, a técnica social dos sentimentos.
Defendemos e enfatizamos, aqui, as artes como vivência estética que diz respeito ao campo da singularidade humana, que pode ser definida como a unidade pessoa-arte, ou seja, o que cada pessoa experiencia de modo particular na relação com uma estrutura artística intencionalmente organizada, em suas formas, conteúdos e materiais (Vigotski, 2001a). Na educação, como atividade social, agregam-se a ela sentidos histórico-culturalmente constituídos. As cores, sonoridades, os gestos, as palavras, entre outros, que compõem tais estruturas estão dialeticamente constituídos de sentidos culturais, afeto-intelectivos, bem como de experiências indivíduo-sociais que também as integram. A relação de cada pessoa com as artes possibilita um tipo específico de consciência, relativo à singularidade dos afetos (Pederiva, 2009), deixando marcas na dimensão emocional (Spinoza, 2017) e propiciando o desenvolvimento nessa esfera e em nossa psique (Oliveira, 2020). Portanto, uma educação estética, ou seja, uma educação das artisticidades, na perspectiva aqui defendida, além de considerar a apreciação, percepção e expressão, possui um caráter ativo – ou seja, eminentemente criador.
A partir do exposto, perguntamos como organizar espaços educativos que valorizem a vivência estética expressiva e criadora, possibilitando a relação ativa com diversas expressões artísticas e, principalmente, a arte como técnica social dos sentimentos (Vigotski, 2001a). Para pensar possibilidades, partimos de como Vigotski (2001a, 2003) aborda a arte, tratando da relação entre pessoa, educação e vivência estética. Em seguida, adentramos a educação estética histórico-cultural, destacando a função psicológica da atividade artística na organização das emoções. Além disso, tratamos das vivências estéticas, exemplificadas por meio de atividades musicais com crianças na escola, propondo uma concepção ampliada das artes na educação e salientando a importância de organizar espaços educativos que guiem o desenvolvimento humano em potência (Spinoza, 2017), considerando sua dimensão afeto-intelectiva.
Desse modo, o presente artigo trata a educação das vivências estéticas ressaltando os conceitos de perejivânie (vivência, em russo), vivência estética, singularidade dos afetos, criação artística, além das artes como atividades educativas e do desenvolvimento humano nesta atividade. No aspecto teórico-metodológico, dialoga com os estudos de Vigotski relativos às artes.
As artes na Teoria Histórico-Cultural
Diferentemente dos modos de como as artes têm sido tratadas e utilizadas, como explicitado no tópico anterior, na Teoria Histórico-Cultural, principalmente pelas lentes de seu criador, Lev Semionovich Vigotski, as artes possuem um lugar específico na vida humana, tratando-se de uma atividade singular, que permite determinado tipo de vivência – perejivânie (menor unidade pessoa-meio), que é a consciência da particularidade das emoções. Ela organiza a dimensão afetiva, possibilitando a autorregulação dos afetos, a equilibração das emoções. Aí encontra-se seu aspecto terapêutico-educativo em unidade, sua principal característica, sua identidade como atividade humana (Pederiva, 2009).
Não é por acaso que, a depender de nossos estados emocionais, buscamos a experiência artística que julgamos adequada ao nosso estado de espírito em determinado momento. Reconhecemos os sentido e significados sociais dados às criações artísticas porque somos seres sociais, seres artísticos. Músicas com melodias em tons menores para nos referirmos às emoções mais tristes, sons mais graves para a criação de ambientes sonoros mais tensos, por exemplo. O fato é que costumamos nos referir às experiências artísticas como emocionais, do campo do sensível. Entregamo-nos voluntariamente à catarse da experiência artística e, assim, a partir dessa consciência, nos organizamos, realizando a equilibração da dimensão emocional. Por isso, as artes são atividades necessárias à vida, singulares em termos psíquicos, e precisam ser incorporadas, não como um ornamento apenas, mas como algo que deve fazer parte dos processos educativos e de desenvolvimento humano. É a isso que Vigotski (2001a; 2003) denomina de educação estética, uma experiência educativa em arte, que, como equilibradora da pessoa no mundo por meio da vivência em sua atividade, torna-se, também, terapêutica
(Pederiva et al., 2022. p. 12).
