Resumos
A eleição presidencial de 2022 foi a mais competitiva das já realizadas no país. Em uma disputa com resultados tão incertos, detalhes pouco considerados em pleitos passados poderiam fazer diferença para o resultado. Entre esses, a abstenção eleitoral ganhou um destaque especial nos dois turnos. A crença de que a taxa de comparecimento poderia influenciar o resultado da eleição orientou os coordenadores das campanhas de Lula e Bolsonaro a agir em favor do comparecimento eleitoral ao longo da reta final da campanha. Este trabalho analisa as taxas de comparecimento e o perfil sociodemográfico dos eleitores que foram às urnas e os que se abstiveram do pleito nos dois turnos em 2022. Também analisaremos o perfil daqueles que justificam o voto. Os resultados apontam que a taxa de comparecimento das eleições de 2022 (79% no primeiro turno, 80% no segundo turno) é semelhante à de eleições anteriores. A novidade é que o percentual dos eleitores que compareceram no segundo turno foi, pela primeira vez, superior aos do primeiro turno.
Eleições; Comparecimento; Voto; Democracia; Abstenção
The 2022 presidential election was the most competitive ever held in the country. In a contest with such uncertain outcomes, details that were often overlooked in past elections could make a difference in the result. Among these, voter abstention gained special attention in both rounds. The belief that voter turnout could influence the election outcome guided the campaign coordinators of Lula and Bolsonaro to act in favor of voter turnout during the final stretch of the campaign. This study analyzes the turnout rates and sociodemographic profile of the voters who went to the polls and those who abstained from voting in both rounds in 2022. We will also examine the profile of those who justified their vote. The results indicate that the voter turnout rate in the 2022 elections (79% in the first round, 80% in the second round) is similar to previous elections. The novelty is that the percentage of voters who turned out in the second round was, for the first time, higher than that of the first round.
Elections; Turnout; Vote; Democracy; Abstention
L’élection présidentielle de 2022 a été la plus compétitive jamais organisée dans le pays. Dans une compétition aux résultats si incertains, des détails souvent négligés lors des élections passées pourraient faire la différence dans le résultat. Parmi ceux-ci, l’abstention des électeurs a suscité une attention particulière lors des deux tours. La conviction que la participation électorale pourrait influencer le résultat des élections a guidé les coordinateurs de campagne de Lula et Bolsonaro à agir en faveur de la participation électorale au cours de la dernière phase de la campagne. Cette étude analyse les taux de participation et le profil sociodémographique des électeurs qui se sont rendus aux urnes et de ceux qui se sont abstenus de voter lors des deux tours en 2022. Nous examinerons également le profil de ceux qui ont justifié leur vote. Les résultats indiquent que le taux de participation aux élections de 2022 (79 % au premier tour, 80 % au second tour) est similaire à celui des élections précédentes. La nouveauté réside dans le fait que le pourcentage d’électeurs ayant participé au second tour était, pour la première fois, supérieur à celui du premier tour.
Élections; Participation; Vote; Démocratie; Abstention
A eleição presidencial de 2022 foi a mais competitiva das já realizadas no país. Em uma disputa com resultados tão incertos, detalhes pouco considerados em pleitos passados poderiam fazer diferença para o resultado. Entre esses, a abstenção eleitoral ganhou um destaque especial nos dois turnos. A crença de que a taxa de comparecimento poderia influenciar o resultado da eleição orientou os coordenadores das campanhas de Lula e Bolsonaro.
Os dirigentes do PT temiam que o aumento da abstenção na Região Nordeste, particularmente nas cidades mais pobres e nos bairros periféricos das grandes cidades, prejudicasse a candidatura de Lula, por isso fizeram campanha pelo comparecimento eleitoral.1 1 Campanha de Lula teme alta abstenção no 1º turno e usará TV para incentivar voto, Folha de São Paulo, 14/09/2022. Com o intuito de aumentar a taxa de comparecimento, prefeitos das capitais e o governador do Distrito Federal garantiram a gratuidade no transporte público no dia em que o segundo turno foi realizado.2 2 Capitais e Distrito Federal terão passe-livre para os eleitores, Poder 360, 29/10/2022. Ainda no primeiro turno, a campanha de Bolsonaro, aproveitando da norma que assegurava que o comparecimento eleitoral passaria a servir como prova de vida, divulgou um vídeo convocando os aposentados e os pensionistas (teoricamente mais favoráveis ao candidato do PL) a comparecer para votar.3 3 Uma portaria do INSS de 3 de fevereiro de 2022 assegurou que o comparecimento às eleições serviria como uma forma de pensionistas e aposentados darem prova de vida. A premissa de que a abstenção poderia influenciar os resultados das eleições chegou ao extremo na ação da Polícia Rodoviária Federal que no dia da votação em segundo turno parou centenas de ônibus em diversos estados, a maioria deles na Região Nordeste, com o intuito de dificultar o acesso dos eleitores (majoritariamente pró-Lula) às seções eleitorais.4 4 PRF multiplica abordagens de ônibus neste domingo de eleição e descumpre decisão de Moraes, Folha de São Paulo, 30/10/2022.
Como todos os eleitores entre 18 e 70 anos inscritos são obrigados a comparecer, é razoável esperar que a taxa de abstenção não varie muito quando comparamos os diversos grupos sociais e as diferentes áreas do país. Mas essa não foi a premissa que orientou a ação política e nem a análise dos resultados das eleições de 2022. Os cientistas políticos Antônio Lavareda e Felipe Nunes, por exemplo, sustentaram que a abstenção desigual foi um dos fatores determinantes para explicar os erros dos prognósticos dos institutos de pesquisa de opinião para o primeiro turno das eleições presidenciais.5 5 Lavareda responde a ataque a pesquisas e explica discrepâncias, Folha de São Paulo, 15/10/2022 ; CEO da Quaest: saldo das pesquisas foi positivo. UOL, 04/11/2022.
Será que determinadas características do eleitorado, tais como sexo, faixa etária e escolaridade, estiveram associadas a diferenças níveis de comparecimento eleitoral em 2022? Responder a essa pergunta é o principal objetivo deste artigo. Para esse fim, utilizei os dados da Justiça Eleitoral que mostram a taxa de abstenção segmentada segundo algumas características do eleitorado.
O segundo objetivo do artigo é analisar o perfil dos eleitores que justificaram a sua ausência nas eleições de 2022. Quem se abstém tem até 60 dias após o dia do pleito para justificar. A Justiça Eleitoral também divulga a estatística do perfil desses eleitores, o que nos permite observar se existem diferenças no perfil de quem justifica o voto.
Qualquer análise com dados oficiais de eleições é limitada pela forma como a estatística eleitoral é disponibilizada. No que diz respeito à abstenção, os dados são segmentados por sexo, faixa-etária e escolaridade no âmbito municipal. Desse modo, podemos apenas fazer uma análise descritiva dos dados. O artigo se beneficia da disponibilidade desses dados, para, pela primeira vez, mapear o perfil sócio-demográfico dos eleitores que compareceram às eleições presidenciais no Brasil. Outra novidade é o uso de estatísticas dos eleitores que justificam a sua ausência nas eleições.
O QUADRO GERAL DO COMPARECIMENTO ELEITORAL NO BRASIL
No Brasil, a Justiça Eleitoral, a imprensa e a comunidade acadêmica privilegiam as informações dos eleitores que não foram votar (taxa de abstenção). Seguindo a tradição dos estudos internacionais sobre participação eleitoral, optei por enfatizar os que foram votar (taxa de comparecimento).6 6 Em Portugal, também é hábito reportar a taxa de abstenção. Talvez, venha daí a tradição brasileira de privilegiar a taxa dos que não compareceram. Ver: (Cancela, 2018). Por razão de estilo, às vezes uso abstenção no texto, mas todos os dados apresentados se referem ao percentual dos que compareceram sobre o total de eleitores inscritos. Para o leitor que prefere observar a abstenção, a conta é simples: basta subtrair de 100%, o percentual de comparecimento; por exemplo, uma taxa de comparecimento de 80% é igual a uma taxa de abstenção de 20%.
As pesquisas sobre comportamento eleitoral realizadas em outras democracias tradicionalmente incluem na amostra os eleitores que não compareceram às urnas. Desse modo, é possível comparar as eventuais diferenças entre o perfil dos que comparecem com o dos que se abstiveram (Franklin, 2014FRANKLIN, M. N.Voter Turnout and the Dynamics ofElectoral Competition in Established Democracies since1945. Cambridge: Cambridge University Press, 2014.; Leighley and Nagler, 2014LEIGHLEY, J. E.; NAGLER, J.Who votes now? demographics,issues, inequality and turnout in the United States.Princeton: Princeton University Press, 2014). No Brasil, a pesquisa eleitoral mais importante, o Estudo Eleitoral Brasileiro (ESEB), que é realizada desde 2002, também entrevista todos os eleitores, mas como o número de respondentes que não compareceram é relativamente baixo, há um limite estatístico para uma comparação mais acurada entre os dois grupos; a pesquisa ESEB de 2022, por exemplo, ouviu 2001 pessoas e apenas 284 declararam não ter comparecido às urnas. Esse limite talvez seja uma explicação para que tenhamos tão poucos estudos no Brasil sobre o perfil dos eleitores que não comparecem utilizando dados de pesquisa de opinião (Borba, 2008BORBA, J. As bases sociais e atitudinais da alienaçãoeleitoral no Brasil.Revista Debates, v. 2, n. 2, p. 134-157,2008.; Silva, 2022SILVA, E. C. A.Alheamento eleitoral: um estudo sobreo segundo turno da eleição presidencial de 2018.Florianópolis: Monografia de Conclusão de graduação em Ciências Sociais (UFSC), 2022.).7 7 Uma outra tradição de estudos investigou a variação da taxa de abstenção em determinadas unidades territoriais (municípios e estados). Para um trabalho recente, que faz uma ampla revisão da literatura e dos dados em nível municipal e estadual, ver:(Speck and Peixoto, 2022).
Desde o começo dos anos 2010, o TSE tem disponibilizado a estatística da abstenção segundo algumas características dos eleitores (sexo, faixa etária, escolaridade e estado civil). As categorias de cada uma das variáveis são definidas pelo TSE, e a unidade mínima de informação apresentada é o município.8 8 Uma exceção é as eleições de 2012, cujos resultados foram disponibilizados por indivíduo. Os dados foram obtidos pelos cientistas políticos Gabriel Cepalune e Daniel e Hidalgo e serviram como base para um artigo publicado por eles (Cepaluni and Hidalgo, 2016). Para esse trabalho, importei e organizei os dados dos dois turnos das eleições de 2022 disponibilizados no site da instituição.
A taxa de comparecimento nas eleições presidenciais brasileiras é bastante estável. A Figura 1 mostra o percentual de comparecimento nos dois turnos das nove eleições presidenciais realizadas entre 1989 e 2022 (não houve segundo turno em 1994 e em 1998). A taxa mais alta de comparecimento (88% no primeiro turno e 92% no segundo turno) aconteceu nas eleições de 1989, a primeira após o fim do Regime Militar.9 9 As eleições de 1989 aconteceram próxima ao recadastramento geral de eleitores implementado em 1986. Desse modo, o cadastro de eleitores não era afetado pelas distorções produzidas pelos mortos não retirados da listagem e pela inclusão de eleitores migrantes que não ajustavam seu domicílio eleitoral. As duas eleições seguintes foram vencidas por Fernando Henrique no primeiro turno e tiveram uma taxa de comparecimento menor: 82% em 1994 e 78% em 1998. Entre 2002 e 2022, o comparecimento mantém-se em torno de 80%, com um leve declínio na taxa do primeiro turno. As eleições de 2022 foram as primeiras em que o comparecimento do segundo turno superou o do primeiro.
Assim que acaba de digitar suas escolhas na urna eletrônica, o eleitor recebe um pequeno pedaço de papel que serve como prova de seu comparecimento. Em cada seção eleitoral, no fim de um dia de votação, dezenas de recibos deixam de ser destacados do caderno de votação, indicando o total de eleitores que não compareceram para votar. Quem são essas pessoas que não comparecem? Por que razão elas não foram votar? Em que pese a ausência de pesquisas sobre quais são as motivações dos que se abstém, é possível criar uma classificação dos que não compareceram em quatro tipos: a) mortos não retirados do cadastro; b) eleitores cujo voto é facultativo; c) eleitores que se abstém e justificam a ausência; d) eleitores que se abstém e não justificam a ausência.
Os cartórios de registro civil informam mensalmente à Justiça Eleitoral os casos de óbitos registrados. Em 2020 foi criado o INFODIF (sistema de informação de óbitos e direitos políticos) que facilita a comunicação entre os cartórios e o TSE. No passado, quando a comunicação não era feita por via informatizada, em muitos municípios, a retirada dos mortos do cadastro era feita com lentidão, o que acabava superestimando a abstenção. Ainda que não existam pesquisas sobre a eficiência da comunicação entre os cartórios e a Justiça Eleitoral, tudo indica que devido aos aperfeiçoamentos na comunicação, os óbitos não afetam mais a taxa de abstenção.10 10 Segundo Daniel Galuch, técnico do Tribunal Regional Eleitoral do Paraná e especialista na legislação eleitoral brasileira: “Depois que os cadernos de votação são impressos e enviados para os cartórios eleitorais, informações dos eleitores que morreram em agosto e setembro são acrescentadas, apontado na listagem que esses estão impedidos de votar.” Informações passadas por consulta pessoal.
No Brasil, existem três grupos para os quais o voto é facultativo: analfabetos, jovens de 16 e 17 anos e eleitores de 70 anos ou mais. Os analfabetos não são obrigados a se registrar como eleitores, e nem comparecer para votar. Em 2022, o número de analfabetos sobre o total de inscritos inscritos foi de 11.7%. No mesmo ano, a taxa de adultos analfabetos (15 anos ou mais) foi a metade desse valor (5,6%).11 11 Em 2022, analfabetismo cai, mas continua mais alto entre idosos, pretos e pardos e no Nordeste, Agência Ibge, 07/06/2023. A discrepância entre os dois números pode indicar uma defasagem da escolaridade no cadastro eleitoral, já que os avanços educacionais dos eleitores nem sempre são atualizados, ou decorrem de diferentes maneiras de o TSE e o IBGE medirem o analfabetismo.12 12 A escolaridade é declarada pelo eleitor no momento de inscrição eleitoral. Ele só precisa comprovar a escolaridade, caso seja candidato, já que os analfabetos não podem concorrer a cargos públicos.
A inscrição e o voto também são facultativos para jovens de 16 e 17 anos. Esse segmento é reduzido em relação ao eleitorado brasileiro (em 2022 eles representavam apenas 2,3% dos inscritos). Como a decisão de se inscrever é facultativa, a expectativa é que os jovens cadastrados tenham interesse nas eleições e compareçam para votar. Ao completar os 70 anos o eleitor tem a opção de não votar; ou seja, ele não terá que pagar multa ou comprovar que votou, caso não compareça. Com o rápido envelhecimento do eleitorado, o grupo de eleitores com pelo menos 70 anos cresce a cada eleição. Em 2022, o total de eleitores nessa faixa chegou ao expressivo número 26,6%.
Podemos estimar o total de ausentes em cada um dos segmentos apontados. No primeiro turno, o total de eleitores que se absteve foi de 32.739.105. O total de analfabetos que não compareceu chega a 3.037.078. Entre os eleitores de 16 e 17 anos, o total de ausentes foi de apenas 361.308. O maior contingente dos que se abstiveram estava na faixa de 70 anos ou mais (8.765.894), mas desses precisamos retirar os que já foram contados como analfabetos (1.981.394), resultando em 6.784.500.
Se somarmos os analfabetos, os jovens de 16 e 17 anos e os idosos alfabetizados chegamos a 10.178.886 (31% dos que se abstiveram) no primeiro turno de 2022. O total dos que, embora obrigados, não compareceram foi de 22.560.219. Desse modo, a composição da abstenção do primeiro turno de 2022 é a seguinte: cerca de ⅓ de eleitores pertencem ao grupo dos eleitores para quem o voto não é obrigatório e cerca de 2 ⁄ 3 ao grupo dos que eram obrigados a comparecer, mas não o fizeram.
A TAXA DE COMPARECIMENTO EM 2022
Sabemos que as mulheres representam a maioria do eleitorado (em 2022 elas representavam 53% dos inscritos), mas existe alguma diferença quando comparamos a taxa de comparecimento de homens e mulheres? Em 2022, a taxa de comparecimento feminina no primeiro turno foi de 80% e a dos homens de 78%; no segundo turno o comparecimento feminino manteve-se em 80% e a masculino subiu para 79%. Portanto, além de serem maioria no eleitorado, as mulheres também comparecem proporcionalmente mais do que os homens. Esse mesmo padrão foi verificado em uma análise exploratória dos dados de 2018, mas só estudos mais aprofundados podem mostrar as razões dessa diferença.13 13 Fiz essa análise prévia dos dados de 2018, mas não publiquei os resultados. Eles devem ser incorporados em um trabalho mais amplo sobre o tema que estão sendo elaborado.
A estatística publicada pelo TSE segmenta o eleitorado em determinadas faixas etárias. Para esse trabalho, essas faixas foram reagrupadas, destacando as duas para as quais o voto é facultativo. Três dados chamam a atenção na Figura 2, que mostra a taxa de comparecimento, segundo a idade nos dois turnos das eleições de 2022. O primeiro é o comparecimento relativamente baixo (se levarmos em conta o fato de a inscrição ser facultativa) dos jovens de 16 e 17 anos. A segunda é a queda na taxa de comparecimento do eleitorado de 70 anos ou mais; nos dois turnos menos da metade desse segmento compareceu às urnas. Por fim, vale destacar a baixa taxa de comparecimento dos eleitores de 18 a 29 anos, que nos dois turnos foi a menor entre os que são obrigados a comparecer. Não temos estudos sobre abstenção juvenil em eleições anteriores, mas a baixa participação dos jovens, vai de encontro à visão tradicional que sempre associa a juventude a um alto interesse por política e eleições.
A declaração da escolaridade é feita no momento em os cidadãos tiram o título de eleitor. Os novos eleitores são basicamente jovens de 16, 17 e 18 anos, que nessa idade estão, no máximo, cursando os primeiros anos do ensino superior. À medida que o indivíduo progride em termos escolares, seu nível escolar fica defasado em relação ao declarado no momento de sua inscrição. Por essa razão, a escolaridade do eleitorado provavelmente acaba ficando subestimada em relação à escolaridade da população adulta. Ocasionalmente, quando transfere o título para outro município, o eleitor corrige essa defasagem. O mesmo acontece quando toda a população de uma cidade passa por um processo de recadastramento; por exemplo, nas cidades em que houve recadastramento biométrico a escolaridade do eleitorado foi ajustada.
Como o objetivo deste trabalho é comparar a taxa de comparecimento de cada segmento escolar, a defasagem entre o nível de escolaridade do eleitorado e da população adulta têm um efeito marginal na análise. A Figura 3 mostra o percentual de comparecimento eleitoral por nível educacional nos dois turnos de 2022. O primeiro dado que chama a atenção é que não há grandes diferenças na participação nos dois turnos. O comparecimento é muito menor entre os analfabetos, que não são obrigados a votar.
A Justiça Eleitoral criou um nível escolar que não está presente nos dados do IBGE: os que sabem ler e escrever. Se eles não estão entre os eleitores que têm fundamental incompleto é porque eles não frequentaram a escola. Apesar da singularidade dessa classificação, o que importa é observar a reduzida participação desse segmento, que é superior a dos analfabetos, mas inferior aos que têm o fundamental incompleto. No outro extremo, estão os eleitores que completaram o ensino superior, com uma taxa de comparecimento de 88%.
A Figura 3 mostra que o nível escolar é decisivo para o comparecimento eleitoral: quanto maior é a faixa educacional, maior tende a ser a participação. Esse padrão também é encontrado em democracias que utilizam o voto facultativo (Plutzer et al., 2017PLUTZER, E.et alDemographics and the social bases ofvoter turnout. In:The Routledge Handbook of Elections,Voting Behavior and Public Opinion. New York: Routledge,2017. p. 69-82.). A expectativa dos estudiosos é que essa desigualdade aconteça em países que utilizam o voto compulsório. Esse é inclusive o argumento dos defensores da obrigatoriedade do voto (Gallego, 2015GALLEGO, A.Unequal Political Participation Worldwide.Cambridge: Cambridge University Press, 2015.; Kouba and Mysicka, 2019KOUBA, K.; MYSICKA, S. Should and Does CompulsoryVoting Reduce Inequality?SAGE Open, v. 9, n. 1, 2019.; Lijphart, 1997LIJPHART, A. Unequal Participation: democracy'sunresolved dilemma.American Political Science Review, v.91, n. 1, p. 1-14, 1997.).
Os dados oficiais ainda nos permitem observar as possíveis diferenças na participação de homens e mulheres, segundo a faixa etária e de escolaridade. Como os dados dos dois turnos são semelhantes, resolvi privilegiar a apresentação dos resultados do primeiro. A Figura 4 mostra o percentual de comparecimento segundo o sexo e a faixa etária. As mulheres comparecem em maior número até a faixa de 50 a 59 anos; com destaque para a diferença na faixa de jovens (18 e 29 anos), onde a diferença chega a 5 pontos percentuais. No segmento de 70 anos ou mais, os homens comparecem mais do que as mulheres. O que explicaria essa queda da participação feminina entre as eleitoras mais idosas? Provavelmente, um dos fatores, é a grande presença neste segmento de mulheres de baixa escolaridade (que são as que menos comparecem).
As mulheres que frequentaram a escola compareceram mais que os homens no primeiro turno de 2022 (ver Figura 5). Em cinco das seis faixas, a diferença foi de 2 pontos percentuais – a exceção foi o ensino médio incompleto, onde a diferença chegou a 4 pontos. Entre os analfabetos e os que sabem ler e escrever os homens compareceram em maior número.
Um dado que chama a atenção quando olhamos conjuntamente as Figuras 4 e 5 é que os homens comparecem mais nos segmentos em que o voto não é obrigatório (analfabetos e eleitores com 70 anos ou mais). Provavelmente esses fatores estão associados, já que há um grande contingente de analfabetos entre as mulheres idosas. Mas existe uma hipótese relativa a ser melhor investigada, que diz respeito a como cada grupo lida com a obrigação do voto: Será que as mulheres são mais ciosas do fato de serem obrigadas a votar?
QUEM JUSTIFICOU O VOTO NO PRIMEIRO TURNO?
O eleitor que não comparece às urnas tem até sessenta dias após a eleição para fazê-lo. Caso queira justificar no dia da eleição, ele pode procurar uma seção eleitoral (ou os lugares designados pela Justiça Eleitoral), ou fazê-lo por meio digital, por intermédio do e-título. O e-título é um aplicativo para celulares, que começou a ser utilizado nas eleições de 2018. O eleitor que não votou e nem justificou a ausência é obrigado a pagar uma multa de valor irrisório (até R$ 3,51, em 2023), caso queira estar apto para votar na eleição seguinte, ou precise em alguma situação (para tirar e renovar o passaporte, por exemplo) mostrar que está em dia com suas obrigações eleitorais.
No primeiro turno de 2022, 6,9 milhões de eleitores justificaram a abstenção, número que representa 21% dos que não compareceram. A pergunta que orientou a análise sobre o comparecimento também orientará a análise dessa seção: Será que existe alguma diferença no percentual dos que justificam o voto, quando comparamos a faixa etária, a escolaridade e o sexo dos eleitores? Para respondê-la, precisei calcular o total dos que justificaram a ausência sobre o total de eleitores de cada segmento que se absteve. A conta é relativamente simples, mas não é apresentada no site da Justiça Eleitoral.
A Figura 6 mostra o percentual de eleitores que justificou o voto no primeiro turno, por sexo e faixa etária. A segmentação etária da figura 6 não é a mesma da Figura 2 porque o TSE utiliza critérios diferentes para segmentar a idade nos dois bancos de dados. Embora o voto seja facultativo, um número reduzido de eleitores de 16, 17 e de 70 anos ou mais justificaram a sua ausência no primeiro turno de 2022. Entre os que são obrigados a comparecer (de 18 a 69 anos) o contingente de mulheres que justificam o voto é sempre maior, com destaque para as duas faixas que concentram as mais jovens (de 18 a 24 anos e de 25 a 34 anos), onde a diferença chega a 9 pontos percentuais.
Para além do pagamento de uma multa irrisória, o eleitor que não comparece às eleições e não justifica o voto é afetado em duas situações especiais. A primeira delas é que ele necessita comprovar que votou ou justificou a sua ausência para poder requerer ou renovar o seu passaporte. A mesma exigência é feita na inscrição em concursos públicos. Atualmente, a Polícia Federal exige que eleitores demonstrem estar em dia com suas obrigações eleitorais para requerer e renovar o passaporte, mas não há como verificar se os diversos concursos realizados no país fazem a mesma exigência. De qualquer modo, as duas exigências atingem, particularmente, os eleitores de maior escolaridade e renda. Por isso é razoável esperar que eles tenham maior incentivo para justificar o voto.
A Figura 7 mostra que, de fato, a taxa de justificativa está associada positivamente às faixas de escolaridade. Quase metade dos eleitores com curso superior completo justificaram a ausência das urnas no primeiro turno de 2022; já entre os eleitores com fundamental incompleto, o percentual é de apenas 1/6 dos que faltaram.
O percentual de justificativa segundo o nível escolar tem um interessante componente de gênero. A taxa de homens que justificaram a ausência é maior entre os eleitores de escolaridade mais baixa (até o fundamental completo), mas é inferior nas faixas de alta escolaridade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os dados apresentados nesse artigo vão ao encontro à expectativa de alguns atores políticos que previamente às eleições de 2022 que sustentaram que a que a taxa de comparecimento variaria, os diversos grupos sociais (sexo, faixa etária e nível de escolaridade) são comparados. Os achados empíricos deste artigo sobre o comparecimento eleitoral nessa eleições podem ser resumidos nos seguintes tópicos:
- A taxa de comparecimento das eleições de 2022 (79% no primeiro turno, 80% no segundo turno) é semelhante à de eleições anteriores. A novidade é que o percentual dos eleitores que compareceram no segundo turno foi, pela primeira vez, superior aos do primeiro turno.
