Resumos
A partir de questões suscitadas por pesquisas de campo junto à rede multiétnica, conhecida como Teia dos Povos, e de experiências pregressas com o povo Kaiowá e Guarani, o artigo discute, em diálogo com a experiência inovadora da Universidade Federal do Sul da Bahia, como certas reivindicações populares por mudanças na educação podem nos conduzir às formulações propostas, nas últimas décadas, pela educação popular e como elas demandam das instituições universitárias uma transformação que se conjuga com esse campo de saberes e práticas. Em um nível epistemológico, demonstramos como a educação popular compartilha questões com a antropologia contemporânea na América Latina, apontando possíveis soluções para impasses dessa disciplina que, ao fim e ao cabo, representam desafios para a própria instituição universitária. Esses desafios têm disparado processos internos nas universidades nas últimas décadas que, atualmente, se agudizam em função de uma revolução epistemológica e ontológica em curso, a agroecologia.
Educação popular; Universidade popular; Encontro de saberes; Descolonização epistêmica; Agroecologia
Based on questions raised by field research conducted together with the multiethnic network known as Teia dos Povos (Peoples’ Web) and previous experiences with the Kaiowá and Guarani people, this paper discusses, in dialogue with the innovative experience brought by the Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), how certain popular demands for changes in education can lead us to the proposed Popular Education and how it demands from Universities a changeover that incorporates this field of knowledge and practices. At an epistemological level, this text shows how Popular Education shares issues with contemporary Anthropology in Latin America, pointing out possible solutions to its impasses that, in the end, represent challenges for the University itself. These challenges have triggered internal processes in universities in recent decades, which are currently intensified by an ongoing epistemological and ontological revolution: Agroecology.
Popular education; Popular university; Meeting of knowledges; Epistemic decolonization; Agroecology
À partir des questions soulevées par la recherche de le terrain menée avec le réseau multiethnique Teia dos Povos (Réseau des Peuples) et des expériences antérieures avec les peuples Kaiowá et Guarani, cet article discute, en dialogue avec l’expérience novatrice de l’Universidade Federal do Sul da Bahia, comment certaines demandes populaires de changement dans l’éducation peuvent nous conduire à la proposition d’Education populaire et comment elle exige des Universités une transformation qui incorpore ce champ de connaissances et de pratiques. Au niveau épistémologique, ce texte montre comment l’éducation populaire partage des problèmes avec l’anthropologie contemporaine en Amérique latine, en indiquant des solutions possibles aux à ses impasses qui, après tout, représentent des défis pour l’université elle-même. Ces défis ont déclenché des processus internes aux universités au cours des dernières décennies, qui sont actuellement intensifiés par une révolution épistémologique et ontologique en cours : l’agroécologie.
Education populaire; Université populaire; Rencontre de savoirs; Décolonisation épistémique; Agroécologie
INTRODUÇÃO
O líder kaiowá Ambrósio Vilhalva teve uma vida notável: liderança da retomada Guyraroká, entre os municípios de Dourados e Caarapó (MS), foi protagonista de um filme de ficção sobre a luta dos Kaiowá e Guarani, o longa-metragem Terra Vermelha (2008), em que interpretava o papel de uma liderança, inspirado em sua própria vida. Cinco anos depois, morreu assassinado em um conflito interno em sua comunidade.
Em 2009, durante pesquisa de campo que acompanhava o movimento político Kaiowá e Guarani em luta pela recuperação de suas terras tradicionais, tive a oportunidade de conhecê-lo, durante uma Aty Guasu – a grande assembleia dos Kaiowá e Guarani – em Amambai.1 1 Para uma revisão sobre a história do movimento Kaiowá e Guarani de luta pela recuperação de terras tradicionais em Mato Grosso do Sul, conferir S. Pimentel (2012) e Benites (2014)
A força e veemência de suas palavras impressionava: em uma roda de conversa durante o evento, que acontecia na quadra de esportes da escola da comunidade, ele era enfático ao contar sobre a experiência que estavam vivenciando em Guyraroká, naquele momento, de cultivar uma horta comunitária, a qual, além de servir à subsistência do grupo, também gerava produtos que vinham sendo comercializados.
