Resumos
Este artigo apresenta um breve retrato que ilustra alguns dos contornos de vidas precárias estruturadas através do trabalho. Trazemos aqui elementos de luta e de subjetividades acomodadas aos modos de vida e formas de adaptação que o capitalismo promove e reproduz. Os três casos em análise – em Franca-SP; São João da Madeira, Portugal; e o setor das trabalhadoras domésticas, em Salvador-BA – ilustram realidades diversas, mas que espelham formas de aceitação e precariedade estruturadas por modalidades de dominação e opressão vinculadas ao mesmo sistema econômico neoliberal. A condição subalterna a que foram remetidos esses segmentos espelha combinações complexas de fatores, em que se reúnem a classe, a raça e o gênero, oscilando a força de cada um deles em função de cada um dos casos. Enquanto a discriminação racial e de gênero são mais evidentes no caso das domésticas, as dimensões de classe conjugadas com as subjetividades e identidades mostraram-se mais fortes na indústria calçadista.
Precariedade; Raça; Indústria do calçado; Trabalhadoras domésticas
This article presents a brief portrait that illustrates some of the contours of precarious lives structured through work. Here we look at elements of struggle and subjectivities accommodated to the ways of life and forms of adaptation that global capitalism promotes and reproduces. The three cases analysed – Franca-SP; São João da Madeira, Portugal; and the domestic workers sector in Salvador-BA – illustrate different realities, but they mirror forms of acceptance and precariousness structured by modes of domination and oppression linked to the same neoliberal economic system. The subordinate condition to which these segments have been consigned reflects complex combinations of factors, where class, race and gender come together, with the strength of each of them fluctuating according to each case. While racial and gender discrimination are more evident in the case of domestic workers, class dimensions combined with consent subjectivities and identities were stronger in the footwear industry.
Precariousness; Race; Footwear industry; Domestic workers
Cet article présente un bref portrait qui illustre certains des contours des vies précaires structurées par le travail. Nous examinons ici les éléments de lutte et les subjectivités qui s’accommodent des modes de vie et des formes d’adaptation que le capitalisme promeut et reproduit. Les trois cas analysés - à Franca, São Paulo; São João da Madeira, au Portugal, et le secteur des travailleurs domestiques à Salvador-BA - illustrent des réalités différentes, mais qui reflètent des formes d’acceptation et de précarité structurées par des modes de domination et d’oppression liés au même système économique néolibéral. La condition subalterne à laquelle ces segments ont été confinés reflète des combinaisons complexes de facteurs, dans lesquels la classe, la race et le genre se conjuguent, la force de chacun d’entre eux fluctuant selon les cas. Alors que la discrimination raciale et sexuelle est plus évidente dans le cas des travailleurs domestiques, les dimensions de classe combinées aux subjectivités et aux identités étaient plus fortes dans l’industrie de la chaussure.
Précarité; Race; Industrie de la chaussure; Travailleurs domestiques
I PARTE – TRABALHO E PRECARIEDADE
Vidas precárias são, muitas vezes, para não dizer quase sempre, fruto de conjugações de fatores diversos, nos quais a classe, a raça e o gênero constituem forças estruturantes dessa condição. Determinadas dinâmicas sistêmicas e ajustamentos contextuais do capitalismo global incidem sobre os destinos pessoais e familiares de milhões de trabalhadores suscitando respostas diversas – criando e desenvolvendo formas de resistência em defesa da sua dignidade e condições de vida ou adaptando-se às forças dominantes através de mecanismos de consentimento – aos poderes que os aprisionam e oprimem, no local de trabalho, seja ele o chão de fábrica, o escritório, a plataforma digital ou o espaço doméstico. Importa, por isso, conjugar diferentes escalas de análise (do micro ao macro) em diferentes contextos, mostrando seus traços comuns a partir das conexões com o capitalismo na fase de globalização neoliberal.
Para desenvolver o nosso argumento, tentamos equacionar, inicialmente, o problema da racialidade, o que, em particular considerando o contexto brasileiro e da América Latina, requer resgatar sumariamente a história do colonialismo e da escravidão. Como sabemos, a dominação eurocêntrica encontrou legitimação tanto na ação de controle como na própria imposição de uma linguagem que ajudou a naturalizar a subalternidade do colonizado (Mignolo, 2020; Quijano, 2005; Robinson, 2023). Assim, o patriarcado ancestral conjugou-se com os regimes escravagistas para impor, de forma brutal, uma opressão e domínio que transportou, e transporta, ao longo dos séculos variadas formas de violência e silenciamento, de que as divisões de raça e gênero são exemplos, criando ao mesmo tempo um ”véu” de obscurecimento e negação da condição negra (Du Bois, [1903] 2021). Esse cancelamento do ser, essa inferiorização dos corpos negros de homens e mulheres – num movimento de disseminação ideológica que inculcou em suas mentes a naturalização da superioridade de uma raça sobre outra – levou as vítimas da branquitude colonial a sonhar tornarem-se brancos, como nos mostrou Frantz Fanon ([1952] 2008), através da fala dos seus doentes. Mas essa colonização da mente negra não impediu que crescessem os sentimentos e ressentimentos acumulados durante séculos, os quais persistiram após o fim oficial do colonialismo nas Américas e nos restantes países do Sul Global. Perante a emergência dos debates mais recentes, importa questionar os velhos cânones e divisões teóricas rígidas dentro das ciências sociais do Ocidente, em linha com propostas de Michael Burawoy (2022), entre outros. Há que se buscar inspiração nessas novas linguagens, mas sem abandonar o legado teórico dos antigos clássicos, ou seja, recentrar o diálogo entre autores, pôr as visões críticas do Norte a conversar com porta-vozes dos setores oprimidos do Hemisfério Sul, recuperando nas epistemologias do Sul o contraponto para a hegemonia eurocêntrica (Santos, 2017).
Diversos sociólogos ocidentais, como Beck (2011), Burawoy (2014), Dörre (2022), Antunes (2018), procuraram chamar a atenção desde o início deste século para o papel do trabalho não só no agravamento ou redução dos níveis de pobreza, mas também na estruturação das subjetividades dos trabalhadores na sua relação com a atividade profissional. Perante a crescente fragmentação e instabilidade dos vínculos, o que antes foi uma “experiência comunitária”, ou seja, uma esfera primordial de socialização – o trabalho assalariado no chão de fábrica – em que a partilha coletiva atenuava o sofrimento e estruturava formas de solidariedade e até identidades de resistência, tornou-se, em tempos de globalização, um mundo cada vez mais competitivo e impessoal, onde cada um tenta provar ser melhor do que o outro. Esse trabalhador “de tipo novo” (Sennett, 2001) sofreu, desde a viragem do milênio, uma profunda transmutação. Ao longo do tempo, a precariedade naturalizou-se à custa de uma ficção que cresceu na sociedade e, sobretudo, entre as camadas jovens, um senso comum quanto ao acesso a um emprego permanente, uma ambição adiada ao longo de décadas (Marques, 2021).
Outro elemento que nos parece relevante no presente estudo refere-se ao conceito de “sistemas produtivos locais” (Beccatini, 1994; Reis, 1992), nos quais a produção econômica e reprodução social das comunidades formam uma profunda dialética ou simbiose, em que os fenômenos da cultura e da memória (coletiva) – uma espécie de dispositivo cognitivo coletivo – são determinantes na estruturação das subjetividades de trabalhadores e empresários inscritos no mesmo contexto cultural. Nessa linha de inscrição territorial e setorial onde Pequenas e Médias Empresas (PMEs) se articulam com grandes unidades produtivas, pode modelar ambientes organizacionais marcados pela inovação e seu potencial competitivo (Benko; Lipietz, 1994), ou o que por vezes foi designado por “clusters”, um fenômeno urbano, mas também rural, detectável em muitos países do mundo, como no Brasil, por exemplo – em Santa Catarina, na Paraíba ou na cidade de Franca-SP –, ou em Portugal, no caso da indústria calçadista de São João da Madeira (SJM).
Apesar de parecer contraditório, diante dos efeitos cada vez mais deletérios da globalização econômica, o fomento ao desenvolvimento local tem ganhado relevância crescente na agenda governamental ao redor do mundo. Nas últimas décadas, o processo de relocalização industrial, impulsionado pela reestruturação produtiva do capitalismo, tem levado gestores públicos de diversas cidades e regiões a se comprometerem mais ativamente com a promoção do desenvolvimento local. Aqueles que testemunharam a saída de empresas de seu território se esforçam para revitalizar a economia local diante do impacto causado pela fuga de capitais. Do mesmo modo, outros têm se empenhado em tornar seus territórios mais atraentes para investimentos em constante migração, buscando custos de produção mais baixos, infraestrutura satisfatória e mão de obra qualificada, visando, assim, uma maior competitividade (Barbosa, 2016). Tal perspectivas de “ativação” dos territórios contribui para engendrar o que alguns economistas chamam de eficiência coletiva, que corresponde a “uma vantagem competitiva derivada de economias externas locais e ação conjunta” (Schmitz, 1997, p. 165) – noção essa que ultrapassa a visão de desempenho das empresas, considerada apenas a sua atuação individualizada.
As variações, dinâmicas e heterogeneidades induzidas pelo sistema capitalista global reenviam para o centro da análise as variáveis espaço (onde?) e tempo (quando?), isto é, os contextos impõem que se associe os territórios à lógica dos comportamentos econômicos, tal como os múltiplos elementos de subjetividade laborais e empresariais. As cidades e regiões tornaram-se autênticos quadros modeladores de estratégias de ação coletiva e também das experiências de vida individuais de trabalhadores inseridos em comunidades operárias específicas. Há seguramente múltiplos caminhos para a sociologia captar o sentido das vidas e trajetórias profissionais assim como das forças e dinâmicas estruturais que as formatam. Se, como formulou C. Wright Mills, a sociologia busca descobrir, através da imaginação e da observação, o significado social dos fenômenos onde se cruzam a biografia e a história, é importante, nesse empreendimento, uma aproximação e empatia genuína com as pessoas que se dispõem a partilhar fragmentos relevantes de suas vidas para que o pesquisador lhe imprima uma interpretação sociológica fundamentada.
Já Harriet Martineau, considerada a primeira mulher-socióloga, apontava que, para observar a moral e os costumes do povo,
o observador deve ter empatia; e sua empatia deve ser irrestrita e sem reservas […]. Um observador da moral e dos costumes correrá o risco de cometer diversos erros se não conseguir encontrar um caminho para os corações e as mentes […]. Há um mesmo coração humano em todos os lugares – um crescimento universal da mente e da vida – pronto para se abrir para o raio de sol da empatia, para florescer nos enclaves das cidades e brotar em qualquer deserto; […]. Se estiver tomado de empatia, tudo o que [o viajante] vir será instrutivo, e as questões importantes se revelarão com mais nitidez (Martineau, 1838 apudDaflon; Sorj, 2021, p. 30).
