Open-access DESIGUALDADES SOCIAIS E ESPACIALIDADES DA COVID-19 EM REGIÕES METROPOLITANAS

SOCIAL AND SPATIAL INEQUALITIES OF COVID-19 IN METROPOLITAN REGIONS

INÉGALITÉS SOCIALES ET SPATIALIES DE LA COVID-19 AUX RÉGIONS MÉTROPOLITAINES

Resumos

As grandes cidades brasileiras passaram, nos últimos anos, por importantes transformações em sua estrutura social. Trata-se de um urbano marcado por disputas, lutas e conflitos que revelam a presença de formas precárias de vida, de trabalho e de habitação geradas pela lógica capitalista de produção do espaço. Nesse contexto, a pandemia da Covid-19 construiu padrões de disseminação socioterritorial que evidenciaram a presença nas cidades de grupos sociais de grande vulnerabilidade. Este texto analisa os impactos da Covid-19 sobre a desigualdade de renda e a vulnerabilidade social nas principais regiões metropolitanas brasileiras. Consideram-se como principais indicadores para a análise o Coeficiente de Gini e o percentual dos indivíduos vivendo em domicílios com rendimento per capita mensal de até ¼ de salário-mínimo. A metodologia contempla revisão bibliográfica dos conceitos e categorias analisados e levantamento estatístico de dados sociodemográficos e econômicos.

Palavras-chave: Metrópoles; Covid-19; Desigualdades; Vulnerabilidade; Pobreza


The biggest Brazilian cities have undergone important changes in their social structure in recent years. It is an urban area marked by disputes, struggles, and conflicts that reveal the presence of precarious forms of life, work, and housing generated by the capitalist logic of space production. In this context, the COVID-19 pandemic built patterns of socio-territorial dissemination that evidenced the presence in cities of social groups of great vulnerability. This text analyzes the impacts of COVID-19 on income inequality and social vulnerability in the main Brazilian metropolitan regions. The Gini coefficient and the percentage of individuals living in households with monthly per capita income of up to ¼ of the minimum wage are considered as main indicators. The methodology includes a literature review of the concepts and categories analyzed and a statistical survey of socio-demographic and economic data sources.

Keywords: Metropolis; COVID-19; Inequalities; Vulnerability; Poverty


Les grandes villes brésiliennes ont subi des importants changements dans leur structure sociale ces dernières années. C'est une zone urbaine marquée par des disputes, des luttes et des conflits, qui révèlent la présence de formes de vie, de travail et de logement précaires générées par la logique capitaliste de production spatiale. Dans ce contexte, la pandémie de COVID-19 a construit des schémas de diffusion socio-territoriale qui ont mis en évidence la présence dans les villes de groupes sociaux de grande vulnérabilité. Ce texte analyse les impacts du COVID-19 sur les inégalités de revenus et la vulnérabilité sociale dans les principales régions métropolitaines brésiliennes. Le coefficient de Gini et le pourcentage d'individus vivant dans des ménages dont le revenu mensuel par habitant ne dépasse pas ¼ du salaire minimum sont considérés comme des indicateurs principaux. La méthodologie comprend une revue de la littérature des concepts et des catégories analysés et une enquête statistique sur les sources de données sociodémographiques et économiques.

Mots-clés: Métropole; COVID-19; Inégalités; Vulnérabilité; Pauvreté


INTRODUÇÃO

As grandes transformações por que passaram as cidades brasileiras de diferentes tamanhos, tanto em áreas metropolitanas como distantes de polos de dinamismo regional, trouxeram impactos para a estrutura social, as atividades econômicas, as relações culturais e políticas, demandando um novo olhar sobre o fenômeno urbano. Trata-se de um urbano marcado por disputas, lutas e conflitos, que revelam a presença de formas precárias de vida, trabalho e habitação geradas pela lógica capitalista de produção do espaço e, principalmente, pelo aumento da pobreza.

As barreiras econômicas, culturais e sociais criadas para evitar a interação entre os diferentes grupos sociais e o uso limitado dos espaços públicos denotam a característica mais evidente da segregação socioespacial em nossas cidades – a fragmentação do tecido social urbano – que interfere nas formas de percepção e apropriação da cidade por quem nela habita, trabalha e vive.

Essa situação, já bastante limitadora em termos do acesso aos bens e serviços urbanos pelo conjunto de sua população, foi agravada a partir de 2020, com a eclosão da pandemia da Covid-19, que afetou profundamente os mais pobres. De modo geral, a pandemia deteriorou a situação econômica e elevou o desemprego em todas as regiões do país, resultando na piora da distribuição de renda e na diminuição da renda média mensal, impactando mais forte e diretamente a população de baixa renda, que vive nos limites da sobrevivência e enfrenta os mais diversos tipos de risco e de vulnerabilidades. Foi essa população a mais exposta ao risco da pandemia, pelas condições de adensamento de suas moradias, pela predominância do trabalho informal ou formal compreendido como essencial (que não pôde, portanto, ser realizado de modo remoto) e pelo próprio adensamento do entorno no caso das favelas e dos cortiços, que cresceram demasiadamente em todas as regiões metropolitanas brasileiras (Bógus; Magalhães, 2020).

Este artigo tem como principal objetivo analisar os impactos da Covid-19 em algumas das principais regiões metropolitanas (RMs) brasileiras, a saber: Salvador, Fortaleza, Manaus, Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife e Distrito Federal. Adotou-se como critério para a seleção dessas metrópoles a localização regional, os indicadores das desigualdades sociais ali presentes e a elevação dos níveis de pobreza em anos recentes, buscando compreender como as desigualdades potencializaram os efeitos da pandemia, tornando-a ainda mais devastadora e letal, especialmente para os grupos sociais de maior vulnerabilidade.

Analisaremos, em um primeiro momento, como os principais indicadores de desigualdade oscilaram nos últimos anos, especialmente desde o início da pandemia, em março de 2020 (Salata; Ribeiro, 2022). Essa reflexão será nosso pano de fundo para a análise proposta para as RMs, onde novas espacialidades da pobreza emergiram nas últimas décadas, evidenciando a natureza desigual não apenas do processo de produção social do espaço, como também da própria expansão da pandemia.