O problema, contava ele, era fazer com que mais gente se engajasse no projeto, sobretudo jovens moradores da retomada que haviam se mudado para lá, vindos de uma reserva indígena próxima: “Quando vem da reserva, a gente logo reconhece como o jovem chega sem saber pegar numa enxada”.
Dois anos e meio depois, em um encontro de professores Kaiowá e Guarani, na comunidade Pirakuá, ouvi comentário parecido de um dos rezadores que compareceram ao evento para conversar com os docentes sobre como promover o diálogo entre a escola e os saberes tradicionais. “O problema é que a pessoa passa onze, doze anos na escola e, quando sai de lá, não sabe pegar numa enxada”. “Vocês querem aprender mais sobre nossos saberes? Não somos nós que temos que ir à escola, sempre. Vocês é que precisam ir mais a nossas casas, cantar conosco”.2 2 Entre os Kaiowá, os cantos xamânicos têm uma ampla gama de aplicações na vida cotidiana, em áreas como saúde, caça, agricultura, convivência familiar, vida amorosa, espiritualidade, entre outras, e são fundamentais para a transmissão de conhecimentos ( Tugny et al., 2016 ). Em razão dessa centralidade, os rezadores – nhanderu e nhandesy – têm grande importância na vida (cosmo) política do grupo. A partir das observações dos rezadores presentes, o encontro chegou a organizar algumas atividades em que eles compartilhavam seus conhecimentos biológicos com os professores.
Os Kaiowá e Guarani percebiam-se, nesse momento, presos a certo dilema. Décadas antes, haviam sido vítimas de recém-chegados que lhes tomaram as terras habitadas por eles há gerações, com a justificativa de terem papéis que lhes davam direito sobre elas. As famílias indígenas decidiram, então, que precisavam transformar seus filhos em “letrados” para poder domar o poder do kuatiá , o papel ( Rossato, 2020ROSSATO, V. L. Será o letrado ainda um dos nossos? Os resultados da escolarização entre os Kaiowá e Guarani de Mato Grosso do Sul. Veranópolis: Diálogo Freiriano, 2020. ). Uma geração depois, com uma escolarização massiva nas comunidades indígenas, surgia a reflexão: afinal de contas, será que essa escola que nos está sendo oferecida não está, também, causando certos problemas? O drama, em meio às muitas tragédias vividas pelos Kaiowá e Guarani, é que o processo de demarcação das terras tradicionais desse povo se arrasta há décadas, sem sinal de conclusão à vista. A cada geração que nasce, cresce e se educa nas reservas superlotadas em que parte dessa população hoje habita, mais os conhecimentos tradicionais – em particular os que estão ligados à agricultura tradicional indígena – se veem ameaçados, na visão de vários dos principais sábios desse povo.
Esse tema – os dilemas das comunidades tradicionais e rurais diante do sistema escolar – fixou-se em minha mente desde então para retornar alguns anos depois, quando, na Bahia, passei a acompanhar as atividades de uma organização que, a exemplo da Aty Guasu, congrega dezenas de comunidades de forma horizontal, buscando estabelecer algumas metas para um trabalho em comum, a Teia dos Povos.
A Teia dos Povos surgiu, inicialmente, como uma articulação de movimentos sociais e povos tradicionais do Sul da Bahia, em torno da discussão da agroecologia, a partir da organização das Jornadas de Agroecologia da Bahia, iniciadas em 2012. Rapidamente, e em conjugação com uma visão extremamente densa do sentido da agroecologia, a articulação ampliou seu campo de atuação, buscando tornar-se uma rede em defesa dos territórios de ocupação tradicional na região.3 3 As informações oficiais sobre a Teia dos Povos estão disponíveis no site https://teiadospovos.org/sobre/ Acesso em: 11 dez. 2022.
