ccedes
Cadernos CEDES
Cad. CEDES
0101-3262
1678-7110
Centro de Estudos Educação e Sociedade
This paper aims to examine the pedagogical basis of Mozambique's education reform
that introduces technical education in basic education and "vocational" subjects in
high school, in order to unify school and work. In order to analyze the inclusion of
work in school programs, the theoretical framework focuses on Marx's and Gramsci's
thinking. A brief historical approach, concerning the socialist dimension of
Mozambique's education, introduces the idea of polytechnic education in the country,
describing the current context, characterized by productive restructuration. Finally,
the question proposed is: do the current changes oriented towards the inclusion of
work in basic and high school mean that the idea of polytechnic schools has been
materialized?
INTRODUÇÃO
As mudanças científicas ocorridas no final do século XIX, tendo revolucionado a base
técnica de produção, transformaram o processo produtivo, pois a realização do trabalho
humano passou a não mais depender do conhecimento específico que o trabalhador possuía
sobre o mesmo. A sua inserção na atividade produtiva ficou condicionada ao domínio de
novos códigos científicos, uma exigência acima da modalidade de aprendizagem artesanal.
Foi nesse contexto que surgiu um novo método educativo inspirado na experiência dos
filantropos ingleses nas escolas agronómicas e politécnicas, como aquela dirigida por
Robert Owen. (DORE SOARES, 1996, 2003)
O novo método de educação era baseado no ensino teórico - "os princípios gerais e
científicos de todo o processo de produção" - unido ao prático - iniciar as crianças e
adolescentes no manejo de ferramentas elementares dos diversos ramos industriais. (MARX; ENGELS, 2004, p. 68) Com esse método, os
ofícios deixaram de ser um mistério acessível apenas ao mestre: eles foram
universalizados através da qualificação profissional desespecializada. Também o novo
método representou a superação do ensino meramente teórico, de carácter humanista,
oferecido nas escolas burguesas. (DORE SOARES,
1996)
O método de ensino em causa ficou conhecido por politecnia, cujo significado primário
foi a aprendizagem de várias técnicas: a polivalência. Trata-se de um conceito sobre o
qual há diferentes interpretações e grande polêmica, o que torna complexa a compreensão
do seu significado. (GONÇALVES, 2007)
Em Moçambique o vínculo entre escola e trabalho, entre teoria e prática na educação "de
orientação socialista", estabelecido em 1983, foi reduzido à dimensão técnico-económica
e moralista. (GONÇALVES, 2007) Mesmo após a
reversão do projeto socialista de educação, ocorrida em 1992, o país ainda continua a
defender a necessidade da ligação entre teoria e prática, entre escola e trabalho no
processo educativo, o que justifica a inclusão do ensino da disciplina de ofícios no
ensino básico1 e das disciplinas
"profissionalizantes" no ensino médio geral.
O presente texto analisa os fundamentos pedagógicos subjacentes à reintrodução do
princípio e do facto do trabalho no ensino básico e médio geral na educação moçambicana,
considerando aquelas duas referidas disciplinas. Pretende-se compreender se a ideia de
politecnia, que visava à transformação social e à igualdade socioeducacional, finalmente
ganhou espaço na educação escolar moçambicana. A hipótese deste artigo é a de que o
princípio e o facto do trabalho na escola, que acompanha a introdução daquelas
disciplinas, ainda continuam reduzidos à sua dimensão técnico-económica, pelo que a
politecnia ainda não encontrou espaço para sua efetivação. A abordagem do tema se inicia
com a discussão sobre a politecnia em Marx e Gramsci.