A pandemia da Covid-19 encontrou, nas áreas metropolitanas, um ambiente muito propício para sua disseminação, especialmente em razão de dois fatores fundamentais: as condições de moradia caracterizadas em grande medida por precariedade e adensamento excessivo, impossibilitando qualquer estratégia mais efetiva de isolamento social; e as condições de trabalho com enorme contingente da população dedicada ao trabalho informal e ao trabalho precário. Para esta parcela significativa da população brasileira, o “home office” foi uma impossibilidade, o que certamente contribuiu para a disseminação do novo coronavírus (Bógus; Magalhães, 2020).

As desigualdades, além de vulnerabilizarem ainda mais determinados grupos sociais em um contexto de emergência epidemiológica, agravaram-se com o início da pandemia, considerando-se a informalidade e precariedade do trabalho, a demora e interrupções do auxílio governamental emergencial e o crescimento do desemprego em segmentos específicos do mercado de trabalho, especialmente no setor de serviços. Isso sem mencionar o abandono das crianças, que de uma hora para outra se viram privadas do ambiente escolar e da alimentação recebida na escola, muitas vezes a única disponível para os grupos sociais mais pobres.

O reconhecimento da diversidade das dinâmicas que acionam o processo de metropolização no país e das configurações socioespaciais resultantes é fundamental para a construção de estratégias adequadas de desenvolvimento urbano e regional que assegurem o efetivo direito à cidade e a todos os serviços que ela deveria oferecer aos seus cidadãos.

O AUMENTO DA POBREZA NO BRASIL: efeito da pandemia?

Quando se analisam as tendências recentes de nossa economia, considerando o conjunto do território nacional, nota-se que a situação de pobreza voltou aos patamares dos anos 1990, agravada pelo aumento das desigualdades sociais e pelo quadro de crise econômica global, sob o impacto dos efeitos da pandemia.

Dados recentes mostram que o contingente de pessoas pobres com renda domiciliar inferior a R$ 500,00 atingiu, segundo o levantamento da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADc) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2022), 62,9 milhões de brasileiros em 2021, quase 30% da população do país – cerca de 10 milhões de pessoas a mais do que em levantamento realizado em 2019, antes do período da pandemia. A pobreza nunca esteve tão alta no Brasil quanto em 2021, desde o começo da série histórica do levantamento em 2012, configurando, segundo alguns autores, uma nova década perdida (Neri, 2022).

O empobrecimento da população, aliado ao processo de segregação socioespacial e às transformações urbanas recentes, incluindo alterações nas dinâmicas demográfica e econômica, é particularmente importante para a compreensão da natureza estrutural do processo de fragmentação do espaço urbano, com a proliferação dos espaços de pobreza e exclusão social, que favoreceu o processo de expansão da pandemia. Nesse sentido, a pandemia de Covid-19 e as vulnerabilidades demonstram um condicionamento mútuo que produz importantes diferenciais no padrão da mortalidade. As condições sociais, por exemplo, condicionam padrões etários da mortalidade por Covid-19 específicos nas grandes regiões brasileiras. Oliveira (2021, p. 188) aponta que:

os diferenciais sociodemográficos e regionais e a presença de comorbidades influenciam na complicação e decorrente óbito por Covid-19. As estimativas da razão de chance mostram que o risco de morte de um idoso, quando comparado ao de um jovem, é 26 vezes maior no Brasil […] sendo tal diferença 11,8 vezes no Norte […] e 40,4 vezes no Centro-Oeste.

Nas RMs, a pandemia teve início nas áreas ricas, com melhores condições de vida e maior fluxo de contatos com o exterior, e atingiu rapidamente as áreas pobres e muito precárias, tanto na periferia mais distante como nos enclaves centrais de cortiços e favelas, com efeitos devastadores. Se nas áreas de alta renda os idosos eram o grupo de risco, nas áreas pobres e sujeitas a todos os tipos de insegurança, esse risco atingiu um grupo etário diversificado, com registro de mortes por Covid-19 em faixas etárias mais jovens (Associação Brasileira de Estudos Populacionais, 2021).

No caso das metrópoles brasileiras, a análise dos grupos sociais que têm acesso aos recursos e benefícios urbanos revela não apenas predominância de pessoas com nível de ensino superior, como de população ocupada com maior rendimento médio mensal e acesso aos recursos coletivos urbanos, dentre os quais os serviços de saúde e de assistência social. Como se sabe, os efeitos da pandemia foram sentidos mais fortemente nas RMs, devido à maior mobilidade espacial e às dificuldades de isolamento social especialmente nos domicílios pobres e congestionados. Outro efeito sentido mais fortemente nas áreas metropolitanas foi a perda de empregos, a diminuição da renda média mensal e o aumento da informalidade no trabalho.

De fato, o lockdown decretado em sedes metropolitanas e cidades médias, como decorrência do alto contágio, da gravidade dos casos e das restrições do sistema médico-hospitalar, resultou em altas taxas de desemprego, sobretudo para a população com qualificação profissional e escolaridade mais baixas. Para o grupo de trabalhadores manuais, o trabalho remoto não se colocou como possibilidade, e o fechamento do comércio e dos serviços representou a perda da atividade econômica e o aumento da vulnerabilidade e da pobreza (Neri, 2022). Em que pese o importante histórico brasileiro em termos de políticas de transferência de renda (Campelo; Neri, 2014; Kerstenetzky, 2009; Marins et al., 2021; Souza et al., 2019;), a demora e restrição de auxílios do Governo Federal às famílias e às pequenas e médias empresas (maiores empregadoras da força de trabalho no Brasil) agravaram essa situação.

Já a partir de Janeiro de 2020, a pandemia de Covid-19, no contexto global, apresentava os primeiros efeitos sobre a economia brasileira: aumento das incertezas quanto à recuperação econômica; cancelamento ou postergação de investimentos, tanto públicos quanto privados; diminuição ainda mais acentuada do consumo de bens e serviços. A redução da atividade econômica, especialmente na China e na Europa, diminuiu o volume e o preço das exportações do Brasil e, no mercado de trabalho, houve não apenas a redução da produção, como também da jornada de trabalho, com aumento de demissões e do número de falências. No setor financeiro, observou-se a redução do crédito tanto ao setor bancário quanto ao consumidor, tornando assim o investimento ainda mais arriscado e caro (Silva; Silva, 2020).