Isso acontece na atividade artística, porque, em sua estrutura organizada por meio de forma, material e conteúdo, os signos artísticos expressam, de modo particular, os aspectos do sentimento da experiência humana, indivíduo-social, cultural e histórica. A vida afetiva deságua nas várias expressões artísticas, compondo o seu conteúdo, e quando nela mergulhamos, temos a possibilidade de um encontro com o campo dos afetos, diretamente conectados com as nossas experiências. Tomamos consciência de nossas emoções pela vivência estética, tendo a oportunidade de sua organização.
O signo, para Vygotski, possui importante função no desenvolvimento da psique, tendo em vista que media o desenvolvimento das funções psíquicas. Ao operarmos com signos, passamos a nos relacionar com processos psíquicos de alta complexidade, e, como elucida Vigotski “[...] abandonamos de hecho el campo de la historia natural de la psique y entramos en la esfera de las formaciones históricas del comportamiento”. Na utilização de signos, cria-se uma nova forma de comportamento psicológico-cultural, que possibilita o autodomínio de nossa conduta
(Pederiva et al., 2022, p. 8).
Assim, a atividade artística, como afirma Vigotski (2001a), representa um trabalho ativo do psiquismo, em que suas forças internas se movem em direções opostas, provocando um curto-circuito das emoções. As contradições emocionais nela existentes se esticam de modo contraditório, convidando-nos a vivenciar a nossa dimensão afetiva, por isso, nos entregamos voluntariamente à arte, caracterizando o que Vigotski (2001a) denomina de alucinação voluntária. Seus movimentos afetivos nos guiam emocionalmente para diversos lados, tempos e vivências aí presentes.
As artes não precisam, necessariamente, de uma expressão externa para isso; elas se resolvem internamente em nosso psiquismo, organizando o nosso campo emocional, diferentemente do que se costuma pensar no cotidiano, em suas possibilidades vivenciais, como algo externo a nós, por exemplo, um ritmo que nos levaria necessariamente a dançar. Nenhuma outra atividade humana, na balança intelecto-afetiva da constituição histórico-cultural, possui esta característica e atua deste modo, como organizadora das emoções. Por isso, é preciso compreender a essência da atividade artística, sua função psicológica, que não se desvincula de sua função social, cultural, educativa e de desenvolvimento humano. É esse o trabalho de Vigotski em sua “Psicologia da Arte”, de 1924.
Nessa obra, Vigotski (2001a) afirma, defende e desenvolve a tese de que a arte só pode ser compreendida como atividade humana e cultural, por meio de uma análise psicológica. A partir dos pressupostos da Teoria Histórico-Cultural, o autor guia o nosso entendimento a respeito de sua psicologia da arte. O primeiro pressuposto é de que os seres humanos são constituídos indivíduo-socialmente e que o nosso desenvolvimento é uma variável dependente da relação com outros seres humanos. O segundo pressuposto é de que somos constituídos histórico-culturalmente e, desse modo, somos atravessados por toda a história e cultura de nossos antepassados até os dias atuais, tanto filogenética quanto ontogeneticamente, que também constituem o nosso psiquismo. Por fim, o terceiro pressuposto afirma a nossa constituição afeto-intelectiva como uma unidade indivisível.
É exatamente por meio desses pressupostos, ou melhor, desses princípios teóricos, que podemos entender como a atividade artística atua diretamente em nossa psique. Assim, a relação pessoa-arte, ou seja, a vivência estética histórico-cultural, só pode ser compreendida se considerarmos, de antemão, esses três princípios. Isso porque eles explicam a constituição de nossa humanidade e as possibilidades de nossa relação com esta atividade no meio social, e as implicações deste tipo de vivência em nosso desenvolvimento.
Na vivência estética, a estrutura artística (forma, conteúdo, material) organizada por suas criadoras e seus criadores recolhe da vida seus materiais e conteúdos, enformando-os, por meio de signos de cada expressão artística (sons, cores etc.), organizando essa estrutura para as diversas vivências emocionais, que não estão no controle daquela ou daquele que elabora a produção artística. No encontro com a estrutura artística desta forma organizada, ela funciona como uma via de acesso às experiências afetivas de cada pessoa, pois os signos artísticos não generalizam os afetos, mas os particularizam, porque dialogam diretamente com as experiências afetivas ligadas àqueles signos, presentes naquelas estruturas, no campo do sentido (Pederiva, 2009, Vigotski, 2001a).