Outra vez, acompanhei a intensa preocupação das comunidades com o sistema escolar. Em diversos encontros, entre 2016 e 2018, presenciamos as discussões sobre o tema. Recentemente, a Teia passou a publicar vídeos e livros com algumas de suas principais ideias, por isso citarei diretamente aqui as palavras desses autores, que também são lideranças comunitárias e pensadores de áreas como saúde, educação e agroecologia.
A Teia busca fomentar uma reflexão sobre a descolonização do ensino, rumo ao que chamam de “soberania pedagógica”:4 4 O líder camponês Joelson Ferreira Oliveira é um dos fundadores e principais referências da Teia dos Povos. Atualmente vive no Assentamento Terra Vista, em Arataca (BA). Foi, também, fundador do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na Bahia e participante da coordenação nacional dessa organização. Erahsto Felício é professor de história do ensino médio no Instituto Federal da Bahia em Valença (BA) e militante da Teia dos Povos.
A situação concreta em muitos territórios rurais é de esvaziamento da presença do jovem que busca ganhar o mundo, conhecer outros lugares, estudar fora etc. O campo, durante muito tempo, representou um lugar que onde é preciso escapar. E isso atingiu não apenas assentamentos, mas também quilombos e terras indígenas ( Ferreira; Felício, 2021FERREIRA, J.; FELÍCIO, E. Por terra e território: caminhos da revolução dos povos no Brasil. Arataca: Teia dos Povos, 2021. , p. 80).
O processo de esvaziamento programado do campo e das comunidades tradicionais é, então, apoiado por essa ação de uma escola que não está sob controle das comunidades:
E isso é estimulado e agravado pelo tipo de escola que temos nas zonas rurais e urbanas. São escolas que educam para que os jovens não fiquem, para que eles se enxerguem como indivíduos dissociados de sua família, de seu povo, de sua terra. Essa educação – construída nas bases ideológicas do capitalismo e do racismo – é muito eficaz em sua tarefa de desterritorializar. Afinal de contas, quanto mais jovens lutando por emprego nas grandes cidades, mais barata é a força de trabalho, não é mesmo? Quanto menos pessoas vivendo num quilombo, assentamento ou terra indígena, melhor para o assédio dos grandes empreendimentos e dos latifundiários, ou não? ( Ferreira; Felício, 2021FERREIRA, J.; FELÍCIO, E. Por terra e território: caminhos da revolução dos povos no Brasil. Arataca: Teia dos Povos, 2021. , p. 80-81).
A Teia dos Povos tem surgido no cenário do Sul da Bahia como uma coalizão capaz de elaborar complexos planos de desenvolvimento regional associados à difusão da agroecologia pelas comunidades rurais, negras e indígenas, além de ter se engajado na construção de redes de solidariedade em defesa dos territórios comunitários. Ferreira e Felício, de certa forma, partem de diagnóstico semelhante ao que é realizado pelos Kaiowá e Guarani a respeito da escola no meio rural e de seu papel desmobilizador e desagregador, caso não esteja realmente sob controle efetivo das comunidades. Mais que isso, eles estendem o diagnóstico até a universidade. O problema, afinal, é um só:
As políticas públicas de inclusão de pretos e indígenas nas universidades também tornaram mais atrativa essa saída do território. O conflito real é que muitas dessas saídas são para sempre. Ou seja, jovens dos povos se especializam na universidade e já não creem que possuem lugar naquela comunidade em que viviam: “Ali não tem emprego para mim”, dizem ( Ferreira; Felício, 2021FERREIRA, J.; FELÍCIO, E. Por terra e território: caminhos da revolução dos povos no Brasil. Arataca: Teia dos Povos, 2021. , p. 80).