Não obstante todos esses primeiros efeitos da pandemia de Covid-19 no Brasil, as dificuldades de implementação de auxílio, por meio de políticas públicas de urgência, agravaram a situação de vulnerabilidade das famílias brasileiras. De acordo com Marins et al. (2021, p. 16), essas dificuldades de implementação

passam pela falta de transparência pública sobre as aprovações, reprovações e análises dos cadastros, as demoras em realizar as avaliações e a dificuldade em fazer com que o benefício chegue até as famílias. A estes problemas da implementação, somam-se ainda as dificuldades de acessibilidade digital como: uso do aplicativo, que exige familiaridade com a tecnologia, acesso à internet e posse de smartphones. Além disso, a falta de um canal de atendimento e orientação por telefone, ou mesmo on-line, dificultou a comunicação direta e de possíveis soluções simples de adequação do cadastro. A decisão de implementar o Auxílio Emergencial sem a articulação de estados e municípios, em uma perspectiva de pacto federativo e de descentralização das políticas públicas, também prejudicou ainda mais aqueles que necessitavam do benefício. Outro ponto importante observado no âmbito da implementação foi a ausência de esforços, em nível local, para a busca ativa das pessoas mais vulneráveis nos municípios.

A DISSEMINAÇÃO DA COVID-19 NAS METRÓPOLES BRASILEIRAS

Nesta seção, abordaremos o padrão de disseminação da Covid-19 nas cidades brasileiras e as razões para o vírus ter assumido um caráter metropolitano. Levaremos em consideração resultados de pesquisas anteriores1 sobre a disseminação da Covid-19 em RMs brasileiras,2 bem como de estudos específicos feitos sobre a região metropolitana de São Paulo (RMSP) e a disseminação em direção ao interior. Investigaremos como as desigualdades sócioespaciais incidiram sobre esse padrão de disseminação, agravando um contexto já profundo de vulnerabilidades. Os grupos sociais nessas condições de vulnerabilidade evidenciam os limites das políticas públicas vigentes e a superposição de carências presentes nas cidades de diferentes tamanhos, especialmente nas maiores metrópoles brasileiras.

A análise da disseminação de Covid-19 nas citadas RMs tem como base alguns indicadores epidemiológicos, como o número de casos de óbitos e a taxa de letalidade da doença. Na análise específica sobre a RMSP, abordaremos alguns aspectos sociais que influenciaram diretamente a disseminação da Covid-19 nas regiões, tais como a precariedade das condições habitacionais e de trabalho, e a grande mobilidade espacial da população. A mobilidade humana é, em grande medida, consequência da mobilidade do capital e acompanha a circulação diária, dinâmica e permanente de bens e serviços. Tal circulação se converte, também, no próprio caminho de disseminação da Covid-19 pelas diferentes regiões do país. Analisar a disseminação da Covid-19 exige, com isso, considerar os diferenciais de renda, escolaridade, ocupação, acesso à saúde e bem-estar urbano, que sintetizam condições sociais, econômicas e ambientais da população, especialmente nos municípios metropolitanos.

A Covid-19 teve seus primeiros registros no mundo ainda em dezembro de 2019, na província de Wuhan, capital da província de Hubei, na região central da China. Nos meses seguintes, a doença se espalhou rapidamente pelo continente europeu e pela América do Norte, motivando a Organização Mundial de Saúde (OMS) a declarar oficialmente o caráter pandêmico de transmissão da doença em 11 de março de 2020. No Brasil, desde o início da pandemia de Covid-19, observa-se a importância relativa, tanto em termos de casos como de óbitos da RMSP: o primeiro caso registrado no Brasil, em 26 de fevereiro de 2020, ocorreu na cidade de São Paulo. Foi uma típica ocorrência de transmissão importada – o doente acabara de retornar da Itália, o que indica a grande integração da cidade aos circuitos internacionais de circulação de pessoas. O primeiro óbito registrado no Brasil ocorreu também na cidade de São Paulo, no dia 12 de março de 2020. Duas semanas depois, em 26 de março de 2020, a Fundação Seade inicia sua série de registros de casos e óbitos. Nessa data, já havia 994 casos e 57 óbitos pela doença na RMSP.

A disseminação da Covid-19 na RMSP no início de 2020 revelou aspectos que se repetiriam nas demais RMs, constituindo um padrão de disseminação em três etapas. Na primeira etapa, logo nos primeiros meses da doença, os casos se concentraram no município-polo das regiões, mais fortemente integrados aos corredores globais de circulação de pessoas. A partir da transmissão importada, criaram-se as condições para a transmissão doméstica, que irradiou das pessoas retornadas àquelas mais próximas de seu convívio doméstico e de trabalho. Nesse momento, a Covid-19 se espalha da região central dessas cidades para os bairros periféricos, nos quais a densidade de ocupação do sistema de transporte público foi fator importante para o rápido agravo da disseminação.

Na segunda etapa desse padrão de disseminação, quando a Covid-19 já circulava nas regiões periféricas dessas cidades, ocorre a chamada “interiorização da doença”, especialmente em razão da proximidade das periferias urbanas de diferentes municípios e pela mobilidade intraurbana, principalmente ao longo de rodovias. Nessa etapa, os municípios das RMs com maior nível de integração ao município-polo e os municípios extensão do polo são aqueles mais proporcionalmente afetados, com fortes impactos no aumento da letalidade da doença, tendo em vista a menor capacidade de atendimento médico-hospitalar nessas cidades (Bógus; Magalhães, 2021; Ribeiro et al., 2012).

Por fim, a interiorização da doença atingiu os municípios mais afastados e de menor nível de integração com os municípios-polo. Contribui a isso a pendularidade entre esses municípios e os mais próximos ao município-polo, com a circulação de pessoas em estradas vicinais. Agrava-se ainda mais, nessa etapa, a letalidade da doença, tendo em vista a precária situação de saúde pública e a restrita estrutura de leitos médico-hospitalares em muitos desses municípios. A Covid-19 no Brasil, desde então, assumiu dimensão metropolitana, apenas tendo sido aliviada em alguns momentos pontuais de maior disseminação para municípios não metropolitanos.

