Open-access Educação Estética NA EDUCAÇÃO PERMANENTE: PRINCÍPIOS, DESAFIOS E PERSPECTIVAS

Aesthetic Education IN CONTINUING EDUCATION: PRINCIPLES, CHALLENGES AND PERSPECTIVES

RESUMO

Este artigo tem como objetivo refletir algumas relações entre a Educação Estética e a educação permanente no contexto das políticas sociais, a partir dos estudos de Vigotski e Rancière. Foi dividido em três seções: Princípios teórico-conceituais da Educação Estética; Os bons encontros na educação permanente: a Educação Estética; Educação Estética na educação permanente: desafios e perspectivas. Consideramos que pesquisas acerca da educação permanente na perspectiva da Educação Estética contribuem para a qualificação das políticas, contrapondo à lógica neoliberal.

Palavras-chave Educação permanente; Educação Estética; Formação continuada; Política social

ABSTRACT

This article aims to reflect some relationships between Aesthetic Education and continuing education in the context of social policies, based on the studies of Vygotski and Rancière. It was divided into three sections: Theoretical-conceptual principles of Aesthetic Education; Good encounters in continuing education: eesthetic education; Aesthetic Education in continuing education: challenges and perspectives. We consider that research on continuing education from the perspective of Aesthetic Education contributes to the qualification of policies, opposing neoliberal logic.

Keywords Permanent education; Aesthetic Education; Continuing training; Social policy

Introdução

No texto “A Educação Estética”, Vigotski (2003) relaciona arte, psicologia e educação, desenvolvendo objetivamente um material que visava colaborar com a formação de professores(as). Na década de 1920, as discussões sobre o papel da arte na revolução e na educação estavam em pauta na Rússia; apostava-se na Educação Estética para a formação de outra sociedade (Wedekin e Zanella, 2016).

No contexto contemporâneo, do capitalismo neoliberal, o desenvolvimento e a execução de políticas sociais, apesar de nascerem no sistema capitalista, se apresentam como um desafio, sobretudo pelos argumentos pautados na meritocracia e no individualismo que forjam modos de constituição subjetiva, uma vez que se compreende a constituição do sujeito a partir de uma perspectiva histórica, social e cultural. Segundo Pereira (2016, p. 59):

Pela ótica focalizada e seletiva da doutrina liberal (clássica ou contemporânea), o merecedor da proteção social deve ser o mais pobre dentre os pobres; vale dizer, deve ser aquele que comprove não possuir os pré-requisitos básicos para uma existência verdadeiramente humana, além de demonstrar idoneidade moral: não fraudar o sistema e oferecer contrapartidas.

Diante dessa lógica meritocrática e moralizante, não se pode perder de vista os trabalhadores das políticas sociais, que vivenciam cotidianamente a realidade sob diversas formas e condições e que, em maior ou menor intensidade, também são afetados pela racionalidade neoliberal. Sendo assim, para o enfrentamento dos processos de subalternização e ampliação das possibilidades das políticas sociais, marcados pelas relações interpessoais, é fundamental garantir e fazer acontecer encontros com e entre trabalhadores. A Educação Estética pode ser uma perspectiva propositiva na medida em que agrega a esses encontros a interlocução com o campo da arte e da cultura, amplificando os diálogos, as realidades e as sensibilidades.

O objetivo deste ensaio teórico é refletir algumas relações entre a Educação Estética e a educação permanente no contexto das políticas sociais, a partir dos estudos de Vigotski e Rancière, argumentando que a inserção de recursos artísticos e culturais nos processos formativos com trabalhadores das políticas sociais não somente recriam a dinâmica dos encontros, mas, especialmente, anunciam outros princípios, outras formas e perspectivas para a educação permanente. No âmbito das políticas sociais, a educação permanente (no caso da saúde e da assistência social) e a formação continuada (na política de educação) estão asseguradas como espaços e tempos de articulação entre teoria, prática e reflexão crítica. Neste texto, ao falar de educação permanente, estamos contemplando também a formação continuada.

Ainda no contexto da introdução, é preciso dizer que as discussões e problemáticas tratadas neste artigo são sínteses reflexivas possibilitadas por estudos coordenados pelos autores em projetos anteriores, em que, por meio de pesquisas participativas, fez-se percursos formativos mediatizados por instrumentos dialógicos com trabalhadoras das políticas sociais. Boa parte dessas investigações estão publicadas, destacando-se os seguintes estudos na Assistência Social (Gomes, Andrade e Maheirie, 2022; Gomes, Andrade e Maheirie, 2017; Uttida, Gomes e Salvatori, 2022) e na Educação (Maheirie et al. 2007; Anacleto e Gomes, 2023).