O horizonte final, então, é que as comunidades constituam suas próprias universidades como derradeira alternativa à situação atual ( Ferreira; Felício, 2021FERREIRA, J.; FELÍCIO, E. Por terra e território: caminhos da revolução dos povos no Brasil. Arataca: Teia dos Povos, 2021. ).
As críticas da Teia têm sido feitas em diálogo com acadêmicos da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), instituição que foi criada praticamente de forma simultânea à Teia, iniciando suas aulas em 2014, em três campi nas maiores cidades das regiões Sul e Extremo Sul da Bahia – Itabuna, Porto Seguro e Teixeira de Freitas.
Este artigo pode ser considerado como resultado não somente de uma experiência de acompanhamento etnográfico, mas também de pesquisa-ação – método diretamente associado à educação popular ( Brandão, 1981BRANDÃO, C. R. (org.). Pesquisa participante. São Paulo: Brasiliense, 1981. , 1987BRANDÃO, C. R. (org.). Repensando a pesquisa participante. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. ) – ou seja, o autor atuou não apenas como um observador nas reuniões da organização aqui em pauta, mas também teve envolvimento direto – ainda que modesto – na construção de determinados eventos, como as Jornadas de Agroecologia da Bahia, que estiveram relacionados ao período em que se deu a aproximação com a Teia.
A UFSB foi criada no bojo do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), concebida como uma instituição inovadora, que deveria responder a diversas críticas contundentes que têm sido feitas à universidade brasileira no século XX, incorporando ideias gestadas desde Anísio Teixeira até Boaventura de Sousa Santos, passando, ainda, por nomes como Milton Santos e Paulo Freire ( Tugny; Gonçalves, 2020TUGNY, R. P.; GONÇALVES, G. (org.). Universidade popular e encontro de saberes. Salvador: Edufba, 2020. ; UFSB, 2014UFSB – UNIVERSIDADE FEDERAL DO SUL DA BAHIA. Plano orientador. Itabuna: UFSB, 2014. Disponível em: http://ufsb.edu.br/wp-content/uploads/Plano-Orientador-UFSB-Final1.pdf. Acesso em: 27 out. 2022.
http://ufsb.edu.br/wp-content/uploads/Pl...
).
Podemos perceber que o movimento de aproximação entre as comunidades e a Teia tem diversas ambiguidades. Ao mesmo tempo que os atores ligados aos movimentos sociais viam potencialidades na chegada de uma universidade federal à região, também se demonstraram cientes, desde os primeiros momentos, de que se tratava de um projeto de claros limites (Pimentel, S.; Menezes, 2022).
Um dos indicativos desses limites era, justamente, o projeto de criação dos chamados colégios universitários (Cunis). A UFSB se propôs, em seu plano orientador, a criar 30 Cunis pela região, espalhados por pequenas cidades ou mesmo comunidades indígenas, quilombolas e rurais. Seriam locais onde estudantes das comunidades mais distantes dos campi da universidade poderiam realizar a primeira etapa de formação universitária, utilizando metodologias mistas de ensino, a partir do uso de computadores e da chamada metapresencialidade.5 5 Na UFSB, o termo designa situações de ensino realizadas por videoconferência ao vivo (como as chamadas lives que se popularizaram durante a pandemia), com todos os alunos em uma sala de aula nos colégios universitários. Idealmente, deve haver monitores e outras formas de suporte, como as equipes de aprendizagem ativa ( UFSB, 2014 ).
O projeto, a princípio, iria ao encontro da expectativa das comunidades de inclusão no ensino superior. Mas, na realidade, no âmbito da Teia dos Povos, observamos diversas vezes que não é suficiente propor levar “qualquer” curso a essas populações. Elas querem escolher seus cursos. E mais: querem que seus mestres dos saberes tradicionais participem desse processo. Essa demanda se acentua, como veremos adiante, porque a preocupação principal dessas comunidades, nos últimos anos, tem sido a transição agroecológica. A Associação Brasileira de Agroecologia atualmente propõe a seguinte compreensão sobre o termo:
[…] define-se a Agroecologia como ciência, movimento político e prática social, portadora de um enfoque científico, teórico, prático e metodológico que articula diferentes áreas do conhecimento de forma transdisciplinar e sistêmica, orientada a desenvolver sistemas agroalimentares sustentáveis em todas as suas dimensões (ABA, [20--], p. 1).