Neste estudo, pretendemos assumir o princípio da empatia para com os nossos e nossas entrevistados(as), na base de entrevistas não estruturadas. Esse critério vai, de resto, ao encontro da noção de interseccionalidade crítica, que colhemos de Patrícia Hill Collins, quando sustenta que é, antes de mais, o compromisso com a justiça social que continua a servir de elo unificador no ativismo feminista, embora devamos reconhecer diferentes entendimentos de justiça social presentes em contextos comunitários distintos (Collins, 2022). Na verdade, foi em boa medida a empatia e o “respeito” por essas diversas personagens que encontramos no universo fabril e noutros serviços, em nossas anteriores pesquisas, que nos levaram a assumir o desafio dessa abordagem. No estudo de cariz autobiográfico empreendido por Richard Sennett, Respeito (2004), o autor põe em evidência a questão da dignidade do trabalhador e o modo como o liberalismo usou a “ética do trabalho” como forma de docilização das subjetividades do trabalhador. Desde o século XIX, nas fábricas como no serviço doméstico, “o capitalismo cultivou a crença no trabalho em si como a fonte mais importante de respeito mútuo e respeito próprio” (Sennett, 2004, p. 131), ou seja, criou uma ideologia que se expandiu ao ponto de generalizar a ideia de que o ócio ou o lazer significavam perda de tempo. Sabemos como o operário inglês ou francês de finais do século XIX se orgulhava do seu know-how ou savoir faire e zombava de chefias e encarregados de linha que revelassem fragilidades nos modos de fazer.
Num país como o Brasil, é conhecido o enorme volume de emprego informal, aproximando-se dos 40% por cento (IBGE, 2023) ou até mais em alguns setores da economia, tendência que se agravou nos últimos anos, no período pós-covid-19, com a crescente digitalização, tem vindo a crescer também a precariedade ao mesmo tempo que os empregos formais estão ameaçados ou são suprimidos em larga escala pela automação e informatização de tarefas rotineiras. Mas à medida que estas são substituídas por sistemas e serviços informáticos, cresce também o desemprego, sobretudo em trabalhos menos qualificados, sendo que, nos mais qualificados, também estagnaram ou decresceram os salários médios devido ao estímulo da concorrência, aos cortes de pessoal e à pressão da hierarquia, multiplicando-se situações de burnout e as doenças psicológicas no emprego.
Ao contrário do que propunham relatórios internacionais recentes (da OIT, publicado em 2018; e da OECD, publicado em 2023), nas últimas duas décadas, o aumento de tarefas altamente qualificadas, que era suposto ocorrer sobretudo no setor formal, não se verifica; pelo contrário, quanto maior é o impacto da inovação na destruição de postos de trabalho em setores tradicionais, mais o emprego informal tem vindo a crescer, atingindo os segmentos mais vulneráveis e ameaçando muitos que tiveram melhores condições anteriormente. A informalidade tende a proliferar também em atividades e condições de trabalho ilegais, alimentadas, muitas vezes, por migrações clandestinas e promovendo condições deploráveis, servilismo e até escravidão, em que diversos exemplos têm sido denunciados seja no emprego doméstico seja por exemplo no trabalho agrícola (Estanque; Climent, 2023; OIT, 2019). A pobreza estrutural é enorme no Brasil, conforme diversos estudos mostram, atingindo autalmente mais de 30 milhões de brasileiros (IBGE, 2023), apesar dos programas sociais e da resposta positiva da economia nos últimos tempos – e nos governos de Lula, anteriores e atual –, mas também, em Portugal, a linha de pobreza permanece nos 17%, e atinge sobretudo os novos fluxos migratórios (Instituto Nacional de Estatística, 2023). O fenômeno da informalidade continua, pois, associado à vulnerabilidade e à precariedade, enquanto as desigualdades e assimetrias sociais tendem a estimular a sua própria reprodução em outros parâmetros que, por sua vez, reproduzem-nas no tempo e no espaço. Mas, apesar de tudo isso, em vez dos movimentos de resistência dos trabalhadores, assiste-se hoje a uma espécie de servidão voluntária (Antunes, 2018).
As condições de trabalho que queremos trazer para o nosso estudo pretendem ilustrar facetas distintas de como as experiências laborais combinam elementos normativos e ideológicos nas subjetividades de uma força de trabalho particularmente vulnerável e segmentada, em especial nos setores aqui em análise. Em casos como o trabalho doméstico, muito diretamente vinculado à história do colonialismo e da escravidão, a ancestral subalternização da mulher junta-se à força da supremacia branca e de uma classe média brasileira particularmente violenta e preconceituosa relativamente à pobreza e à negritude. Quer a natureza exploradora do trabalho industrial, quer a dominação pelo poder masculino – em boa medida herdado do colonialismo – sobre a mão de obra negra, quer ainda o peso do patriarcado – que são muitas vezes dimensões sobreponíveis –, fazem parte da história da modernidade e transportam fenômenos atuais que o capitalismo global do século XXI tem vindo a reproduzir e em muitos aspetos a agravar. Para situar teoricamente a realidade do trabalho industrial, apresentamos a seguir uma breve reflexão centrada na questão racial e nas teorias feministas a propósito do trabalho das domésticas.
A dimensão estrutural da modernidade industrial e as profundas mudanças que introduziram na escala global não esgotam a importância de estudos de casos mais particulares que pretendemos abordar neste estudo. É à luz da realidade histórica, bem como das conexões entre as escalas macro-micro, que aqui propomos uma perspetiva de análise centrada em trajetórias de vida, procurando ilustrar o modo como a precariedade, sendo o traço comum nos casos estudados, se desdobra em diferentes dimensões estruturais de desigualdade. Por um lado, os trabalhadores do setor do calçado (um operário em Franca-SP e uma trabalhadora e dirigente sindical em SJM, Portugal) e, por outro lado, o caso do sindicato das domésticas no estado da Bahia, mostrando as diferenças nas formas de dependência que aí estão presentes e também nas modalidades de resistência e consentimento das respetivas categorias subalternas. O propósito é trazer, para o nosso estudo, diversas histórias de vida e relatos na primeira pessoa que expressam os dramas humanos de trabalhadores e dirigentes sindicais num setor industrial tradicional (o calçado), mas inseridos em dois países distintos, e ainda o caso do trabalho doméstico, em que se espelha com maior evidência a desigualdade racial.
O senhor Ademar1 (trabalhador do calçado em Franca-SP), a Fernanda Moreira (dirigente sindical em SJM, Portugal) e a Creuza Oliveira2 – fundadora e ativista do Sindicato das Trabalhadoras Domésticas da Bahia (Sindomésticas) – são as principais vozes e as suas experiências de vida permitem-nos mapear percursos comuns a muitos trabalhadores e trabalhadoras, em diferentes pontos do globo. Em qualquer um desses casos, as entrevistas assumiram como central o princípio da empatia, em linha com o que é prática de uma sociologia pública, que busca devolver aos atores sociais no terreno a dignidade que lhes é geralmente negada no campo profissional.
RAÇA, GÊNERO E CLASSE
Paralelamente, quando a condição de classe se conjuga com uma realidade de submissão cultivada, e naturalizada, à sombra de um passado escravista, as divisões sociais obrigam a considerar a importância de fatores como o gênero e a cor da pele. Conforme as formulações de autores como W. E. B. Du Bois ou Patricia Hill Collins, bell hooks, entre outros, o problema da dominação racial cruza-se com as grandes linhas estruturantes das desigualdades no capitalismo moderno, ou seja, a própria lógica do capital, o colonialismo e o patriarcado, forças estas que, no seu conjunto, favoreceram o alinhamento da escravidão à supremacia colonial e ao poder masculino e da branquitude sobre povos e condições étnico-raciais consideradas inferiores pelo poder hegemônico amplamente transferido das potências metropolitanas para as periferias, como ocorreu no Brasil. As correntes teóricas do pós-colonialismo (Mignolo, 2020; Quijano, 2005; Santos, 2014) contribuíram nas últimas décadas para visibilizar a centralidade da dimensão histórica, sobretudo perspetivada a partir do Sul Global, como ferramenta que nos ajuda a desconstruir a visão eurocêntrica até hoje dominante, mesmo no campo das ciências sociais.
A obra de Du Bois, hoje reivindicado como um clássico da sociologia pela denúncia e reflexão acutilante sobre a subalternização do negro nos Estados Unidos da América (EUA), tornou-se fundamental para situar as origens históricas da escravidão e a perversidade que permitiu ao sistema explorar e naturalizar e docilizar a mente do povo negro. Essa passagem na obra de maior prestígio do autor evidencia a natureza de sua reflexão sobre esse problema: “Aqui estamos nós, entre pensamentos sobre a unidade humana, mesmo que através da força e da escravidão; sobra a inferioridade dos homens negros, mesmo que induzida por uma fraude; um grito na noite pela liberdade de homens que ainda nem sequer têm a certeza de seu direito de reivindica-la […]”. Na sua generosidade humanista e genialidade de seu discurso poético, o autor salienta, no entanto, a educação como possível saída da desumana condição do negro, afirmando que só através desse
egoísmo saudável ensinado pela Educação é possível encontrar os direitos de cada um no tempestuoso mundo do trabalho […]: Esse tipo de formação humana será a melhor forma de usar a força de trabalho de todos os homens sem escravizá-los ou brutalizá-los; essa formação nos permitirá estimular as noções pré-concebidas que fortalecem a sociedade e descartar aquelas que, por serem pura barbárie, nos tornam surdos aos gritos das almas aprisionadas sob o Véu e à fúria cada vez maior dos homens agrilhoados (Du Bois, 2021, p. 118-119).
O problema da racialidade entronca nos estudos feministas e nas abordagens da chamada interseccionalidade crítica (Collins, 2022). O próprio movimento feminista tem suscitado interessantes debates, nomeadamente no contexto dos EUA, sobre a questão da maternidade/parentalidade, onde alguns registos apontam o papel de movimentos feministas (brancos ou negros) na sua relação com o trabalho (dentro e fora do espaço doméstico) como problemas ligados ora à emancipação da mulher, por vezes legitimadoras da supremacia branca, ora por contraste virados à luta por uma parentalidade revolucionária. Como sublinha bell hooks (2019), embora desde sempre homens e mulheres tenham assumido funções de cuidado, o viés herdado do século XIX mostra que, enquanto as mulheres negras
olhavam o trabalho no seio familiar como um labor que humaniza, que afirma sua identidade como mulheres, como seres humanos que expressam amor e carinho (…) [por isso exigindo] mais tempo para cuidar da família, desejando sair do trabalho alienado […]; as ativistas brancas do movimento de libertação da mulher, por sua vez, se diziam cansadas do isolamento doméstico, da relação com filhos e marido, da dependência emocional e económica, querendo liberdade para ingressar no mundo do trabalho (hooks, 2019, p. 196).