Como seres histórico-culturais, intelecto-afetivos e indivíduo-sociais, reconhecemos os afetos presentes em nossas experiências, que estão organizados artisticamente com experiências da mesma ordem (experiências indivíduo-sociais, intelecto-afetivas e histórico-culturais). Tomamos consciência de nossas emoções e reconhecemos os aspectos afetivos colados aos signos artísticos, que assumem sentidos particulares a depender da qualidade das experiências, como vivências estéticas.
Vivenciar a arte requer, como afirma Vigotski (2001a; 2001b; 2004), na balança afeto-intelectiva de nossa constituição como seres humanos, nos permitirmos o acesso à via das emoções presentes na configuração artística. Como dissemos anteriormente, as emoções estéticas se resolvem internamente em nós, pois são emoções culturalmente organizadas por meio da estrutura e dos signos artísticos. É por isso que não precisamos correr para fora de uma sala de cinema ante uma cena perigosa. Sentimos o perigo ali, estruturado artisticamente (forma, material e conteúdo), temos referências experienciais de perigo, mas não se trata de algo que nos impute o pavor, por exemplo, ou o medo, ou a paralisia de uma situação que nos movimente externamente. Tais sentimentos, que são reconhecidos por nós – como seres histórico-culturais que somos –, assumem, para cada pessoa, a partir de suas experiências, uma dimensão de sentido e nos movimentam internamente. Resolvem-se na singularidade afetiva da unidade pessoa-arte. Isso significa que, nessa vivência (pessoa-arte), a emoção não pode ser generalizada, uma vez que ela se relaciona às experiências de cada pessoa em sua particularidade (Pederiva, 2009).
A vivência, nessas bases, necessita de processos educativos intencionalmente voltados para esse fim; de uma educação estética histórico-cultural que seja organizada na centralidade da dimensão das emoções, como apreciação, expressão e criação artística. Como processos de experimentação performática, em que as pessoas são possibilitadas de se relacionarem com as artes de um modo criador e com liberdade. Para Vigotski (2018a), a criação é o surgimento do novo. Isso compreende a combinação intencional de formas, conteúdos e materiais (Vigotski, 2001) na produção artística.
Educação Estética histórico-cultural
Ao refletirmos sobre a educação, é necessário compreender os processos de desenvolvimento da pessoa para a qual o ato educativo se destina. É preciso considerar que os humanos são seres sociais, histórico-culturalmente situados, desse modo, o meio (o ambiente social) se apresenta como fonte de desenvolvimento (Vigotski, 2018b). Contudo, ele não é imutável. Em cada momento da vida da criança, por exemplo, o meio muda e, consequentemente, o seu papel se modifica [...] por força da educação que o torna específico para a criança a cada etapa etária: na primeira infância, a creche; na idade pré-escolar, o jardim de infância; na idade escolar, a escola (Vigotski, 2018b, p. 75).
O ato educativo provoca mudanças. Entretanto, educar não significa a transferência de conhecimentos, ideias e (ou) sentimentos alheios às pessoas. Esse entendimento, em regra, ainda é a base do nosso sistema educacional e coloca o professor, ou a professora, como uma ferramenta da educação, um(a) mero(a) transmissor(a) de conhecimento, “um apóstolo da redundância” (Vigotski, 2003, p. 297). Para o autor, o meio é o único fator educativo, e o(a) professor(a) deve ser o(a) organizador(a) deste espaço (Vigotski, 2003). Ao considerarmos isso, o(a) professor(a) tem um importante e revolucionário papel, visto que;
[...] cada educação possui seus próprios objetivos – até mesmo em cada período da educação pode haver objetivos próprios – e, independentemente da forma como se expressam, sempre formularão os aspectos e o caráter da conduta que essa educação deseja tornar realidade
(Vigotski, 2003, p. 81).
Assim, educar significa a intervenção consciente do(a) professor(a), planejada intencionalmente, adequada ao objetivo. Educar para quê? É a pergunta que deve ser considerada na organização da vida e da educação da criança, como também de todas as outras pessoas. Dessa maneira, a atividade pedagógica pode assumir uma postura emancipatória, tanto para os(as) professores(as), quanto para os estudantes. No que diz respeito às artes, sua intencionalidade deve ser centrada no campo dos afetos.
No caso da educação estética histórico-cultural, é necessário o entendimento dos objetivos que determinam os seus caminhos. Vigotski (2018a) elucidou dois comportamentos humanos essenciais para o seu desenvolvimento, o reprodutor e o criador, ressaltando ser esse último o que impulsiona o ser humano para o futuro. Portanto, não podemos nos limitar somente à imitação, mas sobretudo ampliar possibilidades por meio da atividade criadora.