Princípios teórico-conceituais da Educação Estética

Neste texto, discutiremos os princípios da Educação Estética a partir de dois principais autores: Lev Semionovitch Vigotski e Jacques Rancière. Vigotski (1896-1934): russo, advogado, crítico de arte que buscou na ciência psicológica estudos para compreender a atividade criadora dos artistas. Em alguns escritos de Vigotski, é possível identificar seu entendimento sobre estética e as relações entre as obras, os(as) artistas e leitores(as). No livro “A tragédia de Hamlet”, (Vigotski, 1999a, p. 19) afirma que:

Uma vez criada, a obra de arte separa-se de seu criador; não existe sem o leitor; é apenas uma possibilidade que o leitor realiza. Na inesgotável diversidade da obra simbólica, isto é, de qualquer verdadeira obra de arte, está a fonte de suas múltiplas interpretações e enfoques. E a interpretação que lhes dá o autor é apenas mais uma dentro dessa multiplicidade de possíveis interpretações, que a nada obriga.

O autor, portanto, é enfático ao afirmar que a obra não existe sem o leitor, que pode fazer interpretações múltiplas e distintas das que foram planejadas pelo criador da obra. Em outro escrito, “Psicologia Pedagógica”, Vigotski (2003, p. 229) critica o uso da arte que estava sendo feito pela pedagogia tradicional, de que a percepção seria uma “vivência totalmente passiva”. Em contrapartida, Vigotski (2003, p. 229) afirma que a “percepção de uma obra artística representa um trabalho psíquico difícil e árduo”. Com Vigotski (2003), compreendemos que esse trabalho de percepção da obra, e as implicações subsequentes, pode ser nomeado como vivência estética.

A vivência estética “envolve uma atividade construtiva muito complexa que é efetuada pelo ouvinte ou pelo espectador. [...] Com as impressões externas apresentadas, a pessoa constrói e cria um objeto estético ao qual se referem todas suas reações posteriores” (Vigotski, 2003, p. 230). Novamente, o autor reafirma a concepção de atividade do leitor e/ou espectador, contrariando a perspectiva da passividade. Além disso, é possível perceber que os elementos da obra de arte não são importantes por si só, mas o cerne encontra-se na reação provocada, pautada nos afetos.

Dando continuidade à discussão dos princípios da Educação Estética, é importante ressaltar que o processo de criação está vinculado à materialidade, à vida, às questões históricas e culturais que constituem sujeitos e a sociedade. Nesse sentido, Vigotski (2003, p. 233) afirma que “toda obra de arte é portadora de algum material real ou de alguma emoção totalmente corrente no mundo”, apontando para a importância da discussão dos afetos na criação e percepção das obras. Retomando a obra “Psicologia da Arte”, Vigotski (1999b, p. 308) refere que: “a arte recolhe da vida o seu material, mas produz acima desse material algo que ainda não está nas propriedades desse material”. Portanto, nem o criador da obra é passivo, nem o espectador, mas ambos estabelecem relações com a sociedade, a cultura, a história, os afetos para criar. Podemos afirmar que, pela vivência estética, o espectador participa da existência da obra.

Em consonância com o pensamento de Vigotski, Rancière (2012) no livro “O Espectador Emancipado”, elabora a afirmação de que o espectador diante de uma obra é emancipado e cria, compõe “seu próprio poema com os elementos do poema que tem diante de si” (Rancière, 2012, p. 17). E continua afirmando que a relação entre artista, obra e espectador não é uma transmissão do saber ou “sopro do artista ao espectador” (Rancière, 2012, p. 19). Mas a chave de leitura das relações entre artista (ou autor), obra e espectador (ou leitor), para Rancière, é a emancipação, das palavras do próprio pensador: “o embaralhamento da fronteira entre os que agem e os que olham” (Rancière, 2012, p. 23), uma vez que “os espectadores veem, sentem e compreendem alguma coisa à medida que compõem seu próprio poema, como o fazem, à sua maneira, atores ou dramaturgos, diretores, dançarinos ou performers” (Rancière, 2012, p. 18).

