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SER PROFESSOR DE ESCOLAS DIFERENTES – IDENTIDADES, DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL E PRÁTICAS EDUCATIVAS

BEING A TEACHER OF DIFFERENT SCHOOLS – IDENTITIES, PROFESSIONAL DEVELOPMENT, AND EDUCATIONAL PRACTICES

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo refletir acerca das representações construídas por um conjunto de professores de escolas diferentes no que diz respeito ao projeto institucional e aos valores que lhes estão subjacentes, ao sentido do exercício profissional, ao trabalho colaborativo e às margens de autonomia, ao percurso formativo e às práticas educativas eventualmente inovadoras por eles desenvolvidas no contexto escolar e com a comunidade e aos modelos pedagógicos que as inspiram, de forma mais ou menos híbrida e com combinatórias diferentes entre tradição e inovação.

Palavras-chave
Escola diferente; Inovação educativa; Identidade profissional; Desenvolvimento profissional; Práticas educativas

ABSTRACT

This article reflects on the representations constructed by a group of teachers from different schools concerning the institutional project and the values that underlie it, the meaning of professional practice, collaborative work, and the margins of autonomy, training path, and innovative educational practices developed in the school context and with the community and on the pedagogical models that inspire them, in a more or less hybrid way and with different combinations of tradition and innovation.

KEYWORDS
Different school; Innovation education; Professional identity; Professional development; Educational practices

Os professores e a inovação educativa

Tendo em conta a diversidade, a complexidade e a ambiguidade que caracterizam o campo da inovação em educação, de que forma podemos hoje delimitá-lo? Muitos têm sido os contributos autorais. Fullan e Stiegelbaner (1992)FULLAN, M.; Stiegelbaner, S. The new meaning of educational change. Nova York/Londres: Teachers College Press/Cassell, 1992. consideram que a inovação deve significar uma mudança radical na cultura das escolas e na maneira como é entendida a profissão docente. Eles destacam três componentes ou dimensões da inovação: o uso de novos (ou renovados) recursos; a utilização de novas estratégias de ensino-aprendizagem; e a inspiração em novas crenças educativas. Françoise Cros (2001CROS, F. L’innovation scolaire. Paris: INRP, 2001.; 2017)CROS, F. Innovation et société: le cas de l’école. Londres: ISTE, 2017. propõe-nos uma definição complexa e paradoxal de inovação, ao considerar que a novidade nela contida pode ser relativa (por vezes, uma recombinação de elementos anteriores), que o processo de mudança a que ela corresponde é intencional, voluntário e deliberado e, finalmente, que deve ter como base um quadro de valores desejáveis e alternativos.

Num sentido mais radical, Pacheco (2019)PACHECO, J. Inovação educacional: obstáculos e possibilidades. [S.l.]: Mahatma, 2019. entende a inovação como um processo transformador, conducente a uma rutura paradigmática, e com impacto evidente nas aprendizagens e no desenvolvimento. Na sua opinião, é a própria noção de sala de aula que representa o maior obstáculo à implementação de inovações no terreno educativo. Na mesma linha, Barroso (1995)Barroso, J. Os liceus: organizações pedagógicas e administração (1836-1960). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian/JNICT, 1995. considera que a transformação da escola implica pôr em causa o paradigma de referência em que assenta a sua organização pedagógica: “do ensino magistral centrado na relação dual de um mestre com o seu discípulo” (Barroso, 1995Barroso, J. Os liceus: organizações pedagógicas e administração (1836-1960). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian/JNICT, 1995., p. 56).

Finalmente, num trabalho em que se elabora um roteiro de um conjunto de cerca de duas dezenas de escolas diferentes, propõe-se uma definição de inovação em contraponto à de forma escolar. Nessa ótica, pode ser interpretada como uma tentativa de questionar a referida forma em parte ou na globalidade das suas dimensões (Pintassilgo, 2019Pintassilgo, J. Um olhar histórico sobre escolas diferentes: perspetivas teóricas e metodológicas. In: Pintassilgo, J.; Alves, L. A. M. (coord.). Roteiros da inovação pedagógica: escolas e experiências de referência em Portugal no século XX. Lisboa: Instituto de Educação, Universidade de Lisboa, 2019. p. 7-32.). Fundamental é que a inovação se entranhe nos ambientes de aprendizagem e impregne as mentes e as emoções dos atores reais do ensino, professores e alunos, evitando ser um simples rótulo (Carbonell Sebarroja, 2001CARBONELL SEBARROJA, J. A aventura de inovar: a mudança na escola. Porto: Porto, 2001.).

Uma ideia que parece ser consensual num conjunto diverso de autores é a de que não há inovação em absoluto; a consideração do caráter inovador (ou não) de determinadas concepções ou práticas educativas é sempre relativa a dado contexto (Perrenoud, 2002PERRENOUD, P. Aprender a negociar a mudança na educação: novas estratégias de inovação. Porto Alegre: Artmed, 2002.). Segundo Cros (2017)CROS, F. Innovation et société: le cas de l’école. Londres: ISTE, 2017., o contexto é o pilar da inovação. Em coerência com essa definição proposta, a autora acredita que a inovação não representa, em geral, uma inovação ou uma descoberta, mas, antes, “a socialização de uma nova atividade”, ou seja, “uma apropriação pelos atores dessa atividade inovadora” (Cros, 2017CROS, F. Innovation et société: le cas de l’école. Londres: ISTE, 2017., p. 38, tradução nossa).