O cérebro não é apenas o órgão que conserva e reproduz nossa experiência anterior, mas também o que combina e reelabora, de forma criadora, elementos da experiência anterior, erigindo novas situações e novo comportamento. Se a atividade do homem se restringisse à mera reprodução do velho, ele seria um ser voltado somente para o passado, adaptando-se ao futuro apenas na medida em que este reproduzisse aquele
(Vigotski, 2018a, p. 18-19).
Ou seja, a criação é importante para o desenvolvimento humano (Vigotski, 2018a), e os espaços educativos devem estar voltados para este fim. Contudo, isso não significa que tal atividade surge naturalmente, dos impulsos internos das próprias pessoas, e que todas as manifestações desta criação sejam totalmente iguais. Em seus estudos, Vigotski (2018a) elucida o processo criador a partir de seu desenvolvimento na criança. Por exemplo, ele afirma que a “criação literária infantil pode ser estimulada e direcionada externamente e deve ser avaliada do ponto de vista do significado objetivo que tem para o desenvolvimento e a educação da criança” (Vigotski, 2018a, p. 90). Isso quer dizer que é necessária a organização de espaços educativos com esta intencionalidade, de possibilitar vivências estéticas por meio de atividades em artes.
Assim, planejar o espaço educativo com o intento de organizar atividades criadoras é o fundamento para a criação artística. Entretanto, podemos admitir que existe um fio tenso entre organizar o ambiente educativo pelo princípio da criação e instrumentalizar as artes – no sentido de apresentar determinadas tarefas ou temas; oferecer reproduções musicais, plásticas, e outras, tomadas da realidade – para provocar a criação. Isso porque são procedimentos que sofrem de uma artificialidade radical, ou seja, servem apenas ao objetivo pedagógico para o qual foram criados, sem considerar o sentido objetivo da atividade artística que envolve ampliar e purificar a vida emocional (Vigotski, 2018a).
A organização da educação estética histórico-cultural pelo princípio da criação considera que há uma relação ativa entre as pessoas e as produções artísticas; isso é do campo da singularidade. A atividade estética é uma atividade criadora e possibilita a reelaboração da realidade pela via da vivência emocional, a organização do comportamento futuro, bem como a autorregulação das emoções. Desse modo, a emoção se torna pessoal quando cada um de nós vivencia as artes, mas sem deixar de ser social, uma vez que a “arte é a técnica social do sentimento, uma ferramenta da sociedade que leva os aspectos mais íntimos e pessoais de nosso ser para o círculo da vida social” (Vigotski, 2008, p. 304, grifo nosso). Por isso, apesar de a ação das artes se realizar no ser humano de maneira individual, suas raízes são sociais.
A exemplo disso, ao citar o desenho como criação típica da idade pré-escolar, se ele não for feito pela indicação do adulto, proporciona a criança “se sentir livre e independente do traçado real dos objetos” (Vigotski, 2003, p. 236). O(a) professor(a) deve organizar o ambiente educativo para que o desenhar, bem como as outras expressões artísticas, como atividades criadoras, surjam a partir dos interesses da criança. O desenho dela não deve ser corrigido pelo olhar do adulto, pois isso implica, além de controle e formatação da criação, uma perturbação na psique, limitando seus processos criadores. É fundamental respeitar a plena liberdade de criação de todas as pessoas, inclusive da criança. A criação é o destino de todos, uma vez que;
[...] a possibilidade criativa que cada um de nós possui, de se transformar em co-partícipes de Shakespeare em suas tragédias e de Beethoven em suas sinfonias, é o indicador mais claro de que em cada um de nós existe potencialmente tanto um Shakespeare quanto um Beethoven
(Vigotski, 2003, p. 244).
Isto posto, a humanidade mantém, por meio das artes, uma experiência extraordinária. A produção artística atravessa a história e permanece. Por isso, quando se trata “de educação estética dentro do sistema da formação geral, sempre se deve levar em conta, sobretudo, essa incorporação da criança à experiência estética da humanidade” (Vigotski, 2003, p. 238). A educação estética, entendida histórico-culturalmente, deve estar inserida na própria vida. Para tanto, é necessário a organização de uma educação estética histórico-cultural, principalmente, pelo significado educativo das vivências estéticas.