O quadro encontrado, então, conforma uma situação que demanda novas propostas por parte da universidade e novas políticas públicas. Nesse sentido, poderíamos dizer que exige de nós, também, a criação de novos métodos de diálogo com as comunidades – o que significa que precisamos rever nossos métodos de pesquisa e, quiçá, nossas próprias instituições.
UNIVERSIDADE POPULAR
Desde o início, a UFSB procurou discutir e se associar à ideia de universidade popular, a partir das ideias de Anísio Teixeira. O termo é mencionado no plano orientador da universidade (UFSB, 2014) e dá nome ao livro “Universidade popular e encontro de saberes” ( Tugny; Gonçalves, 2020TUGNY, R. P.; GONÇALVES, G. (org.). Universidade popular e encontro de saberes. Salvador: Edufba, 2020. ), que reúne artigos e depoimentos de dezenas de autores, discutindo os primeiros anos de existência da instituição.
Como lembrou recentemente Brandão, nos primórdios de seus trabalhos que fomentariam a difusão do conceito de educação popular, Paulo Freire concebia, com sua equipe, no serviço de extensão da Universidade de Recife, que o processo de alfabetização era somente a primeira parte de um sistema que deveria ser muito mais amplo:
A proposta dessa primeira equipe, que envolvia uma mulher, a Aurenice Cardoso, e três homens educadores, era de todo um Sistema Paulo Freire de Educação. Logo depois do exílio, Paulo vai embora, passa 16 anos fora do Brasil e essa proposta original é esquecida. E eu estou lembrando isso porque esse sistema Paulo Freire de educação começava com alfabetização de crianças, jovens e adultos e ensino supletivo rápido e previa, em 1960, há 61 anos, uma universidade popular (Brandão; Silva, P.; Romano, 2021, p. 4).
Na referida entrevista, Brandão destaca o caráter interdisciplinar da educação popular em seu surgimento. Os principais nomes do movimento tinham origens profissionais diversas. Além disso, a educação popular, segundo ele, começou a tomar forma no âmbito dos movimentos de cultura popular, incluindo os centros populares de cultura (CPC), ligados ao movimento estudantil, surgidos durante o governo João Goulart. O Primeiro Encontro Brasileiro de Movimentos de Cultura Popular, destaca Brandão, aconteceu em Recife, em 1963.
O antropólogo também enumera alguns paradoxos significativos na relação entre a educação popular e a universidade. Ao mesmo tempo em que obteve amplo reconhecimento internacional – recebendo, segundo Brandão, 50 títulos de doutor honoris causa de instituições ao redor do mundo –, Paulo Freire e a educação popular seguem até hoje, na avaliação dele, com pouquíssimo espaço no âmbito acadêmico – particularmente no mundo das pós-graduações, ao contrário de outro campo no qual o autor reconhece como a principal seara da educação popular, o da extensão universitária.
Qual seria, então, o grande legado de Paulo Freire para as universidades no país? Brandão é enfático ao responder essa questão.