Vale relembrar que a obra “O Espectador Emancipado” possuiu intertexto com uma obra anterior, intitulada “O Mestre ignorante: Cinco lições sobre a emancipação intelectual” (Rancière, 2015). Na obra, pode-se conhecer Joseph Jacotot, um professor que, aleatoriamente, descobriu que os estudantes aprendem enquanto ignoram as condições já elaboradas para um determinado saber. Das cenas da vida do professor Jacotot, o filósofo trata da ontologia da igualdade, apontando a igualdade das inteligências/vontades, evidenciando o modo como a maquinaria da desigualdade vai se constituindo por meio de relações, configurando sujeitos embrutecidos. Embrutecimento é o conceito que trata dos efeitos da submissão de uma inteligência/vontade à outra inteligência/vontade (Rancière, 2015). O que o mestre ignora, sobretudo, “é a desigualdade das inteligências” (Rancière, 2012, p. 16). Transpondo a premissa da igualdade das inteligências para o campo das artes, Rancière (2012) problematiza as relações hierárquicas e a suposição de que os espectadores ocupavam posições passivas diante da audiência.

Partindo da igualdade das inteligências como premissa para as relações entre os seres humanos, várias indagações são necessárias, especialmente nas práticas sociais que usualmente reproduzem posições hierárquicas e desiguais. Nesse sentido, é possível compreender a potência política da arte, uma vez que a estética, para Rancière, não está vinculada somente ao campo da arte, mas encontra espaço privilegiado para os estudos. A arte não é política somente por transmitir determinadas mensagens, mesmo que relevantes socialmente. Ela é política, para Rancière (2010, p. 46):

Pela maneira como configura um sensorium espaço-temporal que determina maneiras do estar junto ou separado, fora ou dentro, face a ou no meio de... Ela é política enquanto recorta um determinado espaço ou um determinado tempo, enquanto os objetos com os quais ela povoa este espaço ou o ritmo que ela confere a esse tempo determinam uma forma de experiência específica, em conformidade ou em ruptura com outras: uma forma específica de visibilidade, uma modificação das relações entre formas sensíveis e regimes de significação.

Sendo a estética uma forma de configuração do sensível, a arte e a política podem produzir dissensos, embaralhamentos, agenciamentos de outros regimes de configuração do sensível; especialmente se redistribui as “relações entre o ativo e o passivo” (Rancière, 2010, p. 53). Isso quer dizer que, quando há o encontro entre o(a) artista, sua produção e o(a) espectador, produz sentidos outros, a ponto de que o espectador também é um criador; as relações se embaralham, marcando a arte por uma tensão política.

Retomando a questão central desta seção, não seria possível, portanto, construir saberes e fazeres acerca da Educação Estética sem deslocar o olhar para o caráter da emancipação e participação dos sujeitos. Uma ação educativa alicerçada nos princípios da Educação Estética parte, também, da igualdade das inteligências e da premissa da emancipação, compreendendo os(as) educandos(as) como coprodutores do conhecimento, e o conhecimento como saber que é construído em um processo dialógico e não como lição a ser transmitida. Nesse sentido, a escolha de instrumentos dialógicos do campo da arte e da cultura como saberes mediatizados não pode ser pautada em uma perspectiva bancária (Freire, 1987), desigual, hierárquica e moral. A arte na Educação Estética compõe o trabalho educativo visando embaralhar os lugares, instigar o educando à criação, a partir do encontro, das relações, das afetações.

Historicamente, as metodologias participativas convocam à ação política, em um processo dirigido à transformação social, mesmo que em iniciativas locais. E essa perspectiva parte da conversão da relação tradicional de sujeito-objetivo entre educador-investigador (na pesquisa) e os grupos com os quais se trabalha, para “uma relação do tipo sujeito-sujeito” (Brandão e Streck, 2006, p. 35), isto quer dizer, horizontalizada, que entende todas as pessoas como fontes de saber. É um convite a radicalizar o entendimento sobre as ações educativas e de pesquisa sobre algo ou alguém/algum grupo; a proposição é pesquisar e agir com. E isso não diz respeito somente a um pequeno trocadilho na expressão, mas implica outra perspectiva, que inicia com um giro ontológico e se desdobra em compromissos, recursos, objetivos.