Vivências estéticas na educação
Neste momento, compartilharemos algumas vivências estéticas na educação, e para isso dialogamos com Oliveira (2020). Antes disso, e para dar prosseguimento, faremos uma breve síntese dos principais conceitos desenvolvidos anteriormente.
As vivências estéticas possuem um fator educativo, o qual nomeamos de educação estética (Vigotski, 2003), como já pontuado. No entanto, para que vivências estéticas potencializadoras aconteçam, é preciso pensar sob quais bases as artes, enquanto atividade educativa, estão sendo organizadas e, sobretudo, experienciadas. Sobre o conceito de vivência, Vigotski (2018b, p. 78, grifo nosso) explica que a;
[...] vivência é uma unidade na qual se representa, de modo indivisível, por um lado, o meio, o que se vivencia – a vivência está sempre relacionada a algo que está fora da pessoa –, e, por outro lado, como eu vivencio isso. Ou seja, as especificidades da personalidade e do meio estão representadas na vivência: o que foi selecionado do meio, os momentos que têm relação com determinada personalidade e foram selecionados desta, os traços do caráter, os traços constitutivos que têm relação com certo acontecimento.
Ou seja, a vivência se constitui como uma unidade pessoa-meio. Tratando-se das artes, o meio vivenciado contém produções artísticas que guiam vivências estéticas possibilitadas pela relação pessoa-arte; vivências que ocorrem de modo específico para cada ser humano, em cada momento da vida, tanto pelo caráter do conceito de vivência (Vigotski, 2018b) quanto pelo caráter da especificidade da função da arte, que é ser ferramenta das emoções (Vigotski, 2001a).
A centralidade das vivências estéticas, sob os pressupostos da Teoria Histórico-Cultural, ocorre no campo dos afetos, na relação emocional da pessoa com aquilo que vivencia e com o seu psiquismo constituído socialmente, sem desconsiderar os seus aspectos criadores. Portanto, ao tratarmos das artes na educação, é essencial que a vivência emocional seja o âmago.
A seguir, compartilharemos vivências estéticas na educação analisadas por Oliveira (2020), em sua pesquisa realizada em Brasília-DF, intitulada Educação musical: das vivências ao desenvolvimento da musicalidade de crianças, submetida e aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade de Brasília; número do parecer: 3.740.012. Ressaltamos que, apesar de a pesquisa ter como foco a música como expressão artística e as crianças como participantes, seus resultados ampliam-se às outras expressões, tais como o teatro, a dança, o cinema, dentre outras, e aos outros períodos de desenvolvimento. Além disso, reconhecemos que existem diversos modos para estruturar a educação estética sob as bases que temos sustentado. Não temos por objetivo criar um caminho único para tal, de modo a limitar a organização de espaços educativos em artes. Intencionamos partilhar experiências, ampliando possibilidades e caminhos para uma educação estética histórico-cultural.
O objetivo da referida pesquisa era investigar de que modo os espaços educativos em música podem ser organizados com centralidade nas vivências sonoras das crianças (Oliveira, 2020). Para isso, a pesquisadora-professora organizou um espaço educativo-musical com 14 crianças que estudavam juntas em uma escola de Brasília-DF, no 1º ano dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Na investigação em questão, as participantes foram convidadas a gravarem os sons de seus espaços de vivência, aqueles que experienciavam cotidianamente. Com isso, foi criado um acervo de paisagens sonoras3 contendo as gravações, que eram paulatinamente partilhadas e, a partir disso, foi organizado um espaço educativo objetivando o desenvolvimento de suas musicalidades, a ampliação de possibilidades na relação criança-som.
Fonterrada (2004) afirma que o som é a matéria-prima da música. Histórico-culturalmente falando, podemos afirmar que o som é um dos materiais da arte da música, não o único, e relembramos que além do material, a arte é produzida contendo forma e conteúdo (Vigotski, 2001a). Outro fator é que, ao ser inserido no campo das artes, o som torna-se, além de um signo sonoro, um signo estético, artístico. A relação das pessoas com o mundo, ao ser mediada pelos signos, amplia suas possibilidades de desenvolvimento cultural. Essa é uma premissa no entendimento da teoria vigotskiana.