Esta é uma questão que gostaríamos de sublinhar: a inovação tem de ser compreendida como tal pelos atores – sejam eles líderes, sejam professores – que procuram implementar tais ideias e práticas no “chão da escola”, para usar uma expressão cara a José Pacheco. Esses atores, ao se apropriarem de propostas em circulação (muitas vezes em termos transnacionais), constroem as suas próprias representações sobre o sentido a dar a essas inovações e sobre o seu papel na respectiva implementação, contribuindo assim para a sua socialização por parte de outros atores nos contextos diversos em que exercem a sua atividade.

A presença incontornável do contexto faz com que a inovação tenha de ser considerada “um processo singular” e, por isso, “não previsível e nem sempre possível de transferir para outros contextos” (Bolívar, 2003BOLÍVAR, A. Como melhorar as escolas: estratégias e dinâmicas de melhorias de práticas educativas. Porto: ASA, 2003., p. 56), o que coloca em causa o procedimento, tornado lugar-comum ou slogan, relativo à difusão ou transferência das chamadas “boas práticas” (Canário, 2002CANÁRIO, R. Inovação educativa e práticas profissionais reflexivas. In: Canário, R.; Santos, I. (org.). Educação, inovação e local. Setúbal: Instituto das Comunidades Educativas, 2002. p. 13-23.; Cros, 2017CROS, F. Innovation et société: le cas de l’école. Londres: ISTE, 2017.). As práticas exemplares podem ser inspiradoras para profissionais situados em outros contextos, mas elas terão sempre de ser reconfiguradas, apropriadas de forma criativa, e nunca “exportadas” ou “copiadas” (Canário, 2004CANÁRIO, R. Uma inovação apesar das reformas. In: CANÁRIO, R.; Matos, F.; Trindade, R. (org.). Escola da Ponte: defender a escola pública. Porto: Profedições, 2004. p. 31-41.).

Situando-nos ao nível concreto das práticas de ensino, que aqui nos importam particularmente, podemos considerar as táticas de apropriação ou de tradução desenvolvidas pelos professores, no âmbito de uma estratégia mais ampla de inovação, como uma espécie de trabalho de bricolage, no qual combinam certa forma de exercer o trabalho docente e práticas que lhes são mais habituais e com as quais se sentem confortáveis com práticas diferentes ou alternativas, tendo em vista uma resposta mais cabal à condição dos seus alunos e às suas necessidades de aprendizagem.

Essa última questão remete-nos para outra, que é a referente à relação, complexa e ambivalente, entre a inovação e a tradição em educação. Temos recorrido noutros trabalhos à paradoxal, mas fecunda, noção de “tradição de inovação”, tal como foi proposta pelo historiador inglês Peter Burke (2007)BURKE, P. Cultura, tradição, educação. In: Gatti Júnior, D.; Pintassilgo, J. (org.). Percursos e desafios da pesquisa e do ensino de história da educação. Uberlândia: Edufu, 2007. p. 13-22., a qual procura questionar a irredutibilidade dos dois campos. Por um lado, a educação está repleta de tradições, sejam elas as disciplinas do currículo, sejam rituais de sociabilidade, e esse é um dado tanto incontornável quanto positivo. Por meio da educação, transmitimos aos nossos jovens um património de saberes e de valores, mas, também, os instrumentos para que questionem criticamente essa tradição, evitando, assim, que ela se converta em tradicionalismo.

Por outro lado, como já notámos, na maior parte das vezes a inovação não representa uma novidade absoluta, como com pertinência nota Almudena García (2017, p. 169, tradução nossa)GARCÍA, A. Otra educación ya es posible: una introducción a las pedagogías alternativas. Albuixech: Litera Libros, 2017.: “Nenhuma dessas pedagogias [ativas] é nova”; e Carbonell Sebarroja (2003, p. 7)CARBONELL SEBARROJA, J. (org.). Pedagogías del siglo XX. Porto Alegre: Artmed, 2003. dá o seu contributo para explicar essa situação: “Estamos sempre reelaborando, reorganizando, reinventando a partir do já conhecido. Não nos enganemos: pelo menos na pedagogia, inventa-se muito pouco”. Na mesma linha de raciocínio, Cros (2017, p. 17, tradução nossa)CROS, F. Innovation et société: le cas de l’école. Londres: ISTE, 2017. afirma: “A tradição é constantemente revisitada por aqueles que a consideram, designadamente pela inovação pedagógica”.

Essa ideia é igualmente importante no que se refere à caracterização do perfil e do trabalho do professor. De acordo com Carbonell Sebarroja (2001, p. 30)CARBONELL SEBARROJA, J. A aventura de inovar: a mudança na escola. Porto: Porto, 2001., o professorado vive numa permanente tensão “entre a mudança e a continuidade”, na procura de um ponto de equilíbrio que tenha em conta o seu perfil pessoal e profissional, as características dos seus alunos e o projeto da escola onde desenvolve o seu trabalho. Nesse sentido, as suas opções pedagógicas devem ir “para além da antinomia pedagogia ativa-tradicional” (Carbonell Sebarroja, 2001CARBONELL SEBARROJA, J. A aventura de inovar: a mudança na escola. Porto: Porto, 2001., p. 44); a complexidade dos problemas educativos impõe-nos a rejeição do “pensamento dicotómico e das respostas categóricas do branco ou preto” (Carbonell Sebarroja, 2001CARBONELL SEBARROJA, J. A aventura de inovar: a mudança na escola. Porto: Porto, 2001., p. 20).

É essa mesma preocupação que leva o professor a combinar diferentes opções metodológicas na tentativa de dar resposta às necessidades concretas dos seus alunos e em busca de uma coerência docente que não seja contraditória com um certo hibridismo pedagógico. De acordo com Paniagua e Istance (2018, p. 21, tradução nossa)Paniagua, A.; Istance, D. Teachers as designers of learning environments: the importance of innovative pedagogies. Paris: OECD, 2018., “professores hábeis utilizam uma combinação de abordagens pedagógicas”. Idêntica opinião é a defendida por Carbonell Sebarroja (2001, p. 81)CARBONELL SEBARROJA, J. A aventura de inovar: a mudança na escola. Porto: Porto, 2001., ao afirmar que, em geral, “o professor inovador não se cinge nem comunga com um método determinado […], vai aplicando diversas estratégias”.