Os bons encontros na educação permanente: a Educação Estética

As políticas públicas possuem estabelecidas orientações para a educação permanente dos trabalhadores. A política nacional de educação permanente em saúde, por exemplo, publicada em 2004, define a prática como “uma intensa vertente educacional com potencialidades ligadas a mecanismos e temas que possibilitam gerar reflexão sobre o processo de trabalho, autogestão, mudança institucional e transformação das práticas em serviço” (Brasil, 2018, p. 10). Já no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), foi estabelecida em 2013 a Política Nacional de Educação Permanente no SUAS e, de acordo com ela (Brasil, 2013, p. 32-33):

Educação Permanente não se refere apenas a processos de educação formal. Em um sentido mais amplo, ela diz respeito à formação de pessoas visando a dotá-las das ferramentas cognitivas e operativas que as tornem capazes de construir suas próprias identidades, suas compreensões quanto aos contextos nos quais estão inseridas e seus julgamentos quanto a condutas, procedimentos e meios de ação apropriados aos diferentes contextos de vida e de trabalho e à resolução de problemas.

Nesse sentido, a proposta de educação permanente no SUAS, assim como a proposta do Sistema Único de Saúde (SUS), tem como um dos princípios a aprendizagem significativa, compreendida como um processo educativo que acontece “a partir da mobilização dos saberes e experiências prévias do educando” (Brasil, 2013, p. 37). Além disso, a política propõe que a educação permanente seja ofertada no formato de percursos formativos, com objetivo de desenvolver os(as) trabalhadores(as), a partir de suas próprias necessidades e aspirações e das necessidades do serviço no qual trabalha (Brasil, 2013).

Na política de educação, a formação continuada de professores(as) é estabelecida na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB) que define, no § 1º do art. 62, a responsabilidade da União, do Distrito Federal, dos estados e municípios pela promoção da formação inicial e continuada dos profissionais de magistério. Além disso, a Resolução CNE/CP n.º 1, de 27 de outubro de 2020, que dispõe sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Continuada de Professores da Educação Básica, afirma a importância da formação continuada na qualificação da prática docente, mas estabelece no art. 9º “Cursos e programas flexíveis, entre outras ações, mediante atividades formativas diversas, presenciais, à distância, semipresenciais, de forma híbrida, ou por outras estratégias não presenciais, sempre que o processo de ensino assim o recomendar” (Brasil, 1996).

Compreende-se, portanto, que a educação permanente e a formação continuada baseiam-se em processos educacionais que têm como público alvo trabalhadores(as) e compõem as equipes técnicas e/ou pedagógicas em exercício nas referidas políticas públicas. A formulação das políticas de educação permanente do SUS e do SUAS demarcam a processualidade, territorialidade, participação e abertura ao diálogo nos processos formativos. Portanto, a educação permanente não pode ser concebida como um apêndice nas políticas sociais, uma vez que o conjunto de ações que compõem um programa de educação permanente indica a concepção de serviço, de trabalhadores(as) e usuários(as) presentes na própria política, gerando indicadores para sua avaliação e possibilidades para sua qualificação.

O encontro entre educação permanente e Educação Estética pode problematizar e colaborar com a produção de estratégias e possibilidades para o enfrentamento da lógica instrumental, uma vez que a Educação Estética é precedida por princípios dialógicos, relacionais, não estando a serviço de um modo de capacitação ou “cursinho”. A aposta é que a Educação Estética na educação permanente seja promotora de encontros potentes, no sentido ético, estético e afetivo do que se compreende como bons encontros, justamente porque eles transcendem a lógica espaço-temporal, não estando reduzidos ao momento de estar juntos. Há bons encontros quando há felicidade pública (contraponto ao sofrimento ético-político), sentida por meio de práticas que ultrapassam o individualismo, a solidão e o descompromisso com o sofrimento do outro. Segundo Sawaia (2001, p. 105), a felicidade pública é a afetação “experienciada apenas pelos que sentem a vitória como conquista da cidadania e da emancipação de si e do outro, e não apenas de bens materiais circunscritos”.

Nesse sentido, para a potencialização dos sujeitos e a felicidade pública, é necessário que a educação permanente esteja voltada para os bons encontros. Para Sawaia (2002, p. 127) os “bons encontros só são possíveis com justiça e sem miséria, quando não há dominação instituída e excesso desproporcional de poder”. Assim, ao operarmos pela ontologia da igualdade, opera-se também pela perspectiva de que há no outro uma vida desconhecida, um campo de sentidos que é próprio de uma inteligência que, ainda que embrutecida, tem poder de imaginar, de narrar e significar o que está inacessível a qualquer outro.