A "POLITECNIA" EM MARX E GRAMSCI
Marx viu no método educativo que incluía o trabalho na escola, unindo o ensino teórico e
o prático, como propício à formação dos trabalhadores. Ele defendeu, primeiramente, o
trabalho no sentido econômico, pois estava em causa a sobrevivência dos trabalhadores,
afirmando a necessidade de um trabalho remunerado vinculado à instrução. Esta deveria
incorporar a dimensão corporal, intelectual e também recolher "os princípios gerais e de
carácter científico de todo o processo de produção e, ao mesmo tempo, iniciar as
crianças e os adolescentes no manejo de ferramentas elementares dos diversos ramos
industriais" - a educação tecnológica. (MARX; ENGELS,
2004, p. 68) Marx sublinhou que a classe trabalhadora seria alçada a uma
posição mais elevada do que a burguesa e a aristocrática. Conforme ele sublinha, seria
"nas tais escolas politécnicas", nas quais o trabalho produtivo pago é combinado à
educação intelectual, aos exercícios corporais e à formação politécnica, que a classe
operária seria elevada acima das classes burguesas e aristocráticas. (MARX; ENGELS, 2004, p. 68) É no uso marxiano de dois
conceitos - formação politécnica e educação tecnológica - que está a divergência entre
os educadores socialistas: Marx defendeu a educação tecnológica ou a formação
politécnica2?
Marx usa os termos educação tecnológica e formação politécnica de uma forma
indiscriminada, inspirando-se no modelo de formação das escolas politécnicas que unia o
ensino teórico e o prático, com base no trabalho. Para ele, se um dos aspectos positivos
da Revolução Industrial foi ter rasgado o "véu que ocultava ao homem o seu próprio
processo social de produção" (MARX; ENGELS, 2004,
p. 76), com o novo método educativo abriram-se as possibilidades para se elevar a
produção social do homem, uma vez que as escolas de ofícios transformavam "os ramos de
produção naturalmente diversos em enigmas, mesmo para aquele que fosse iniciado num
deles". (MARX; ENGELS, 2004, p. 76) Nesta
afirmação, Marx sinaliza dois aspectos fundamentais que consubstanciam os objectivos do
socialismo: a lógica que orienta a produção material e a lógica que orienta o processo
de produção da realidade social. Ambas devem ser objecto de análise, por parte das
classes subalternas, em sua luta pela transformação social e pela conquista daigualdade.
É nesta direcção que Gramsci aponta ao propor a ideia da Escola Unitária.
Gramsci propôs a ideia da Escola Unitária num contexto de novas correlações de forças
entre os grupos sociais fundamentais (GRAMSCI,
2002, p. 78) no Estado burguês. De um lado, a burguesia pretendia manter sua
hegemonia civil e, de outro, os trabalhadores lutavam pelo poder político e por uma
escola que, incluindo o princípio e o facto do trabalho, atendesse aos seus interesses
imediatos: a preparação para o mundo do trabalho.
Vendo que a escola se afigurava numa importante frente cultural de luta para o alcance e
o exercício da hegemonia, a burguesia atendeu às reivindicações da classe trabalhadora,
ampliando o direito político do sufrágio e o direito social à educação. A extensão do
direito à educação, em uma escola orientada pelo princípio e pelo facto do trabalho, foi
feita em moldes diferentes. Para as elites, foi-lhes constituída a Escola Nova, tendo
como referência o trabalho no sentido de atividade organizadora, exaurindo a sua matriz
transformadora. Aos trabalhadores, foi-lhes apresentada as escolas profissionais, tendo
também como referência o trabalho com o significado de preparação profissional.
Tratou-se de uma simulação de democratização da educação, pois foram organizadas duas
escolas para públicos diferentes: a dos dirigentes e a dos dirigidos, respetivamente.