- A faixa etária não é um fator que tenha distinguido significativamente o comparecimento eleitoral em nenhum dos dois turnos. Destaque apenas para o fato de uma queda acentuada da participação na faixa de eleitores que não são mais obrigados a votar (70 anos ou mais).
- A visão corrente associa a juventude a um maior ativismo político; por isso a expectativa que jovens sejam mais interessados por política e participem em maior número das eleições. Essa expectativa não foi confirmada nas eleições de 2022. Entre os que são obrigados a votar, o segmento juvenil (de 18 a 29 anos) foi o que menos compareceu nos dois turnos. Pesquisas sobre o comparecimento eleitoral em eleições anteriores podem mostrar se esse é um fenômeno do pleito de 2022, ou já podia ser observado em eleições anteriores.
- A taxa de comparecimento das mulheres (80%) foi 2 pontos percentuais superior à dos homens (78%) no primeiro turno, e um 1 ponto percentual (80% a 79%) superior no segundo turno. As mulheres de todas as faixas etárias até os 59 anos compareceram mais do que os homens. As mulheres de todos os níveis escolares (com exceção da dos analfabetos e dos que apenas sabem ler e escrever) também comparecem mais do que os homens.
- Nos dois turnos de 2022, a participação eleitoral foi claramente afetada pela educação: quanto maior o nível escolar dos eleitores, maior a taxa de comparecimento. As diferenças entre os segmentos praticamente se repetem nos dois turnos.
O fato de observarmos uma expressiva diferença entre os segmentos educacionais é um dado relevante que contradiz uma das premissas dos defensores do voto obrigatório. Nos países que utilizam o voto facultativo há uma desigualdade na participação eleitoral, com um menor comparecimento de eleitores de menor renda e mais baixa escolaridade e pertencentes a determinados grupos minoritários. Em contraste, os países com voto obrigatório garantiriam uma maior equidade na participação eleitoral.
Os dados de 2022 mostram que essa equidade não existe no Brasil. Apesar de todos serem obrigados a comparecer, os eleitores de baixa escolaridade (e provavelmente os de menor renda) compareceram em grau muito inferior ao dos que têm ensino superior incompleto ou completo. Obviamente, pode-se argumentar que se não fosse a obrigatoriedade essa desigualdade seria ainda mais forte. Mas essa é apenas uma suposição. Pesquisas de opinião realizadas recentemente mostram que a disposição ao comparecimento eleitoral estaria mais associada ao interesse por política do que a características demográficas dos eleitores (Aguiar, 2018 AGUIAR, N. Voto facultativo no Brasil e reforço dedesigualdades: apoio a cotas raciais e participação não-eleitoral entre eleitores involuntários.Teoria & Pesquisa:Revista de Ciência Política, v. 27, n. 2, p. 95-121, 2018.; Aguiar and Casalecchi, 2021AGUIAR, N. N.; CASALECCHI, G. What if the vote wereoptional? Expectation for voluntary electoral participationin Brazil and the role of socioeconomic status.OpiniãoPública, v. 27, n. 1, p. 261-297, 2021.; Nicolau, 2022NICOLAU, J. Quem iria votar se não fosse obrigado?O papel do interesse pela política no comparecimentoeleitoral no Brasil.Revista de Sociologia e Política, v. 30,p. e008, 2022..).
Uma contribuição deste trabalho foi apresentar o perfil dos que justificaram o voto no primeiro turno. Em linhas gerais, a justificativa segue o padrão observado no comparecimento eleitoral. O percentual de mulheres que justificaram sua ausência é muito superior ao dos homens. Essa superioridade é conhecida em todas as faixas etárias de 16 a 69 anos, e nos segmentos mais escolarizados (a partir do ensino médio incompleto). Os homens de baixa escolaridade justificam mais do que as mulheres.
Até recentemente, as pesquisas sobre abstenção eleitoral no Brasil concentravam-se exclusivamente na dimensão territorial, já que esses eram os únicos dados disponibilizados pela Justiça Eleitoral. Desse modo, era possível comparar, por exemplo, as diferenças de abstenção dos municípios e estados. Nos últimos anos, o site do TSE começou a publicar dados agregados segundo o sexo, a faixas de idade e de escolaridade. Apesar dos limites dos dados apresentados de maneira agregada, eles abrem caminho para que conheçamos novas dimensões da participação eleitoral no Brasil. Esse é o primeiro esforço de exploração desses dados. A comparação com os mesmos dados de eleições passadas pode mostrar se algumas diferenças observadas em 2022 são uma singularidade daquela eleição, ou se há fatores estruturais que permanecem ao longo do tempo.
REFERÊNCIAS
- AGUIAR, N. Voto facultativo no Brasil e reforço dedesigualdades: apoio a cotas raciais e participação não-eleitoral entre eleitores involuntários.Teoria & Pesquisa:Revista de Ciência Política, v. 27, n. 2, p. 95-121, 2018.
- AGUIAR, N. N.; CASALECCHI, G. What if the vote wereoptional? Expectation for voluntary electoral participationin Brazil and the role of socioeconomic status.OpiniãoPública, v. 27, n. 1, p. 261-297, 2021.
- BORBA, J. As bases sociais e atitudinais da alienaçãoeleitoral no Brasil.Revista Debates, v. 2, n. 2, p. 134-157,2008.
- CANCELA, J.Abstenção e participação em Portugal:diagnóstico e hipóteses de reforma. Cascais: CâmaraMunicipal de Cascais, 2018.
- CEPALUNI, G.; HIDALGO, F. D. Compulsory votingcan increase political inequality: Evidence from brazil.Political Analysis, v. 24, n. 2, p. 273-280, 2016.
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1
Campanha de Lula teme alta abstenção no 1º turno e usará TV para incentivar voto, Folha de São Paulo, 14/09/2022.
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2
Capitais e Distrito Federal terão passe-livre para os eleitores, Poder 360, 29/10/2022.
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3
Uma portaria do INSS de 3 de fevereiro de 2022 assegurou que o comparecimento às eleições serviria como uma forma de pensionistas e aposentados darem prova de vida.
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4
PRF multiplica abordagens de ônibus neste domingo de eleição e descumpre decisão de Moraes, Folha de São Paulo, 30/10/2022.
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5
Lavareda responde a ataque a pesquisas e explica discrepâncias, Folha de São Paulo, 15/10/2022 ; CEO da Quaest: saldo das pesquisas foi positivo. UOL, 04/11/2022.
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6
Em Portugal, também é hábito reportar a taxa de abstenção. Talvez, venha daí a tradição brasileira de privilegiar a taxa dos que não compareceram. Ver: (Cancela, 2018CANCELA, J.Abstenção e participação em Portugal:diagnóstico e hipóteses de reforma. Cascais: CâmaraMunicipal de Cascais, 2018.).
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7
Uma outra tradição de estudos investigou a variação da taxa de abstenção em determinadas unidades territoriais (municípios e estados). Para um trabalho recente, que faz uma ampla revisão da literatura e dos dados em nível municipal e estadual, ver:(Speck and Peixoto, 2022SPECK, B. W.; PEIXOTO, V. D. M.Participação eleitoralnas disputas nacionais, estaduais e municipais no Brasil(1998-2020).Revista Brasileira de Ciência Política, n. 39,p. 1-42, 2022.).
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8
Uma exceção é as eleições de 2012, cujos resultados foram disponibilizados por indivíduo. Os dados foram obtidos pelos cientistas políticos Gabriel Cepalune e Daniel e Hidalgo e serviram como base para um artigo publicado por eles (Cepaluni and Hidalgo, 2016CEPALUNI, G.; HIDALGO, F. D. Compulsory votingcan increase political inequality: Evidence from brazil.Political Analysis, v. 24, n. 2, p. 273-280, 2016.).
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9
As eleições de 1989 aconteceram próxima ao recadastramento geral de eleitores implementado em 1986. Desse modo, o cadastro de eleitores não era afetado pelas distorções produzidas pelos mortos não retirados da listagem e pela inclusão de eleitores migrantes que não ajustavam seu domicílio eleitoral.
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Segundo Daniel Galuch, técnico do Tribunal Regional Eleitoral do Paraná e especialista na legislação eleitoral brasileira: “Depois que os cadernos de votação são impressos e enviados para os cartórios eleitorais, informações dos eleitores que morreram em agosto e setembro são acrescentadas, apontado na listagem que esses estão impedidos de votar.” Informações passadas por consulta pessoal.
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Em 2022, analfabetismo cai, mas continua mais alto entre idosos, pretos e pardos e no Nordeste, Agência Ibge, 07/06/2023.
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A escolaridade é declarada pelo eleitor no momento de inscrição eleitoral. Ele só precisa comprovar a escolaridade, caso seja candidato, já que os analfabetos não podem concorrer a cargos públicos.
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13
Fiz essa análise prévia dos dados de 2018, mas não publiquei os resultados. Eles devem ser incorporados em um trabalho mais amplo sobre o tema que estão sendo elaborado.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
05 Jul 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
26 Jul 2023 -
Aceito
30 Dez 2023