O encontro é um conceito que sugere uma potência das relações e uma dimensão ético-afetiva, assim, não se trata somente de um protocolo metodológico. O encontro como algo desejado em uma mediação tem uma perspectiva ontológica de igualdade das inteligências. A escolha pelos instrumentos dialógicos se faz, justamente, para trazer ao ato do encontro outras palavras para além daquelas que costumeiramente se espera de uma educação permanente. Em uma perspectiva da Educação Estética, o encontro se faz nos diálogos entre uma “obra” (poética, imagética, dramática etc.) com as experiências que o trabalhador da política social tem constituídas em si, especialmente aquelas que julga mais desafiadoras e emblemáticas no seu cotidiano de trabalho.

Assim, ao afirmar uma Educação Estética, estamos apostando nas possibilidades de rompimentos com as lógicas utilitárias e hierarquizadas que configuram a experiência de trabalho nas políticas sociais. Maheirie et al. (2007, p. 152) afirmam que:

Tal possibilidade de formação é aberta aos professores e é nela que se possibilita a re-significação do cotidiano vivenciado, a troca de experiências e negociação de sentidos relativos ao que de novidade se apresenta. Consideram-se estes espaços como prenhes de possibilidades de distanciamento daquilo que caracteriza e, muitas vezes, se repete na prática do professor e o consequente estranhamento, ao se cruzarem as memórias do feito com as possibilidades abertas nos cursos de formação continuada.

Todavia, a potência do encontro entre humanos em uma sociedade capitalizada tem grandes chances de ser capturado pelo poder do embrutecimento, do padecimento, da hierarquização, da subordinação. Por conta dessas tensões e relações de força que podem capturar o encontro com o outro, a intervenção e a investigação com trabalhadores(as) das políticas públicas exige uma vontade de encontro, um compromisso com as alteridades, um desejo de pensar-sentir com o outro. Isto significa ser conduzido pelo olhar da potência, desocupar o “dado” socialmente e se colocar em relação de investigação. Dessa forma é que a perspectiva de Educação Estética pode colaborar com a reflexão e realização de processos de educação permanente, não somente pela presença dos instrumentos dialógicos, mas pela possibilidade de outros olhares para si e para o mundo-outro.

Educação Estética na educação permanente: desafios e perspectivas

As políticas sociais são estratégias governamentais que objetivam sistematizar a proteção social no Brasil e operacionalizar os direitos constitucionais, tais como: “a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados” (Brasil, 1988, art. 6º). As políticas sociais criadas no contexto capitalista, ao mesmo tempo em que colaboram para o enfrentamento das situações de miséria e violação de direitos, também têm em sua gênese o compromisso de manutenção do sistema capitalista. Portanto, as políticas sociais não têm como objetivo acabar com a desigualdade social, mas atender os grupos mais afetados pelas consequências da desigualdade (Pereira, 2016).

Vale ressaltar que, especialmente no capitalismo neoliberal, o imperativo da meritocracia e a justificativa da pobreza como fracasso individual tem construído os modos de subjetivação, fato que marca a vida tanto dos sujeitos atendidos pelas políticas sociais, quanto dos(as) trabalhadores(as) que operacionalizam os atendimentos. Isso quer dizer que – apesar de que, teoricamente, as perspectivas críticas colaboram para a reflexão acerca da desigualdade social e das suas expressões, especialmente a pobreza –, no cotidiano, no senso comum, percebe-se as relações orientadas pela lógica do merecimento, a necessidade do sujeito que vive em situação de pobreza de “provar a sua derrota e incapacidade de superá-la via empenho próprio” (Pereira, 2016, p. 59).

Martín-Baró (2017, p. 61) afirma que o senso comum é ordenado por uma ideologia antipopular, que justifica “um sistema social explorador e opressivo”. O mesmo autor acredita que um trabalho de enfrentamento é possível, na medida em que se desvele essa ideologia, a partir de trabalhos que contemplem a participação popular e produzam conhecimento. Portanto, é possível conjecturar que processos de educação permanente, pautados na perspectiva da Educação Estética, possam contribuir na construção de sentidos acerca da desigualdade, pobreza e da vida em condições de violação.