Essas referências mostram a diversidade de correntes e os problemas que levantaram no passado em torno do tema da divisão do trabalho e das lutas sociais que isso desencadeou nos últimos 200 anos. Claramente, as tensões entre o trabalho fabril e as tarefas domésticas, ou entre produção e reprodução, suscitadas a partir da era da Revolução Industrial e dos estudos de Marx e Engels, sempre encerraram grande complexidade. E aí as divisões classistas, nomeadamente entre as mulheres de classe média, por exemplo, desde o movimento sufragista do século XIX e lutas pela emancipação da mulher ao longo do século XX, são determinantes para explicar o porquê de, em alguns casos, o movimento operário dos primeiros tempos subsumir a questão feminina na mais ampla “luta de classes”, noutros os movimentos feministas desde meados do século passado pretenderem ingressar no mercado de trabalho requerendo – ou lutando por – uma redistribuição de papéis entre homem/mulher ou pais e mães na vida familiar. Se neste último caso estamos perante uma corrente, apesar de tudo, ainda vinculada a um eurocentrismo de classe média, o certo é que o próprio movimento operário e sindical – incluindo o que foi mais marcado pelo pensamento marxista – continuou igualmente a veicular um discurso e uma prática onde nem a desigualdade de gênero e, menos ainda, nem as discriminações raciais e sexuais ocuparam a centralidade que lhes atribuem outros movimentos sociais mais focados nessas formas de desigualdade. Por exemplo, nos EUA e na América Latina, o movimento negro ajudou a incluir a questão racial como tema central nos estudos sobre desigualdade desde meados do século passado; mas foi, sobretudo, o crescimento das abordagens pós-coloniais e do feminismo negro que introduziram no debate e tornaram incontornável a problemática da negritude e da racialidade.
Os estudos culturais conduzidos sobre os EUA em torno da sexualidade negra, cruzando relações de classe, de gênero e sexualidade, entre outras autoras, por Patricia Hill Collins. Refletindo sobre o novo racismo a propósito das ideias dominantes sobre sexualidade negra, e o papel da mídia americana nesse processo, a autora mostra como a condição de pobreza da população negra era conotada como a imagem “autenticamente negra” enquanto as pessoas negras economicamente bem-sucedidas eram olhadas como representantes de uma certa “respeitabilidade negra”, ou seja, como se a cultura negra de classe média tivesse o efeito de “branquear” a negritude, aproximando esses grupos de uma imagem de classe média branca:
os negros assimilados e proprietários eram mostrados como estando prontos para a integração racial. Essa convergência de raça e classe também gerou mudanças no tratamento do gênero e sexualidade. […] Conforme a feminilidade negra e a masculinidade negra foram retrabalhadas através desse prisma de classe social, uma constelação de imagens da feminilidade negra apareceu, que configurou a sexualidade das mulheres negras e ajudou a explicar o novo racismo (Collins, 2019, p. 186).
TRAJETÓRIAS E PRECARIEDADES
Entendemos que uma perspetiva engajada sobre as desigualdades raciais e de gênero deve ser conjugada com as dinâmicas mais gerais da fragmentação e individualização das relações de trabalho, que nas últimas décadas foram fortemente sujeitas a processos de aceleração e alienação, nos quais o capitalismo global soube aperfeiçoar novas formas de expropriação, como nos vêm mostrando autores como Hartmut Rosa (2022), e Klaus Dörre (2022), respetivamente. É justamente no quadro desses processos que convergem as experiências, subjetividades estruturantes de habitus segundo trajetórias pessoais e de classe produtoras e reprodutoras de formas mais ou menos sutis de poder simbólico que definem os esquemas de classificação e os mecanismos de consentimento dos atores sociais (Bourdieu, 1987, 1989, 2008). A questão da dignidade e da respeitabilidade social constitui uma dimensão humana fundamental e é muito por força de uma ancestral relação patriarcal que, ao longo do século XIX, transitou da esfera doméstica para o ambiente industrial acompanhando o sentido ético que, nessa época, foi colado ao mundo do trabalho. O setor industrial do calçado, que aqui abordamos, fornece-nos, aliás, um bom exemplo de uma transição complexa em que o espaço fabril arrastou consigo a lógica paternalista e patriarcal que vinha da família e do artesanato doméstico. Valorizar a destreza, a habilidade manual ou mesmo a força e a coragem – atributos derivados de uma sociedade patriarcal e propulsores da masculinidade na indústria – que sobressaem em tantas tarefas do labor industrial, são elementos indissociáveis do acesso do trabalhador ao respeito e mesmo ao autorrespeito.
Daí que, como sinalizou Richard Sennett (2004, p. 131), “o valor moral absoluto atribuído ao trabalho, a supremacia do trabalho sobre o lazer, o medo de desperdiçar tempo, de ser improdutivo – este é um valor que, todos, ricos e pobres sustentavam na sociedade do século XIX”. Desde as últimas três ou quatro décadas que temos assistido no mundo ocidental, inclusive em regiões onde os modelos de emprego já foram diferentes no passado, a processos de inserção das novas gerações no mercado de trabalho caracterizados pela instabilidade e precariedade. Mas se essas trajetórias errantes eram comuns nos períodos de transição entre uma formação no ensino superior e as primeiras experiências profissionais dos jovens3, essas fases, antes correspondente ao início de carreira, foram-se dilatando no tempo e hoje atingem muitos milhões de trabalhadores até uma idade bem mais tardia.
Quando em Portugal, por exemplo, no início da globalização, esse temor dos estudantes em final de curso se fazia notar sob a forma de um sentimento de apreensão, algo difuso, em que ao desinteresse pela política se somava um crescente individualismo, uma espécie de “cultura Yuppi”, quando o individualismo competitivo se começava a naturalizar, o acesso ao emprego parecia ocorrer como uma espécie de jogo que no quotidiano assumia contornos curiosos, como bem descrevia José Machado Pais na sua obra Ganchos, Tachos e Biscates:
A estratégia para arranjar trabalho é como um lance num jogo de cartas. Ela depende da qualidade do jogo que se tem em mão (títulos escolares, valor nominal dos mesmos), da maneira de jogar (rede de conhecimentos, “cunhas”...) e, finalmente, da astúcia do jogador (feeling). Os lances de jogo ocorrem por entre postulados e regras que condicionam o espaço de jogo. Mas os jogadores têm um papel interveniente fundamental. Os resultados do jogo dependem das performances do jogador, da sua habilidade e, principalmente, da sua astúcia. É esta que permite a invenção do quotidiano mediante uma navegação entre regras, jogando com todas as suas possibilidades, aproveitando as oportunidades num terreno onde elas escasseiam, criando na rede das regras as suas próprias pertinências (Pais, 2016, p. 24).
Com a viragem para uma economia global e o consequente ocaso do fordismo como modelo dominante, as dinâmicas laborais entraram num processo de metamorfose que se conjuga com a própria adaptabilidade do sistema capitalista no seu metabolismo. As consequências socioeconômicas desse processo atingiram todos os domínios da nossa vida social, o que é, ao mesmo tempo, ilustrativo do caleidoscópio interconectado em que vivemos. Por isso, os fenômenos sociais não podem mais ser compreendidos nem apenas do ponto de vista sistêmico e abstrato nem apenas segundo a visão fenomenológica ou psicologizante. Do mesmo modo que as desigualdades e identidades são interconectadas e interseccionais – classe, gênero, etnia etc. –, também o mundo do trabalho se reinventa a partir de conexões onde se justapõem as forças do mercado global e o poder do capital, de um lado, com as subjetividades e representações individuais, de outro. E obviamente que, conforme já assinalamos, existem pelo meio de escalas intermédias, vinculadas ao contexto e à própria história local de cada setor, distrito, região ou país.
II PARTE – 3 ESTUDOS DE CASO
Propomos a título de hipótese a seguinte formulação: se na escala micro ou individual o conceito de habitus nos ajudou a compreender como os códigos sociais incorporados transportam as marcas classistas ou identidades raciais e de gênero, formatam os esquemas de classificação e estruturam estilos de vida e subjetividades particulares, faz sentido proceder a um exercício de “escavação arqueológica”, por um lado, em torno da história social e industrial das regiões de Franca e SJM, e, por outro, com o foco no setor do trabalho doméstico no estado da Bahia. As novas linhas de interpretação que propomos centram-se no problema da violência e da racialização, conjugando-o com a exploração e o patriarcado. Quer nos dois “distritos” industriais referidos, quer nas condições de trabalho de faxineiras, babás e empregadas na esfera doméstica, identificamos o caráter interseccional dessas diferentes variáveis que são, ao mesmo tempo, combinações de diversas formas identitárias estruturadas pela lógica da reprodução e do consentimento, ativadas a partir da própria natureza do capitalismo global.
CASO 1 – INDÚSTRIA CALÇADISTA DE FRANCA
Pegando um Uber em Franca-SP, o motorista, com cerca de 30 anos de idade, conduziu-nos ao local, mas combinamos no caminho se, caso a tarefa fosse rápida, poderia fazer o mesmo percurso de regresso; disse que podia fazê-lo sem a necessidade de nova chamada no aplicativo. Assim foi, como a demora foi breve, regressamos rapidamente e a conversa continuou. Motorista há quatro anos, Clovis4 foi antes trabalhador na indústria calçadista da cidade. Trabalhou em diversas empresas do setor, desde as maiores e mais modernizadas às menores e “bagunçadas”. Executou diversas tarefas, mas no melhor período da sua atividade neste ramo, foi responsável pela seção de estoques e empacotamento. Entende que as relações interempresariais na cidade são de boa cooperação. Foi sindicalizado, mas apenas porque isso lhe permitiu retirar algumas vantagens ao abrigo da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Vê o campo sindical como demasiado conflituoso para com os empresários, pois, qualquer pequena questão era motivo para mobilizar a justiça contra o patrão.
A indústria do calçado em Franca sofreu um acentuado declínio desde as últimas décadas do século passado, que se acirrou sobretudo a partir de 1991 perante as medidas facilitadoras das importações do Plano Collor, tendo atingido o seu refluxo mais intenso após 1994, em virtude da problemática cambial gerada pelo Plano Real. A valorização da moeda nacional, paralelamente à ascensão da concorrência asiática, dificultou a atividade exportadora, fazendo com que a maioria dos empresários voltasse a priorizar o mercado interno. Os momentos de queda da produção de calçados em Franca vêm, pois, no rastro de sucessivos planos econômicos de cunho neoliberal, que resultam em precarização do trabalho e expressivo índice de desemprego.
A despeito de circunstanciais períodos de revitalização, o contingente da força de trabalho decaiu, bem como a taxa de sindicalização do sindicato do setor – Sindicato dos Trabalhadores da Indústria do Calçado e Vestuário de Franca (STICVF). De um volume de filiação de cerca de 60%, em 1994, regrediu para apenas 10%, em 2014. A queda dos níveis de emprego e de sindicalização foi evidentemente acompanhada de uma progressiva vulnerabilidade e precariedade, porquanto os(as) trabalhadores(as) começaram a ceder face ao medo de cair no desemprego, tornando-se, portanto, menos solidários, menos combativos(as) e mais empenhados(as) na competição individual, cedendo cada vez mais à lógica empresarial, como no exemplo acima citado. Em 2015, um quadro de 17.739 trabalhadores(as) respondia pela produção de 33 milhões de pares/ano, enquanto no ano de 1986, cerca de 36 mil respondiam pela produção de 35 milhões de pares/ano (Barbosa, 2016). Isto revela que, diante do enxugamento do quadro de trabalhadores(as) nessas três décadas, a queda da produção foi pouco expressiva, certamente por força das reformas organizacionais e alguma modernização tecnológica, mas muito provavelmente devido também ao crescimento das tarefas e postos de trabalho deslocados para a zona da informalidade.