O desenvolvimento cultural consiste na assimilação de meios de comportamento que têm por base a utilização e emprego de signos para a realização de determinada operação psicológica, que o desenvolvimento cultural consiste exatamente no domínio desses meios auxiliares de comportamentos que a humanidade criou no processo de seu desenvolvimento histórico e que são a língua, a escrita, o sistema de cálculo, entre outros
(Vigotski, 2021, p. 76-77)
Tratando-se das artes, a vivência emocional proporcionada pela organização de conteúdo, forma e material, que suscita uma reação estética singular, amplia possibilidades de ser e existir no mundo, de desenvolver-se enquanto ser humano cultural, de autorregular-se e vivenciar estados afetivos que somente o cotidiano não possibilita. As artes nos viabilizam a relação não por uma via direta, mas indireta, dificultada, com emoções que somente são acessadas por sua organização específica.
Retomando a pesquisa em questão, de Oliveira (2020), com o compartilhamento das paisagens sonoras gravadas pelas próprias crianças, elas demonstraram vivenciar emocionalmente aspectos de seu cotidiano que as suas experiências diretas possibilitaram.
A exemplo, uma criança da pesquisa apresentou para a turma uma paisagem sonora contendo uma máquina de lavar roupa em pleno movimento de centrifugação. Ao ouvirem o som, as participantes da pesquisa identificaram a fonte sonora (máquina de lavar roupa), e por meio de seus comportamentos musicais e pelas palavras, demonstraram os modos como se relacionam com tal sonoridade, os quais compartilharemos a seguir.
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Ao ouvirem o som, as crianças nomearam a fonte sonora, “máquina de lavar roupa”. Apesar de sabermos da importante função da fala e da palavra para o desenvolvimento humano, que é o de generalização do mundo (Vigotski, 2014), o objetivo da pesquisa não continha um viés de nomeação e/ou generalização; a pesquisadora buscava além.
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Após ser identificada a fonte sonora, as crianças foram convidadas a vivenciarem de outros modos o som em questão, não somente enquanto percepção e apreciação sonora, mas de maneira expressiva e criadora, tal como acreditamos ser necessária uma educação estética histórico-cultural. Nesse momento, as participantes se levantaram e, corporalmente, criaram sons enquanto giravam o corpo com os braços abertos, emitindo sonoridades com a boca.
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Em um terceiro e último momento, realizaram o registro sonoro-gráfico daqueles sons, de maneira que, por meio de desenhos, elas pudessem se expressar musicalmente por outros modos. Nesse instante, elaboraram desenhos e conversaram com a professora-pesquisadora para partilhar suas expressões. Nos diálogos, surgiram falas diversas, tal como as vivências de cada criança com os sons são múltiplas. Algumas falas foram: “eu não gosto do som da máquina de lavar roupa”; “eu gosto desse som porque me dá vontade de dançar”; “esse som me atrapalha a fazer as minhas coisas”, dentre outros que estão disponíveis na íntegra na pesquisa.
Sobre isso, Oliveira (2020, p. 95) explica que “[...] não é possível esperar que uma mesma experiência seja vivenciada de igual maneira por todos. A diversidade de vivências existe, com múltiplos sentidos e significados atribuídos por cada ser humano”. Ou seja, quando tratamos da unidade pessoa-meio (Vigotski, 2018b), ou mais especificamente, pessoa-arte, não há como generalizar os modos como cada pessoa vivencia o fenômeno artístico, porque está no campo da singularidade dos afetos (Pederiva, 2009).
De forma semelhante, um choro de bebê recém-nascido gravado por uma criança da pesquisa, ao ser compartilhado com as outras participantes da pesquisa, foi imediatamente reconhecido por todas e possibilitou diferentes sentidos:
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Ao ouvirem o choro de bebê recém-nascido, as crianças nomearam a fonte sonora, “bebê”, e notaram que era o choro de um recém-nascido.
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Após ser identificada a fonte sonora, a pesquisadora convidou as crianças para expressarem os diferentes modos de choro que elas conheciam. Nesse momento, as participantes criaram sons corporal-musicalmente, emitindo sonoridades com a boca. No processo de compartilhamento, tiveram a oportunidade de ampliar as suas experiências sonoras com o fenômeno em questão.
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Por fim, realizaram o registro sonoro-gráfico daqueles sons. Nesse momento, elaboraram desenhos e conversaram com a professora-pesquisadora para partilhar suas expressões. Algumas falas foram: “eu me sinto irritada”; “esse choro dói o ouvido”, dentre outros que estão disponíveis na íntegra na pesquisa.