Rancière (2014) contribuiu para essa reflexão com o conceito de subjetivação política, este processo subjetivo simbólico de deslocamento dos lugares identitários pré-estabelecidos pelos títulos, pelo poder, saber e pela “identificação impossível” com a identidade de quem sofre as consequências da configuração desigual. Maheirie et al. (2019, p. 881) colaboram quando afirmam que “essa identificação impossível é absolutamente necessária que, junto a uma desidentificação com seu lugar de pertencimento em uma sociedade que classifica e inferioriza humanos, é capaz de produzir uma experiência simbólica e política”.

Outro desafio posto às políticas sociais brasileiras foi sua construção de maneira fragmentada e setorializada. As políticas são organizadas por partes, mas a compreensão de sujeito, a sociedade e a desigualdade social como complexos e multifacetados; nesse sentido, os serviços de maneira isolada não conseguem abarcar as complexidades, sendo necessária a atuação intersetorial. Wanderley, Martinelli e Paz (2020) afirmam que a intersetorialidade pode ser compreendida como uma estratégia de gestão pública, democrática, que colabora com a proposição de respostas diante da setorização e da fragmentação. Além disso, as autoras afirmam que a intersetorialidade “pressupõe decisão política, articulação entre os setores e complementaridade das ações, buscando um olhar para a totalidade das manifestações da questão social e dos cidadãos que demandam atendimento público” (Wanderley, Martinelli e Paz, 2020, p. 8).

Andrade, Gomes e Maheirie (2021) afirmam que, em encontros intersetoriais, algumas lógicas podem ser negociadas, especialmente quando a iniciativa de trabalho intersetorial amplia a participação social e contempla também, além de trabalhadores(as), a sociedade civil. Nessas ocasiões, os regimes de audibilidade dominantes (Rancière, 1996) podem ser questionados, uma vez que todos são convidados a falar, questionar e ter suas demandas coletivizadas.

A intersetorialidade se apresenta como uma possibilidade diante da setorialização, mas também se expressa como um desafio, dada a complexidade de sua operacionalização. Carmo e Guizardi (2017) concordam com a perspectiva de que formar trabalhadores(as) para atuar intersetorialmente exige experiências práticas e de construção de conhecimento contextualizada. Azevedo, Pelicioni e Westphal (2012) fazem uma crítica aos cursos de graduação, afirmando que é difícil encontrar profissionais e docentes com visão interdisciplinar e qualificados para os desafios que a intersetorialidade impõe; eles afirmam, ainda, que a formação continuada se apresenta como recurso necessário para a qualificação do trabalho, em uma perspectiva intersetorial e em sintonia com as diretrizes das políticas públicas.

Wanderley, Martinelli e Paz (2020) relatam experiências de educação permanente de trabalhadores(as) e citam Paulo Freire indicando que a construção de conhecimento e de espaços coletivos pode caracterizar-se pela busca do “inédito viável” e pela proposição de alternativas diante do individualismo, tais como o fortalecimento da cidadania, dos direitos sociais e da democracia, questões necessárias para o trabalho cotidiano com o campo da desigualdade social. Os autores refletiram, ainda, sobre a abertura de possibilidades que os processos educativos podem provocar, a criação e fortalecimento de coletivos e de relações solidárias.

Vale relembrar que o que se pretende com a educação permanente, sobretudo quando na perspectiva da Educação Estética, é trabalhar com as problemáticas presentes nos territórios, no cotidiano e em contextos de atuação das políticas sociais. Em nossas experiências e trajetórias com trabalhadores(as), os efeitos do discurso neoliberal e os entraves nas relações intersetoriais têm aparecido como temática complexa e desafiadora, assim como as questões relacionadas à classe, raça, etnia, geração, deficiência, ao gênero e outras intersecções. Nesse sentido, a Educação Estética é comprometida com a construção coletiva e significativa do conhecimento, produzindo questionamento e enfrentamentos à racionalidade neoliberal.

Portanto, iniciativas de educação permanente orientadas pela perspectiva da Educação Estética também podem promover a subjetivação política, uma vez que tensionam enquadramentos e hierarquias. Em síntese, a Educação Estética como uma aposta na educação permanente se faz com instrumentos dialógicos nos encontros, acrescido de um olhar atento para os sentidos produzidos na relação (apreciação, espectação ou leitura) com a obra, especialmente no modo como os(as) trabalhadores(as) enlaçam a arte à vida. Muitas vezes, essas reflexões não se dão na atividade em si, mas entre encontros, justamente pela aposta polissêmica da Educação Estética, ou seja, de não trabalhar com sentidos a priori, com uma definição fechada do instrumento ou atividade mediadora.