Outra nuança a ter em conta, na delimitação dos processos de mudança, tem a ver com a possível distinção entre as noções de reforma e de inovação. As reformas são processos de mudança planeados e decididos a nível central pelo poder político, eventualmente suportados em estudos de especialistas do campo educativo, e que, numa lógica top-down, são difundidos pelas escolas na expectativa da sua aplicação pelos professores. Nessa perspetiva, o termo inovação fica reservado para os processos de mudança gerados a partir de instâncias de base (escolas, movimentos, associações ou professores), numa lógica bottom-up, cujo sucesso pode, eventualmente, potenciar processos de mudança noutros contextos ou mesmo permitir a sua legitimação pelo poder político.

No primeiro caso, temos inovações “instituídas”; no segundo, inovações “instituintes” (Correia, 1989CORREIA, J. A. Inovação pedagógica e formação de professores. Porto: ASA, 1989.; Canário, 2005CANÁRIO, R. O que é a escola? Um “olhar” sociológico. Porto: Porto, 2005.). Na síntese de Antonio Bolívar (2003, p. 10)BOLÍVAR, A. Como melhorar as escolas: estratégias e dinâmicas de melhorias de práticas educativas. Porto: ASA, 2003., “a inovação realiza-se não nos textos oficiais, mas no terreno, nas escolas e nas aulas”. Em todo o caso, não devemos radicalizar a oposição entre os dois processos, pois tanto as reformas podem contribuir para a produção de inovações no terreno como as inovações podem contribuir para a formalização de reformas. Nenhum dos dois campos é estanque.

O entendimento da noção de inovação no sentido anteriormente proposto nos conduz à natural valorização do papel dos atores, particularmente dos professores, na implementação de processos “instituintes” de mudança nas escolas e nas salas de aula. São diversos os autores que enfatizam esse protagonismo. Segundo Bolívar (2003, p. 288)BOLÍVAR, A. Como melhorar as escolas: estratégias e dinâmicas de melhorias de práticas educativas. Porto: ASA, 2003., “os professores constituem a última chave no processo de mudança educativa de que irá depender a forma como a inovação será interpretada e posta em prática”. De forma igualmente lapidar, Fullan e Stiegelbaner (1992, p. 117, tradução nossa)FULLAN, M.; Stiegelbaner, S. The new meaning of educational change. Nova York/Londres: Teachers College Press/Cassell, 1992. afirmam, parafraseando Sarason: “A mudança educacional depende do que os professores fazem e pensam – é tão simples e tão complexo quanto isso”.

Num estudo em que procuram questionar a eficácia de um século de reformas educativas nos Estados Unidos, ao serem confrontadas com a resistência de quem está no terreno, Tyack e Cuban (1998, p. 133, tradução nossa)Tyack, D.; Cuban, L. Tinkering toward utopia: a century of public school reform. Cambridge: Harvard University Press, 1998. constatam que, não obstante, “bons professores reinventam o mundo todos os dias para as crianças nas suas classes”. Assim, torna-se decisivo, para compreender os processos inovadores desenvolvidos nas escolas, conhecer o pensamento dos professores a esse respeito, bem como as práticas educativas, potencialmente inovadoras, por eles desenvolvidas. Nessa perspetiva, a inovação é algo indissociável do desenvolvimento profissional dos professores, como nos indicam Panigua e Istance (2018, p. 21, tradução nossa): “É precisamente através da ideia dos professores como designers da aprendizagem que a inovação ao nível da prática pode ser vista como um lado normal da profissão docente para resolver os desafios diários num contexto que está em constante mudança”.

Estratégias metodológicas

O foco deste estudo incidiu nos projetos educativos desenvolvidos no Colégio Helen Keller (CHK)1 1 O Colégio Helen Keller tem esse nome em homenagem à escritora e ativista social norte-americana Helen Keller, após sua visita a Portugal em 1956 a convite da Liga Portuguesa da Profilaxia da Cegueira (nessa época, denominado Centro Infantil Helen Keller). e na Cooperativa A Torre, ambas instituições situadas em Lisboa, Portugal. Procurámos articular a história dessas escolas diferentes e as percepções dos profissionais a elas ligados. Mobilizamos um conjunto de oito entrevistas semiestruturadas como fontes de investigação. Analisamos o seu conteúdo com um olhar para as questões que envolvem a identidade docente, o desenvolvimento profissional e as práticas educativas que surgem no material empírico, fundamentados teoricamente nas problemáticas da inovação e da profissão docente. Trata-se de uma abordagem de natureza histórico-educativa, mas que procura pôr em diálogo o passado e o presente, recorrendo à perspectiva das histórias de vida profissional e as opções metodológicas diversificadas.

O cerne está no reconhecimento dos professores enquanto protagonistas na circulação das ideias (Chartier, 2002CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas e representações. Tradução: Maria Manuela Galhardo. Lisboa: Difel, 2002.) e no desenvolvimento de práticas inovadoras nesses contextos educacionais. Compreende-se que a análise, sustentada nos benefícios do jogo de escalas (Revel, 2010REVEL, J. Micro-história, macro-história: o que as variações de escala ajudam a pensar em um mundo globalizado. Revista Brasileira de Educação, v. 15, n. 45, p. 434-590, 2010. https://doi.org/10.1590/S1413-24782010000300003
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), dos processos identitários a partir das histórias de vida dos professores, possibilita que a individualidade e a pertença (Nóvoa, 2022NÓVOA, A. Escolas e professores: proteger, transformar, valorizar. Colaboração: Yara Alvim. Salvador: SEC/IAT, 2022.) sejam reinterpretadas e complexificadas no âmbito do processo de construção da profissionalidade docente e da cultura de grupo.