Foi contra o dualismo escolar que Gramsci propôs a ideia da Escola Unitária,
[...] uma Escola única inicial de cultura geral, humanística, formativa, que equilibre
equanimente o desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente (tecnicamente,
industrialmente) e o desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual. (GRAMSCI, 2004, p. 33)
As classes subalternas devem possuir uma formação que lhes propicie não somente obter
qualificação técnica para se inserirem no mundo produtivo, bem como dar-lhes uma
formação que lhes "possibilite ampliar sua esfera de participação no governo da
sociedade". (DORE SOARES, 2003, p. 324) Por isso,
a proposta pedagógica de Gramsci reúne os aspectos positivos da escola tradicional
(formação humanista) e contempla o método pedagógico das escolas politécnicas - a união
entre a teoria e a prática, com base no trabalho transformador. Com a
educação escolar que une teoria e prática na actividade humana transformadora, as
classes subalternas podem participar da "história real das modificações das relações
sociais, das quais surgem e são apresentados os problemas". (GRAMSCI, 1995, p. 266) As maiorias sociais, assim formadas, podem
enveredar por um agir consciente, evitando o voluntarismo e o mecanicismo, numa acção
coletiva - trabalho - (política), unida organicamente à teoria (filosofia) no movimento
da história - prática. (GRAMSCI, 1995, p. 264)
Se a escola foi tida, pela burguesia, como frente cultural de luta para o alcance e o
exercício da hegemonia, a mesma escola também pode contribuir para a elaboração crítica
do pensamento das maiorias sociais, contribuindo para constituir a "consciência daquilo
que realmente somos, um conhece-te a ti mesmo, como produto do processo histórico até
hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços sem benefícios no
inventário". (GRAMSCI, 1995, p. 12)
Revela-se, na complexidade da relação entre teoria e prática, o carácter dialético e
contraditório da escola no pensamento de Gramsci. Em sua perspectiva política, na qual a
escola constitui uma das mais importantes frentes culturais, o método educativo iniciado
nas escolas politécnicas, que une o ensino teórico e o prático com base do trabalho,
constitui uma referência política para organizar uma educação escolar igual, que
recupere a unidade ontológica do ser humano e que também contribua para o processo de
transformação social.
Não se trata de reduzir a proposta pedagógica de Gramsci à ideia de politecnia iniciada
com Owen e discutida por Marx. Trata-se, sim, de evidenciar, no projeto de Escola
Unitária, a relevância do método de ensino das escolas politécnicas para a luta política
do socialismo em defesa dos que vivem do trabalho. Ao se referir às escolas
politécnicas, Marx sublinha que, além da formação politécnica, a educação dos
trabalhadores tem de incluir a dimensão intelectual e a ginástica. Gramsci baseia-se
nessa concepção educacional ao propor a ideia da Escola Unitária, apesar de nunca ter
usado a expressão "politecnia", e sim o trabalho transformador.
Mesmo com a reflexão e a proposta educacional de Gramsci, foi o termo "politecnia" que
acabou ficando conhecido no "socialismo real" como sinônimo de uma concepção socialista
de vinculação entre trabalho e ensino. Essa concepção, entretanto, encontrou alguns
impasses na sua implementação devido à redução do princípio e facto do trabalho na
escola à dimensão moral, positivista e economicista, facto que não contribuiu para o
avanço de uma idéia socialista da educação. (DORE
SOARES, 1996)
Moçambique foi um dentre os vários países que, após a sua independência (1975), optou
pela via socialista de desenvolvimento. Na proposta educacional do país, foi sublinhado
que a educação geral possuía um carácter politécnico, como tradução do princípio
pedagógico de ligação entre a teoria e a prática, entre a escola e o trabalho produtivo
socialmente útil. (MOÇAMBIQUE, 1985, p. 17) Qual
o significado da politecnia na educação socialista moçambicana?
A POLITECNIA EM MOÇAMBIQUE
O termo politecnia, em Moçambique, consta da Lei 4/83 de 23 de Março de 1983 que
organizou o Sistema Nacional de Educação (SNE). (MOÇAMBIQUE, 1985) Para incluir a politecnia na nova educação, foi tomada como
referência a experiência educacional das "míticas" Zonas Libertadas.
Teria sido em tais Zonas onde se "forjaram os princípios que orientam a sociedade e a
concepção de educação". (MEC, 1980, p. 2) No
discurso oficial, era ali que o trabalho manual e a "produção faziam parte da educação".
(MEC, 1980, p. 2) Este procedimento
educacional teria diferido da educação colonial, que separava a teoria e a prática, o
que levou ao "desprezo do trabalho manual, com objectivo de criar uma elite nos centros
de ensino". (MACHEL, 1975, p. 4)
A legislação de 1983 propunha evitar a criação de uma elite, definindo que o objectivo
da área politécnica era "a transmissão das bases científico-técnicas da produção, o
desenvolvimento de capacidade de trabalho produtivo e a ligação constante dos
conhecimentos adquiridos à prática da vida social e à produção". (MOÇAMBIQUE, 1985, p. 20) O ensino das bases técnico-científicas é
justificado com base no argumento de que a ciência e a técnica devem ser apropriadas
pelas massas populares, garantindo a "igualdade de oportunidades que tem qualquer
cidadão de acesso a todos os níveis de ensino e educação". (MEC, 1980, p. 2) Com essa definição de politecnia, pretendia-se
alcançar a igualdade sócio-educacional.
De modo a garantir a educação politécnica, o governo introduziu a disciplina
"actividades laborais", oferecida no ensino geral, centrada no trabalho socialmente
útil, que significa uma estreita ligação do trabalho prático à fabricação de artigos
socialmente úteis e à aquisição de conhecimentos científicos, educando-se o aluno
no amor ao trabalho. (MEC,
1985) Os conteúdos das disciplinas deveriam responder às orientações do IV
Congresso do Partido Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) (1983), que "visavam o
combate da fome e da nudez", exigindo, para isso, a realização de "trabalhos na horta
escolar e os trabalhos com os tecidos". (MEC,
1983, p. 67) As escolas tinham de planejar a produção, organizando oficinas
artesanais e a prática da agropecuária. Desse modo, além de garantir a politecnia, os
resultados provenientes da produção poderiam ajudar as escolas a se auto manter. (MACHEL, 1979)
Tendo-se definido o objectivo das actividades laborais como realização da educação
politécnica, o trabalho foi entendido como produção e a união entre o ensino e o
trabalho passou a ter um significado económico (combater a fome, a nudez e garantir a
auto-subsistência das escolas). A participação no trabalho da horta escolar ou a ida do
aluno a uma unidade fabril (MOÇAMBIQUE, 1985)
tinham como objetivos desenvolver "o gosto e amor pelo trabalho" (MINED, 1988, p. 57) e a consciência de trabalhador no indivíduo.
Do ponto de vista organizacional, a escola única circunscreveu-se ao ensino primário.
Após esse nível de ensino, a educação moçambicana possuía, de um lado, a escola geral,
de base humanista e, de outro, as escolas técnico-profissionais para onde eram
encaminhados os filhos dos camponeses e operários dentro do patriotismo revolucionário.
(MAZULA, 1995)3 A mesma organização escolar, pensada para a efectivação de um projecto
socialista na década de oitenta, com limitações no entendimento do significado do
trabalho na escola ainda prevalece na atualidade, após a reorganização política (1990) e
económica (1987) do Estado.
O ENSINO DE OFÍCIOS E A PROFISSIONALIZAÇÃO DO ENSINO MÉDIO
Em 1990, foi promulgada uma nova Constituição no país, antecedida de programas de
reajuste estrutural (1987), como resultado dos acordos assinados entre Moçambique e as
agências multilaterais - o Banco Mundial (BM) e o Fundo Monetário Internacional (FMI).
No texto da Constituição, o objectivo do Estado passa a ser "a edificação de uma
sociedade de justiça social e a criação do bem-estar material e espiritual dos
cidadãos". (MOÇAMBIQUE, 1994, 1990, art.º 6, b)
Esses princípios são característicos de um Estado fundado na teoria liberal moderna da
cidadania. (AZEVEDO, 1997) Era revertido o
projecto socialista de sociedade cujo desdobramento, na educação escolar, expressou-se
através da aprovação da Lei 6/92 de 06 de Maio de 1992. (MOÇAMBIQUE, 1992) A instituição dessa Lei decorreu da "necessidade de
reajustar o quadro geral do sistema educativo e adequar as disposições contidas na Lei
nº 4/83 de 23 de Março de 1983 às condições sociais e económicas do país - as do
capitalismo neoliberal - tanto do ponto de vista pedagógico como
organizativo". (MOÇAMBIQUE, 1992, p. 104, grifo
nosso)
Um dos princípios pedagógicos da nova Lei (MOÇAMBIQUE,
1992) é o vínculo entre teoria e prática, "que se traduz no conteúdo e método
de ensino de várias disciplinas, no carácter politécnico do ensino conferido e na
ligação da escola com a comunidade" (artigo 2, alínea c) a ser oferecida no ensino geral
(artigo 10, n. 2). Outro princípio é a "ligação entre a escola e o trabalho produtivo
socialmente útil, como forma de aplicação dos conhecimentos científicos à produção e de
participação no desenvolvimento económico e social do país" (artigo 2, alínea d).
Durante muito tempo, aqueles dois princípios pedagógicos (teoria e prática, escola e
trabalho) foram "letra morta". A partir do ano 2000, o Estado moçambicano começou a
efectuar reformas curriculares no ensino básico, no secundário e no
técnico-profissional4. O corolário dessas
reformas foi a apresentação dos Planos Curriculares do Ensino Básico (PCEB) (MINED, 2003) e do Ensino Secundário Geral (PCESG).
(MINED, 2007)
A novidade trazida pelos Planos para os Ensino Básico e Secundário refere-se à afirmação
do carácter integrado do ensino, à introdução do ensino da disciplina de ofícios no
ensino básico, de disciplinas profissionalizantes no ensino secundário geral e à
consideração de que todo o ensino secundário geral é também profissionalizante.
Os ofícios e as disciplinas profissionalizantes fazem parte das actividades práticas que
devem garantir o carácter integrado do ensino. A disciplina de ofícios engloba
actividades tais como a "escultura, jardinagem, artesanato, costura, cozinha, bordado,
fazer jardins e hortas, plantar árvores, construir objectos utilitários, realizar
actividades agro-pecuárias e piscatórias", tendo como propósito "fazer uma ligação, o
mais cedo possível, entre as actividades laborais da comunidade onde a escola está
inserida" (MINED, 2003, p. 39-40). Deste modo, os
estudantes estarão minimante preparados para enfrentarem "a vida e adquirir bases para a
aprendizagem de um ofício que lhes permita responder ao mercado de emprego". (MINED,
2003, p. 39) Caso o estudante não encontre emprego, poderá enfrentar a vida e responder
ao mercado de trabalho através do auto-emprego, pois os ofícios também são para promover
"atitudes positivas em relação aos desafios da cooperação, trabalho e auto-emprego".
(MINED, 2003, p. 21)
O mercado de trabalho, como fim último da formação escolar, é igualmente referido no
Plano Curricular do Ensino Secundário Geral. Organizado em dois ciclos5, o primeiro "visa aprofundar as competências
adquiridas no Ensino Básico, preparar os alunos para continuar os estudos no 2º ciclo e
para a inserção no mercado de trabalho e auto-emprego" (MINED, 2007, p. 20), pois o ensino secundário passou a ser
profissionalizante. O carácter profissionalizante também é para responder à política
educativa preconizada no plano quinquenal do governo, qual seja, "o
desenvolvimento de competências para o mercado de trabalho, através do saber-fazer"
(MINED, 2007, p. 28, grifo nosso). O
saber-fazer deverá propiciar aos estudantes "competências práticas que lhes possam ser
úteis para a vida laboral, o desenvolvimento de uma profissão ou ofício e para o
auto-emprego". (MINED, 2007, p. 28) Por isso, ao
fim do segundo ciclo o estudante deverá saber "gerir a sua vida incluindo o seu próprio
negócio/empreendimento". (MINED, 2007, p. 22) É a
componente profissionalizante que vai garantir a efectivação do princípio pedagógico de
ligação entre a teoria e a prática no processo educativo, pois ela "está implícita em
todas as disciplinas do currículo, através da ligação entre a ciência, suas tecnologias
e aplicação prática". (MINED, 2007, p. 28)
A ligação entre ciência, suas tecnologias e aplicação prática não propõe responder aos
preceitos de uma educação que integre a formação geral, a tecnológica e a ginástica
(MARX; ENGELS, 2004), que propiciariam a
compreensão do processo da produção da realidade tanto social quanto material. Tal
ligação propõe satisfazer meramente o mercado de trabalho.
A insistência no mercado de trabalho nesses dois planos curriculares, implicitamente,
apoia-se na tese da improdutividade do ensino médio geral moçambicano que se tornou um
senso comum no país. Intelectuais, tanto orgânicos quanto tradicionais6, têm sublinhado o carácter teórico desse nível de
ensino, cuja consequência apareceria nos índices mais elevados de desemprego entre os
indivíduos egressos do ensino secundário geral.
Considerando que a profissionalização visa a fazer a ligação entre teoria e prática, o
que os documentos oficiais defendem não é a pura abstração do ensino, mas, sim, a
relevância prática do que é ensinado. A profissionalização pode ser feita de dois modos:
incluindo-se, no ensino geral, disciplinas específicas, tais como "Agro-Pecuária, Noções
de Empreendedorismo, Turismo, Informática e Psicopedagogia", e possibilitando aos
estudantes "frequentarem cursos de pequena duração, nas escolas do Ensino Técnico
Profissional e Vocacional e nos Centros de Desenvolvimento de Competências". (MINED, 2007, p. 28-29)
Assim formados, caso os egressos do ensino básico e do ensino secundário geral não achem
emprego, poderão se auto-empregar. Na teoria da empregabilidade, o indivíduo é
responsável por não estar ocupado em alguma actividade produtiva socialmente útil.
Entretanto, ele é obrigado, em Moçambique, a "ter uma postura positiva perante o
trabalho e a capacidade de gerar o auto-emprego". (MINED, 2007, p. 48) A defesa do saber-fazer na escola moçambicana como
solução mágica para o problema do desemprego, num discurso baseado na perspectiva da
empregabilidade, é falaciosa. Ela oculta que o desemprego no país resulta, em grande
parte, da adoção do neoliberalismo, da ausência do Estado em relação a políticas de
trabalho e de emprego. Na Constituição liberal do país, por exemplo, o trabalho
constitui um direito e dever do cidadão. (MOÇAMBIQUE,
1994, artigo 84, n. 1) Não há referência em relação ao dever do Estado.
As opções económicas do país estão em sintonia com a conjuntura internacional,
caracterizada pela reestruturação produtiva dentro dos padrões da acumulação flexível.
(HARVEY, 2000) É nesse contexto que, ante a
crise do trabalho e do emprego, o discurso hegemónico apregoa a exigência de um novo
trabalhador, capaz de responder às rápidas mudanças no mundo do trabalho, a dita
empregabilidade. Será com a disciplina de ofícios e as disciplinas profissionalizantes
que a educação geral moçambicana vai poder responder a esse perfil do trabalhador
exigido pelo mundo do trabalho contemporâneo?
FINALMENTE A IDEIA DE POLITECNIA?
As novas disciplinas propostas com a reforma da educação moçambicana encontram respaldo
na Lei 6/92 de 06 de Maio de 1992. Um dos princípios pedagógicos dessa Lei é a ligação
entre escola e trabalho, entre teoria e prática, cuja tradução deve estar no caráter
politécnico das várias disciplinas oferecidas. Nessa Lei educacional, a formação
politécnica não visa a familiarizar o indivíduo com as questões fundamentais da
produção, da oportunidade de experimentar ferramentas simples e de conhecer a
importância da aplicação das leis da ciência à produção. O vínculo entre escola e
trabalho também não significa a aquisição de conhecimentos científicos, mas tão somente
a estreita ligação do trabalho prático à fabricação de artigos socialmente úteis.
Se comparada à definição de Marx sobre o método educativo de união do trabalho com o
ensino, o projeto moçambicano de formação politécnica está longe de atender ao preceito
marxiano. Além disso, propõe ofícios que fazem parte do período pré-revolução
industrial. Marx enfatizou a necessidade de iniciar os jovens no manejo das ferramentas
nos diferentes ramos industriais, propiciando-lhes conhecer a tecnologia que marca cada
período histórico.
Pretendendo evitar a divisão ontológica do ser humano, Marx foi a favor, na proposição
da união do ensino ao trabalho, que as dimensões intelectual e tecnológica da educação
permitissem a transmissão dos fundamentos científicos dos processos de produção. No
ensino dos ofícios e das disciplinas profissionalizantes, em Moçambique, não existe a
preocupação com os fundamentos científicos dos processos de produção, mas, sim, com o
suposto saber-fazer.
A inovação curricular moçambicana, com a proposição daquelas duas disciplinas, também de
longe responde ao perfil do trabalhador exigido pelo mundo do trabalho na era da
"acumulação flexível". A profissionalização não se completa com a frequência de uma
única disciplina profissionalizante, durante todo ensino médio. A realização de cursos
de curta duração, conforme consta do documento oficial, é apenas panfletária, pois não
existem condições para a efectivação dessa proposta.
Gramsci (2004), na proposição da Escola Unitária,
além da formação humanista, ele sustenta a necessidade do equilíbrio entre a capacidade
de trabalho manual e a capacidade de trabalho intelectual, para evitar a divisão
ontológica do ser humano. O ensino de ofícios e das disciplinas profissionalizantes em
Moçambique atende aparentemente à proposição da Escola Unitária, na medida em que sua
inclusão poderia estar na direção do equilíbrio entre o trabalho industrial e o trabalho
intelectual. O propósito do ensino dessas duas disciplinas, entretanto, não é o de
desenvolver no estudante as duas capacidades de trabalho, o industrial e o intelectual.
Elas pretendem, em primeiro lugar, desenvolver atitudes positivas em relação ao trabalho
- uma preocupação moralista - e, em segundo lugar, preparar o estudante para o mercado
de trabalho e para o auto-emprego. O fim último é o mercado e não o ser humano, o qual
deveria ser o ponto de partida e de chegada de todo o processo histórico.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na década de 1980, o ensino básico e o médio geral moçambicano, propondo o princípio de
politecnia por meio de actividades laborais, visavam a combater a fome, a nudez e também
o elitismo social.
Hoje, o projeto de ensino da disciplina de ofícios pretende preparar o estudante do
ensino básico, mesmo que precocemente, para o mercado de trabalho ou para o
auto-emprego. No ensino médio, essa preparação será feita através das ditas disciplinas
profissionalizantes. São duas falácias pedagógicas que, em tempos e contextos
diferenciados, continuam a mutilar a educação moçambicana, envernizando a escola do
trabalho. São dessas duas falácias que a educação moçambicana tem de se libertar, se
ela, de facto, desejar tornar-se uma frente cultural para a transformação social e para
o estabelecimento da igualdade social. No processo de libertação, o trabalho, sobre o
qual se deve unir teoria e prática, precisa constituir o eixo pedagógico organizador das
práticas educativas visando à formação do homem completo, que trabalha não apenas com as
mãos, mas, consciente do processo que desenvolve, domina-o e não é dominado por ele,
numa escola única, igual e para todos até ao ensinomédio. É necessária a unificação
entre o ensino secundário geral e o técnico-profissional, de modo que o país possa
embocar, de facto, a via de construção da escola unitária.
1
O ensino básico no país é de sete séries, o chamado Ensino Primário Completo.
2
A propósito dessa discussão, ver Dore Soares
(1996).
3
O encaminhamento era feito através da política de afectações e não da livre escolha
de cada um sobre a modalidade de ensino a seguir.
4
A reforma do Ensino Técnico-Profissional foi expressa pelo Programa Integrado de
Reforma do Ensino Técnico-Profissional (Pirep).
5
Ensino Secundário Geral do Primeiro Ciclo (ESG1) e Ensino Secundário Geral do Segundo
Ciclo (ESG2).
6
Ver Paulo Samuel Macamo, Jornal Notícias de 23/08/2013; Eduardo Chimela, no jornal
africa 21digital de 27/03/2014 e Sérgio Vieira, no Jornal Domingo de 17/02/2013.
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HAVERY
D.
Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança
cultural
São Paulo
Loyola
2000
MACHEL, G. Discurso de abertura da terceira reunião do
Ministério da Educação e Cultura. Maputo, 1979, mimeo.
MACHEL
G.
Discurso de abertura da terceira reunião do Ministério da Educação e
Cultura
Maputo
1979
mimeo
MACHEL, S. Impermeabilizemo-nos contra as manobras subversivas,
intensificando a ofensiva ideológica e organizacional no seio dos combatentes e
massas. Maputo: Frelimo/Departamento do trabalho ideológico,
1975.
MACHEL
S.
Impermeabilizemo-nos contra as manobras subversivas, intensificando a
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1975
MACHEL, S. À juventude compete assumir a gloriosa história da nossa
libertação. Revista Tempo, Maputo, n. 375, p. 21-31, jan.
1977.
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MACHEL, S. Declaramos guerra ao inimigo interno. São
Paulo: Editora Quilombo, 1980.
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Cortez, 2000.
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MARX, K.; ENGELS, F. Textos sobre a educação e o
ensino. São Paulo: Centauro, 2004.
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MAZULA, B. Educação, ideologia e cultura em Moçambique:
1975-1985. Porto: Afrontamentos, 1995.
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Porto
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Nacional de Educação. Maputo, julho de 1980. Disponível no Centro de
Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlande, pasta 67.9,
6/LK.
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Mondlande, pasta 67.9, 6/LK
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA (MEC). Parecer do Ministério da
Educação sobre as propostas em relação ao Projecto de Lei do Sistema Nacional de
Educação. Assembléia Popular. Maputo. Mimeo. 16 de maio de
1983.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA (MEC)
Parecer do Ministério da Educação sobre as propostas em relação ao
Projecto de Lei do Sistema Nacional de Educação
Assembléia Popular
Maputo
Mimeo
16
05
1983
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA (MEC). Educação, uma conquista
popular. Semana da Educação. Maputo: Centro de Estudos Africanos (CEA),
1985.
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obrigatórias para os anos letivos de 1988/89. Maputo: Imprensa Nacional,
1988/9.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO (MINED)
Orientações e tarefas escolares obrigatórias para os anos letivos de
1988/89
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198-9
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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO (MINED). Plano curricular do ensino
básico. Maputo: INDE, 2003.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO (MINED)
Plano curricular do ensino básico
Maputo
INDE
2003
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO (MINED). Plano curricular do ensino
secundário geral. Maputo: INDE, 2007.
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Maputo
INDE
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MOÇAMBIQUE, R. P. Sistema Nacional de Educação. Linhas Gerais e
Lei nº 4/83. Maputo: Minerva Central, 1985.
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Minerva Central
1985
MOÇAMBIQUE, R. Constituição, lei eleitoral e legislação
complementar. Lisboa: Edições 70, 1994.
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1994
MOÇAMBIQUE, R. Lei nº 6, de 1992. Altera o Sistema Nacional da Educação,
reajustando as disposições nela contidas. Imprensa Nacional, Maputo,
06 maio 1992.
MOÇAMBIQUE
R.
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as disposições nela contidas
Imprensa Nacional
Maputo
06
05
1992
Authorship
António Cipriano Parafino Gonçalves
Universidade Eduardo Mondlane,
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Moçambique.
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How to cite
Gonçalves, António Cipriano Parafino. From teaching crafts to high school vocational education in Mozambique: has the idea of polytechnic school finally been materialized?. Cadernos CEDES [online]. 2014, v. 34, n. 94 [Accessed 19 March 2025], pp. 317-332. Available from: <https://doi.org/10.1590/S0101-32622014000300003>. ISSN 1678-7110. https://doi.org/10.1590/S0101-32622014000300003.
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