Considerações finais

A Educação Estética pode apontar para a qualificação da política social, não só por ideias ou métodos mais criativos, mas pela sua dimensão ontológica. Ou seja, a Educação Estética, em seu aspecto metodológico, recria a dinâmica dos encontros de formação, mas para além desse aspecto, é necessária na educação permanente pela dimensão ontológica, pois a partir do princípio da igualdade das inteligências, pode promover bons encontros, participativos e emancipatórios. Esse encontro entre a Educação Estética e a educação permanente nas políticas sociais, desde que a educação permanente seja também concebida como parte integrante e necessária da política social, fomenta à recriação e à manutenção da dimensão inventiva, da abertura aos processos de criação gerados por problemáticas e implicações da própria prática cotidiana.

Refletindo sobre algumas relações entre a Educação Estética e a educação permanente no contexto das políticas sociais, apresenta-se a potencialidade da Educação Estética em contribuir com programas de educação permanente, não como um protocolo, mas resistindo à força neoliberal e seus efeitos nas políticas sociais. Dessa forma, engendrando processos de educação permanente comprometidos com a construção coletiva do conhecimento, com a transformação social e que partem de perspectivas horizontalizadas, contextualizadas e dialogadas. Portanto, é razoável considerar que a Educação Estética na educação permanente fomenta bons encontros, contribuindo para o enfrentamento de um e outro desafio no cotidiano de trabalho nas políticas sociais.

Nesse sentido, podemos afirmar que é trabalho da ciência e da pesquisa contribuir com os processos de qualificação dos programas de educação permanente, explorando possibilidades e perspectivas, recriando e publicizando iniciativas que colaboraram com a educação permanente de trabalhadores(as) das políticas sociais. As reflexões abrem portas para estudos futuros que ampliem as discussões acerca das relações entre Educação Estética e subjetivação política, bem como o aprofundamento das discussões acerca da intersetorialidade e, ainda, das interseccionalidades.

AGRADECIMENTOS

Não se aplica.

DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA

Não se aplica.