Aprofundaremos os sentidos que as histórias de vida dos professores têm nos processos identitários, ou seja, as maneiras de ser e de estar na profissão (Nóvoa, 2000NÓVOA, A. (org.). Vida de professores. Porto: Porto, 2000.) e na efetivação das práticas inovadoras. As entrevistas tiveram como critérios de participação a data de inserção no quadro das escolas selecionadas.

Colégio Helen Keller e Cooperativa A Torre

Sendo as práticas inovadoras, como já notámos, indissociáveis do seu contexto, torna-se primordial revelar as instituições em que os professores entrevistados trabalham, não apenas no sentido material, mas sobretudo no que simbolicamente representam o CHK a A Torre. Para tal, faz-se necessário retroceder algumas décadas para compreender a importância dessas escolas no contexto educacional português.

No momento em que o país vivenciava uma ditadura (1933–1974), alguns dos educadores ligados à fundação dessas escolas diferentes buscavam subverter a lógica imposta pelo Estado Novo. As ideias de Célestin Freinet foram compartilhadas por esses entusiastas2 2 Maria Isabel Vieira Pereira, primeira professora do CHK, realizou uma formação com Freinet em 1958. Juntamente com Maria Amália Borges, Rosalina Gomes de Almeida e Sérgio Niza, criou em novembro de 1971 o Grupo de Estudos da Pedagogia Freinet. como uma nova forma de fazer educação em que era central uma preocupação com a formação democrática, ponto que permanece nos projetos atuais dessas instituições. A forte influência das técnicas de Freinet (a imprensa, os jornais de parede, a correspondência interescolar, a gestão da vida comunitária pelos alunos, a presença da arte, o texto livre) é percebida ao circular nas instalações dessas instituições.

O atual CHK surgiu dos esforços coletivos de Henrique Moutinho, João dos Santos e Maria Amália Borges no ano de 1955. Foram nove as instalações até que, em 1970, a Câmara Municipal de Lisboa doou um terreno com mais de 11 mil m2 2 Maria Isabel Vieira Pereira, primeira professora do CHK, realizou uma formação com Freinet em 1958. Juntamente com Maria Amália Borges, Rosalina Gomes de Almeida e Sérgio Niza, criou em novembro de 1971 o Grupo de Estudos da Pedagogia Freinet. na freguesia do Restelo, em Lisboa. Conforme Amado (2019, p. 389)AMADO, M. R. Centro Infantil Helen Keller: educar na diversidade. In: Pintassilgo, J.; Alves, L. A. M. (coord.). Roteiros da inovação pedagógica: escolas e experiências de referência em Portugal no século XX. Lisboa: Instituto de Educação, Universidade de Lisboa, 2019. p. 382-413., já em 1973 o CHK se situava num “caminho de cooperativismo e de trabalho autónomo e não na linha da escolaridade mais tradicional e passiva”. Inicialmente pensado para assegurar o direito à educação dos jovens com deficiência visual e a sua integração social, tornou-se uma escola de referência no âmbito da educação inclusiva, graças à ênfase psicopedagógica que lhe foi dada por Maria Amália Borges nos oito anos em que esteve à frente da direção. Esse é um cariz que se mantém, quer ao nível de formação, quer ao nível de materiais, como por exemplo as capacitações que são dadas aos profissionais para o ensino em braile, quadros digitais que ampliam até 500%, tablets adaptados para a pesquisa por voz.

A Torre, por sua vez, surgiu em 1970 na casa de sua fundadora, Ana Vieira de Almeida, com a importante participação da educadora Zoé Santa Cruz Gonçalves Barbeiros (esposa de João dos Santos). A pedagogia Freinet contribuiu para que a escola “seja um local de vida, liberdade e bem-estar, onde as crianças e professores possam gostar de ensinar e aprender, porque todos são convidados a tornarem-se responsáveis pelas suas escolhas e atos, onde todos são respeitados e valorizados” (Almeida, 2016 apud Pintassilgo; Andrade, 2019PINTASSILGO, J.; ANDRADE, A. N. A Torre: a escola como um lugar de vida (1970-Atualidade). In: Pintassilgo, J.; Alves, L. A. M. (coord.). Roteiros da inovação pedagógica: escolas e experiências de referência em Portugal no século XX. Lisboa: Instituto de Educação, Universidade de Lisboa, 2019. p. 447-482., p. 451). Os ensinamentos da fundadora fazem-se presentes nas entrevistas, na elaboração da imprensa escolar, no jornal de parede, bem como na permanência da escola enquanto esse “lugar de vida” e são heranças presentes no projeto educativo d’A Torre.

Atualmente, o CHK recebe crianças desde o berçário ao 3º ciclo do ensino básico, enquanto A Torre contempla da educação pré-escolar ao 2º ciclo. São escolas com organizações distintas, a primeira uma instituição particular de solidariedade social (IPSS)3 3 Instituição constituída de iniciativa de particulares, mas sem fins lucrativos. O Estado assume parte da mensalidade, enquanto as famílias coparticipam de acordo com os seus rendimentos. No caso do CHK, ele funciona como IPSS apenas para os/as estudantes com deficiência; para os demais, é uma instituição privada. , a segunda uma cooperativa. Conforme ilustrado nos organogramas (Figs. 1 e 2), há no CHK um caráter mais tradicional na sua organização – como, por exemplo, a existência de uma direção eleita pelos sócios, com a figura de um presidente. Assim, sublinhamos a singularidade contida na composição d’A Torre, que situa os alunos e as famílias como centrais no seu funcionamento.