Hoje em dia, quando a gente vê programas de educação do campo, pedagogia da terra, são heranças dos anos 2000 de coisas que têm a ver com Paulo Freire, com Miguel Arroyo e que vão brotar em várias universidades, como na UFMG. Esse seria um programa de inspiração Paulo Freiriana e realmente era um mestrado todo ele voltado, através das dissertações, para trabalho junto a comunidades populares. Agora que as universidades estão realizando (em 2018, 2019 e 2020) os sonhos de Paulo Freire, de Miguel Arroyo, de Carlos Brandão de 1960, 1980, ou seja, incorporando negros, cotas, quilombolas, índios, de repente toda essa neo invasão, essa feliz invasão dessa universidade acadêmica, elitista que é a nossa. Se você me perguntar: qual é a herança de Paulo Freire? Eu diria que não é nenhuma didática, ele nunca escreveu realmente sobre ensino superior, ele tem trabalhos de passagem, sobretudo quando ele faz palestras, mas a grande herança de Paulo é essa virada do mundo acadêmico, essa abertura para o ingresso daqueles que sempre estiveram à margem (Brandão; Silva, P.; Romano, 2021, p. 7).
A “universidade popular” do sonho freiriano, segundo um dos mais significativos expoentes do movimento de educação popular, seria, realmente, portanto, uma instituição em moldes próximos aos que propôs a UFSB desde seu início – além de corresponder, grosso modo, a reformas que vêm sendo instituídas até mesmo por força de recentes normas, como a Lei 12711/2012, que instituiu a política de cotas nas instituições federais de ensino. Na UFSB, desde 2018, as cotas chegam a 75%, em consonância com o padrão regional, conforme preconiza a lei (aproximadamente 80% da população baiana é não branca) (Silva, A. et al ., 2020).
Além das cotas, a UFSB buscou, em seu projeto inicial, estabelecer diretrizes como a ecologia de saberes, que consiste em uma transição epistemológica rumo à valorização dos saberes locais/tradicionais,6 6 Tal conceito aparece na obra de Boaventura de Sousa Santos, interlocutor referencial de diversos docentes que participaram do processo de criação da UFSB (Santos, B., 2010). Posteriormente, devido à proximidade de outros pesquisadores da instituição com o projeto Encontro de Saberes, criado por José Jorge de Carvalho, essa proposta se tornou outra referência central na instituição para a discussão da chamada interepistemicidade (Pimentel, S.; Menezes, 2022; Tugny; Gonçalves, 2020 ). e a própria criação dos colégios universitários. Em sua origem, os Cunis eram inspirados na concepção de Anísio Teixeira de uma rede de colégios com o objetivo de máxima inclusão social na universidade, associada a um ou mais campi centrais onde operassem os cursos profissionalizantes (ou seja, cursos de graduação associados a profissões específicas, como medicina, direito, engenharias, jornalismo etc.).
A ecologia de saberes7 7 Aproximo os conceitos porque, na prática, dentro da UFSB, pesquisadores próximos ao projeto Encontro de Saberes passaram a desenvolver atividades desde 2014, visando ao acercamento dos mestres dos saberes tradicionais da região à universidade. Ou seja, na prática, a diretriz da ecologia de saberes possibilitou essas atividades, ainda que o desenvolvimento conceitual dos termos seja distinto e envolva um rol de ações que, no caso do Encontro de Saberes, é bem definido. prevista no projeto original se materializou na criação de cursos como o bacharelado e a licenciatura interdisciplinares em artes – cujos projetos pedagógicos explicitamente buscam substituir a centralidade normalmente verificada no ensino superior na área de artes por um destaque maior às estéticas e poéticas negras e indígenas. A UFSB instituiu, ainda, o seu Conselho Estratégico Social, órgão consultivo formado por dezenas de integrantes eleitos em um amplo fórum social, abrangendo categorias como povos tradicionais, movimentos do campo e da cidade, sindicatos, representantes de órgãos públicos, entre outros ( Menezes; Góes, 2020MENEZES, P. D. R.; GÓES, E. D. A. Universidade pública e integração social. In: TUGNY, R. P.; GONÇALVES, G. (org.). Universidade popular e encontro de saberes. Salvador: Edufba, 2020. p. 175-220. ; Pimentel, S.; Menezes, 2022).