Crise no setor
Perante a acirrada competitividade arrastada pela globalização dos mercados, muitas empresas submergiram, foram à falência, enquanto outras se mantiveram e até mesmo expandiram-se. Com efeito, de acordo com estudo desenvolvido por um dos autores, o reflexo mais significativo da reestruturação do capitalismo nesse território produtivo evidencia uma dinâmica caracterizada por elementos que configuravam um círculo vicioso que se retroalimenta:
É possível observar, por um lado, uma intensa fragmentação do tecido empresarial representada pela predominância absoluta de micro e pequenas empresas especializadas na fabricação de calçados. Por outro lado, essa dinâmica tem como substrato importante a hiperintensificação da subcontratação, localmente também chamada de ‘terceirização’, ou seja, a realocação de parte do processo produtivo por meio da subcontratação de empresas e/ou pessoas especializadas na realização dos mais diversos serviços próprios a essa indústria: pesponto, corte, chanfração, entre outros (Barbosa, 2016, p. 53).
Dessa maneira, quanto maiores os efeitos da globalização econômica, maior a fragmentação do tecido empresarial – resultado da busca da sobrevivência como “empreendedores” por parte de ex-operários das fábricas; de igual modo, essa expansão do número de microempresas calçadistas só é possível porque há uma miríade de prestadores de serviços terceirizados (e precarizados) que possibilita aos “novos aventureiros” da indústria a entrar no mercado desobrigados de parte do investimento em maquinários5.
A região de Franca respondia, em 2010, por 41 % da totalidade do setor no estado de São Paulo, e por 64% das exportações paulistas do produto. Já nos primeiros anos do século XXI, apenas 10% da produção destinavam-se à exportação, sendo 90% absorvidas pelo mercado interno, e ainda em desvantajosa concorrência com calçados mais baratos provenientes da China e da Índia.
Nesta cidade do estado de São Paulo, entrevistamos o sr. Ademar6, um trabalhador com cerca de 60 anos, que toda a sua vida trabalhou no setor e que, apesar de aposentado, permanece ativo na sua pequena oficina caseira. Esse trabalhador recebeu-nos na sua pequena oficina, um anexo na sua habitação, onde continua a trabalhar para diversas empresas, mantendo-se no plano da informalidade, até porque já está aposentado há uns anos. A visita em 2023 mostrou uma pessoa plena de vitalidade, exprimindo uma genuína alegria em nos receber, nove anos depois do contato anterior. O lugar é o mesmo, condições idênticas quase semelhantes ao espaço de trabalho dos antigos sapateiros de aldeia. Disse-nos que frequentou a escola apenas até a 8ª série, porque precisava ajudar os pais e foi então que iniciou, com nove anos, o seu primeiro contato com sapatos, inicialmente como engraxate, trabalhando na rua, na Praça Barão, em Franca.
Em 1962, o sr. Ademar tinha 15 anos e já trabalhava no setor: “[…] Ah era tachador de base e aparador de mocassim, que é esse aqui, isso aqui [mostrou o modelo de sapato atual] só que aparava, isso aqui era montado por cima do sapato, era montado por cima aqui, eu aparava aqui, tinha as tachinhas eu aparava e pregava a pala pra sair essa costura”. Ele trabalhou 12 anos na empresa Francano, e mais tarde mudou-se para uma outra ainda maior, a Samello, a qual na época chegou a fabricar 3 mil pares de sapatos por dia. Nesse tempo, o sistema de produção era ainda pouco desenvolvido em termos tecnológicos, quando a empresa já empregava cerca de 400 trabalhadores. Como contou o nosso entrevistador, “tinha uma sequência, mas a carreta avançava manualmente, montava um, empurrava pro outro, empurrava pro outro até sair na caixa”. E assim se desenvolvia aos poucos o sistema taylorista, ele próprio precário, operando naturalmente com uma força de trabalho ainda mais precária. Depois veio a nova esteira, que chegou em 1970. Com notório orgulho, salienta: “o colega X buscou a máquina de montar e eu fui montar nessa máquina. Fui o primeiro cara que montou na máquina ‘Molina’, o primeiro moleque que montou na máquina foi eu”. Muito trabalho nesse tempo, mas produzindo por peça recebia o correspondente a 2,5-3 reais na atualidade por par. Houve mais tarde um salto qualitativo, quando o sr. Ademar frequentou um curso de formação ministrado por uma equipe de japoneses a convite da empresa (Samoa), o que lhe permitiu depois ser responsável pela reorganização em empresas como a Mariner e a Freeway, ambas de Franca.
A ética do trabalho
Esse trabalhador mostrou-se na verdade como um homem dedicado ao trabalho, orgulhoso do seu passado e da sua competência profissional. Apesar de ter acompanhado lutas e reivindicações sindicais que considera justas, a sua batalha foi mais pelo trabalho do que pela classe. Dedicado à profissão, permanece hoje vinculado a uma rotina que parece ser a sua principal fonte, não de subsistência, porque assume possuir meios suficientes – somando aposentadoria e os trabalhos que mantém no plano informal –, mas de vida. Aqui, a ética laboral parece ter feito o seu caminho oferecendo a esses trabalhadores dedicados um sentido de entrega e de prestação que sentem ser um importante contributo para a coletividade mais geral. Ele não parece contestar o fato de sempre se manter como trabalhador precário, muitas vezes produzindo e ganhando segundo o trabalho por peça:
“Na minha época, mais era ‘pecista’, trabalhava por peça, não tinha salário fixo. Eu pra fazer um par de sapato desse aqui se fosse na época, hoje eu cobraria 5 reais pra por na caixa, na época era 3, fosse 3 reais, dois e cinquenta. Na época... Ah, eu cheguei a ser um cara bem pago aqui em Franca. Fui um dos caras mais bem pagos que teve aqui em Franca na minha época”.
Percebemos bem que o sr. Ademar se tornou um especialista na sua arte e que chegou a ser disputado pelas unidades produtivas mais prestigiadas do município. Ele foi também como já apontamos um formador profissional. Nas suas palavras, sobressai realmente o gosto pelo domínio técnico do ofício:
“sabe que eu tive no SENAI, faço parte da diretoria do SENAI, eu já fui professor de ensinar trabalhar assim criança no SENAI, ontem teve uma palestra e eu senti que tá todo mundo baqueado… [refere-se à situação de crise na indústria]. Sabe, a matéria prima subiu muito, o custo subiu muito e não tem como você jogar, tá todo mundo apertado, o que acontece é a exportação lá fora, ela deu uma retraída, tá acontecendo aqui em Franca, mas todo ano essa época é isso aí mesmo, viu, fazendo sapato há 60 anos sempre essa época do ano dá uma [queda], depois você vai perceber que, o fim do mês que vem, o fim de abril já começa a pegar de novo, mas já não pega igual antigamente, porque hoje não tem funcionário mais, antigamente tinha poucos, hoje já quase não tem, que antigamente aqui em Franca era só o sapato de couro… Eu estudei um pouco né com esse pouco fui técnico de calçado porque na época que eu tava no ‘Francano’, fui para a Samello, fui mexer com um tipo de solado lá e eu tinha experiência dele, e a turma da Samello não tinha. Cheguei na Samello mudei a estrutura da esteira tudo, para fazer esse tipo de colagem de sapato. […] Nessa época eles pararam de usar a BRATS-Confix que era feita em Rio Grande do Sul, eles começaram a usar o sistema CENAP e AMAZONAS, esse tipo de solado que a Lucrepe não aceitava e o gerente da Samello bateu a cabeça. Aí eles foram me buscar, falaram, vamos buscar o Ademar, aí eu cheguei falei não! Infelizmente, é isso e isso, e essa cola que vai mexer, não adianta, aí concordaram pronto, e o trem girou…”.
Sobressai, no discurso desse trabalhador, a capacidade de trabalho e o modo como as zonas de informalidade continuam a percorrer os circuitos produtivos e distributivos na cidade de Franca. O nosso entrevistado revelou ser um importante veículo nessa cadeia de valor, quando afirma com algum detalhe a sua atividade nos dias atuais. Ele movimenta, ainda em modo meio artesanal, os mesmos meios de tempos antigos. Domina todo o processo, desde os materiais à distribuição passando pela concepção:
“eu compro o material, levo pros cara cortar e pespontar, levo pra elas costurar e eu faço o resto, mas tudo depende de mim, elas não vem aqui na porta buscar um pé de sapato […] Esse mocassim aqui, esse é antigo, então a gente montava por cima, aparava e punha essa pala pra fazer essa costura. Hoje já não, hoje é ensacado, eu costuro antes de montar. Eu levo, as mulheres da costura, contratadas por mim [em regime de subcontratação], vem aqui eu ponho tenho uma máquina no fundo, eu monto e calço na forma… Elas fazem o trabalho em casa, eu pago pra elas, aqui, por exemplo, nesse lugar aqui, esse aqui é um modelo, em cima disso aqui eu tenho 20 gravatas… Pra entregar, por exemplo, hoje fui buscar um metal, o cara pediu 90 par, aí eu fui lá comprar o metal, essa sola tinha feito pedido que é 90 par, eu fui de bicicleta, fiz o giro comprei, trouxe aí. Então petróleo é ali ó, é aqui, porque não adianta eu tirar…”.
Ademar mostrou de fato ser exemplo de um gosto intrínseco pelo trabalho, um orgulho na habilidade e na entrega que depositou na profissão. “É importante o trabalho, ocupa a mente, por exemplo eu tô aqui eu tô quietinho aqui, eu não tô preocupado com nada, tô preocupado com esse aqui, fazer o meu sapato, por exemplo, esse aqui, amanhã eu entrego amanhã, já me dão o meu vou lá pago e pronto”. Afirma que, se quisesse, não seria para ele difícil ampliar o negócio, e diz, “hoje podia estar produzindo uns 400 par por dia”, mas recusou a oportunidade que lhe terá sido oferecida há poucos anos atrás. Gosta do trabalho que faz: “É importante o trabalho. Eu tô aqui, estou quietinho aqui, não estou preocupado com nada, estou preocupado com esse aqui: fazer o meu sapato”.
CASO 2 – INDÚSTRIA CALÇADISTA DE SÃO JOÃO DA MADEIRA
Esse setor industrial foi objeto de um estudo aprofundado desenvolvido por um dos autores nos anos 1990 do século passado (Estanque, 2000), no qual se mostrou a importância das relações de proximidade «entre a fábrica e a comunidade» no que se refere ao forte contágio entre relações familiares e comunitárias e a cultura interna da empresa. Designadamente, a força do patriarcado e do autoritarismo paternalista e machista incrustado na cultura portuguesa, em especial nos meios rurais mais conservadores, onde durante séculos prevaleceu o paroquialismo e o caciquismo, revelaram-se nesse estudo como fatores decisivos que marcam as relações de trabalho no seio das relações fabris. O tecido empresarial da região foi assim definido como marcado por regimes de tipo despótico, em que o paternalismo e a autoridade masculina se fazia sentir sobretudo no exercício do poder sobre a mão de obra feminina, maioritária na empresa estudada.
Tal como em Franca, a fabricação de calçados em SJM também deriva de remotas práticas artesanais, muito embora a sua primeira unidade industrial de calçado, voltada à produção de botas, tenha sido instalada ainda no século XIX, por volta de 1880 (Estanque, 2000, p. 119). Antecedendo o fabrico de calçados, a cidade destacava-se pela produção de chapéus de feltro, datando sua primeira indústria chapeleira, de 1802. Com o passar do tempo, o uso de chapéus decaiu e consequentemente também o seu fabrico; paralelamente à retração da chapelaria, cresceu a indústria de calçados que no final do século XIX ainda se restringia à produção doméstica. Em 1910, havia apenas quatro oficinas no Concelho de Oliveira de Azeméis – ao qual SJM pertencia, antes da autonomia municipal conquistada em 1926, mas progressivamente o novo setor foi-se tornando a principal atividade econômica do município. SJM é sede do Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Indústria e Comércio do Calçado, Malas e Afins (SNPIC), entidade representativa dos(as) trabalhadores(as) do setor produtivo.
Abusos, vulnerabilidades e discriminações
A indústria de calçados de Portugal contava, em 2016, com 1.446 empresas, que ofereciam 39 mil postos de trabalho – 59% dos quais ocupados por mulheres – e produziam 79 milhões de pares/ano, 4/5 destes de couro. A produtividade média da indústria calçadista lusa era de 2000 pares/ano por trabalhador(a) (APICCAPS, 2016), situando-se a produção total de pares em 80.357 em 2018, na sua esmagadora maioria destinados a exportação (APICCAPS, 2019). Os seus polos mais importantes localizam-se em SJM (que é conhecida como a “capital do calçado”), e mais a norte, Guimarães e Braga. Predominam no setor as micro7 e pequenas empresas; 90% das unidades fabris empregam menos de 50 trabalhadores (FESETE, 2012). O setor prima pela vocação exportadora – de um calçado que é reconhecido internacionalmente pela sua qualidade –, posto que 95% da produção são direcionadas para mercados internacionais, sendo escoadas para 150 países. Nas últimas décadas. a indústria sofreu uma restruturação significativa, depois de uma crise nos anos 1990 do século passado. Hoje em dia, a aposta no design de moda, a disputa por mercados internacionais de alta gama e também na incorporação tecnológica torna este setor um caso exemplar no plano macroeconómico. Porém, o outro lado da moeda continua sendo a disparidade salarial entre homens e mulheres, os salários baixos de um modo geral, as zonas de informalidade mais ou menos obscuras que continuam presentes.
Um dos conflitos que na década de 1990 mais marcou o setor do calçado em Portugal deveu-se a denúncias e reportagens, com visibilidade pública, a mostrar a presença de violência patronal nas empresas, dirigida em especial às mulheres, designadamente derivada da proibição do uso da toilete pelo setor feminino, alegando demoras excessivas. Isso envolveu a intervenção do sindicato em muitos locais de trabalho e esses casos levaram à intervenção das autoridades inspetoras das condições de trabalho. Para além disso, também, o problema do recurso à mão de obra infantil à margem da lei. Porém, o que ilustra a presença de subjetividades no seio do operariado local reveladoras da assinalada promiscuidade das relações entre o trabalho industrial e a esfera doméstica, prende-se com a forte presença de uma economia paralela, informal, que se traduzia em prestações de trabalho complementar realizado à tarefa e na esfera familiar. Tal como apontámos no caso de Franca, essas atividades clandestinas escondiam, em muitos casos, a presença de tarefas realizadas por crianças, fosse no espaço doméstico ou até mesmo na própria empresa, por vezes escondidas na cave. Tudo isto ocorria com a anuência e participação ativa dos próprios pais das crianças, naturalmente. Ao mesmo tempo, trata-se de uma realidade reveladora da precariedade e dos muito baixos salários praticados no setor, mas também de uma forte ideologia patronal capaz de assegurar o consentimento dos setores mais vulneráveis, estimulando a cultura do trabalho árduo, em que os salários miseráveis eram aliviados com atividades complementares, quer na pequena agricultura familiar, quer na própria comercialização de produtos nos intervalos do trabalho fabril. Assim, conforme foi comprovado através de um survey extensivo aplicado à classe trabalhadora da região, as categorias profissionais mais identificadas com a condição “proletária”, isto é, mais desapossadas de recursos – de qualificações educacionais, de poder e de salários –, foram justamente as que se mostraram mais aderentes a subjetividades individualistas submetidas a lógicas de mercado e rejeitando ou ignorando o ativismo promovido pelo sindicato. Em suma, a cultura operária da região revelou-se submetida a uma atitude de resignação como que naturalizando a lógica competitiva e acreditando que com esforço e aposta no aforro, os trabalhadores podem vir a se tornar donos do seu próprio negócio ou, quem sabe, tornarem-se patrões. Daqui se retira que a fragmentação e individualização das relações de trabalho, no caso desse setor em Portugal, já anunciavam há décadas uma tendência que se vem agravando, a de implosão da luta de classes tal como foi teorizada ao longo do século XX e que teve no país a sua mais intensa expressão histórica no período revolucionário de 25 de abril de 1974a 25 de novembro .
Vale a pena recuperar aqui um breve excerto da observação participante/Diário de Campo realizado na empresa nos anos 1990, que pode ilustrar essa ausência de uma consciência coletiva ou “de classe” e, ao mesmo tempo, a reprodução de divisões sexistas visíveis tanto nas discriminações no tratamento da hierarquia como nas próprias relações informais entre homens e mulheres no seio da empresa.
(Março de 1996): Hoje, à hora do almoço, decidi sentar-me junto ao grupo de raparigas onde está a Carriça, para tentar conversar com elas sobre o conflito dos cartões magnéticos. Ao pedir licença para me sentar, ‘posso sentar-me aqui?’, apesar da resposta afirmativa, notei logo o embaraço geral e o desconforto da parte delas. Eram quatro jovens mulheres, com uma única já conhecida sentada no outro extremo da mesa. Minutos depois surgiram alguns comentários entre elas sobre aquele acontecimento, com alguém a dizer que identificou na televisão uma pessoa conhecida. Perguntei se conheciam alguma das porta-vozes, disseram-me que não. Perguntei se conheciam o Manuel Graça.8 A Carriça e a colega do lado (a ‘Russa’, 18 anos, casada, 1 criança) entreolharam-se com ar de espanto, em sinal de que não sabiam quem era. Eu esclareci: ‘é o dirigente do seu sindicato’9 – ‘Ah! o careca!’, disse a Carriça. Contiveram um leve sorriso e calaram-se. As outras duas que estavam em frente a mim (a Carla e a Mila) não pronunciaram uma palavra e mal olharam na minha direção. Passados escassos minutos estavam a arrumar as marmitas nos sacos e a saírem da mesa, onde fiquei sozinho. (Estanque, 2000, p. 263-265).
Houve, nessa época, diversas histórias de “casos” amorosos no interior da empresa, algumas delas indiciando práticas de assédio que causaram escândalo entre os trabalhadores e deram lugar a divórcios e demissões. Também esses acontecimentos são bem reveladores da presença da forte cultura de masculinidade em que se reproduziam os estereótipos mais conservadores quanto à subalternização da mulher, e que elas próprias tendem a incorporar. Apesar de maioritária naquele setor, a força de trabalho feminina permanecia nos escalões inferiores como pretexto para justificar níveis salariais mais baixos, ainda que as tarefas executadas fossem de idêntica responsabilidade e exigência.
Por outro lado, merece igualmente referência a atitude das jovens face às aproximações iniciais do observador para dialogar com elas. De um modo geral, exprimiam nos seus gestos faciais, tiques e sorrisos – umas vezes tímidos outras vez ousados –, a postura maliciosa de quem parecia estar perante uma abordagem de sedução da parte dele. Embora sem surpresas, sobretudo para quem é familiarizado com os ambientes comunitários populares, não deixa de ser um elemento acrescido a comprovar que a cultura patriarcal e a masculinidade penetra tanto no homem como na mulher. E no seio de uma empresa industrial, esse poder simbólico assume-se com particular crueza.
Kergoat (2009) considera que apesar de a divisão sexual do trabalho – uma forma específica da divisão do trabalho social – ser um construto histórico, apresentando particularidades em cada sociedade, via de regra, invariavelmente, assenta-se nos pilares da separação – setores predominantemente ocupados por mulheres ou homens – e da hierarquização – os homens melhor posicionados em cada espaço laboral. Crescentemente, as mulheres têm adentrado nichos ocupacionais considerados masculinos, nos quais, entretanto, delineiam-se internamente novas linhas de separação – tarefas, setores mais femininos ou masculinos – e nova hierarquização. Raramente os homens adentram áreas feminizadas, via de regra, menos valorizadas e pior remuneradas. Muito muda, mas muito ainda se mantém. Bourdieu (1999, p. 108) alerta-nos para as mudanças que “ocultam, de fato, a permanência nas posições relativas”. São as ciladas das permanências nas mudanças.
A despeito das incessantes mudanças que vem ocorrendo na materialidade das relações sociais de sexo, graças sobretudo às lutas e conquistas dos movimentos feministas, fatores subjetivos também contribuem para as permanências nas mudanças: é perceptível a concepção do lugar do poder como masculino. As relações hierarquizadas, desiguais e de subalternização, construídas objetivamente, inscrevem-se nas coisas e nos corpos. Esses traços subjetivos da divisão sexual do trabalho assentam-se sobre a estrutura objetiva da desigual distribuição de cargos e salários. “Assim, as disposições (habitus) são inseparáveis das estruturas (habitudines) que as produzem e as reproduzem, tanto nos homens como nas mulheres [...]” (Bourdieu, 1999, p. 55). Há um processo de subjetivação das relações hierarquizadas, desiguais e de opressão, objetivamente construídas, como habitus sexuado/gendrado, tal como foi possível apreender no diálogo com as mulheres, anteriormente referido.
A persistência do modelo patriarcal e do machismo
Na fábrica portuguesa que visitámos mais recentemente (ECCOLET), embora o CEO tenha afirmado nela haver igualdade salarial de gênero, 60% dos(as) trabalhadores(as) são mulheres, e elas ocupam 40% dos postos de chefia. E são chefias intermediárias, setoriais, “[...] a administração é completamente masculina. Depois, em termos de cargos médios de chefia, de uma linha ou de uma seção, aí as coisas já estão mais equilibradas. Já temos muitas mulheres com estes cargos, de chefe de uma seção, de um armazém, de uma linha...” (sindicalista-PT). Em relação à sub-representação das mulheres trabalhadoras em cargos de autoridade, o CEO – PT insinuou a possibilidade dessa defasagem resultar de uma “escolha” que a própria trabalhadora faz entre carreira e família. Escolha questionável! Há barreiras invisíveis, mas reais, os “tetos de vidro” que impedem ou dificultam a ascensão das mulheres na hierarquia ocupacional (Steil, 1997). É interessante observar que algumas dessas barreiras são colocadas como medidas protetivas às mulheres, tal como a restrição do seu trabalho em diversos setores, funções e horários, considerados inadequados; uma espécie de tutela que, de fato, ilustra uma prática discriminatória associada à supremacia sexista na indústria.
É evidente a forte presença do preconceito e das práticas discriminatórias no seio das empresas do setor. A despeito de todos os preceitos constitucionais que, quer em Portugal quer no Brasil, visam criminalizar a discriminação de gênero, o certo é que as práticas efetivas desrespeitam os princípios. O Programa de Ação 2017-2020, apresentado no 13º Congresso da FESETE,10 ressalta a forte discriminação sexual existente nas indústrias têxteis, de vestuário e de calçados, que a entidade representa: “num sector onde as mulheres detêm uma significativa importância, desde os quadros superiores até aos altamente qualificados são maioritariamente ocupados por homens” (FESETE, 2017, p. 24). Conforme atesta um documento dessa federação sindical, “os estereótipos e preconceitos sobre as características inerentes a cada um dos sexos sustentam as práticas de discriminação de gênero e que se manifestam na segregação sexual do mercado de trabalho com uma concentração de mulheres em determinados sectores de atividade e empregos (segregação horizontal), assim como nos níveis hierárquicos inferiores mesmo nos sectores maioritariamente ocupados por mão de obra feminina (segregação vertical)” (FESETE, 2012, p. 30). Nessa mesma linha, como seria de esperar, a ocorrência dos chamados “contratos a termo certo”, muito comuns em Portugal durante essa primeira grande vaga de agravamento da precariedade, eram sobretudo comuns entre o segmento feminino da força de trabalho. No entanto, o contrato coletivo de trabalho, firmado entre FESETE e a APICCAPS,11 determinou que a partir de 1º de abril de 2017, as diferenças salariais passassem a estar vinculadas exclusivamente a funções/categorias profissionais de produção, “as novas grelhas, que agrupam as categorias, representam um grande avanço rumo a uma divisão sexual do trabalho menos desigual. O(a) trabalhador(a) passou a ser remunerado com base na função exercida e na categoria na qual se insere, independentemente de ser mulher ou homem, eliminando-se, assim, a discriminação de gênero que era praticada em termos de profissões majoritariamente masculinas, e profissões majoritariamente femininas, e que respondia por uma situação na qual em todas as categorias profissionais os homens auferem uma remuneração superior à das mulheres” (FESETE, 2012, p. 46).
As dificuldades de organização, resultantes de uma situação vulnerável e precária, são desde há muito reconhecidas pela própria dirigente sindical do setor, que é mulher. Tendências gerais de individualismo e alheamento dos combates coletivos fazem-se notar desde há muito nesse setor, onde, aliás, como atrás referimos, a consciência de classe sempre tenha sido mais uma quimera do que uma realidade. E se já nos anos 1990 esse era um traço marcante, em tempos mais recentes, o desligamento social e o individualismo continuam a prevalecer sobre os níveis de conscientização e a mobilização. Como apontou a dirigente sindical Fernanda Moreira, “agora toda a gente tem um telemóvel, tem um computador, e não há um diálogo, não há um convívio como havia antigamente; as pessoas mal se falam. Está cada um no seu telemóvel, cada um a ver as suas coisas, não há convivência...” (Sindicalista-PT).
Na verdade, pode dizer-se que no caso desse contexto industrial, a vulnerabilidade da condição da classe trabalhadora deriva tanto de fatores históricos, culturais e identitários, como de motivações económicas. A tradição dessa região é de grande influência do catolicismo conservador e trata-se de um território típico da presença da pequena propriedade rural. Isso não só alimentou ao longo de séculos a tradicional divisão de papéis em que a mulher permanece como “a fada do lar”, submetida ao poder masculino, como a força de um paroquialismo centrado na atitude de submissão perante os “notáveis”, e da mulher perante o homem, fortaleceu vínculos de dependência. Por outro lado, a cultura do “aforro”, do esforço e sacrifício pela dedicação ao trabalho ajuda a que, cada trabalhador, cada família, aposte nesse esforço como meio possível de acumulação para sair da miséria. Acresce que o regime de ditadura e do Estado Novo em Portugal (1926-1974) que promoveu, com apoio ativo da Igreja, a resignação face à pobreza e ao poder, elevando à máxima potência essa atitude servil e resignada perante os destinos de Deus. Assim, pode dizer-se que a precariedade desse segmento da força de trabalho portuguesa conjuga as dimensões de uma vulnerabilidade económica que obriga trabalhadores e famílias inteiras (incluindo crianças) a uma constante prioridade ao trabalho – durante a semana na fábrica e nos fins de semana na horta ou nas tarefas domésticas –, abdicando praticamente do direito ao lazer e ao descanso. Aí reside em boa medida o fulcro da sua persistente condição precária.
CASO 3 – O CASO DAS TRABALHADORAS DOMÉSTICAS DA BAHIA (SINDOMÉSTICAS)
O trabalho doméstico – pago ou não pago – desempenhou uma função decisiva no desenvolvimento do capitalismo moderno quer nos países ocidentais e do Norte, quer nas periferias do Sul Global. No contexto europeu, por exemplo, durante mais de um século, a exploração da mão de obra feminina (e infantil) nas fábricas satânicas da Inglaterra, por exemplo, foi uma realidade pouco realçada pelos pensadores na economia clássica; e o mesmo ocorreu relativamente ao contributo da mulher nas tarefas domésticas cuidando da reprodução da força de trabalho masculina, em geral subsistindo sob violentas formas de opressão e exploração simultaneamente na fábrica e no seio da família. Ancestralmente vinculado à mentalidade patriarcal, que naturalizou a sua dependência face à autoridade do patriarca (o bread winer), o trabalho da mulher foi menosprezado ao mesmo tempo que duplamente explorado. A divisão sexual do trabalho promoveu uma ideologia, particularmente útil no quadro da expansão capitalista desde o século XIX, que definiu o lugar da mulher na esfera doméstica, como cuidadora, reprodutora e objeto sexual, enquanto os homens estavam destinados a ocupar os lugares de poder na esfera pública e no campo profissional.
Colhemos de Boaventura Santos (2014) a ideia do triunfo da modernidade ocidental fundada na base de uma estreita conexão entre capitalismo-patriarcado-colonialismo, uma conjugação que ajuda a lançar luz sobre a herança do escravismo no Brasil como fator decisivo na perpetuação do papel submisso e servil da mulher, em especial da mulher negra. Tal processo foi, ao longo dos tempos, incorporando a servidão e a escravidão na economia capitalista, tanto através do trabalho escravo na agricultura e no extrativismo como na cooptação da mulher negra como cuidadora nos lares da nova elite no poder – antes e após a independência do país – e posteriormente da classe média em ascensão, à medida que aumentaram os ritmos de industrialização e urbanização do Brasil, a partir das primeiras décadas do século passado. A naturalização da submissão da condição negra no Brasil que, ao longo dos séculos de colonialismo, construiu o racismo estrutural neste país não só serviu aos interesses do poder colonial e a economia capitalista global – a escravidão é corolário do extrativismo e saque dos recursos naturais –, como ajudou a perpetuar o mito de uma “democracia racial” onde a Casa-Grande e Senzala (Freyre, 2003) constituía uma clivagem de classes com fronteiras algo permeáveis à miscigenação. Ao evocar a ideia da mistura de raças no Brasil, embora combatendo a corrente, na época dominante, de defesa de um branqueamento dos povos e a adesão do país ao modelo europeu, Freyre foi criticado por romantizar em excesso a convivialidade multirracial e alijar a violência colonial imposta pela escravidão.
Em múltiplos debates recentes acerca da colonialidade e sua ligação à modernidade ocidental, autores como Immanuel Wallerstein, Aníbal Quijano e Walter Mignolo contribuíram para aprofundar a consciência de uma construção ideológica do Ocidente que impôs no mundo uma racionalidade – em que as componentes militar e cientifico-tecnológica foram indissociáveis da força filosófica e do dogma do catolicismo na legitimação do eurocentrismo na América Latina –, visando fortalecer um sistema de relações de poder empregando métodos de controle sobre o trabalho em beneficio dos estados centrais do sistema-mundo, ou seja, a consolidação das periferias do Sul criaram do mesmo passo o mapa racial do capitalismo mundial. Nesse sentido, é sobretudo a visão de Quijano que estabelece a importância de se pensar uma colonialidade do poder que sublinha a organização geoeconómica do planeta, a qual, conforme sinaliza Mignolo, “articula o sistema mundial colonial/moderno e gerencia a diferença colonial; distinção que permite a Quijano ligar o capitalismo, através da colonialidade, ao trabalho e à raça (e não apenas à classe), bem como ao conhecimento” (Mignolo, 2020, p. 83). Por essa via, o colonialismo conseguiu desenvolver e impor sobre as etnias do continente sul-americano, como o “índio” e o “negro” identidades homogeneizantes estabelecidas pelo poder colonial. É claro que o racismo e a supremacia branca derivam do colonialismo, mas este, como sabemos, decorreu de uma exigência de expansão do capital, isto é, sem a acumulação primitiva conseguida pelos impérios do Ocidente à custa do saque de recursos, jamais o paradigma ocidental teria conseguido fazer triunfar a ideia de inferioridade da raça negra e sua sujeição corporal e mental ao poder da elite e da supremacia branca.
María Lugones, por exemplo, no bojo do feminismo decolonial, procede à leitura do sistema mundial moderno colonial sob as lentes da interseccionalidade de raça, gênero/sexualidade e classe social para pensar a colonialidade de gênero, com foco na opressão de gênero racializada. A partir do conceito de “locus fraturado”, ressalta que essa interseccionalidade é tanto a chave de inteligibilidade dos processos de dominação, opressão, exploração, quanto ferramenta de luta (Lugones, 2019).
Ora, é neste quadro que devemos inscrever a questão do trabalho doméstico no Brasil, fenómeno diretamente vinculado ao passado colonial e de escravização que obedeceu durante vários séculos ao negócio do tráfico negreiro que criou as bases do sistema econômico global na primeira fase de expansão do capitalismo moderno. Negros escravizados e povos indígenas alvos de genocídio ou de confinamento forçado cujo sangue irrigou a construção das nações modernas americanas. E é exatamente nas raízes dessa realidade, de uma necropolítica que presidiu à fundação dos estados coloniais da América Latina, que reside a gênese do racismo estrutural de hoje. Essa poderosa força – económica, política, ideológica – funcionou como um véu que escondeu e bloqueou, durante séculos, o acesso à dignidade humana a milhões de mulheres e homens, negros e mestiços, e é ela que persiste disseminada por largas camadas da atual sociedade brasileira, encobrindo uma injustiça crônica que se traduz em opressão desumana e até escravização dissimulada em muitos ambientes domésticos.
Falar de vidas precárias é pouco para descrever o fenómeno do trabalho doméstico no Brasil. Além de vulnerável e totalmente dependente da vontade e caprichos das(os) suas(seus) patroas ou patrões, foram ao longo dos tempos serviçais obrigadas a sujeitar-se a tratos violentos e abusivos, seja através de trabalho forçado, seja por coação e assédio moral e sexual; milhões de mulheres domésticas viveram no silêncio a sua opressão, resignadas e canceladas enquanto seres humanos dignas de respeito. Só esse lastro de dominação histórica, alimentado por uma elite ou sucessivas elites e legitimado por sucessivos governos, permitiu que os direitos trabalhistas mais elementares começassem a ser reconhecidos tão tardiamente.
A indignidade e dignidade do trabalho
Como sabemos, as lutas sociais da modernidade, protagonizadas por sucessivos movimentos sociais desde finais do século XVIII, desde sempre se debateram para repor o direito à dignidade da pessoa humana. O triunfo do capitalismo ocidental, embora suportado por bandeiras de progresso inspiradas no Iluminismo (Liberdade, Igualdade, Fraternidade), tratou de reverter as velhas fórmulas medievais de dominação em novos mecanismos de exploração e opressão, levando ao crescimento de novos exércitos de famintos, com as novas classes trabalhadoras manuais, tornando-se ao mesmo tempo no motor do crescimento económico e vítimas diretas do capitalismo selvagem. Já atrás assinalámos que esse sistema não teria triunfado sem o poder colonial, que permitiu que as potênciais imperiais europeias acumulassem os recursos e os meios que dessem sequência ao seu programa de controle e dominação do mundo. A realidade indigna da escravidão, sendo ela mesma uma fonte decisiva de acumulação com o mercado negreiro, foi um dos fenómenos históricos mais violentos, que excluiu, violentou e chacinou milhões de seres humanos, atirados para a condição de selvagens não humanos.
À sombra de um discurso de progresso, o capitalismo promoveu atrocidades que barraram o caminho de acesso aos direitos humanos. A condição subalterna das classes populares, em especial as herdeiras diretas da escravidão, que foram os contingentes de origem africana deslocados à força para o novo continente como escravos, ilustra bem, ainda hoje, como o direito à dignidade não passa de uma frase vazia e sabemos que persistem hoje muitas condições desumanas nas relações de trabalho em todo o mundo. Apesar de organizações internacionais, como a Organização Internacional do Trabalho (OIT), colocarem, há mais de 100 anos, os direitos do trabalho como principal desígnio, princípio consagrado na I Conferência Internacional do Trabalho (OIT)12 em 1919, no Brasil, as primeiras bases apenas seriam contempladas, parcialmente, na Constituição de 1946. Apesar dos passos tímidos que foram sendo dados à custa de muitas lutas, o certo é que a lógica do capital continuou a promover sucessivos fenómenos de negação dos direitos mais elementares a milhões de trabalhadores e trabalhadoras. E se isso ocorre mesmo nos setores formais e mais regulamentados da economia, ocorre por maioria de razão nos domínios onde prevalece a informalidade. O crescimento das desigualdades e da pobreza no mundo tem revelado que essa chaga social está longe de ser contida. Faz sentido, por isso, referir aqui a noção de “capitalismo indigno” como um processo de obscurecimento e negação de valores. Como refere o sociólogo Fabrício Maciel (2024, p. 158), estudioso do tema, “A naturalização do desvalor dos mais pobres e necessitados, ou seja, aqueles que ‘sobraram’ ou que nunca conseguiram se inserir no sistema do trabalho digno e produtivo, sempre foi um marco nos países periféricos”, em especial no caso brasileiro. O trabalho doméstico é sem dúvida um dos exemplos mais flagrantes dessa realidade.
Desde a era colonial até hoje, a submissão servil por um lado, e o baixíssimo custo dessa força de trabalho, por outro, alimentaram um cenário para muitos considerado inaceitável e anacrónico. O emprego na categoria corresponde, em 2022, a cerca de 6% da população ocupada (DIEESE, 2023). E no caso das mulheres negras, em concreto, elas correspondem a cerca de 16% do total das ocupadas na categoria (com 18 anos ou mais), cerca do dobro de presença de mulheres não negras. Embora revelando redução, os números da população ocupada nessa categoria permanecem elevados, passando, no caso das mulheres, de 14,2% das ocupadas no setor em 2013 para 12,5% em 2022. Segundo a OIT, o Brasil detém o recorde mundial no que toca ao volume de empregadas domésticas, com cerca de 6 milhões de pessoas em 2022 – seguido pela Indonésia, 1,8 milhões, México, 1,7, EUA e França, com 600 e 500 mil, respetivamente –, 92% das quais são do sexo feminino, correspondendo a 17% do total do emprego de mulheres e 62% são negras – segundo relatório do MDS/Dados da PNAD.13
Na última década, apesar de uma pequena redução, as estatísticas mostram o elevado peso da categoria no conjunto das ocupações e dentro desta, igualmente maioritário, permanece o peso das mulheres não brancas, mantendo-se igualmente elevado o setor informal, com cerca de 70% do total. O peso estatístico de mulheres domésticas com carteira assinada evoluiu de 30,4% em 2013 para 24,7% em 2022, aliás, acompanhando a tendência das mulheres empregadas com carteira assinada (passaram de 42,7% para 39,2% na mesma década). A esmagadora maioria das domésticas (90%) recebe até 1,5 salário mínimo e o salário médio da categoria é muito baixo, tendo evoluído de R$ 1.063 em 2013 para R$ 1.051 em 2021 (DIEESE, 2023). Em 2021, 39,6% das mulheres domésticas estavam em situação de pobreza ou pobreza-extrema (até metade do salário mínimo) e, entre estas, as de cor negra com 43,9% nessa situação contra 41,9% no caso das não negras; um cenário revelador do agravamento da pobreza no país, agravado com a crise da covid-19. Também os recursos educacionais desse segmento evoluíram significativamente: a percentagem da profissão com o mais baixo nível de instrução (até quatro anos) passou de 73% em 1989, para 42% em 2009, e em 2022, reduziu para 38%. Os níveis educacionais intermédios e até superiores fazem-se sentir hoje no seio da categoria, mais do que no passado, por exemplo, as empregadas com, pelo menos, frequência de ensino superior eram cerca de 1,4% em 2015, enquanto que em 2022 se situavam nos 3,5%; por seu lado as trabalhadoras com frequência de ensino médio passaram de 25% em 2013 para 42,5% em 2022 (segundo dados da PNAD apresentados pelo DIEESE), a ilustrar o crescente impacto das políticas de educação no país, também junto das trabalhadoras domésticas.
As lutas travadas pelo Sindomésticas foram exemplares a diversos títulos e são reveladoras das enormes dificuldades do trabalho doméstico e da capacidade de organização e mobilização de uma camada social profundamente marcada e estigmatizada pelo legado histórico que tem por detrás. Relatórios recentes sobre a situação das trabalhadoras domésticas no Brasil mostram como a situação evoluiu desde que, em 2013, foi aprovada a Emenda Constitucional nº 72, conhecida como a PEC das Domésticas – regulamentada pela Lei Complementar nº 150, em 2015. Desde então, há toda uma lista de conquistas importantes, tais como: o direito à carteira assinada; integração da previdência Social; salário não inferior ao salário mínimo nacional; jornada de trabalho de 8h diárias e 44h semanais; pagamento do trabalho extraordinário; direito a 13º mês de salário; folga semanal remunerada, férias anuais de 30 dias remuneradas com acréscimo de 1/3 do salário; direitos especiais para gestantes; seguro de desemprego etc. Porém, apesar dos avanços, a situação está longe de ser agradável para as trabalhadoras domésticas, quando as instituições reconhecem (IBGE, 2023) a existência de mais de 70% das trabalhadoras que se mantêm na informalidade, e portanto, sem que os seus direitos sejam, de facto, reconhecidos pelos seus empregadores.
A luta desencadeada pelo Sindomésticas e sua liderança é um testemunho vivo das dificuldades encontradas e da força persistente do preconceito – de classe, de gênero e de raça – que continua a negar os direitos mínimos a essas trabalhadoras. Merece, no entanto, realçarmos que a persistência desse combate tem obtido visibilidade e reconhecimento crescente das autoridades e da sociedade brasileira, em particular no estado da Bahia. A principal líder do movimento foi agraciada pelo governador do estado (Jerônimo Rodrigues, do PT) com o título da Ordem 2 de Julho – Libertadores da Bahia, no âmbito da celebração do bicentenário da Independência do Brasil na Bahia (1823), em reconhecimento por seu papel na “garantia das liberdades públicas”.14 Acresce que, mais recentemente, também a Universidade Federal da Bahia (UFBA) se associou ao reconhecimento público homenageando Creuza Oliveira com o doutoramento Honoris Causa, como presidente de honra da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) e secretária de Formação Sindical e de Estudos do Sindomésticas, sendo a primeira mulher trabalhadora doméstica a receber esse título.
CREUZA OLIVEIRA: O ATIVISMO PERSISTENTE
Vale a pena registrar brevemente um pouco da sua história como trabalhadora e ativista. Creuza Oliveira15 começou a trabalhar como doméstica com dez anos de idade. Creuza começou por cuidar de criança numa família, então como afirmou na nossa entrevistas, “era uma criança cuidando de outra criança”; toda a vida trabalhou como doméstica. Desde a infância, adolescência, juventude, sempre na Bahia. Começou em Salvador da Purificação, depois em Santo Amaro e em Amélia Rodrigues e aí, com 14 anos veio para Salvador, que é a sua terra de nascimento. Nasceu aqui, ela e seus irmãos, mas quando o pai morreu, a mãe voltou para o interior levando a sua prole. Lá não tinha escola municipal pelo que frequentou com um professor a título informal, lições que voluntariamente ensinava, onde aprendeu o abecedário e pouco mais… A mãe morava lá na roça, como afirmou
“era muita secura, não tinha meios, então ela me mandou para cuidar de uma criança, com a ideia de ir também na escola, mas essa ideia não foi cumprida; eu fiquei lá e só fui estudar quando já tinha dezesseis anos, e isso aqui em Salvador; fui estudar à noite, mas o trabalho era muito e depois interrompia. Eu queria estudar, mas o trabalho era duro, saia de um trabalho ia para outro e a patroa não aceitava que estudasse, não queria que ficasse com chave de casa e elas não queriam isso de jeito nenhum. Depois quando estava na escola estava tão cansada, cochilava, não tava conseguindo avançar…”.16
A consciência da injustiça só foi chegando mais tarde, só na década de 1980, quando começou a participar no movimento negro e nos grupos de discussão de domésticas (1983); ajudando a formar uma associação de defesa dos direitos das trabalhadoras domésticas. Como naquela época não era permitido sindicato, criaram uma associação, em 1986, na qual Creuza foi presidente, pelo que o seu papel foi de facto marcante no estimular do movimento.
“Foi só no final dos anos oitenta, com a constituição de 1988 é que passou a ser permitido o sindicato. Mas nessa década participei em muitos eventos organizados por grupos de mulheres e ativistas; o 5º congresso nacional de trabalhadoras domésticas, em 1985, foi para mim um despertar da consciência, foi um acontecimento marcante na minha vida, onde conheci a D. Laudelina de Campos Melo17 – uma mulher extraordinária que inclusive participou como voluntária na 2ª Guerra Mundial como socorrista –; ela foi a fundadora inicial do movimento, que criou a primeira associação de defesa das domésticas no Brasil, em 1936. Foi por aí que eu pude perceber a situação das domésticas não só em Salvador, não só na Bahia, mas em todo o Brasil. Apesar das diligências dessa líder [Laudelina] junto do governo Vargas, não se conseguiu reconhecimento de nossos direitos. Apenas em 1973, há cinquenta anos, se conquistou o direito a termos registro de carteira de trabalho. E mesmo assim, as empregadoras continuaram ignorando tudo isso porque entendiam que o trabalho doméstico não é profissão. Então a gente tem o Movimento das Trabalhadoras Domésticas, que já existe há mais de oitenta anos, mas a sociedade em todo esse tempo não reconheceu e ainda não nos vê como uma atividade importante para a economia do país. O facto de sermos mulheres, e mulheres negras, de estarmos no ambiente privado etc., eles acham que quem gera lucro é só quem está na empresa, nas profissões que dão lucro direto e não que está trabalhando nas tarefas do cuidado, e esse trabalho do cuidado é muito importante”.
O movimento das domésticas iniciou-se nos anos 1930, depois teve um refluxo no período da Segunda Guerra Mundial, tendo retomado já nos anos 1960 e aí começou se espalhando noutros distritos fora de Salvador, nomeadamente por influência da Juventude Operária Católica (JOC), onde foram criados os grupos das empregadas domésticas, onde se foram desenvolvendo, inclusive com a ajuda da Igreja Católica. Foi essa instituição que garantiu o apoio para realização de alguns encontros, no âmbito da JOC, contribuindo para criar algumas associações no Brasil, e aí, as associações de São Paulo, sob liderança de Dona Laudelina, sempre tiveram forte ligação ao movimento negro. Assim, a Frente Negra Brasileira, que era uma organização autônoma, mas tinha ligação com o movimento da JOC, passou a reunir-se nos anos 1980 no Colégio Padre António Vieira, em Salvador. Foi então, já depois da Constituição de 1988, que algumas associações de domésticas se transformaram em sindicato, tais como em Recife e Pernambuco que foram os primeiros casos. Foi então criado, em Salvador, o Sindicato das Trabalhadoras Domésticas do Estado da Bahia (em 13 de maio18 de 1990).
A relação entre domésticas e seus empregadores é extremamente variada (há até empregadas domésticas que têm as suas próprias “babás”): desde casos em que os filhos dos empregadores foram criados pela “ama” e mantêm com ela uma relação maternal; situações em que as crianças da empregada vivem na própria casa dos patrões; domésticas que dormem na casa, outras que cumprem um horário específico, de “mensalistas” ou “horistas” (as chamadas “faxineiras”) etc.
É claro que, como atrás mostramos, nas últimas décadas, ocorreram progressos significativos nos direitos trabalhistas reconhecidos às domésticas e eles resultam, sem dúvida, do longo combate que acima foi referido. Mas ainda hoje, segunda década dos anos 2000, continua sendo relevante o silêncio de uma trabalhadora doméstica – sobretudo quando reside na casa dos empregadores – quando lhe é perguntado se “é livre”; ou ainda o esforço que faz uma dada entidade patronal tentando mostrar cordialidade para com a sua empregada, quando ela nos mostra, nos gestos e no rosto, toda a crueza do seu servilismo. O poder tutelar não é menos agressivo quando se mostra envolto de palavras meigas e falsa simpatia.
CONCLUSÃO
Os três casos apresentados deixam claro que se inscrevem em contextos bem distintos. Os pontos em comum que foi possível identificar demonstram, de maneira inequívoca, como as tendências estruturais do capitalismo global incidem na crescente vulnerabilidade das classes trabalhadoras, na sua fragmentação e individualização, sobretudo, perante formas de trabalho intensivo (e baixos salários), como são os casos abordados. Por exemplo, a herança colonial, cuja presença no caso brasileiro é flagrante, explica um dos vetores mais poderosos na submissão das trabalhadoras domésticas, subjugadas por uma classe média poderosa e preconceituosa; com efeito, essa sujeição tornou-se ao mesmo tempo ajustada ao poder capitalista, que fortaleceu um status de subalternidade que essas trabalhadoras naturalizaram sem grande resistência. É por isso que as lutas dessa classe na região da Bahia e no Brasil inteiro ilustram uma epopeia de resistência sob um clima altamente adverso. A lógica do consentimento tem aqui raízes muito profundas e isso ganha expressão nos casos que tratamos, apesar de serem bem distintos os contextos que os envolvem. Já no caso português, pudemos mostrar como um setor bastante feminizado em força de trabalho, além da precarização geral, evidencia uma cultura patriarcal bem enraizada, e que produz consentimento mesmo da parte do setor feminino, maior vítima desse legado. Também, aqui, o combate promovido pelo sindicato e sua principal dirigente (uma mulher) se confronta com esse preconceito e de certa forma é complacente com a sua presença, tomando-o como inelutável. Desigualdade e subalternidade justificadas pela via do preconceito, fortes vínculos de lealdade à própria experiência laboral – e em muitos casos às entidades patronais –, afinidades de dependência em que gênero, raça e classe se sobrepõem e se conectam com heranças históricas locais que ajudaram a naturalizar assimetrias de poder, elementos estes que se perpetuam em torno de uma valorização das próprias tarefas e das identidades grupais estruturadas pelo trabalho.
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1
Identificação autorizada. Nos casos de trabalhadores no ativo, preferimos recorrer a nomes fictícios.
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2
Figura pública; identificação autorizada.
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3
Cabe ressaltar que essa consideração é aplicada de maneira mais abrangente à realidade europeia. No contexto brasileiro, pelo menos nas categorias profissionais que o presente artigo focaliza, esta é uma realidade um tanto distante, posto que a maior parte dos jovens trabalhadores tem apenas educação básica ou ensino médio – especialmente, no caso da indústria calçadista.
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4
Nome fictício. Neste caso, tratou-se de uma conversa informal, espontânea, com um motorista da Uber, antigo operário da indústria do calçado.
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5
Os números dão um panorama bastante ilustrativo do contexto local entre a década final do século XX e a primeira década do século XXI: em 1990, as microempresas (de 0 a 19 empregados) perfaziam um total de 449 estabelecimentos; em 2011, seu número era de 1.163 – uma elevação de 159%. Nesse mesmo período, o número de empresas de pequeno porte (20 a 99 empregados) também cresceu 174%, passando de 71 para 195. Por outro lado, os médios e grandes estabelecimentos industriais sofreram forte impacto: os de médio porte (de 100 a 449 empregados) diminuíram de 49 para 27, e os grandes (mais de 500 empregados) reduziram-se de nove para apenas um (Barbosa, 2016).
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6
Nome autorizado, entrevista realizada em 30 de março de 2023.
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7
Em Portugal, pelo critério de dimensão, as empresas são classificadas segundo o número de trabalhadores(as); consideram-se: micro, menos de 10 trabalhadores(as); pequenas, de 10 a 49 trabalhadores(as); médias, de 50 a 249 trabalhadores(as); grandes, 250 ou mais trabalhadores(as). No Brasil, a categorização é diferente, pois conforme o critério adotado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as empresas do setor industrial são classificadas como: micro, até 19 empregados(as); pequenas, de 20 a 99 empregados(as); médias, de 100 a 499 empregados(as); grandes, com 500 ou mais empregados(as). No polo produtivo de Franca e região, também predominam, tal como em Portugal, as micro e pequenas empresas, respectivamente cerca de 63% e 29%, responsáveis por 42,2% dos empregos nele gerados.
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8
O principal dirigente do sindicato, durante mais de duas décadas, responsável por inúmeras conquistas e lutas travadas contra os abusos patronais, principalmente ao longo da década de 1990. Uma entrevista aprofundada a esse dirigente (já falecido) pode ser encontrada no livro Vozes do Mundo – para reinventar a emancipação social, organizado por Boaventura de Sousa Santos (editora Civilização Brasileira, 2009), ver entrevista a Manuel Graça, por Elísio Estanque.
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9
Essa desinformação ou o escasso envolvimento sindical poderiam ser, para Virgínia Ferreira (2002), sequelas de uma prática discriminatória, patente na menor importância atribuída à problemática de gênero no seio da classe trabalhadora, posto que as entidades sindicais muitas vezes ainda se encontram imbuídas da concepção de um trabalhador universal, personificado no homem trabalhador. A autora alerta para a necessidade de uma ação sindical efetiva de promoção da igualdade de gênero, tanto na sua própria estrutura interna quanto nos espaços laborais. E, ao repensar-se, o sindicato precisa levar em conta a estrutural questão das interseccionalidades que atravessam as classes socias, posto que, historicamente, o sindicato é masculino. Reportando-se ao período em causa, Virgínia Ferreira (2002) ressalta o histórico de práticas excludentes e segregadoras das mulheres pelo movimento sindical no início da Revolução Industrial, desde o impedimento de sua filiação até à conivência com desigualdades de gênero institucionalizadas, chegando até mesmo a atuarem como cúmplices e promotores de tais desigualdades. Quando levantavam a bandeira da igualdade salarial, os sindicatos faziam-no, na verdade, em defesa do emprego do homem, considerado, segundo a ideologia patriarcal, o provedor da família. Ou seja: a luta pela igualdade de salário entre mulheres e homens fazia sentido tão somente para impedir que a mão de obra masculina pudesse ser substituída por outra mais barata. Trata-se de um legado que, no entanto, se alterou substancialmente.
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10
Federação dos Sindicatos dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios, Vestuário, Calçados e Peles de Portugal (FESETE).
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11
Associação Portuguesa dos Industriais de Calçado, Componentes e Artigos de Pele e seus sucedâneos (APICCAPS); e os sindicatos são as entidades que participam da concertação responsável pela aprovação do contrato coletivo de trabalho do setor.
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12
As principais convenções contempladas nesse documento foram: limitação da jornada de trabalho a 8 horas diárias e 48 horas semanais, proteção à maternidade, luta contra o desemprego, definição da idade mínima de 14 anos para o trabalho na indústria e proibição do trabalho noturno de mulheres e menores de 18 anos. No Brasil, a CLT, aprovada em 1943, só muito posteriormente viria a tornar-se efetiva em diversas matérias, já nos anos 1960, e principalmente a partir da Constituição de 1988.
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13
Veja-se Nota Informativa nº 2/2023, MDS/SNCF: https://www.gov.br/mds/pt-br/noticias-e-conteudos/desenvolvimento-social/noticias-desenvolvimento-social/ministerios-do-desenvolvimento-social-e-dos-direitos-humanos-abrem-seminario-pela-luta-contra-o-trabalho-escravo-domestico/nota-informativa-n2-publicada.pdf (consultado em 24.02.2024). Assim, em 2022, de cada 100 mulheres negras ocupadas, 16 eram empregadas domésticas.
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14
Veja-se o boletim do Sindomésticas, “O QUENTE”, ano XXII, n. 138, set./nov. 2023.
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Assumiu-se, aqui, o nome verdadeiro por ser uma figura pública amplamente reconhecida como dirigente sindical; e porque a própria nos deu autorização para tal durante as entrevistas. As entrevistas foram todas realizadas na sede do Sindomésticas, e usámos como Guião uma estrutura flexível de perguntas, por um lado relacionadas como o percurso como trabalhadora doméstica e, por outro, como dirigente sindical e associativa.
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Entrevista realizada em 11 de junho de 2023.
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Era uma mulher de grande coragem e competência. Ela chegou a ter reuniões com ministros no governo de Getúlio Vargas, na altura em que foi aprovada a CLT, tentando que os direitos das trabalhadoras domésticas fossem incluídos na CLT, coisa que não aconteceu. Só se conseguiu o direito a registro da carteira de trabalho em 1973.
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Note-se que a data da fundação foi escolhida por ter sido nessa data, no ano de 1888, que foi oficialmente aprovada a lei que aboliu a escravatura no país. Lei assinada no período imperial, pela princesa Isabel.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
04 Nov 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
29 Mar 2024 -
Aceito
20 Ago 2024