Figura 1
Organograma Colégio Helen Keller.
Figura 2
Organograma Cooperativa A Torre.

Essa especificidade pode ser compreendida no trecho da entrevista concedida em 2016, na qual o diretor pedagógico, Nuno Leitão, ilustra o que significa ser a Cooperativa A Torre e estar nela:

Há um determinado perfil que às vezes é importante assegurar e que não tem a ver com o perfil de formação do ponto de vista estritamente académico, tem a ver com um perfil pessoal que a formação pode, ou não, favorecer. [...] Aquilo que nos interessa é primeiro que sejam pessoas capazes de trabalhar com os outros [...] que tenham a noção [...] de que o fundamental num bom professor ou educador é a qualidade da relação pedagógica que é capaz de instaurar com os seus alunos

(Leitão, 2016 apud Pintassilgo; Andrade, 2019PINTASSILGO, J.; ANDRADE, A. N. A Torre: a escola como um lugar de vida (1970-Atualidade). In: Pintassilgo, J.; Alves, L. A. M. (coord.). Roteiros da inovação pedagógica: escolas e experiências de referência em Portugal no século XX. Lisboa: Instituto de Educação, Universidade de Lisboa, 2019. p. 447-482.).

Mas por qual razão o CHK e A Torre são escolas diferentes? Os professores dessas escolas direcionam a sua prática docente para uma formação crítica dos estudantes, indo além de uma relação apenas de ensino.

Formação docente e o desenvolvimento profissional

Há um longo caminho percorrido na história da formação docente. Interessa-nos aqui, particularmente, os períodos da formação profissional dos entrevistados, ou seja, após a década de 90 do século XX. A aproximação da formação docente ao espaço académico, consagrada nesse período, possibilitou avanços significativos no terreno concreto das escolas (Nóvoa, 2022NÓVOA, A. Escolas e professores: proteger, transformar, valorizar. Colaboração: Yara Alvim. Salvador: SEC/IAT, 2022.). No entanto, para a maioria dos professores entrevistados, “aquilo que a faculdade nos dá é uma cultura muito livresca” (Tiago, 2022TIAGO. Tiago: entrevista [março de 2022]. Entrevistadora: Mayra Mugnaini. Lisboa, Portugal, 2022.), na qual “as disciplinas a nível teórico não acrescentam muito” (Marisa, 2022MARISA. Marisa: entrevista [abr. 2022]. Entrevistadora: Mayra Mugnaini. Lisboa, Portugal, 2022.). É esse distanciamento entre teoria e prática vivenciado durante a formação profissional que surge nas falas dos professores.

Conforme Proença (2018)PROENÇA, M. A. Prática docente: a abordagem de Reggio Emilia e o trabalho com projetos, portfólios e redes formativas. São Paulo: Panda Educação, 2018., há duas possibilidades distintas na formação docente: um lado que tem em vista a autonomia, a criação, a autoria e a pesquisa; e, do outro, uma [fôrma]ção baseada na heteronomia, um molde a ser seguido. Para a autora, a formação docente qualificada pressupõe a tomada de consciência, o que possibilita o processo de aprendizagem fundamentado nas relações interativas, no autoconhecimento, respeitando a complexidade dos grupos existentes. Ainda que ao longo da entrevista se tenha percebido o escopo teórico que os entrevistados possuem, à partida, eles compreendem que a vertente teórica não é o que mais acrescenta na formação para se tornarem professores.

Para Roldão (2007)ROLDÃO, M. C. Função docente: natureza e construção do conhecimento profissional. Revista Brasileira de Educação, v. 12, n. 34, p. 94-103, jan./abr. 2007. https://doi.org/10.1590/S1413-24782007000100008
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, a profissionalização e o saber docente são uma construção histórico-social, coletiva e em permanente mudança, sendo fundamental descobrir “quais são os saberes e o habitus requeridos de um futuro professor” (Julia, 2001JULIA, D. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, n. 1, p. 9-43, 2001., p. 24). Mas há um fator comum que reaparece independentemente do período histórico: a relevância da prática na formação docente e no desenvolvimento profissional. “A mais-valia de todo o curso foi, sem dúvida, a parte prática” (Inês, 2022INÊS. Inês: entrevista [abr. 2022]. Entrevistadora: Mayra Mugnaini. Lisboa, Portugal, 2022.), o que “fez a diferença na minha formação” (Marisa, 2022MARISA. Marisa: entrevista [abr. 2022]. Entrevistadora: Mayra Mugnaini. Lisboa, Portugal, 2022.). Acreditamos que não há como desvincular a profissionalização da importância da prática docente; a experiência cria-transforma-inova, porém só é possível por meio da apropriação teórica e de um olhar para esse cotidiano. Nesse sentido, concordamos com Nóvoa (2022)NÓVOA, A. Escolas e professores: proteger, transformar, valorizar. Colaboração: Yara Alvim. Salvador: SEC/IAT, 2022. quando defende a necessidade de reorganizar o lugar da formação de professores:

Para avançar no sentido de uma formação profissional universitária, é necessário construir um novo lugar institucional [...] fortemente ancorado na universidade, mas deve ser um “lugar híbrido”, de encontro e de junção das várias realidades que configuram o campo docente [...] construir um novo arranjo institucional [...] mas com fortes ligações externas.