REFERÊNCIAS

  • ANACLETO, B. M.; GOMES, A. H. Encontros de um percurso: os enlaces entre docência e relações raciais. Humanidades & Inovação, v, 10, n. 1, p. 95-108, 2023. Disponível em: https://revista.unitins.br/index.php/humanidadeseinovacao/article/view/7212 Acesso em: 20 jan. 2024.
    » https://revista.unitins.br/index.php/humanidadeseinovacao/article/view/7212
  • ANDRADE, L. D.; GOMES, A. H.; MAHEIRIE, K. (Re)união, feira e horta: expressões do trabalho intersetorial de um território. Estudos de Psicologia, v. 26, n. 4, p. 380-391, 2021. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1413-294X2021000400005&script=sci_arttext. Acesso em: 10 jan. 2024.
    » http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1413-294X2021000400005&script=sci_arttext
  • AZEVEDO, E. D.; PELICIONI, M. C. F.; WESTPHAL, M. F. Práticas intersetoriais nas políticas públicas de promoção de saúde. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 22, n. 4, p. 1.333-1.356, 2012. https://doi.org/10.1590/S0103-73312012000400005
    » https://doi.org/10.1590/S0103-73312012000400005
  • BRANDÃO, C. R.; STRECK, D. Pesquisa participante: a partilha do saber. São Paulo: Ideias & Letras, 2006.
  • BRASIL. Política Nacional de Educação Permanente do SUAS. 1. ed. Brasília: MDS, 2013.
  • BRASIL. Política Nacional de Educação Permanente em Saúde: o que se tem produzido para o seu fortalecimento? 1. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2018.
  • BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
  • BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. LDB - Lei nº 9394/96, de 20 de dezembro de 1996. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm Acesso em: 10 jan. 2024.
    » https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm
  • CARMO, M. E. D.; GUIZARDI, F. L. Desafios da intersetorialidade nas políticas públicas de saúde e assistência social: uma revisão do estado da arte. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 4, p. 1.265-1.286, 2017. https://doi.org/10.1590/s0103-73312017000400021
    » https://doi.org/10.1590/s0103-73312017000400021
  • FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17. ed.). São Paulo: Paz e Terra, 1987.
  • GOMES, A. H.; ANDRADE, L. D.; MAHEIRIE, K. A experiência de ser trabalhador na assistência social: imagens de vidas implicadas com o campo da desigualdade social. Pesquisas e Práticas Psicossociais, v. 12, n. 3, p. 1-18, 2017. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-89082017000300011. Acesso em: 20 jan. 2024.
    » http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-89082017000300011
  • GOMES, A. H.; ANDRADE, L. D.; MAHEIRIE, K. Mediação audiovisual e educação permanente: cenas de um percurso de formação com trabalhadoras do SUAS. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 42, p. 1-14, 2022. https://doi.org/10.1590/1982-3703003234194
    » https://doi.org/10.1590/1982-3703003234194
  • MAHEIRIE, K., et al. Subjetivação política e aumento da potência de ação: quem são os usuários dos CRAS? Psicologia em Revista, v. 25, n. 2, p. 874-890, 2019. https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2019v25n2p874-890
    » https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2019v25n2p874-890
  • MAHEIRIE, K., et al. Processos de criação em educadoras: uma experiência e suas implicações. Revista do Departamento de Psicologia, v. 19, n. 1, p. 145-154, 2007. https://doi.org/10.1590/S0104-80232007000100011
    » https://doi.org/10.1590/S0104-80232007000100011
  • MARTÍN-BARÓ, I. Crítica e libertação na psicologia: estudos psicossociais. Petrópolis: Vozes, 2017.
  • PEREIRA, C. P. Proteção social no capitalismo: crítica a teorias e ideologias conflitantes. São Paulo: Cortez, 2016.
  • RANCIÈRE, J. O desentendimento São Paulo: Editora 34, 1996.
  • RANCIÈRE, J. Política da arte. Urdimento, v. 15, p. 45-49, 2010. https://doi.org/10.5965/1414573102152010045
    » https://doi.org/10.5965/1414573102152010045
  • RANCIÈRE, J. O espectador emancipado São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
  • RANCIÈRE, J. El método de la igualdad: conversaciones con Laurent Jeanpierre y Dork Zabunyan. Buenos Aires: Nueva Visión, 2014.
  • RANCIÈRE, J. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. L. Valle. 3. ed. [S.l.]: Autêntica, 2015.
  • SAWAIA, B. B. As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2001.
  • SAWAIA, B. B. Participação social e subjetividade. In: Ambientalismo e participação na contemporaneidade São Paulo: EDUC/FAPESP, 2002.
  • UTTIDA, J. W. C.; GOMES, A. H.; SALVATORI, A. P. Território e políticas públicas: um percurso de educação permanente. Interações (Campo Grande), v. 23. n. 3, p. 703-719, 2022. https://doi.org/10.20435/inter.v23i3.3029
    » https://doi.org/10.20435/inter.v23i3.3029
  • VIGOTSKI, L. S. A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca. São Paulo: WMF Martins Fontes, 1999a.
  • VIGOTSKI, L. S. Psicologia da arte. São Paulo: WMF Martins Fontes, 1999b.
  • VIGOTSKI, L. S. Psicologia pedagógica. Trad. C. Schilling. [S.l.]: Artmed, 2003.
  • WANDERLEY, M. B.; MARTINELLI, M. L; PAZ, R. D. O. Intersetorialidade nas políticas públicas. Serviço Social & Sociedade, v. 137, p. 7-13, 2020. https://doi.org/10.1590/0101-6628.198
    » https://doi.org/10.1590/0101-6628.198
  • WEDEKIN, L. M.; ZANELLA, A. V. L. S. Vigotski e o ensino de arte: “A Educação Estética” (1926) e as escolas de arte na Rússia 1917-1930. Pro-Posições, v. 27, n. 2, p. 155-176, 2016. https://doi.org/10.1590/1980-6248-2014-0124
    » https://doi.org/10.1590/1980-6248-2014-0124

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    06 Fev 2024
  • Aceito
    07 Set 2024
location_on
CEDES - Centro de Estudos Educação e Sociedade Caixa Postal 6022 - Unicamp, 13084-971 Campinas SP - Brazil, Tel. / Fax: (55 19) 3289 - 1598 / 7539 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: revistas.cedes@linceu.com.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro