Resumos
Este artigo investiga o papel da raça e do racismo nos Estados Unidos da América. Ele trata de raça como conceito, explorando, primordialmente, o motivo da existência de categorias raciais e da desigualdade racial. Também, nele, examinamos a atual situação da raça nos Estados Unidos ao expor suas manifestações sociais, econômicas e políticas. Após explorar a magnitude da desigualdade racial nos Estados Unidos, trabalhamos para desvendar os mecanismos que perpetuam e sustentam, tanto estrutural quanto culturalmente, as disparidades raciais. Em razão de ações e crenças racistas terem sempre sofrido resistências por parte dos movimentos sociais, atos coletivos, e resistência individual, nós analisamos a natureza e os resultados dos esforços da luta contra o racismo norte-americano. Concluímos com uma análise das perspectivas atuais relativas à transformação racial e das possibilidades para a emergência da igualdade racial. Assim, neste artigo, trazemos uma análise abrangente da situação atual das dinâmicas raciais nos Estados Unidos e das forças determinadas a combater o racismo.
Raça; Racismo; Regimes raciais; Movimentos negros; Desigualdade
Notre article évaluera le rôle de la race et du racisme en Amérique. Le document aborde conceptuellement la race en explorant pourquoi les catégories raciales et l’inégalité raciale existent en premier lieu. Le document passe à l’examen de l’état actuel de la race en Amérique en mettant à nu les manifestations sociales, économiques et politiques. Étant donné l’ampleur de l’inégalité raciale aux États-Unis, le document cherche à démêler les mécanismes à la fois structurels et culturels qui perpétuent et maintiennent les disparités raciales. Parce que le mouvement raciste a toujours été combattu en Amérique par des mouvements sociaux, des actions de collecte et de résistance au niveau personnel, le journal évaluera la nature et les résultats des luttes pour renverser le racisme américain. Ainsi, l’article fournira une analyse de l’état actuel de la dynamique raciale aux États-Unis ainsi que des forces déterminées à démanteler le racisme.
Race; Racisme; Régimen racial; Movement nègre; Inegalité
This paper, “The Racial State of the Union,” interrogates the role of race and racism in the United States of America. The paper grapples with race conceptually as it explores why racial categories and racial inequality exist in the first place. We also examine the current state of race in North America by laying bare it social, economic and political manifestations. After exploring the magnitude of racial inequality in the United States, we labor to unravel the mechanisms both structurally and culturally that perpetuate and sustain racial disparities. Because racist actions and beliefs have always been resisted by social movements, action, and resistance at the personal level, we assess the nature and outcomes of struggles to overthrow North American racism. We conclude by assessing the current prospects for racial transformation and the possibilities for the emergence of racial equality. Thus, in “The Racial State of the Union” we provide an overarching analysis of the current state of racial dynamics in the United States and the forces determined to dismantle racism.
Race; Racism; Racial regimes; Black movements; United States
INTRODUÇÃO
Apesar da retórica contrária, e da linguagem de liberdade e igualdade em seus documentos fundacionais, os Estados Unidos da América adotaram o racismo desde sua fundação. Em 2017, a primeira negra a ocupar o cargo de Secretária de Estado, Condoleezza Rice, afirmou: “Esquecemos, nos Estados Unidos, como demoramos a fazer com que ‘Nós, o povo’ significasse pessoas como eu [...] E, realmente, penso que os Estados Unidos surgiram com um defeito de nascença: a escravidão” (Condoleeza Rice, Programa “Sunday Morning”, da CBS, de 7 de maio de 2017).
Decerto, ao longo dos quase 250 anos de existência da nação, as elites brancas, nos Estados Unidos, deliberadamente construíram e sustentaram uma sociedade baseada na supremacia branca. Os primeiros colonos vindos da Europa desenvolveram uma nação colonizada através do genocídio contra os povos indígenas da América do Norte, confiscando forçosamente suas terras, bem como, de forma engenhosa, roubando-as e destruindo nações. Esse foi o destino daqueles que chamávamos de “índios” (Cf. os horrendos erros de navegação do infame Cristóvão Colombo) bem como dos mexicanos, que tiveram porções do México forçadamente anexadas por colonos europeus. Tais terras roubadas foram, aos poucos, incluídas na “nova” nação, ainda que as pessoas de tais terras não fossem bem-vindas, exceto se pudessem ser escravizadas e forçadas a trabalhar em prol dos colonizadores. Assim, eles passaram a chamar a si mesmos de brancos e a criar raças para os outros, cuja exclusão de seu regime desejavam. Além disso, africanos foram transformados em negros ao serem retirados de seu continente e transportados para a América em navios negreiros, acorrentados e forçados a trabalhar como escravos sem qualquer compensação – e isso continuou por dois séculos e meio. A riqueza da nação foi constituída à medida que as elites brancas exploravam econômica, social e politicamente aqueles definidos como não brancos. Precisamente, foi o trabalho negro que fez com que os Estados Unidos passassem de uma economia muito parecida com a de um país pobre atual para uma economia gigante com uma pujante economia agrícola (Steinberg, 2001STEINBERG, S. The ethnic myth: race, ethnicity, and class in America. 3. ed. Nova York: Beacon Press, 2001 .), tendo tal trabalho não branco levado o país a seu estado atual, que rivaliza com o de outros impérios brancos da Europa Ocidental, os quais têm um histórico colonial.
Em suma, os colonizadores europeus cunharam raças, para si mesmos e para outros seres humanos, criando sua própria supremacia branca, à medida que construíam uma hierarquia racial, sujeitando a ela todos os demais (Mills, 1999MILLS, C. W. Racial contract. Ithaca: Cornell University Press, 1999 .). Colonizadores brancos asseguraram a dominação, a supremacia branca e o privilégio com a categorização de fenótipos ou tons de pele e com a exploração – todos esses atos entrelaçados, apesar de terem sido criados de modo inconsistente e ilógico. Assim, alguns europeus do Norte e seus descendentes mantiveram-se no topo da hierarquia racial, elaborando sistemas de classificação racial e criando crenças raciais juntamente com sistemas de sanção para aqueles que não cumprissem tal lógica racial. Como os brancos estruturaram a vida social para que pudessem continuar como a “raça” dominante? O que é raça? Como categorias raciais incorporam não brancos, especialmente quando novas pessoas surgem através de processos de conquista, imigração ou movimentos identitários? Como um grupo dominante, criando hierarquias de seres humanos e sistemas de lógica racial que garantem a dominação racial branca, persiste por séculos? Se quisermos compreender o contexto racial dos Estados Unidos, responder tais perguntas é crucial. As ciências (ambas, naturais e sociais) deram passos importantes ao dar respostas a tais questões incômodas. Na próxima seção, revisitaremos essas respostas.
O QUE É RAÇA E COMO ELA OPERA NOS EUA?
Raça é um sistema de classificação humana que objetiva classificar humanos em categorias distintas de acordo com uma constelação de traços físicos, cognitivos e culturais, cuja existência se acredita ser hereditária, distintiva e largamente inescapável (Bashi Treitler, 2016 BASHI TREITLER , V. Racialization and its paradigms: from Ireland to North America . Current sociology monograph , v. 64 , n. 2 , p. 213 - 227 , 2016 .). Contudo os seres humanos não podem ser classificados dessa maneira. Não vivemos o suficiente em nosso planeta para terem surgido as diferentes subespécies que atualmente chamamos de raças (Gould, 1994 GOULD , S. J. The geometer of race . Discover magazine , nov . 1994 . Disponível em: < http://discovermagazine.com/1994/nov/thegeometerofrac441 > . Acesso em: 23 jul. 2018 .
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). Não há traço biológico ou genético que marque definitivamente um indivíduo como membro de um grupo racial em detrimento de outro; tampouco há qualquer outra característica que identifique todos os membros de um único grupo racial como distintos de todos os outros grupos raciais (King, J., 1981KING, J. The Biology of race. Oakland: University of California Press, 1981 .). De fato, mais de 100 anos de evidência científica demonstraram que raças humanas (por exemplo, subespécies raciais atreladas a um fenótipo e outras características genéticas ou biológicas) não existem. A crença na possibilidade de se categorizar cientificamente seres humanos (por exemplo, o racialismo) deriva da fé no positivismo (a crença que o conhecimento advém de métodos científicos que podem ser aplicados, de modo preciso e empírico, ao comportamento humano). Todavia o positivismo é apenas uma crença, tal como o é o racialismo; nenhum desses sistemas de crenças pode apresentar a ideia de raça como cientificamente válida.