Para além da formação profissional inicial, há nessas instituições uma preocupação dos professores mais antigos de integrar os novos. Há “muito apoio [...], tinha muitos modelos e estava a trabalhar com os outros colegas, não estava numa sala sozinha” (Clara, 2022CLARA. Clara: entrevista [mar. 2022]. Entrevistadora: Mayra Mugnaini. Lisboa, Portugal, 2022.). Ou, ainda, quando a coordenadora do departamento se torna a “primeira pessoa a perceber o meu potencial e apostar em mim” (Vitor, 2022VITOR. Vitor: entrevista [abril de 2022]. Entrevistadora: Mayra Mugnaini. Lisboa, Portugal, 2022.). Ainda que esse período de integração não seja uma formação institucionalizada, é sobretudo nessas trocas cotidianas que o tornar-se professor é construído.

Poderia haver um risco iminente em “integrar num mesmo grupo indivíduos que parecem partilhar traços em comum, mas cujos antecedentes ou meios sociais são diferentes” (Huberman, 2000HUBERMAN, M. O ciclo de vida profissional dos professores. In: NÓVOA, A. (org.). Vidas de professores. 2. ed. Porto: Porto, 2000. p. 31-61., p. 54), mas o CHK e A Torre são instituições que prezam a formação contínua dos seus professores e momentos de colaboração (trocas de experiências), além das reuniões mensais, que “ocorrem cotidianamente, numa aula em que vemos um professor da velha guarda [...], seja nas aulas ou no refeitório” (Tiago, 2022TIAGO. Tiago: entrevista [março de 2022]. Entrevistadora: Mayra Mugnaini. Lisboa, Portugal, 2022.), onde há uma “integração muito fácil, é um ambiente leve e mesmo as pessoas que vêm parece que já estão há mais tempo” (Marisa, 2022MARISA. Marisa: entrevista [abr. 2022]. Entrevistadora: Mayra Mugnaini. Lisboa, Portugal, 2022.).

De modo a que possamos identificar a compreensão do desenvolvimento profissional e como os entrevistados elaboram uma escrita de si, destacamos há quanto tempo são professores, o período de integração no quadro das escolas selecionadas e a área de atuação profissional dos entrevistados. Clara estagiou n’A Torre e nela permanece há 25 anos (Matemática e Ciências no 2º ciclo há oito anos, anteriormente atuou no 1º ciclo); Inês é professora há seis anos e está há quatro n’A Torre (1º ciclo); Joana é educadora há 16 anos e está há 14 anos no CHK (jardim de infância); Marisa é professora há 17 anos e está há 14 anos no CHK (1º ciclo e ioga); Nuno é o atual diretor pedagógico e está há 27 anos n’A Torre, sendo 18 anos nessa função; Rogério é professor há 32 anos e está há cinco anos n’A Torre (Português no 2º ciclo, mas atuou também com Filosofia e História); Tiago é professor há 12 anos e está há seis anos n’A Torre (1º ciclo); e Vitor é professor há 18 anos e está há 16 no CHK (História e Geografia no 2º ciclo e Geografia no 3º ciclo; assessoria da direção pedagógica).

A inter-relação entre o individual e o coletivo, em cada um dos contextos (CHK e A Torre), traz um caráter plural ao desenvolvimento profissional de sujeitos tão diversos. Esse sentimento de pertencimento existe desde os professores mais recentes, conforme a entrevista com Rogério (2022)ROGÉRIO. Rogério: entrevista [abril de 2022]. Entrevistadora: Mayra Mugnaini. Lisboa, Portugal, 2022., que não está

[...] n’A Torre há muito tempo. Este é apenas o meu quarto ano, o que significa que entre o ano em que comecei a lecionar na Josefa de Óbidos e onde estou atualmente passaram-se um mar de situações, de histórias e de escolas. [...] O que eu senti é que quando cheguei aqui eu me enquadrava.

Proposto por Huberman (2000)HUBERMAN, M. O ciclo de vida profissional dos professores. In: NÓVOA, A. (org.). Vidas de professores. 2. ed. Porto: Porto, 2000. p. 31-61., o ciclo de vida profissional4 4 Dez fases que se relacionam, em alguma medida, com os anos de profissão: descoberta – sobrevivência (0–3 anos); estabilização – emancipação (4–6 anos); diversificação – rotina (7–25 anos); serenidade – distanciamento afetivo (25–30 anos); conservantismo (30–40 anos); e desinvestimento (35–40 anos). começa com a descoberta e vai até o desinvestimento. Todavia, parece-nos haver um rompimento desse ciclo pelos professores dessas escolas; eles permanecem na fase de experimentação e de diversificação5 5 Ocorre nessa fase uma “busca de novos desafios” motivada pelo “receio emergente de cair na rotina” (Huberman, 2000, p. 42). , independentemente dos anos de profissão. Focaram-se no “primeiro passo para ser professor”, que é o de “não desistir no início da carreira” (Vitor, 2022VITOR. Vitor: entrevista [abril de 2022]. Entrevistadora: Mayra Mugnaini. Lisboa, Portugal, 2022.), e numa vontade de mudança sempre presente, na qual a “a pressa não é benéfica” (Inês, 2022INÊS. Inês: entrevista [abr. 2022]. Entrevistadora: Mayra Mugnaini. Lisboa, Portugal, 2022.).

A opção por entrevistar professores que estão há mais ou menos tempo nas instituições nos trouxe professores que rompem com as referências comuns sobre ser professor e representam a cultura escolar d’A Torre e do CHK, compreendida como uma “espécie de agregado coerente de condutas, normas e valores”, “tanto no plano coletivo como no das subjetividades” (Escolano Benito, 2017ESCOLANO BENITO, A. A escola como cultura: experiência, memória e arqueologia. Tradução e revisão técnica: H. P. Rocha e V. L. G. Silva. Campinas: Alínea, 2017., p. 110), o que justifica a especificidade da ação docente (comportamentos, conhecimentos, atitudes, valores) desses sujeitos (Sacristán, 1995SACRISTÁN, J. G. Consciência e acção sobre a prática como libertação profissional dos professores. In: NÓVOA, A. (org.). Profissão Professor. Porto: Porto, 1995. p. 63-92.; 1999SACRISTÁN, J. G. Poderes instáveis em educação. Tradução: Beatriz Affonso Neves. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1999.).