Oliveira (2020, p. 120) explica: que além da vivência com o som, que possui um sentido particular para cada pessoa, os sons estão carregados de sentidos sociais, históricos e culturais e as crianças, inseridas em toda essa historicidade e cultura se relacionam com tudo que foi, é e será constituído.
Logo, cada pessoa se relaciona com a produção artística a partir de suas experiências como indivíduo-social.
Com a organização do espaço educativo proposto na investigação, percebeu-se que as crianças se desenvolveram musicalmente e, nesse processo, além dos aspectos criadores que envolvem as artisticidades humanas, vivenciaram suas emoções a partir da relação pessoa-meio, pessoa-som, pessoa-arte. A isso compreendemos uma educação estética histórico-cultural que possibilita o desenvolvimento humano em potência, na relação com as artes em sua própria função, a de ser ferramentas das emoções (Vigotski, 2001a). Portanto, os resultados permitem pensar elementos para uma educação estética de caráter ativo, evidenciando novas possibilidades para as artes na educação, sobretudo na escola, de maneira a potencializar o desenvolvimento da artisticidade do ser humano cultural no campo das atividades artísticas. Nas palavras de Oliveira (2020, p. 169), esta é uma busca pela “[...] educação das potências, dos afetos e intelectos, do diálogo, da arte, das emoções, do desenvolvimento humano uno e integral, e das vivências como essência dos processos educativos”.
Conclusão
Neste artigo, defendemos a organização das artes como uma atividade educativa de vivências estéticas, a partir de seu caráter psicológico, propiciando espaços educativos intencionalmente organizados para este fim, que possibilitem a relação ativa e criadora com diversas expressões artísticas. Essa relação é guiada e constituída não apenas e diretamente pelas vivências de quem as cria, mas, principalmente, pelas experiências de cada pessoa com as estruturas artísticas socialmente vivenciadas no cotidiano (Vigotski, 2001a), em seu conteúdo, forma e material organizados enquanto arte. Pudemos evidenciar que as artes são imprescindíveis à vida e ao desenvolvimento humano. Há uma linha muito tênue das artes como processo educativo e terapêutico, isso porque atuam como organizadoras e equilibradoras das emoções.
Assim, é preciso que a Teoria Histórico-Cultural, para além de seus princípios aqui elucidados, atue na direção de um giro epistemológico nas práticas educativas em artes que até hoje, mais de um século depois de Vigotski, ainda privilegiam a espetacularização, intelectualização, o controle dos corpos e a mera reprodução, sobretudo nas vivências da atividade artística na escola. Isso não representa uma educação no campo das artes, uma educação estética histórico-cultural. Quando a vida se impregnar de arte, a arte se tornará a própria vida, como afirma Vigotski (2003).
A teoria de Lev Semionovich Vigotski e sua psicologia da arte fornecem as bases necessárias para a organização de uma educação estética voltada ao desenvolvimento humano em potência.
Agradecimentos
Não se aplica.
Notas
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1
Neste texto, optamos por utilizar a palavra no plural, artes, no intuito de enfatizar as diversas expressões artísticas, tais como a música, a dança, o teatro, as artes visuais e outras, conforme exposto na Lei n.º 13.278, publicada no dia 2 de maio de 2016, que amplia a obrigatoriedade do ensino de música na Educação Básica para as outras expressões artísticas (BRASIL, 2016).
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2
O autor, em seus escritos, se refere à arte no singular. Por isso, quando o termo for oriundo de uma citação será escrito conforme a flexão do número gramatical, arte, no singular.
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3
Paisagem sonora é um conceito fundado por Murray Schafer (2011), e é compreendido como qualquer campo de estudo acústico. Ou seja, são os sons que constituem os espaços que vivenciamos.
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Número temático organizado por: Lavínia Lopes Salomão Magiolino https://orcid.org/0000-0001-8716-4208, Daniele Nunes Henrique Silva https://orcid.org/0000-0002-8174-2967 e Kátia Maheirie https://orcid.org/0000-0001-5226-0734
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Financiamento
Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade de BrasíliaProjeto No: PPGE N.º 01/2024.
Disponibilidade de dados de pesquisa
Disponível em: http://repositorio.unb.br/handle/10482/39227.
Referências
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Editoras Associadas:
Lucia Reily https://orcid.org/0000-0002-2792-8664 e Maria Silvia P. M. Librandi da Rocha https://orcid.org/0000-0002-6001-1292
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
22 Nov 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
06 Fev 2024 -
Aceito
03 Set 2024