Nos Estados Unidos, tendemos a pensar que possuímos quatro grupos raciais: brancos, asiáticos, hispânicos ou latinos e negros. Esse esquema classificatório acaba por considerar pessoas com o cabelo cacheado como brancas ou negras; pessoas com pele morena ora como asiáticas, ora como negras; enquanto todos os grupos possuem pessoas com lábios grandes e pequenos. Materiais genéticos são parecidos com nossos olhos no que diz respeito à definição de raças, mas há cientistas naturais que ainda buscam por uma ferramenta confiável para a classificação racial, e muitos têm a esperança de que o esclarecimento quanto ao genoma humano finalmente nos levará até lá.
Cientes de que não há meio cientificamente válido para classificar humanos em raças, cientistas sociais estão cada vez mais certos de que raça é uma construção social. Significa dizer que raças são ficções criadas pelo Homem, criações da mente humana baseadas em fatores que não têm significado, embora lhe seja atribuído um significado por construções feitas por nós e que com as quais (alguns de nós) concordamos. O esquema classificatório mais comum emprega o fenótipo: racialistas (e racistas) acreditam que pessoas com certas características físicas (textura ou curvatura capilar, grau ou ausência de melanina na pele, cor da íris, espessura dos lábios) podem ser associadas a uma “raça”. Atores sociais decidem utilizar características fenotípicas para atribuir pessoas a raças, declarando pessoas como racialmente parecidas. Contudo, quando fazemos tais atribuições, ignoramos, de modo incoerente, a enorme lista de elementos que distinguem tais pessoas, incluindo naturalidade, língua, cultura, parentalidade e ancestralidade. Por exemplo, nos EUA, ilogicamente, acreditamos que a prole de uma pessoa “branca” com uma pessoa “negra” necessariamente será “negra”, devido à aderência a uma regra de hipodescendência aplicada a pessoas com qualquer grau de “negritude” – exceto se tal indivíduo for “branco” o suficiente e viver de modo a evitar sua detecção como uma pessoa negra. Categorias raciais estão em constante uso nos EUA, ainda que mudem com o tempo. Nesse país, a identificação racial consta de formulários cotidianos: candidaturas para empregos, questionários médicos, matrículas escolares, e até no acesso a edifícios em seu controle de visitantes! Como já foi mencionado, a maioria das pessoas, nos EUA, diria que há por volta de quatro categorias: brancos, asiáticos (e ilhéus do Pacífico), latinos e negros. O que é crucial quanto à raça (diferentemente de etnia ou outras formas de se classificarem seres humanos) é que categorias raciais são organizadas de modo hierárquico, com brancos na posição mais alta e negros na mais baixa. Ainda que raça seja proclamada como uma “construção social”, tal construção tem consequências consideráveis. Norte-americanos partilham um conjunto comum de ideias sobre como rotular uma pessoa como membro de uma determinada categoria social, ou, caso se prefira, há um senso comum racial. Tal senso comum não apenas é aplicado na forma como se rotula alguém, como também dita expectativas sobre seu comportamento, e define como tais pessoas devem se comportar diante de pessoas racialmente diversas. Quando expectativas sobre comportamento racial não são cumpridas, surgem sanções raciais. Elas podem ser brandas – por exemplo, quando o membro de uma família desaprova a escolha, por parte de um ente querido, de um amigo ou parceiro fora da linha divisória racial –, ou podem ser rigorosas e duras – por exemplo, quando alguém se encontra nas mãos de membros de um grupo de ódio, que constitui uma milícia racial destinada a defender uma ordem racial estrita. Esses fundamentos que organizam a ordem racial – categorias raciais, hierarquias, senso comum, e sanção – são vistos como estruturantes do paradigma racial dos Estados Unidos (Bashi Treitler, 2016 BASHI TREITLER , V. Racialization and its paradigms: from Ireland to North America . Current sociology monograph , v. 64 , n. 2 , p. 213 - 227 , 2016 .).
De forma geral, nos EUA, pessoas que acreditam em raças acabaram por se afastar de ideias atreladas a noções antigas da biologia ou das ciências naturais relativas à raça. Essas pessoas passaram a crer que designações raciais se relacionam com o caráter de um grupo. Trata-se de um progresso relativo, pois os norte-americanos não deixaram de lado todas as noções biológicas. A maior parte dos norte-americanos – incluindo cientistas – pensa de uma forma muito mais racializada do que podemos esperar, e o essencialismo biológico é muito mais prevalente do que a ideia de que raça é uma mera construção social (Morning, 2011MORNING, A. The nature of race: how scientists think and teach about human difference. Oakland: University of California Press, 2011 .). Ao examinarem ancestralidade e etnicidade, os norte-americanos determinam (com ações e palavras) que tais conceitos também são relacionados à ideia de raça (Bashi Treitler, 1996 BASHI TREITLER , V. Racial categories matter because racial hierarchies matter: a commentary . Ethnic and racial studies , v. 21 , n. 5 , p. 959 - 968 , set . 1996 ., 2014 BASHI TREITLER , V. The ethnic project: transforming racial fictions into ethnic factions . Stanford : Stanford University Press , 2014 .). Aderimos à crença de que raça tem um sentido real (talvez no que diz respeito à produção de aptidões e propensões para o sucesso econômico, habilidades parentais, ou comportamento criminal) que pode ser aplicado a grupos raciais, ainda que a forma de se classificarem os seres humanos seja variada e desorganizada (primeiro através da aparência física e do sangue e, mais recentemente, através dos genes), levando a categorias raciais em constante mutação e que são nebulosas (Morning, 2011MORNING, A. The nature of race: how scientists think and teach about human difference. Oakland: University of California Press, 2011 .). Por certo, os antirracistas necessitam lutar contra todas essas desigualdades e as crenças que as sustentam (Kendi, 2016KENDI, I. X. Stamped from the beginning: the definitive history of racist ideas in America. Nova York: Nation Books, 2016 .).
Em 1860, o Senador Jefferson Davis fez seu infame discurso no senado, opondo-se às verbas federais para educação de negros e declarando que a indiferença racial existia desde o início em um governo que “não foi fundado por negros nem para negros, [...] mas por homens brancos para homens brancos” (Kendi, 2016KENDI, I. X. Stamped from the beginning: the definitive history of racist ideas in America. Nova York: Nation Books, 2016 ., p. 2). A Guerra Civil Americana começaria no ano seguinte e terminaria em 1865, com a libertação daqueles tornados escravos pela escravidão racial. As ficções raciais que historicamente tornaram a escravidão uma realidade continuaram a moldar inequidades raciais contemporâneas. Decerto, as desigualdades raciais e as crenças que as justificam assombram a história dos EUA, moldando nossas políticas socioeconômicas e nossos comportamentos até a data de hoje. Elas informam como compreendemos um ao outro como seres étnicos, formando nosso conhecimento quanto a quem pertence à nação e quem nunca será incluído, também contribuindo para nosso julgamento quanto a se devemos culpar a hierarquia racial ou os socialmente excluídos pela situação difícil desses últimos. A seguir, examinaremos, brevemente, até onde essa falácia de pensamento racial nos levou, dois séculos após a declaração de Davis.
O ESTADO ATUAL DAS RELAÇÕES RACIAIS NOS EUA
As inequidades raciais norte-americanas são evidentes quando a vida começa e continuam presentes ao longo da vida dos seres racializados. Logo, faz sentido começar a tratar das desigualdades raciais no nascimento e na morte. Os EUA são notoriamente pobres entre os países mais desenvolvidos no que tange aos cuidados com os recém-nascidos e com as recém-mães, tendo caído no ranking do 6º ao 26º lugar nos últimos 50 anos (Matoba; Collins, 2017MATOBA, N.; COLLINS JR., J. W. Racial disparity in infant mortality. Seminars in perinatology, v. 41, n. 8, p. 354-359, 2017 .). A cada ano, 23.000 recém-nascidos morrem nos EUA, antes de seu primeiro aniversário. Os resultados têm influência de questões raciais, uma vez que a maior parte dessas mortes envolve não brancos. Na capital do país, Washington DC, o distrito mais pobre (Ward 8, onde residentes negros são maioria) tem uma taxa de mortalidade infantil que é 10 vezes maior que aquela observada no distrito mais rico (Ward 3, com residentes predominantemente brancos). Na costa oposta, em São Francisco, mães negras têm 8 vezes mais chances de sofrer com a morte de seu filho recém-nascido do que as mães brancas. Tem se tornado claro que a razão de tal disparidade se vincula a uma questão de racismo, não sendo apenas decorrente do fato de elas se situarem em classificações raciais distintas (Carpenter, 2017 CARPENTER , Z. What’s Killing America’s Black Infants? Racism is fueling a national health crisis . The nation , mar . 2017 . Disponível em: < https://www.thenation.com/article/whats-killing-americas-black-infants/> . Acesso em: 30 jul. 2018 .
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). Em que pese a taxa de mortalidade infantil geral ter caído desde 1950, a diferença entre a mortalidade infantil de negros e brancos, em verdade, cresceu nas quatro décadas subsequentes (Singh; Yu, 1995SINGH, G.; YU, S. Infant mortality in the United States: trends, differentials, and projections, 1950 through 2010. American journal of public health, v. 85, n. 7, p. 957-964, July 1995.) e chega, agora, à situação na qual um número 50% maior de crianças negras morre no primeiro ano de vida, em comparação com o de crianças brancas (Firger, 2017 FIRGER , J. Black and white infant mortality rates show wide racial disparities still exist . Newsweek . 2017 . Disponível em: < https://www.newsweek.com/black-women-infant-mortality-rate-cdc-631178> . Acesso em: 31 jul. 2018 .
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). Quando negros norte-americanos sobrevivem à infância, eles têm a menor expectativa de vida (74,6 anos) dentre todos os grupos raciais, enquanto asiáticos e latinos têm a maior expectativa, no patamar de 86,5 e 82,8 anos, respectivamente, e brancos têm a expectativa de 78,9 anos (Kaiser Foundation, 2009KAISER FOUNDATION. State Health Facts, table on “Life Expectancy at Birth (in years) by Race/Ethnicity”, 2009. Disponível em: < https://www.kff.org/other/state-indicator/life-expectancy-byre/?currentTimeframe=0&sortModel=%7B%22colId%22:%22Location%22,%22sort%22:%22asc%22%7D> . Acesso em: 23 jul. 2018.
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).
A qualidade de vida de uma pessoa, entre seu nascimento e sua morte, varia de forma enormemente desigual entre as “raças”. A título de exemplo, negros e indígenas (“indígenas norte-americanos” e nativos do Alasca) têm uma performance muito pior do que brancos na maioria dos indicadores de saúde, enquanto latinos e asiáticos (particularmente certos grupos étnicos asiáticos) têm um desempenho pior em alguns e melhor em outros. Pessoas adultas não brancas têm mais chances de estar sem seguro de saúde para promover melhores condições de assistência (Artiga et al., 2016 ARTIGA , S. et al . Key facts on health and health care by race and ethnicity . 2016 . Disponível em: < https://www.kff.org/disparities-policy/report/key-facts-on-health-and-health-care-by-race-and-ethnicity/> . Acesso em: 23 jul. 2018 .
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). Contudo
Disparidades raciais e étnicas existem mesmo quando há similaridades em termos de cobertura por seguro de saúde, renda, idade, e gravidade de condições médicas. Por ser a taxa de mortalidade de câncer, doenças cardíacas e diabetes significantemente maior entre minorias raciais e étnicas do que entre brancos, tais disparidades são inaceitáveis (Nelson, 2002NELSON, A. Unequal treatment: confronting racial and ethnic disparities in health care. Journal of the national medical association, Washington, v. 94, n. 8, p. 666-668, mar. 2002 ., p. 6).
Nos EUA, raças têm vidas segregadas, e todas as grandes cidades nos EUA são hipersegregadas, significando dizer que a segregação racial é claramente evidente, independentemente de como seja medida. A segregação é um fator que contribui para uma série de problemas, dentre eles o não menos importante racismo do meio ambiente, uma vez que, quando comparados aos brancos, os negros sofrem com maiores níveis de exposição a toxinas, tanto em razão da segregação geográfica, quanto pelo fato de empresas poluírem mais em áreas habitadas por pessoas negras (Newkirk, 2018NEWKIRK, Vann R. Trump’s EPA concludes environmental racism is real. The atlantic, 28 feb. 2018. Disponível em: < https://www.theatlantic.com/politics/archive/2018/02/the-trump-administration-finds-that-environmental-racism-is-real/554315/> . Acesso em: 20 jul. 2018.
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).
Os Estados Unidos também se tornaram infames em razão da sua posição global como os maiores encarceradores de seu próprio povo, uma posição que têm mantido desde 2002 (Tsai; Scommegna, 2012TSAI, T.; SCOMMEGNA, P. U. S. Has World’s Highest Incarceration Rate. Population reference Bureau, 2012. Disponível em: < https://www.prb.org/us-incarceration/> . Acesso em: 30 jul. 2018.
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). Homens correspondem a 90% dos presos. A situação chega a tal ponto que uma entre quatro mulheres americanas possui um ente querido preso – para mulheres negras, o número é significativamente maior, no patamar de 44%, enquanto apenas 12% das mulheres brancas e 6% dos homens brancos se encontram na mesma situação (Lee et al., 2015LEE, H. et al. Racial Inequalities in Connectedness to Imprisoned Individuals in the United States. Du Bois review, v. 12, n. 2, p. 269-282, 2015 .). Homens jovens negros com idades entre 18 e 34 anos têm seis vezes mais chances de ser presos do que seus pares brancos (Tsai; Scommegna, 2012TSAI, T.; SCOMMEGNA, P. U. S. Has World’s Highest Incarceration Rate. Population reference Bureau, 2012. Disponível em: < https://www.prb.org/us-incarceration/> . Acesso em: 30 jul. 2018.
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). O número desproporcional de não brancos presos encarcerados e jogados nas amarras do sistema de justiça criminal tem efeitos devastadores nas comunidades dessas pessoas (Alexander, 2010 ALEXANDER , M. The new Jim Crow: mass incarceration in the age of colorblindness . Nova York : The New Press , 2010 .). A existência de ficha criminal torna o acesso ao mercado de trabalho excessivamente difícil para ex-detentos não brancos (Pager, 2003PAGER, D. The mark of a criminal record. American journal of Sociology, v. 108, n. 5, p. 937-975, mar. 2003 .). A alta taxa de encarceramento diminui enormemente as possibilidades de matrimônio para mulheres não brancas, afetando negativamente a renda e a estabilidade familiares (Wilson, 1987WILSON, W. J. The truly disadvantaged: the inner city, the underclass, and public policy. [S.l.]: University of Chicago Press, 1987 .). Além disso, o encarceramento, muitas vezes, leva à exclusão política de pessoas negras, a tal ponto que acadêmicos começam a considerá-la a reencarnação do regime de opressão de Jim Crow (Alexander, 2010 ALEXANDER , M. The new Jim Crow: mass incarceration in the age of colorblindness . Nova York : The New Press , 2010 .). É justo concluir que o encarceramento em massa, tendente à prisão de pessoas não brancas, eleva a opressão racial nos Estados Unidos a níveis alarmantes, na contemporaneidade.
Outros indicadores de qualidade de vida demonstram disparidades raciais similares. O relatório publicado pelo Centro de Pobreza (CPI) e Desigualdade da Universidade de Stanford no ano de 2017 se concentrou em 10 áreas de desigualdade (emprego, pobreza, uso de seguridade social, moradia, educação, encarceramento, saúde, renda, riqueza e mobilidade), tendo concluído que profundas desigualdades existem e persistem em muitos desses setores, e que as diferenças entre brancos dominantes e não brancos são substanciais e sua diminuição vem ocorrendo de forma mais lenta ou deixando de ocorrer por completo. O emprego de homens negros norte-americanos tem sido mais baixo do que o de outros homens desde o início do registro desses dados; o emprego dos primeiros atualmente se encontra em patamar de 11 a 15% menor do que o de homens brancos, e tem sido esse o cenário todos os meses, desde janeiro do ano 2000. A recuperação total no emprego, após a Grande Recessão de 2008, alcançou todas as áreas da população, exceto homens negros (Hout, 2017). A retenção do emprego também é permeada por disparidades raciais: enquanto apenas 1 em 18 brancos tem medo de perder o emprego no prazo de um ano, 1 em 9 negros e 1 em 6 hispânicos têm o mesmo receio. Negros empregados sofrem com desigualdade salarial, e a pobreza marca o grupo como um todo. Logo após o Movimento dos Direitos Civis, alguns ganhos foram obtidos no que diz respeito à disparidade salarial, mas ainda hoje a renda média de homens negros é 32% menor que a de homens brancos – em quatro décadas, a disparidade salarial teve uma redução de apenas 7%. Paralelamente, a diferença salarial média entre homens brancos e hispânicos foi de 29% a 42%, essencialmente em razão de a legislação anti-imigração ter aumentado a desigualdade (Grusky et al., 2017GRUSKY, D. et al. (Ed.). State of the Union 2017. Pathways: a magazine on poverty, inequality, and social policy. Stanford, CA: Stanford Center on Poverty and Inequality (CPI), 2017. A special issue on racial and ethnic.).
Paralelamente, brancos e asiáticos possuem as menores taxas de pobreza na nação (de 11,5% e 11,2%, respectivamente), enquanto negros, indígenas e hispânicos têm taxas de, respectivamente, 24%, 27% e 21% (Grusky et al., 2017GRUSKY, D. et al. (Ed.). State of the Union 2017. Pathways: a magazine on poverty, inequality, and social policy. Stanford, CA: Stanford Center on Poverty and Inequality (CPI), 2017. A special issue on racial and ethnic.). Tais grupos altamente afetados pela pobreza dependem mais da rede de seguridade social do país. Os gastos com a casa própria correspondem à maior despesa das famílias norte-americanas, levando à ativação de benefícios sociais como deduções dos juros de hipoteca, isenções tributárias relativas a imóveis, e outros subsídios. Famílias negras, hispânicas e indígenas têm chances 57%, 51% e 41% menores de ter casa própria hipotecada, respectivamente, se comparadas às famílias brancas. O ônus de se pagar pela moradia, considerando-se as diferenças de empregabilidade e salário, é considerável: 20% dos locatários negros e hispânicos gastam mais de metade da sua renda com moradia e correm maior risco de despejo. Em contraste, 1 em 6 negros ou hispânicos com casa própria despendem metade da sua renda com moradia, enquanto o dado para proprietários brancos é de 1 em 12 (Grusky et al., 2017GRUSKY, D. et al. (Ed.). State of the Union 2017. Pathways: a magazine on poverty, inequality, and social policy. Stanford, CA: Stanford Center on Poverty and Inequality (CPI), 2017. A special issue on racial and ethnic.).
Não brancos e brancos não apenas vivem vidas completamente diferentes, como também possuem visões antagônicas sobre o que tem acontecido por aqui. Um estudo da Tufts University (Norton; Sommers, 2011NORTON, M. I.; SOMMERS, S. R. Whites see racism as a zero-sum game that they are now losing. Perspectives on Psychological science, v. 6, p. 205-218, maio 2011 ., p. 215) demonstrou que “Brancos acreditam que substituíram os negros como vítimas de discriminação racial nos Estados Unidos contemporâneos”. Além disso, para eles, os ganhos obtidos por pessoas negras são associados com uma tendência antibranca, em um jogo racial no qual um só ganha se o outro perder (“jogo de soma zero”). Por certo, brancos veem os ganhos de não brancos como “racismo reverso” e creem que esse é um problema maior do que o racismo contra negros! As percepções dos negros são bastante diversas – pessoas negras nos EUA não veem a existência de um jogo de soma zero, e acreditam que as supostas perdas não ocorrem quando obtêm vitórias em lutas pela igualdade.
O que veio antes, a ação racista ou o pensamento racial? Isso pode ser debatido. Alguns sustentam que nem mesmo teríamos raças se seres humanos não insistissem na desigualdade entre eles e aqueles vistos como racialmente inferiores. Em outras palavras, alguns acadêmicos sugerem que a desigualdade racial causa nossa percepção de existência e visibilidade de diferenças raciais entre seres humanos (Fields; Fields, 2014 FIELDS , K. ; FIELDS , B. Racecraft: the soul of inequality in american life . London : Verso , 2014 .). Se eles estiverem certos, tornar as “raças” iguais ajudaria muito a resolver os problemas raciais dos EUA. Faz sentido, portanto, examinar a luta contra “disparidades raciais [que são] mais antigas que a vida dos Estados Unidos” (Kendi, 2016KENDI, I. X. Stamped from the beginning: the definitive history of racist ideas in America. Nova York: Nation Books, 2016 ., p. 2). Na próxima seção, nós analisaremos a narrativa de uma história dos movimentos antirracistas dos EUA e suas conquistas.
REGIMES RACIAIS E RESISTÊNCIA: escravidão, Jim Crow, opressão racial contemporânea
Como já foi mencionado, a ideia de raça foi inventada por europeus, os quais se autodenominavam brancos e colocavam a si mesmos numa posição de supremacia, criando, por outro lado, negros, os quais subordinavam através da escravidão racial. O regime escravagista norte-americano se aproximou de uma jaula de ferro de dominação humana (Morris, 1993MORRIS, A. Centuries of black protest: its significance for America and the world. In: HILL, H.; JONES, J. E. (Ed.). Race in America: the struggle for equality. Madison: University of Wisconsin Press, 1993 . cap. 2, p. 19-69.). Pesquisadores da escravidão norte-americana (Aptheker, 1974 APTHEKER , H. American negro slave revolts . Nova York : International Publishers , 1974 .; Franklin, 1967 FRANKLIN , J. H. From slavery to freedom . Nova York : Alfred A. Knopf , 1967 .) concordam que a escravidão racial foi um complexo sistema de sujeição. O sistema escravagista utilizava medidas duras – assassinato, castigo com chicote, formas brutais de punição, restrições ao deslocamento e a relações sexuais, ignorância imposta, violência ideológica e mental e monitoração constante – para que se manter. A escravatura norte-americana durou por mais de dois séculos, pois, como notou Aptheker (1974 APTHEKER , H. American negro slave revolts . Nova York : International Publishers , 1974 ., p. 67), “Atrás do dono e seus agentes pessoais, existia um sistema elaborado e complexo de controle militar [...] praticamente todos os homens adultos brancos eram responsáveis pelo serviço de patrulhamento”. O sistema também se manteve devido ao uso, pela aristocracia, das classes trabalhadoras brancas como controladoras e vigilantes, as quais eram recompensadas com rendas escassas e um status modesto com base na ideia de que eram melhores do que os escravos negros (Du Bois, 1935 DU BOIS , W. E. B. Black Reconstruction in America . Nova York : Henry Holt , 1935 .). Assim, através da exploração brutal de escravos, a aristocracia branca sulista acumulou enorme riqueza e construiu um elaborado império fundado na produção de algodão, tabaco e outras commodities . As elites europeias também dependiam da escravidão negra, na América e em outros lugares, para alimentar seus gananciosos impérios. Sob a escravidão, a pele negra e a dominação branca se tornaram entrelaçadas, o que levou a uma característica duradoura de uma sociedade estadunidense que provocou terrorismo racial sobre não brancos, enquanto proclamava: “[...] consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade” (Jefferson, 1776JEFFERSON, T. United States Declaration of Independence, Philadelphia, 1776 .).
Negros norte-americanos sempre participaram de protestos individuais e coletivos contra a opressão racial. A resistência negra à escravidão teve início dentro de navios negreiros, durante a passagem transatlântica. Nos navios, traficantes de escravos e seus vigilantes tinham de se manter sempre alertas para prevenir rebeliões e controlar aquelas que se iniciavam em condições desafiadoras. Em muitos casos, escravos rebelados tomavam os navios negreiros, matavam traficantes brancos e retornavam à África. Alguns navios vagavam eternamente no mar quando rebeliões os tiravam de curso. Também era comum que escravos se jogassem no mar, optando pela morte em vez da escravidão em uma terra desconhecida. Decerto, o protesto negro contra a escravidão nasceu dentro de navios negreiros, pois sua carga humana lutou implacavelmente pela liberdade.
Escravos que chegavam ao solo norte-americano se rebelavam, apesar da brutalidade hostil e da intensa vigilância que acompanhava sua condição de escravos. Através de protestos, escravos aumentaram os custos da sua subordinação racial e do terror que era utilizado para mantê-los subordinados, transformando a instituição cruel em um negócio arriscado e perigoso, o que levou, posteriormente, à sua derrubada. Escravos negros, nos EUA, frequentemente interrompiam os mecanismos da escravidão através de atos individuais de resistência, que incluíam automutilação, suicídio, abortos indetectáveis, envenenamento de senhores e a provocação de incêndios.
Com o acúmulo de anos de servidão, os escravos ensinaram a si mesmos a construir organizações comunitárias, muitas vezes utilizando disfarces com várias camuflagens, como árvores na floresta. Especialmente importante foi a emergência da igreja negra, inicialmente invisível ao olho não convertido. Através dos tempos, a igreja se tornou uma instituição de tijolo e argamassa, mas, mesmo nessa forma modificada, continuou a apresentar diferentes disfarces ao mestre e aos congregantes de escravos. A resistência coletiva organizada emergiu da igreja e de outras formas de organização de escravos. Essa resistência se manifestou por meio da redução no ritmo do trabalho, na complexa Ferrovia Subterrânea, pela qual escravos escapavam para serem livres, e de revoltas de escravos organizadas que ameaçavam as fundações do terrível regime. Aptheker, ao comentar sobre a relevância das revoltas de escravos, afirmou: “Rebelião e conspiração para rebelar refletem a maior forma de protesto [...] [e também refletem] uma profunda e ampla inquietação: a insurreição ou o plano correspondiam ao clarão de luz que mostrava o profundo distúrbio atmosférico que o criava” (Aptheker, 1974 apud Morris, 1993MORRIS, A. Centuries of black protest: its significance for America and the world. In: HILL, H.; JONES, J. E. (Ed.). Race in America: the struggle for equality. Madison: University of Wisconsin Press, 1993 . cap. 2, p. 19-69., p. 34). Revoltas de escravos negros continuaram a balançar o regime da supremacia branca, criando instabilidade e possibilitando, eventualmente, que a escravidão fosse frontalmente atacada.
Em seu livro clássico, Black Reconstruction (1935), W. E. B. Du Bois elucidou como os escravos negros libertaram a si mesmos, no contexto da Guerra Civil Americana, a qual correspondeu a um conflito entre os estados nortistas (“a União”), que temiam uma dominação da economia escravagista e mais robusta do Sul, e os estados escravagistas sulistas (“a Confederação”). Os escravos foram bem sucedidos na interrupção da economia sulista com enormes greves, participando dos esforços de guerra e provendo serviços de apoio essenciais, bem como lutando como soldados que derramavam seu sangue em prol da liberdade. Du Bois demonstrou que a Confederação teria provavelmente ganhado a guerra, não fosse pelas determinadas insurreições de escravos e os danos que elas causaram ao Sul. Através dos anos de aparentemente interminável servidão, os protestos de escravos enfraqueceram a instituição, levando à sua completa queda. Eles provaram que Frederick Douglas estava correto: “Aquele que seria livre deve dar o primeiro golpe” (Douglass, 1863 DOUGLASS , F. Men of Color to Arms!” . North Star , Rochester , mar . 1863 .).
Mesmo após a libertação, contudo, a autodeterminação provou ser algo difícil, uma vez que as severas construções raciais da Era Jim Crow substituíram a escravidão, colidindo com os sonhos de liberdade dos ex-escravos. Como afirmou Du Bois, o regime Jim Crow era a escravidão com um novo nome. No breve período da Reconstrução Pós-Guerra Civil (de 1863 a 1877), um enorme número de ex-escravos foi deixado indefeso, sem armas, terras, riqueza, renda ou abrigo. Após a guerra, o governo nacional retirou as forças que protegiam os escravos, deixando a aristocracia branca sulista perdedora livre para recapturar ex-escravos e forçá-los ao trabalho com novas formas de extrema exploração econômica, política e social (Morris, 1984MORRIS, A. Origins of the civil rights movement: Black Communities Organizing for Change. Nova York: The Free Press, 1984 .). O regime Jim Crow permitiu que brancos capitalistas do Sul levassem os negros de volta às plantações, forçando-os a trabalhar em troca de uma compensação que mal gerava uma renda de subsistência, num sistema de débito servil. Como possuidores de fração da terra cultivada, os antigos escravos ficavam endividados perante seus antigos senhores, presos num sistema de contabilidade que tornava impossível o acúmulo de dinheiro suficiente para se tornarem economicamente independentes ou providenciarem abrigo e comida de forma adequada às suas famílias. Sob o regime Jim Crow, as elites brancas prosperaram, e as classes trabalhadoras brancas continuaram a servir como intermediárias raciais, possuindo uma renda um pouco maior do que aquela obtida por negros. Tais disparidades raciais de renda e o bônus do privilégio racial foram suficientes para desencorajar a união entre trabalhadores brancos e negros em uma classe (Du Bois, 1935 DU BOIS , W. E. B. Black Reconstruction in America . Nova York : Henry Holt , 1935 .). O regime em questão correspondia a um sistema tripartite de dominação (Morris, 1984MORRIS, A. Origins of the civil rights movement: Black Communities Organizing for Change. Nova York: The Free Press, 1984 .), uma vez que controlava os negros política, social e economicamente. Durante as nove décadas do regime Jim Crow, os negros do Sul não possuíam direitos políticos que os brancos devessem respeitar. A exclusão dos negros significava que eles não podiam participar como jurados em júris populares, nem eleger membros da classe política. Sem direitos políticos, as pessoas negras não podiam proteger seus interesses. Além disso, elas eram constantemente restringidas, política e socialmente, por ameaças constantes de terror, inclusive linchamento.
A dominação racial que os negros vivenciaram sob o regime Jim Crow foi pessoal e humilhante. O sistema estabelecia uma rígida segregação racial entre brancos e negros. Ao analisar tal forma de dominação, Morris (1999MORRIS, A. A retrospective on the Civil Rights Movement: political and intellectual landmarks. Annual review of Sociology, v. 225, p. 517-539, 1999 ., p. 518) concluiu:
O sistema Jim Crow trabalhou para estampar nos negros a ideia de que estes constituíam uma população subordinada, ao forçá-los a viver em uma sociedade separada e inferior [...] os negros tinham de utilizar banheiros separados, frequentar escolas separadas, sentar-se no fundo de ônibus e trens, dirigir-se a brancos enquanto eram tratados de forma desrespeitosa, jurar com bíblias diferentes em um tribunal, comprar roupas sem experimentá-las antes, passar por mesas ‘apenas para brancos’ após adquirirem comida, e viajar sem dormir, pois hotéis não os hospedavam.
Economicamente, trabalhos de “brancos” e “negros” eram divididos em termos de ocupações e remuneração. As ocupações negras eram as mais sujas, mais perigosas, tinham as piores remunerações e eram desprotegidas por sindicatos, os quais tinham uma postura discriminatória com os negros. Quando Du Bois examinou as dificuldades econômicas dos negros sob a égide do regime Jim Crow, ele concluiu que, “ser um homem pobre é difícil, mas ser uma raça pobre numa terra de dólares é a mais profunda das dificuldades” (Du Bois, 1903 DU BOIS , W. E. B. Souls of black folk . Chicago : A. C. McClurg , 1903 ., p. 6).
Assim, a vigência formal do regime Jim Crow, que perdurou por nove décadas, correspondeu a um sistema brutal de dominação racial, legitimado pela lei, pela violência e pelos costumes. Por conta dele, em meados do século XX, as enormes populações negras nos Estados Unidos eram pobres, sem teto, tinham baixo índice de escolaridade e batalhavam contra a intimidação produzida pela violência. Ainda assim, tal como fizeram durante a escravidão, os negros nos EUA resistiram ao regime Jim Crow desde o princípio. Tal resistência teve início no final do século XIX e persistiu durante o século XX. Boicotes, ações judiciais, marchas e outras formas de resistência, incluindo a proliferação de organizações de protesto, avançaram o ataque contra a segregação e as desigualdades raciais.
A evidência da longa história de protesto negro, que teve início antes da introdução da negritude, passando pelo movimento moderno de direitos civis, levou Morris (1984)MORRIS, A. Origins of the civil rights movement: Black Communities Organizing for Change. Nova York: The Free Press, 1984 . a concluir que a comunidade negra é parte de uma duradoura tradição de protesto. A partir de tal tradição, emergiram grandes organizações de protesto, incluindo o Movimento Niágara, em 1905, a Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor, em 1909, a Associação Unida de Melhoria, em 1914, e o Movimento da Marcha em Washington, em 1941. Em meados do Século XX, numerosas vitórias em pequena escala começaram a deteriorar as fundações do regime Jim Crow. De toda sorte, para que o regime caísse, um grande movimento de massa era necessário. Em 1950, ele seria confrontado e viria a ruir.
Um sistema de dominação pode perdurar, pois monopoliza o poder enquanto rende os dominados, os não empoderados. Na metade da década de 1950, a segregação de Jim Crow era a ordem social suprema no Sul, mantendo os negros na posição mais inferior da hierarquia racial. Ainda assim, os desafios ao regime Jim Crow tornavam-se visíveis. A Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu, em maio de 1954, que escolas racialmente segregadas eram inconstitucionais – e isso deu esperança às pessoas negras de que a segregação racial estava no leito de morte. Todavia, em agosto do ano seguinte, Emmett Till, de quatorze anos, foi linchado na cidade de Money, no Mississippi. A brutalidade do assassinato, a bravura da mãe de Till (que deixou o caixão aberto, para que todos pudessem ver os horrores sofridos pelo seu filho), e a absolvição de dois homens brancos, que eram obviamente culpados pelo crime racista, deixaram a comunidade negra agitada. Contudo, um momento de virada ocorreu em 1º de dezembro de 1955, quando se iniciou um boicote a um ônibus em Montgomery, Alabama, após a detenção de Rosa Parks, que havia se recusado ceder seu assento num ônibus para um homem branco. O Movimento dos Direitos Civis moderno havia ali começado.
Na década de 1950, a comunidade negra havia passado por considerável urbanização em razão da migração de negros do Sul para as cidades do Norte, e instituições urbanas, em especial a igreja, eram mais fortes e mais capazes de mobilizar e apoiar um movimento de massa contra o regime Jim Crow (Morris, 1984MORRIS, A. Origins of the civil rights movement: Black Communities Organizing for Change. Nova York: The Free Press, 1984 .). O boicote ao ônibus em Montgomery teve como base essas instituições e organizações comunitárias negras e logo evoluiu para um movimento de massa. Liderado pelo carismático líder Martin Luther King Jr., o movimento escolheu o método de ação direta não violenta como uma tática principal para derrotar o regime Jim Crow. Também nova para o movimento foi a mobilização em massa. Em tempos anteriores à ação de Montgomery, as lutas antirracistas tendiam a ser iniciadas por indivíduos ou travadas por poucos litigantes e advogados na justiça. O boicote ao ônibus se diferenciou enormemente de tais esforços: ele envolveu as massas negras diretamente numa atividade organizada que pretendia perturbar o status quo . O Reverendo James Lawson, um grande estrategista do movimento, explicou a diferença que fez a ação direta de massa não violenta: “Muitas pessoas, quando sofrem e veem seu povo sofrendo, querem participação direta. Então, você põe nas mãos de todos os tipos de pessoas comuns uma alternativa positiva à impotência e à frustração. Essa é uma das grandes coisas da ação direta” (Lawson, 1978 apud Morris, 1984MORRIS, A. Origins of the civil rights movement: Black Communities Organizing for Change. Nova York: The Free Press, 1984 ., p. 124).
Martin Luther King, concordando com Lawson, explicou como o poder da perturbação foi utilizado para a obtenção da mudança: “A ação direta não violenta objetiva criar uma crise e estabelecer uma tensão criativa, de modo que uma comunidade que sempre se recusou a negociar é forçada a confrontar a questão” (King JR., 1963KING JR., M. L. Letter from a Birmingham Jail. Liberation: an independent monthly, v. 8, n. 4, 1963 ., p. 1).
Assim, o boicote ao ônibus mudou inteiramente a lógica da resistência antirracista, e o sucesso de tal ação foi confirmado com o término da segregação nos ônibus de Montgomery. Partindo de tal vitória, grandes ações diretas não violentas passaram a incluir outros boicotes, grandes marchas, sit-ins , detenções em massa, demonstrações em massa e outras técnicas deliberativamente criadas para incomodar a ordem do regime Jim Crow. A ação direta não violenta modificou a distribuição de poder entre os dominadores e os dominados em razão da sua capacidade de perturbar a ordem social de forma simples e eficiente. Sistemas de dominação perduram, pois monopolizam o poder nas mãos daqueles em posições altas e impõem uma ausência de poder aos dominados. Os movimentos sociais podem gerar a força necessária para a mudança através da mobilização; uma comunidade faz um pacto para explicitamente recusar que as coisas funcionem como sempre. Os participantes do Movimento dos Direitos Civis aperfeiçoaram o uso efetivo de ações diretas não violentas a partir de meados da década de 1950 e na década de 1960. Quando grandes mobilizações forçaram o governo federal a passar a Lei de Direitos Civis de 1964, a qual baniu todas as formas de segregação racial, uma grande vitória contra o regime de Jim Crow foi finalmente alcançada. Outras mobilizações, em 1965, fomentaram a adoção, pelo governo federal, da Lei de Direitos de Voto, a qual trouxe a inclusão dos negros do Sul e retirou outro pilar do regime Jim Crow, que vedava a participação política de pessoas negras.
Se, por um lado, tais conquistas foram notáveis, por volta de 1955 ficava claro que a remoção das barreiras estabelecidas pelo regime Jim Crow não excluiria os efeitos de séculos de opressão econômica e social que debilitara pessoas negras, suas economias e comunidades. Uma intervenção direta, na forma de ação afirmativa, era necessária para que fosse endereçada essa privação e, em 1965, o Presidente Johnson apoiou sua adoção para que fossem remediadas as dificuldades sofridas pelas pessoas negras, tendo afirmado:
Mas Liberdade não é suficiente. Não se podem varrer as cicatrizes de séculos ao dizer: ‘Agora vocês estão livres para ir para onde quiserem, fazer o que quiserem, e escolher os líderes que lhes agradam’. Não se pega uma pessoa que, por anos, ficou acorrentada e a liberta, trazendo-a para a linha de início de uma corrida, dizendo: ‘Você está livre para competir com todos os outros’, acreditando-se que tal situação é justa. Assim, não é suficiente apenas abrir os portões da oportunidade. Todos os nossos cidadãos precisam ter a possibilidade de caminhar por esses portões (Johnson, 1965JOHNSON, L. B. Commencement Address at Howard University: “To Fulfill These Rights”, june 4, 1965 .).
Em apenas uma década, o Movimento dos Direitos Civis tinha derrubado o regime formal de Jim Crow e aberto a possibilidade de execução de medidas tangíveis que eram necessárias para a equalização da qualidade de vida entre as raças. A queda do regime certamente abriu a oportunidade para novas possibilidades, incluindo a eleição de Barack Obama, o primeiro presidente negro dos Estados Unidos, quatro décadas mais tarde.
Como resta claro a partir da seção anterior, que descreve as diferenças entre a vida de não brancos e brancos, os EUA ainda sofrem com dimensões relevantes de racismo que continuam intocadas, apesar do sucesso dos movimentos. Europeus e pessoas brancas de ascendência europeia oficialmente rotularam os negros americanos como uma raça inferior, ao implementarem a escravidão na América do Norte, e tal rótulo perdura. Essa marca se tornou útil para justificar séculos de opressão contra homens e mulheres negros em uma terra que alegava sustentar os ideais de democracia e liberdade (Morris, 2015MORRIS, A. The scholar denied: W. E. B. Du Bois and the Birth of Modern Sociology. Oakland: University of California Press, 2015 .). De fato, a dominação racial persistiu, tal como a ideia de inferioridade negra. Confrontando tal questão, Martin Luther King comentou: “Pessoas negras vêm sendo mantidas sob opressão e privação por uma cortina de fumaça envenenada [...] a lógica torta propagava que, se o homem negro era inferior, ele não era oprimido – seu lugar na sociedade era apropriado para seu escasso talento e intelecto” (King JR., 1968KING JR., M. L. Honoring Dr. Du Bois. Freedomways, v. 8, n. 2, spring 1968 ., p. 1).
Um resultado danoso da tese de inferioridade negra foi a internalização de tal mentira por muitas pessoas negras nos EUA. Era difícil para os negros, de fato, escapar de tal internalização, devido à grande abrangência da tese em questão em várias instituições norte-americanas, incluindo a mídia, o mercado de trabalho, as escolas e universidades, concursos de beleza, sendo que visões da supremacia branca estavam presentes em cada um desses contextos. Mas um novo movimento – o Movimento Black Power – surgiu no final da década de 1960 e no início da década de 1970, para erradicar a tese de inferioridade negra e para buscar o poder, em vez de uma mera integração racial. Esse Movimento defendia um novo modo de se olhar para a negritude: “Negro é lindo” (“Black is beautiful”). Tal tema já se fazia presente nas obras de acadêmicos negros anteriores, incluindo Du Bois, Jessie Fauset e o historiador Carter G. Woodson. Também era um tema central na arte e na literatura do movimento de Renascimento do Harlem, na década de 1920. Similarmente, o Movimento Garvey, da década de 1920, contribuiu para essa perspectiva empoderada, ao promover o orgulho negro. O Movimento Black Power popularizou essa perspectiva nas massas, lutando pelo estabelecimento de Estudos Negros (“Black Studies”), especialmente em universidades, explorando nobres heranças negras presentes na Diáspora Africana.
O Movimento Black Power defendia o controle comunitário da polícia e o empoderamento econômico como parte de sua luta para o ganho real de poder e para levá-lo às comunidades negras. De tal forma, bem como de outras, ele era diferente de movimentos anteriores e, de modo específico, contrastava significativamente com o Movimento de Direitos Civis, não violento, pois o Black Power insistia na ideia de autodefesa. Durante esse período, um grande número de rebeliões urbanas (negativamente rotuladas por brancos como “motins”) ocorreu, geralmente em resposta à brutalidade policial perpetrada contra vítimas desarmadas. O assassinato de líderes do movimento, incluindo Malcolm X, King, e boa parte da liderança do Partido das Panteras Negras, também serviu para incendiar o protesto negro. Posteriormente, o Movimento Black Power revelou a grande magnitude das disparidades raciais no Norte. Formalmente, o regime Jim Crow pode não ter afetado o Norte, mas a segregação racial e a opressão, de fato, encontravam-se espalhadas pelas cidades nortistas. Tal como no movimento sulista não violento, o Movimento Black Power obteve concessões do governo, apesar de ser difícil traçar sua origem diretamente do movimento.
Nos Estados Unidos do século XXI, a escravidão e a opressão legal do regime de Jim Crow estão rigidamente proibidas por lei. De fato, a discriminação racial é amplamente considerada como politicamente incorreta, mesmo no contexto atual, no qual a direita intolerante tem tido mais espaço, em razão do apoio explícito e tácito do 45º Presidente dos Estados Unidos. A maioria dos brancos nos EUA acredita que o racismo é uma coisa do passado e crê que ser chamado de “racista branco” é algo inexprimível e horrível. Mesmo no ambiente mais gentil dos anos de Obama, vimos negros ficarem bem atrás de brancos no que diz respeito às chances de uma melhor qualidade de vida. Em outros termos, a desigualdade racial institucionalizada é prevalente nos EUA, e talvez seja até óbvia. Ainda assim, nos Estados Unidos, não é fácil tratar do racismo de forma aberta. A desigualdade, o ânimo e a violência racistas são amplamente difundidos, mas falar do assunto não é algo tolerado. Parece inaceitável para uma sonora parcela da população que alguém ajoelhe em silêncio, enquanto o hino nacional é tocado antes de uma partida esportiva, para dar atenção ao silêncio do próprio governo quanto aos homicídios frequentes de pessoas negras e desarmadas, cometidos por policiais (Branch, 2017 BRANCH , J. The Awakening of Colin Kaepernick . The new york times . 2017 . Disponível em: < https://www.nytimes.com/2017/09/07/sports/colin-kaepernick-nfl-protests.html> . Acesso em: 31 jul. 2018 .
https://www.nytimes.com/2017/09/07/sport...
). E aparentemente não importa que a face do movimento tenha sido considerada a “Pessoa do Ano de 2017” pela revista Time (Gregory, 2017 GREGORY , S. The short list: no. 6, person of the year 2017: Colin Kaepernick, The quarterback who upended the NFL without taking a snap . Time magazine . 2017 . Disponível em: < http://time.com/time-person-of-the-year-2017-colin-kaepernick-runner-up/> .Acesso em: 1º ago. 2018 .
http://time.com/time-person-of-the-year-...
). Contradições entre atos claramente racistas e um maior silêncio da sociedade quanto à injustiça racial têm desafiado acadêmicos a compreenderem o que parece ser um novo regime de opressão racial. Acadêmicos têm atribuído vários nomes a tal fenômeno, incluindo “racismo simbólico” (Kinder; Sears, 1981KINDER, D. R.; SEARS, D. O. Symbolic racism versus racial threats to the good life. Journal of personality and Social Psychology, v. 40, p. 414-431, 1981 .), “racismo laissez faire ” (Bobo; Kluegel; Smith, 1996 BOBO , L. ; KLUEGEL , J. R. ; SMITH , R. A. Laissez-Faire racism: the crystallization of a kinder, gentler, antiblack ideology . In: TUCH , S. A. ; MARTIN , J. K. ( Ed .) . Racial attitudes in the 1990s: continuity and change . Westport : Praeger , 1996 .), “racismo sem distinção de cor” (Bonilla-Silva, 2006 BONILLA-SILVA , E. Racism without Racists: color-blind racism and the persistence of racial inequality in America . Lanham : Rowman & Littlefield publishers , 2006 .) e “novo Jim Crow” (Alexander, 2010 ALEXANDER , M. The new Jim Crow: mass incarceration in the age of colorblindness . Nova York : The New Press , 2010 .). Todas essas perspectivas concordam que o racismo continua sendo uma clara realidade nos EUA contemporâneos, que se faz presente num amplo discurso público somente de formas mais furtivas.
A pobreza concentrada em bairros negros e em áreas degradadas, as quais lembram colônias internas, continua a ser um problema perturbador e persistente. Em tais localidades, residentes negros e pessoas de cor vivenciam altos índices de desemprego, escolas inferiores, alta criminalidade, intensa violência e altos níveis de encarceramento. Essas áreas das cidades dos EUA lembram favelas da América do Sul e de outras localidades do mundo onde se concentram os pobres. O problema assustador é que não há soluções óbvias à vista que possam imediatamente transformar tais cidades negras devastadas nos EUA. Do ponto de vista do poderoso, essas favelas estão “fora da vista” e “fora da mente”, não merecendo qualquer atenção ou injeção de recursos aptos a transformá-las. Ainda assim, mesmo as pessoas de cor com uma boa qualidade de vida vivenciam o racismo rotineiramente e estão bem atrás de seus pares brancos, especialmente no que diz respeito à riqueza, uma vez que são incapazes de transferir recursos através das gerações, devido a uma inexistência de heranças, gerada pelo legado da escravidão e pelo regime Jim Crow.
Atualmente, encontros violentos com a polícia advindos da sujeição criminal racial ( racial profiling ) ocorrem diariamente durante atividades rotineiras, havendo problemas relevantes raciais que necessitam ser resolvidos nos EUA do século XXI. A fim de proteger os interesses de grupos dominantes, a vigilância e o policiamento dos pobres e oprimidos constituem altas prioridades. Atividades criminosas baseadas em uma economia subterrânea compensam a inexistência de empregos viáveis, mas também justificam (nas mentes dos brancos dominantes) os altos índices de vigilância policial em comunidades negras e de cor, onde tais pessoas sofrem com a sujeição criminal, e incessantes abordagens para revista ( stop-and-frisk ). Essas práticas, conduzidas muitas vezes por policiais brancos, criam interações hostis e até mesmo violentas entre agentes de controle social e pessoas de cor. Ademais, levam a detenções em massa, ferimentos e até mesmo à morte. O número de assassinatos de jovens negros – e, cada vez mais, também de mulheres negras – tem se tornado um barômetro pelo qual o clima racial é medido (Crenshaw, 1989 CRENSHAW , K. W. Demarginalizing the intersection of race and sex: a black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics . University of Chicago legal forum , n. 1 , p. 139 - 167 , 1989 .). Independentemente da existência de evidências, raramente há condenações de policiais que causam ferimentos ou matam pessoas negras e de cor. Cada uma das absolvições causa revolta, pois elas revelam a injustiça e o caráter tendencioso do sistema de justiça criminal e da sociedade em si (Van Cleve, 2016VAN CLEVE, N. G. Crook county: racism and injustice in America’s largest criminal court. Stanford: Stanford University Press, 2016 .).