Ser professor de uma escola diferente: a construção da identidade profissional e as práticas educativas desenvolvidas

As escolas diferentes são construídas por meio dos profissionais que nelas atuam, de maneira que a inovação em educação ocorra de modo diversificado, sendo esse.

[...] um desafio enorme, é sempre um desafio enorme ser parte do projeto Helen Keller. É como escalar uma montanha. Todos os dias é um desafio, a partir do momento que entro naquele portão, já estou envolvido [...]. Sinto-me perfeitamente integrado e é um desafio enorme ser parte de um dos rostos da escola, da identidade. É uma responsabilidade, mas aprendi a ter essa responsabilidade e gosto de tê-la

(Vitor, 2022VITOR. Vitor: entrevista [abril de 2022]. Entrevistadora: Mayra Mugnaini. Lisboa, Portugal, 2022.).

Essa entrevista ilustra as sensações de um corpo docente plural, mas que partilha objetivos comuns. Uma escola diferente permite “não só que todas as pessoas que trabalham sejam o que elas são, mas permite também que as crianças sejam o que elas querem ser” (Tiago, 2022TIAGO. Tiago: entrevista [março de 2022]. Entrevistadora: Mayra Mugnaini. Lisboa, Portugal, 2022.). Portanto, uma identidade docente construída na crença de que ser professoré uma parte que me completa como ser humano. É a parte mais importante” (Vitor, 2022VITOR. Vitor: entrevista [abril de 2022]. Entrevistadora: Mayra Mugnaini. Lisboa, Portugal, 2022.) e “não é para aquelas crianças que aprendem facilmente. Ser professor é para aqueles miúdos que precisam de nós, criarem raízes, bases” (Tiago, 2022TIAGO. Tiago: entrevista [março de 2022]. Entrevistadora: Mayra Mugnaini. Lisboa, Portugal, 2022.). Essas bases fundamentam-se em uma prática educativa que:

[...] direciona o olhar. para a criança como um ser completo, o mais completo possível. A parte disciplinar é importante, mas deixar de olhar para a criança como um todo eu não consigo [...]. O que sinto aqui n’A Torre que, mesmo sendo todos muito diferentes, esta questão da parte afetiva e uma crença inabalável no miúdo, eu tenho que confiar que ele é capaz [...]. Como faço isso? Sem desmotivar

(Clara, 2022CLARA. Clara: entrevista [mar. 2022]. Entrevistadora: Mayra Mugnaini. Lisboa, Portugal, 2022.).

Portanto, nenhuma das práticas que esses professores relatam pode ser analisada de maneira isolada. O papel de todos, no que diz respeito à implementação de inovações no terreno educativo, é fundamental. Faz-se necessário que eles acreditem na importância dessas mudanças, que se apropriem das novas ideias e que as ponham em prática tendo em vista a melhoria das aprendizagens dos alunos e a sua formação integral como futuros cidadãos, pois “os professores são a cara da escola. Por mais que a direção tente ser inovadora, se os professores não forem, não vai resultar” (Joana, 2022JOANA. Joana: entrevista [abr. 2022]. Entrevistadora: Mayra Mugnaini. Lisboa, Portugal, 2022.).

Conforme Nóvoa (2000)NÓVOA, A. (org.). Vida de professores. Porto: Porto, 2000., a desprofissionalização da função docente está intimamente ligada à separação que alguns realizam entre a pessoa professor e a profissão professor. Ou seja, uma tarefa complexa é a de situar essa relação de modo circular e, assim, haver uma profissionalização. A construção da identidade docente é um “percurso que é, no fundo, pessoal. O caminho do professor acaba por sempre estar ligado a um trajeto que é seu, é impossível não dar parte do que somos” (Marisa, 2022MARISA. Marisa: entrevista [abr. 2022]. Entrevistadora: Mayra Mugnaini. Lisboa, Portugal, 2022.).

Há, assim, uma preocupação em construir o conhecimento de forma ativa, em organizar as aulas de acordo com os objetivos de aprendizagem, os interesses e as necessidades que são expressos pelas crianças, com foco nas experiências, e não na simples aquisição de conteúdos:

É efetivamente um orgulho fazer parte de uma escola que não é somente teórica, tudo aquilo que está escrito no nosso site nós fazemos na prática [...] é um orgulho trabalharmos numa escola em que não aplica o mesmo que as outras, nós construímos as coisas consoante os alunos

(Tiago, 2022TIAGO. Tiago: entrevista [março de 2022]. Entrevistadora: Mayra Mugnaini. Lisboa, Portugal, 2022.)

As raízes criadas durante os anos em que essas crianças experienciam A Torre ultrapassam os muros da escola e contribuem para a construção de uma memória coletiva (Pintassilgo; Andrade, 2019PINTASSILGO, J.; ANDRADE, A. N. A Torre: a escola como um lugar de vida (1970-Atualidade). In: Pintassilgo, J.; Alves, L. A. M. (coord.). Roteiros da inovação pedagógica: escolas e experiências de referência em Portugal no século XX. Lisboa: Instituto de Educação, Universidade de Lisboa, 2019. p. 447-482.). O desenvolvimento de práticas educativas inovadoras está, assim, segundo cremos, indissociavelmente ligado ao desenvolvimento profissional dos professores e ao trabalho coletivo realizado quotidianamente. As práticas inovadoras desses professores tornam-se realidade quando há uma resposta aos problemas e desafios quotidianos, que surgem por meio das necessidades de aprendizagem e de crescimento dos seus alunos. Ou seja, o papel dos professores na implementação e contextualização do projeto desenvolvido n’A Torre e no CHK é fundamental, pois, ainda que os materiais, a arquitetura e o currículo sejam inovadores, a efetivação da inovação educacional ocorre mediante a apropriação e reinvenção quotidiana realizada pelos professores.