DESIGUALDADE E VULNERABILIDADE NAS REGIÕES METROPOLITANAS

A seguir, será abordada a trajetória recente da desigualdade e da vulnerabilidade nas RMs analisadas, entre 2012 e 2022, para avaliar as mudanças observadas no período da pandemia. A definição desse horizonte temporal que contempla os últimos dez anos se justifica pela disponibilidade dos dados sobre desigualdade de renda pelo Coeficiente de Gini e dos dados sobre rendimento médio das famílias brasileiras. Esses dados, extraídos da PNADc, do IBGE, serão utilizados para caracterizar a evolução trimestral no período da desigualdade e da vulnerabilidade, fundamental para compreendermos o comportamento da pobreza nos últimos anos (Neri, 2022).

Por outro lado, a vulnerabilidade – conceito polissêmico de múltiplas dimensões e difícil mensuração – será compreendida a partir do percentual dos indivíduos vivendo em domicílios com rendimento per capita mensal de até ¼ de salário-mínimo (Salata; Ribeiro, 2022). Trata-se de um recorte de renda bastante utilizado no cálculo da pobreza extrema, especialmente em razão das recomendações do Banco Mundial, sendo inclusive o definidor para recebimento do Benefício de Prestação Continuada.

Trata-se de uma proxy da vulnerabilidade que não pretende reduzir essa condição apenas à sua dimensão de renda. Com relação às condições de vulnerabilidade da população de baixa renda, no contexto de neoliberalização da sociedade, vale mencionar os estudos de Moser (1998) e de Katzman e Filgueiras (1999), para quem o enfrentamento da insegurança no bem-estar dependerá dos recursos, em termos de bens e serviços que as pessoas e grupos sociais possuam e tenham condições de mobilizar em situações de crise. Essas análises se referem à possibilidade dos grupos sociais vulneráveis de identificarem não só as ameaças, como as formas de resiliência e de resistência diante dos efeitos negativos de um ambiente de mudanças sociais, políticas, econômicas ou ambientais, que afetam seu cotidiano e sua existência. Aí, a centralidade do indivíduo retira do estado grande parte da responsabilidade pelo bem estar da população, ampliando a mercantilização e a privatização de bens e serviços essenciais, como a saúde e a educação.

Ainda nessa perspectiva e no contexto de neoliberalização da economia e da sociedade,

o desemprego seria explicado pelas capacidades de competição individuais, bem como pelas ocupações precárias, difundidas por relações sociais dominantes de produção. O risco embutido no tempo das escolhas e nos resultados alcançados serviu à naturalização da responsabilização dos indivíduos, testando crescentemente suas condições de adaptação à realidade […]. O neoliberalismo implementado desde 1990, sob a Era dos Fernandos (Collor, 1990-1992 e FHC, 1995-2002), e retomado pelos governos a partir de 2015, dominou não apenas a natureza econômica, como também invadiu praticamente as demais dimensões da vida humana. Assim, o estado… tornou-se incapaz de enfrentar situações graves na saúde pública, como no caso do avanço da pandemia do coronavírus (Pochmann, 2020, p. 56-57).

Antes de analisar como a desigualdade e a vulnerabilidade se comportaram nas RMs estudadas, durante o período da pandemia (primeiro trimestre de 2020 em diante), é importante observar as tendências gerais para o conjunto das principais metrópoles brasileiras.

Gráfico 1
Coeficiente de Gini no conjunto das regiões metropolitanas brasileiras (dados trimestrais, de 2012 a 2022)

A trajetória da desigualdade de renda no Brasil, medida pelo Coeficiente de Gini, revela, nos últimos dez anos, uma tendência de crescimento a partir do ano de 2015 (Salata; Ribeiro, 2022). Nesse ano, a economia brasileira estava mergulhada na sua mais longa, profunda e de difícil recuperação recessão econômica (2014 – 2016). As medidas ortodoxas implementadas foram notadamente pró-cíclicas, agravando os efeitos da recessão. Algumas dessas medidas foram o controle maior na emissão dos benefícios de seguro-desemprego, a redução das desonerações tributárias que, nos anos anteriores, haviam sido fundamentais para o aumento do consumo, do emprego e da própria renda, com efeitos na estrutura de distribuição desta, o acentuado contingenciamento do gasto público (inclusive de gastos relacionados à educação, ciência, tecnologia e auxílio à pesquisa) e a forte redução dos investimentos públicos. Essas medidas, em um cenário de inflação rompendo as metas preestabelecidas, deterioram as condições de distribuição de renda, razão pela qual o Coeficiente de Gini aumentou a partir de 2015 e, especialmente, a partir de 2020, quando se inicia a pandemia de Covid-19.

A recessão econômica de 2014 a 2016 e sua difícil recuperação nos anos seguintes inseriram a economia brasileira em uma estagnação,3 com baixas taxas de crescimento do PIB, redução dos níveis de investimento, colapso do sistema de crédito e elevação do desemprego (De Paula, 2022; Oreiro; De Paula, 2021). A redução do nível de atividade econômica está no centro da elevação das desigualdades sociais e de renda, bem como no aumento da vulnerabilidade e da pobreza. Essa redução tem impactos persistentes sobre o nível de emprego. Assim, a chamada “macroeconomia da estagnação” (Oreiro; de Paula, 2021; De Paula, 2022) tem, no crescimento da taxa de desocupação, uma razão fundamental da deterioração dos indicadores de renda e vulnerabilidade.

O Gráfico 2 mostra o crescimento trimestral da taxa de desocupação da força de trabalho no Brasil a partir do início de 2015. Em outras palavras, essa taxa mais do que dobra entre dezembro de 2014 e março de 2017, quando passa de 6,5% para 13,7%. Com essa elevação, a taxa passa a outro patamar: de entre 5% e 10%, passa a estar entre 10% e 15%.

Gráfico 2
Taxa de desocupação da força de trabalho das pessoas de 14 anos ou mais de idade (2012 a 2022)

Embora os últimos trimestres, em 2021 e 2022, tenham apresentado uma tendência de diminuição da taxa de desocupação, é importante salientar que:

  • esta permanece em patamares elevados, registrando menos de 10% apenas em Maio de 2022, quando atinge 9,8%, o equivalente a 10,6 milhões de pessoas desempregadas (Instituto brasileiro de Geografia e Estatística, 2022);

  • embora a taxa de desocupação esteja diminuindo, é crescente o percentual dos trabalhadores empregados sem carteira de trabalho assinada (a taxa de informalidade passou de 39,5% no primeiro trimestre de 2021 para 40,1% no primeiro trimestre de 2022 (Instituto brasileiro de Geografia e Estatística, 2022);

  • como consequência, apesar da redução da taxa de desocupação, isso não tem impactado na elevação da renda; ao contrário, a renda média dos novos empregos gerados foi, no primeiro trimestre de 2022, 7,2% inferior à renda dos empregos gerados no primeiro trimestre de 2021 (Instituto brasileiro de Geografia e Estatística, 2022).

Cabe ainda mencionar a elevação na taxa de desemprego em faixas etárias jovens, já observada no período 2010-2019 e que registrou aumento expressivo no segundo trimestre de 2021, quando comparada com os dados de 2014. A proporção de jovens nas faixas etárias de 14 a 17 anos e de 18 a 24 anos desempregados era de 20,8% e 15,3%, respectivamente, no segundo trimestre de 2014, aumentando para 43,2% e 29,5%, respectivamente, no segundo trimestre de 2021. Isso pode ser explicado, em parte, pelo aumento do número de jovens à procura de emprego para reforçar o orçamento familiar durante a pandemia. Por outro lado, essas taxas de desemprego contribuíram para o aumento do mercado de trabalho informal, com a prestação de serviços por aplicativos e ocupações por conta própria, muitas vezes mal remuneradas e até aquém da qualificação profissional desses jovens.

A informalidade do trabalho se destaca, assim, como elemento importante na redução da renda e na elevação da sua desigualdade e vulnerabilidade social no Brasil nos últimos anos. De acordo com Vadhat et al. (2022, p. 6):

A informalidade tem se tornado cada vez mais presente na economia brasileira. Depois da crise iniciada em 2014, o nível de informalidade no Brasil passou de quase 34% para 41,6% em 2019, revelando a piora das condições no mercado de trabalho mesmo antes da chegada da pandemia de Covid-19. Com o início da pandemia, em 2020, agregou-se uma camada de complexidade aos desafios que o país já vinha enfrentando, e os trabalhadores informais foram especialmente impactados tanto em seus rendimentos como na própria viabilidade das suas ocupações. Com o fim do isolamento social e a progressiva retomada da atividade econômica, o que tem se observado é que boa parte das ocupações que têm sido criadas no país são informais.

As condições do mercado de trabalho brasileiro explicam a reversão da queda da desigualdade observada no Brasil entre os anos de 2004 e 2014, e seu posterior crescimento. Desde 2015, a desigualdade de renda no país voltou a crescer, e a economia brasileira, que havia saído do Mapa Mundial da Fome em 2014, a ele retorna em 2018. Em 2014, os 50% mais pobres da população brasileira se apropriavam de 5,7% da renda total proveniente do trabalho, ao passo que, no primeiro trimestre de 2019, essa participação caiu para 3,5% (queda de quase 40%). No mesmo intervalo de tempo, os 10% mais ricos da população, que recebiam 49% da renda total do trabalho, passaram a auferir 52% (Oreiro; de Paula, 2021).

Gráfico 3
Percentual dos indivíduos vivendo em domicílios com rendimento per capita mensal de até ¼ de salário-mínimo (dados trimestrais, 2012 a 2022)

O crescimento da taxa de desocupação da força de trabalho afeta diretamente o nível de renda das famílias brasileiras, com crescimento do percentual dos indivíduos vivendo em domicílios com rendimento per capita mensal de até ¼ de salário-mínimo, isto é, dos indivíduos sujeitos à condição de vulnerabilidade.

Embora o percentual dos indivíduos vivendo em domicílios com rendimento per capita mensal de até ¼ de salário-mínimo cresça desde 2015, é no início de 2020, com a pandemia de Covid-19, que esse percentual se acentua, indicando a deterioração da renda das famílias brasileiras.

E, apesar da tendência geral de diminuição desse percentual, no primeiro trimestre de 2022, em todas as RMs contempladas no estudo (Salata; Ribeiro, 2022), existem especificidades regionais importantes quanto à intensidade da elevação do percentual entre 2020 e 2021, conforme se pode verificar no Gráfico 4:

Gráfico 4
Percentual dos indivíduos vivendo em domicílios com rendimento per capita mensal de até ¼ de salário-mínimo em regiões metropolitanas brasileiras (1° trimestre de 2020, 2021 e 2022)

Ao fim de 2019, a renda média mensal das famílias brasileiras era de R$ 1.609,04, o valor mais elevado desde o início de 2012. Houve uma queda abrupta dessa renda nos dois primeiros quadrimestres de 2020, estabilização até meados de 2021 e uma nova queda abrupta desde então. O impacto da pandemia sobre o emprego, as medidas de isolamento sem a devida cobertura do Governo Federal, bem como a demora e a restrição dos auxílios às famílias explicam tanto essa deterioração da renda como o “alívio” a partir de 2021, graças a algumas medidas tardias e a formas de organização solidária da sociedade civil. Essas medidas foram incapazes, no entanto, de reverter a tendência de empobrecimento vigente pelo menos desde 2015.

Cabe ainda ressaltar que o crescimento da pobreza, decorrente também do conjunto de fatores expostos anteriormente, tem regionalidade bastante clara, incidindo principalmente nas grandes regiões Norte e Nordeste, e menos intensamente na região Sul, conforme se observa no Gráfico 5.

Gráfico 5
Proporção de pobres em 2021 conforme unidade da federação (em %

Acompanhando a diversidade geográfica que caracteriza o país, a população pobre cresceu mais em algumas partes do país do que em outras, expressando grande desigualdade social entre as regiões brasileiras. No Gráfico 5, observa-se que a população pobre está mais concentrada nas regiões Norte e Nordeste, apresentando percentuais menores nos estados da região Sul do país. De acordo com os dados da PNAD, a unidade da federação com menor taxa de pobreza em 2021 foi Santa Catarina (10,16%), e a com a maior proporção de pobres foi o Maranhão, com 57,90%. Comparando os dados de 2021 e 2019, o estado onde houve o maior incremento da pobreza em pontos percentuais foi Pernambuco (8,14 pontos percentuais), tendo a queda mais expressiva ocorrido no estado do Tocantins, com 0,95 pontos percentuais (Neri, 2022).

Como esses percentuais expressam, nitidamente, as desigualdades regionais e tendo em vista aprofundar o entendimento de processos ocorridos em algumas das principais RMs do país, analisaremos a seguir a trajetória da desigualdade medida pelo Coeficiente de Gini e pelo percentual dos indivíduos vivendo em domicílios com rendimento per capita mensal de até ¼ de salário-mínimo nos últimos dois anos (primeiro trimestre de 2020 ao primeiro trimestre de 2022), nas regiões selecionadas para análise notadamente Salvador, Fortaleza, Recife, Manaus, Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Distrito Federal. Isso nos auxiliará a compreender as razões da imensa disseminação e letalidade da doença em nosso país durante a pandemia de Covid-19 e as consequências para o aumento da pobreza e da vulnerabilidade de grande parte da população residente nessas áreas.

Salvador

Na Região Metropolitana de Salvador, o Coeficiente de Gini oscilou, entre o primeiro trimestre de 2020 e o primeiro trimestre de 2022, de 0,645 para 0,633, indicando melhorias na distribuição de renda. Ao considerarmos, no entanto, o primeiro trimestre de 2021, o Coeficiente de Gini oscilou para 0,654, o mais elevado naquela região metropolitana nos últimos anos. A oscilação indica piora da distribuição de renda durante o período mais intenso da pandemia e relativa melhora nos primeiros meses de 2022 ocasionada, muito provavelmente, pela reativação da dinâmica econômica e pelo Programa Auxílio Brasil, que permitiu, ainda que de forma temporária, uma elevação da renda das famílias beneficiadas.

Na Região Metropolitana de Salvador, o percentual dos indivíduos vivendo em domicílios com rendimento per capita mensal de até ¼ de salário-mínimo aumentou durante a pandemia de 29% para 33,7%, entre o primeiro trimestre de 2020 e o primeiro trimestre de 2022. Esse percentual chegou a atingir 36,8% no primeiro trimestre de 2021. O aumento no período denota o crescimento da população vulnerável nos municípios que integram a RM de Salvador ao longo da pandemia.

A pandemia, então, agravou uma situação socioeconômica que já era delicada antes dela. A taxa de desocupação da força de trabalho na Região Metropolitana de Salvador foi, no primeiro trimestre de 2020,4 de 19,1%, a mais alta entre as RMs analisadas neste artigo.

Fortaleza

A tendência observada na Região Metropolitana de Salvador se manifestou também na Região Metropolitana de Fortaleza. Nesta, o Coeficiente de Gini oscilou em alta (indicando piora na distribuição de renda) entre o primeiro trimestre de 2020 e o primeiro trimestre de 2021 (passando de 0,624 para 0,632), e diminuiu (indicando melhora na distribuição de renda) entre o primeiro trimestre de 2021 e o primeiro trimestre de 2022 (passando de 0,632 para 0,612).

Na Região Metropolitana de Fortaleza, o percentual dos indivíduos vivendo em domicílios com rendimento per capita mensal de até ¼ de salário-mínimo cresceu de 28,2% para 30,6% entre o primeiro trimestre de 2020 e o primeiro trimestre de 2022. Assim como em Salvador, o maior percentual foi observado no primeiro trimestre de 2021, quando atingiu 36,3% da população nessa condição de vulnerabilidade. Apesar da oscilação observada entre 2021 e 2022, os dados revelam que a situação hoje está pior do que no início da pandemia, com crescimento da população em situação de vulnerabilidade no conjunto dos municípios que compõem a RM de Fortaleza. Essa região, como todas as demais RMs situadas nas grandes regiões Norte e Nordeste, apresenta renda média domiciliar per capita inferior à média das RMs brasileiras, o que aponta para a maior incidência da pobreza em todas RMs do Norte e Nordeste.

Recife

Na Região Metropolitana de Recife, o Coeficiente de Gini oscilou positivamente, de 0,641 no primeiro trimestre de 2020 para 0,678 no primeiro trimestre de 2021. Embora diminua entre o primeiro trimestre de 2021 e o primeiro trimestre de 2022 de 0,678 para 0,654, é ainda superior ao início da pandemia, indicando uma clara piora da distribuição de renda, mais acentuada em 2021 e ainda não revertida posteriormente.

Na Região Metropolitana de Recife, o percentual dos indivíduos vivendo em domicílios com rendimento per capita mensal de até ¼ de salário-mínimo aumentou de 33,6% no primeiro trimestre de 2020, para 39,4% no primeiro trimestre de 2022, tendo atingido 41,2% no primeiro trimestre de 2021. A RM de Recife tem, atualmente, o mais elevado percentual de sua população em situação de vulnerabilidade no conjunto das principais RMs brasileiras, atrás apenas da Região Metropolitana de João Pessoa (39,4% da população).

Manaus

A Região Metropolitana de Manaus observou melhoria em sua condição de distribuição de renda medida pelo Coeficiente de Gini. No início da pandemia, no primeiro trimestre de 2020, o Coeficiente era de 0,596, e passou para 0,634 no primeiro trimestre de 2021. No primeiro trimestre de 2022, no entanto, caiu para 0,581, abaixo, portanto, do patamar do início da série.

Na Região Metropolitana de Manaus, o percentual dos indivíduos vivendo em domicílios com rendimento per capita mensal de até ¼ de salário-mínimo se elevou de 32,6% no primeiro trimestre de 2020 para 33,5% no primeiro trimestre de 2022, atingindo 38,4% no primeiro trimestre de 2021. Portanto, a população em situação de vulnerabilidade na RM de Manaus também cresceu durante a pandemia, o que agravou a situação socioeconômica da metrópole, onde a taxa de desocupação da força de trabalho já era elevada no primeiro trimestre de 2020 (17,3%, a segunda mais elevada entre as RMs analisadas). Isso explica, em grande medida, o colapso do sistema médico público na região no início de 2021, com a ausência de respiradores, de equipamentos de proteção individual e mesmo com a transferência de pacientes para outras cidades da região Norte do Brasil.

Porto Alegre

Na Região Metropolitana de Porto Alegre, o Coeficiente de Gini piorou nos últimos anos, ainda que de forma mais intensa entre 2020 e 2021. No primeiro trimestre desses dois anos, o Coeficiente de Gini passou de 0,589 para 0,613. Embora caia entre o primeiro trimestre de 2021 e o primeiro trimestre de 2022 de 0,613 para 0,594, este último patamar ainda é superior ao de antes da pandemia, denotando piora das condições de distribuição de renda nessa região.

O percentual dos indivíduos vivendo em domicílios com rendimento per capita mensal de até ¼ de salário-mínimo se elevou de 19,2% no primeiro trimestre de 2020 para 21,9% no primeiro trimestre de 2022, tendo atingido pico de 25,6% no primeiro trimestre de 2021. Há, portanto, um aumeto, ainda baixo, da população em situação de vulnerabilidade na metrópole de Porto Alegre ao longo dos dois anos de pandemia de Covid-19.

Comparativamente, o percentual dos indivíduos vivendo em domicílios com rendimento per capita mensal de até ¼ de salário-mínimo na Região Metropolitana de Porto Alegre é inferior ao da maior parte das RMs analisadas, o que se explica, principalmente, pela menor taxa de desocupação da força de trabalho na região (10,2%) no primeiro trimestre de 2020.

São Paulo

Na maior metrópole brasileira, a RMSP, o Coeficiente de Gini cresceu de 0,624 para 0,650 entre o primeiro trimestre de 2020 e o primeiro trimestre de 2021, e diminuiu para 0,610 no primeiro trimestre de 2022, taxa inferior, portanto, à observada quando do início da pandemia na RMSP.

O percentual dos indivíduos vivendo em domicílios com rendimento per capita mensal de até ¼ de salário-mínimo se elevou de 16,5% no primeiro trimestre de 2020 para 19,2% no primeiro trimestre de 2022, tendo atingido seu pico no primeiro trimestre de 2021, com 22,7% da população nessa condição de pobreza.

É importante destacar o crescimento da vulnerabilidade na RMSP: o percentual descrito apresentou a segunda maior elevação no conjunto das RMS entre 2020 e 2021 (de 37,57%), atrás apenas da Região Metropolitana de Goiânia (42,4%). Considerando as RMs aqui analisadas, a de São Paulo foi a que apresentou o maior aumento da vulnerabilidade, superior ao crescimento do conjunto das RMs brasileiras. Esse aumento pode ser constatado, sobretudo, pelo crescimento do trabalho informal na região e pelo aumento da população em situação de rua, especialmente na capital.

Rio de Janeiro

Na segunda maior metrópole brasileira, a Região Metropolitana do Rio de Janeiro, o Coeficiente de Gini aumentou, entre o primeiro° trimestre de 2020 e o primeiro trimestre de 2021, de 0,629 para 0,675, e deste, para 0,0,643 no primeiro trimestre de 2022. Assim, houve piora da distribuição de renda quando medida pelo Coeficiente de Gini na Região Metropolitana do Rio de Janeiro ao longo da pandemia, ainda que essa piora tenha sido mais acentuada entre os anos de 2020 e 2021.

Na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, o percentual dos indivíduos vivendo em domicílios com rendimento per capita mensal de até ¼ de salário-mínimo se elevou de 24,1% no primeiro trimestre de 2020 para 26,8% no primeiro trimestre de 2022, com pico de 31,3% no primeiro trimestre de 2021 (Gráfico 4).

A vulnerabilidade também cresceu na Região Metropolitana do Rio de Janeiro mais que a média do conjunto das RMs brasileiras, com aumentos de 29,87% e 26,43%, respectivamente. Também se observa, em sua paisagem social urbana, os efeitos mais visíveis do aumento da desigualdade: elevação do trabalho informal, crescimento da população em situação de rua e, ainda, expansão do processo de favelização, estas cada vez mais densas e verticalizadas, tanto na RMSP como na do Rio de Janeiro.

Belo Horizonte

A mesma tendência observada na Região Metropolitana do Rio de Janeiro ocorre na Região Metropolitana de Belo Horizonte, na qual o Coeficiente de Gini passou de 0,570 no primeiro trimestre de 2020 para 0,599 no primeiro1° trimestre de 2021. Após a alta, caiu para 0,586 no primeiro trimestre de 2022, mantendo-se, com isso, superior ao período inicial da pandemia e indicando piora da distribuição de renda medida pelo Coeficiente de Gini nessa região metropolitana ao longo da pandemia.

Na Região Metropolitana de Belo Horizonte, o percentual dos indivíduos vivendo em domicílios com rendimento per capita mensal de até ¼ de salário-mínimo aumentou de 19,6% no primeiro trimestre de 2020 para 20,8% no primeiro trimestre de 2022. Atingiu também pico de 24,3% da população em situação de vulnerabilidade no primeiro trimestre de 2021, o que representou quase um quarto da população dos municípios da RM de Belo Horizonte em condição de vulnerabilidade.

Distrito Federal

A Região Metropolitana do Distrito Federal segue a tendência observada nas RMs do Rio de Janeiro e de Belo Horizonte. O Coeficiente de Gini se elevou de 0,601 no primeiro trimestre de 2020 para 0,617 no primeiro trimestre de 2021, e diminuiu para 0,613 no primeiro trimestre de 2022. Esta redução, no entanto, não é suficiente para reverter, em relação ao início da pandemia, a deterioração da distribuição de renda medida pelo Coeficiente de Gini na Região Metropolitana do Distrito Federal.

Nessa RM, o percentual dos indivíduos vivendo em domicílios com rendimento per capita mensal de até ¼ de salário-mínimo cresceu de 16,3% no primeiro trimestre de 2020 para 17,9% no primeiro trimestre de 2022, atingindo pico de 20,4% no primeiro trimestre de 2021.

A análise do Coeficiente de Gini e do percentual dos indivíduos vivendo em domicílios com rendimento per capita mensal de até ¼ de salário-mínimo para as RMs selecionadas demonstrou que tanto a desigualdade quanto as condições de vulnerabilidade pioraram com a pandemia de Covid-19. Entretanto os dados trimestrais apresentados para o conjunto das RMs desde 2012 nos permitem afirmar também que elas já estavam em processo de aprofundamento da desigualdade e da vulnerabilidade, pelo menos desde 2015, antes, portanto, da pandemia.

Mas tanto a relativa redução da vulnerabilidade indicada pelos dados de rendimento mensal em domicílios pobres, no último ano, quanto a consequente diminuição da desigualdade social, expressa pelo Coeficiente de Gini para as RMs, no mesmo período, têm apontado para a impossibilidade de reverter o processo de deterioração das condições de vida da população brasileira, sobretudo de baixa renda, em curso nos últimos sete anos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As análises aqui apresentadas nos permitem tecer um conjunto de considerações conclusivas sobre o aumento das desigualdades de renda e da vulnerabilidade social no Brasil nos últimos anos.

Inicialmente, é importante destacar que a pandemia apenas acentuou vulnerabilidades que já estavam presentes no tecido social brasileiro. Pelo menos desde 2014, embora com mais ênfase a partir de 2016, passamos não apenas pelo esgotamento do ciclo econômico expansivo (2004 a 2014) como, principalmente, pela recessão econômica (2014 a 2016) e pela estagnação econômica (2016 até os dias atuais), já definida por alguns autores como “estagflação” (Cunha; Ferrari, 2021), em razão da piora dos indicadores monetários e do aumento da inflação no país. A pandemia se insere, portanto, no contexto de um país em crise econômica e social (De Paula, 2022). Foi fundamental, para identificarmos e compreendermos essa crise, utilizarmos indicadores para um período mais largo, abrangendo os últimos dez anos. Com isso, foi possível não apenas entender o impacto profundo e desproporcional que a pandemia de Covid-19 teve em nosso país, como também os limites dos mecanismos de mitigação de seus efeitos.

Embora com especificidades importantes, a evolução das desigualdades de renda medidas pelo Coeficiente de Gini e das vulnerabilidades, medidas pelo percentual dos indivíduos vivendo em domicílios com rendimento per capita mensal de até ¼ de salário-mínimo, revela um quadro geral no qual, não obstante alguma recuperação entre 2021 e 2022, esta tem sido insuficiente para melhorar as condições econômicas e sociais nas metrópoles analisadas em termos relativos a 2020. Quando analisadas em perspectiva histórica mais ampla, conclui-se que as desigualdades e as vulnerabilidades já estavam aumentando pelo menos desde 2014, e a pandemia apenas agravou esse quadro.

O nível de atividade econômica e a taxa de desocupação são, assim, variáveis fundamentais para compreendermos a crise econômica e social brasileira agravada pela pandemia de Covid-19. Nesse sentido, o mercado de trabalho brasileiro também é fator condicionante da gravidade da pandemia: seja porque sua desestruturação agravou as vulnerabilidades e corroeu as possibilidades materiais de grande parte das famílias brasileiras enfrentarem a doença, seja porque a elevada proporção do trabalho informal condicionou milhões de trabalhadores a exercerem funções e atividades econômicas presenciais, ficando com isso mais expostos à pandemia. Soma-se a isso um padrão habitacional precário que restringiu as possibilidades de isolamento social, conforme recomendado.

A recuperação das taxas de emprego também tem sido, como vimos, incapaz de criar condições mais sólidas para a retomada do crescimento econômico e a mitigação das desigualdades de renda e da vulnerabilidade, tendo em vista a manutenção de elevados índices de informalidade e a diminuição da renda média do trabalho. Em outras palavras, a pandemia segmentou ainda mais o mercado de trabalho brasileiro, agravando as desigualdades não apenas sociais, como também ocupacionais.

As reflexões realizadas neste artigo apontam para a centralidade da questão econômica na mitigação das desigualdades sociais no país. A recuperação da economia passa, por sua vez, não apenas por condições externas, hoje desfavoráveis, mas também, e principalmente, por políticas anticíclicas capazes de reativar o mercado interno no país, por meio do aumento da oferta de crédito, do incentivo à expansão da demanda agregada e o crescimento dos investimentos públicos. Essas medidas evidenciam o retorno do papel do Estado na economia, crucial para as políticas de mitigação das desigualdades de renda e da vulnerabilidade. Em que pese essa importância, o papel do Estado seguirá, de um lado, sufocado em um contexto de neoliberalização crescente, com a manutenção da atual legislação trabalhista e das limitações impostas às despesas primárias (despesas envolvidas na oferta de serviços públicos) e ao investimento público violado por meio das liberações de recursos com finalidade eleitoral, sob pretexto emergencial.

  • 1
    Ver, especialmente, Baeninger, Vedovato e Nandy (2020), Magalhães, Bógus, Pasternak e Silva (2021) e Bógus e Magalhães (2021).
  • 2
    A escolha das regiões metropolitanas selecionadas se justifica por seus volumes populacionais e pela representatividade espacial de cada uma delas.
  • 3
    Por estagnação, compreende-se a situação de uma economia com crescimento baixo e estável, por volta de 1% ao ano, e mesmo de contração do PIB, desde que essa não atinja dois trimestres seguidos. Sob essas condições, o PIB per capita se torna, na realidade, praticamente nulo.
  • 4
    A PNADc fornece dados trimestrais de desocupação da força de trabalho nas RMs brasileiras somente até o primeiro trimestre de 2020, razão pela qual, nesta reflexão feita para a desocupação total no Brasil (disponível até o primeiro trimestre de 2022), não desagregamos os dados e as análises para as RMs.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    22 Jul 2022
  • Aceito
    28 Set 2022
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