Novos movimentos sociais, incluindo o Dream Defenders, o Black Lives Matter e o #SayHerName foram organizados para a confrontação do moderno regime racista norte-americano, dando nomes às vítimas e perpetradores, compartilhando notícias de violência antinegra e de desigualdade racial, e educando o público para que todos nós tomemos nota do que ocorre. Tais movimentos foram desenvolvidos como uma resposta ao grande número de assassinatos de jovens negros nas mãos de policiais absolvidos pela justiça, ainda que houvesse ampla evidência para condenar tais agentes. Os assassinatos de Trayvon Martin, Michael Brown, Sandra Bland e dezenas de outros jovens negros levaram diretamente à formação de tais novos movimentos, os quais diferem substancialmente de movimentos anteriores havidos durante a escravidão e o regime Jim Crow. Nos movimentos atuais, a liderança feminina é central, uma característica não usualmente encontrada em movimentos pretéritos, que foram liderados por figuras simbolizadas por King e Malcolm X. Esses novos movimentos também incluem lideranças gays e queer, contrastando com movimentos anteriores, os quais tinham fortes elementos homofóbicos ou temiam que a participação gay pudesse deslegitimar sua luta. Os novos movimentos antirracistas também optaram pela descentralização da liderança no lugar da burocratização e de processos decisórios formais; eles resistem a estratégias “de cima para baixo” e utilizam amplamente as redes sociais para a mobilização e para a organização de suas estratégias (Fleming; Morris, 2015 FLEMING , C. M. ; MORRIS , A. Theorizing Ethnic and Racial Movements in the Global Age: Lessons from the Civil Rights Movement . Sociology of race and ethnicity , jan . 2015 .). Finalmente, os novos movimentos antirracistas tendem a ter objetivos limitados, buscando, por exemplo, o fim da violência policial e do encarceramento em massa.
A questão que perdura é se tais movimentos serão bem sucedidos. Eles enfrentam assustadores desafios, incluindo o de poderem sustentar a si próprios, devido à sua organização ser solta e suas práticas decisórias serem informais. A situação racial nos EUA também atinge acadêmicos e ativistas de cor, que têm dificuldades para tratar de questões de raça e racismo em instituições de ensino superior que são predominantemente brancas. Eles sofrem mais com o esgotamento ( burnou t) e com a “fadiga da batalha racial”, devido à complexidade de seu trabalho e do seu senso de urgência sobre o estado de injustiça racial (Gorski, 2018 GORSKI , P. C. Racial battle fatigue and activist burnout in racial justice activists of color at predominately white colleges and universities . Race ethnicity and education , p. 1 - 20 , 2018 . Disponível em: < https://doi.org/10.1080/13613324.2018.1497966> . Acesso em: out. 2018 .
https://doi.org/10.1080/13613324.2018.14...
). Talvez o grande desafio enfrentado por ativistas contemporâneos, tanto de dentro quanto de fora da academia, seja a possibilidade de movimentos antirracistas, amplamente organizados através das redes sociais, obterem, em comunidades negras e comunidades aliadas, a solidariedade e a confiança necessárias para impulsionar o ativismo de alto risco. Compete a cada geração de ativistas enfrentar novas demandas e desafios que precisam ser endereçados suficientemente para que mudanças sociais ocorram. Somente o tempo nos dirá se essa nova geração, constituída de jovens negros ativistas e seus apoiadores, vai derrubar mais um regime de racismo norte-americano. Se o passado é um prólogo, o racismo norte-americano continuará a ser vigorosamente objeto de resistência, com cada vitória levando a uma união mais perfeita.
CONCLUSÕES
Neste artigo, expusemos um panorama e uma análise do estado das relações raciais nos Estados Unidos da América. Enquanto existem aqueles que, na academia norte-americana, tendem a sustentar a ideia de que raça é uma construção social, demonstramos que muitos norte-americanos, especialmente pessoas de cor, enfrentam a realidade da desigualdade racial. Negros, latinos e asiáticos vivem de forma desigual, se comparados aos brancos, os quais creem que perdem quando ocorrem ganhos para os não brancos. Tais brancos se opõem às ações afirmativas, alegando que elas promovem “discriminação reversa”. A ironia é que a ação afirmativa beneficiou, de forma desproporcional, brancos norte-americanos, em especial mulheres brancas (Crenshaw, 2006 CRENSHAW , K. W. Framing Affirmative Action . Mich. L. rev. first impressions , v. 105 , n. 123 , 2006 .). Mas, como demonstramos, são os não brancos que sofrem com as dinâmicas raciais que permeiam as instituições centrais norte-americanas – economia, política, família, sistema de justiça criminal, cultura e interações sociais –, produzindo enormes desigualdades sociais e sofrimento humano.
Nos EUA, as disparidades raciais em termos de renda, riqueza, bairros de residência, educação, pobreza, encarceramento, saúde e expectativa de vida são gritantes. Ao observarmos os dados, chegamos à conclusão de que a realidade de raças desiguais, enraizada na escravidão racial, ainda permeia a sociedade norte-americana. Ainda assim, muitos brancos contemporâneos, especialmente aqueles em posições de elite, veementemente negam a existência do racismo nos Estados Unidos, pois, para eles, a sociedade se tornou indistinta quanto às cores das pessoas, tal como desejava Martin Luther King. Pessoas de cor, por outro lado, continuam a sofrer economicamente, vivenciam exclusão de registros eleitorais, sofrem com negativas para votar em cabinas de votação, morrem nas ruas nas mãos da polícia e do seu próprio povo, e se encontram presas nas amarras da pobreza e do desespero. A eleição de Donald Trump para a presidência dos EUA estimulou brancos racistas a emergirem de cada canto da sociedade, resistindo a quaisquer propostas que promovam mudança na questão racial. Por certo, a violência racial branca e a intolerância são agora abertamente demonstradas de modo jamais visto no passado recente. Em razão de o sistema atual de opressão racial, nos Estados Unidos, ter tais deletérios efeitos sobre pessoas de cor, um acadêmico, totalmente ciente dos efeitos opressores da escravidão e do regime Jim Crow, descreveu-o como produtor de uma nova baixa nas relações raciais norte-americanas (Cha-Jua, Sundiata, prestes a ser publicado).
Contudo sistemas racialmente opressivos não são naturais, tampouco inevitáveis. A resistência ao racismo ocorreu durante a escravidão racial, no regime Jim Crow e ocorre no período contemporâneo no qual a opressão é menos formal, mas, de qualquer maneira, formidável. Subalternos raciais podem resistir, resistiram, desconstruíram o racismo, e continuarão a fazê-lo. Suas experiências de vida contam a verdade sobre as desigualdades raciais, e eles se organizam para localizar recursos, energia e conhecimentos necessários para resistir e derrubar, de forma efetiva, a opressão. Com recursos, organização e perspicácia, a ação coletiva antirracista é possível. Historicamente, a resistência negra pela liberdade efetivamente derrubou a escravidão e o regime Jim Crow. Ao fazê-lo, inspirou movimentos globais de pessoas que buscam seus sonhos de liberdade. Os desafios da população negra continuam a existir nos EUA, estimulando-a a lutar pela sua liberdade em um dos períodos mais obscuros da nação. Esperamos que Dr. King (“Our God is marching on” march 25, 1965) esteja certo: “O arco do universo moral é longo, mas ele se inclina em direção à justiça”.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
03 Jun 2019 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2019
Histórico
-
Recebido
27 Ago 2018 -
Aceito
13 Nov 2018