No CHK há uma segurança com o trabalho desenvolvido pelos professores: a “direção pedagógica acredita imenso nestes projetos inovadores, de experiências sensoriais, e dá-nos imensa força para continuar” (Joana, 2022JOANA. Joana: entrevista [abr. 2022]. Entrevistadora: Mayra Mugnaini. Lisboa, Portugal, 2022.). Se as mudanças educativas dependem dos pensamentos e das ações dos professores, há n’A Torre um modus operandi coletivo bem estabelecido, construído por intermédio de uma relação cooperativa entre direção, professores, famílias e crianças. Esse cooperar (e não apenas trabalho cooperativo) possibilita realizar “uma obra em conjunto” com um “quê de utopia”, mas uma utopia realizável, “que vale a pena batalharmos por ela” (Nuno, 2022NUNO. Nuno: entrevista [junho 2022]. Entrevistadora: Mayra Mugnaini. Lisboa, Portugal, 2022.).

Por fim, merecem destaque o afeto e as emoções presentes nas relações pedagógicas desenvolvidas nessas escolas diferentes. Por isso, é cada vez mais “desadequado o ser professor significar apenas transmitir conhecimento, porque isso qualquer um vai poder fazer. Agora, as relações interpessoais, não há um Google que possa substituir” (Marisa, 2022MARISA. Marisa: entrevista [abr. 2022]. Entrevistadora: Mayra Mugnaini. Lisboa, Portugal, 2022.). Estabelecer uma relação com os alunos, uma relação de “afeto em que haja significado naquilo que eles aprendam e consigo promover – experiências e dinâmicas diferentes –, de forma a conseguir chegar até aos vários alunos. Então estou a inovar de alguma forma, mesmo que o afeto não seja inovação” (Clara, 2022CLARA. Clara: entrevista [mar. 2022]. Entrevistadora: Mayra Mugnaini. Lisboa, Portugal, 2022.).

Considerações finais

Os resultados de uma pesquisa como a presente derivam, sobretudo, das histórias de vida associadas aos sujeitos participantes, os professores. As produções existentes são, no entanto, fundamentais para teorizar as falas que surgem nas entrevistas. Há muitos sentidos que podem ser atribuídos àquilo que efetivamente foi dito. Por isso, torna-se essencial um olhar amplo para o contexto em que estão inseridos. Surgem-nos perguntas que nos fazem continuar a investigar, não para alcançar um fim, mas sim como um caminho que se prossegue.

No momento em que nos propusemos a investigar a construção dos professores inovadores, também nos foi colocada a tarefa de fazer transparecer que não há escolas, principalmente escolas diferentes, sem professores que estejam dispostos a interpretar a teoria de forma contextualizada em sua prática educativa.

Não há, no CHK ou n’A Torre, nada novo em absoluto, mas há sempre uma novidade resultante da recombinação e do diálogo entre elementos do passado e atuais, ou seja, certa forma de hibridismo pedagógico. Os projetos desenvolvidos são transformados a partir das intenções dos professores, mas de maneira especial pela relação que estes estabelecem com as necessidades das crianças, e possuem finalidades que têm em vista a produção de mudanças pedagógicas, porém que não se reduzem a elas (Pintassilgo; Andrade, 2019PINTASSILGO, J.; ANDRADE, A. N. A Torre: a escola como um lugar de vida (1970-Atualidade). In: Pintassilgo, J.; Alves, L. A. M. (coord.). Roteiros da inovação pedagógica: escolas e experiências de referência em Portugal no século XX. Lisboa: Instituto de Educação, Universidade de Lisboa, 2019. p. 447-482.).

Notas

  • 1
    O Colégio Helen Keller tem esse nome em homenagem à escritora e ativista social norte-americana Helen Keller, após sua visita a Portugal em 1956 a convite da Liga Portuguesa da Profilaxia da Cegueira (nessa época, denominado Centro Infantil Helen Keller).
  • 2
    Maria Isabel Vieira Pereira, primeira professora do CHK, realizou uma formação com Freinet em 1958. Juntamente com Maria Amália Borges, Rosalina Gomes de Almeida e Sérgio Niza, criou em novembro de 1971 o Grupo de Estudos da Pedagogia Freinet.
  • 3
    Instituição constituída de iniciativa de particulares, mas sem fins lucrativos. O Estado assume parte da mensalidade, enquanto as famílias coparticipam de acordo com os seus rendimentos. No caso do CHK, ele funciona como IPSS apenas para os/as estudantes com deficiência; para os demais, é uma instituição privada.
  • 4
    Dez fases que se relacionam, em alguma medida, com os anos de profissão: descoberta – sobrevivência (0–3 anos); estabilização – emancipação (4–6 anos); diversificação – rotina (7–25 anos); serenidade – distanciamento afetivo (25–30 anos); conservantismo (30–40 anos); e desinvestimento (35–40 anos).
  • 5
    Ocorre nessa fase uma “busca de novos desafios” motivada pelo “receio emergente de cair na rotina” (Huberman, 2000HUBERMAN, M. O ciclo de vida profissional dos professores. In: NÓVOA, A. (org.). Vidas de professores. 2. ed. Porto: Porto, 2000. p. 31-61., p. 42).

Agradecimentos

Não se aplica.

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Editoras Associadas:

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    04 Mar 2023
  • Aceito
    12 Jan 2024
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