De forma mais ampla, no início das atividades da universidade e, posteriormente, a partir de ações mais limitadas em razão das restrições orçamentárias, o ambiente da UFSB também viabilizou a aplicação das propostas do projeto Encontro de Saberes, criado pelo Instituto de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa (INCTI), dirigido pelo antropólogo José Jorge de Carvalho. Isso incluiu o oferecimento de aulas próprias do currículo oficial dos cursos de graduação ministradas por esses mestres e com o devido pagamento a eles – buscando-se a equivalência com o que é recebido por acadêmicos com grau de doutor. No quadrimestre inaugural da UFSB, em 2014, aconteceu um grande conjunto de atividades envolvendo 14 mestres dos saberes tradicionais da região especialmente convidados ( Tugny, 2020TUGNY, R. P. Conhecimentos tradicionais e território na formação universitária. In: TUGNY, R. P.; GONÇALVES, G. (org.). Universidade popular e encontro de saberes. Salvador: Edufba, 2020. p. 439-462. ). Vários deles mantêm conexão com a universidade até hoje, de diferentes formas.
Outro projeto exemplar é a especialização em agroecologia e educação do campo, construída em parceria com coletivos como o MST ( Benincá; Neves, 2020BENINCÁ, D.; NEVES, F. M. Extensão universitária popular e integração social na Feira da Agricultura Familiar. In: TUGNY, R. P.; GONÇALVES, G. (org.). Universidade popular e encontro de saberes. Salvador: Edufba, 2020. p. 463-474. ). Também houve parceria com o governo do estado da Bahia no estabelecimento de novos Centros Integrados de Educação (CIE), que contaram com a assessoria pedagógica da UFSB – resultando, por exemplo, no estabelecimento do Encontro de Saberes como uma área do conhecimento no ensino médio nessas escolas (Pimentel, Á., 2020). Podem-se citar, ainda, os projetos em parceria com a Teia dos Povos – inclusive, em 2022, quatro dos mestres dos saberes tradicionais ligados a essa rede receberam o título de notório saber da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), depois da criação de dossiês compostos com intensa participação de docentes da UFSB da área de artes.8 8 Efetivamente, é contraditório que somente na UFMG tenha sido possível realizar essa titulação. Esse aparente descompasso é resultado de disputas políticas internas na UFSB – desde 2017, a universidade é gerida por um grupo que diverge de diversos pontos do projeto original e, por isso, não se mostrou disposto a colaborar em iniciativas como a titulação de mestres ligados à Teia dos Povos. No total, 15 mestres foram agraciados com o título:
Foram diplomados o Cacique Nailton Muniz Pataxó; o líder indígena xacriabá Valdemar Ferreira dos Santos; Mestra Mayá, da Terra Indígena Caramuru Paraguassu, na Bahia; José Bonifácio da Luz (Bengala), líder quilombola da comunidade dos Arturos, em Contagem; Mameto Kitaloyá, liderança do terreiro Nzo Atim Kitalodé, em Belo Horizonte; Dirceu Pereira Sérgio, capitão regente e presidente da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Justinópolis, em Ribeirão das Neves; Joelson Ferreira […], líder da Teia dos Povos e do Assentamento Terra Vista em Arataca, na Bahia; Mestra Japira, pajé da aldeia Novos Guerreiros, na Bahia, e zeladora dos saberes Pataxó; Edson Moreira da Silva (Primo), mestre de capoeira; Cacique Babau, liderança da aldeia Serra do Padeiro, no sul da Bahia; Isael Maxakali, líder do povo Tikmũ’ũn (Maxakali); Sueli Maxakali, líder do povo Tikmũ’ũn; Gil Amâncio, ator, dançarino e músico; Maurício Tizumba, ator, compositor e multi-instrumentista, e Ricardo Aleixo, artista intermídia e pesquisador de literaturas, outras artes e mídias (Rigueira Jr., 2022).
O desenvolvimento de projetos como os supracitados, contudo, tem esbarrado nos sucessivos cortes orçamentários que vêm acometendo as instituições federais nos últimos anos, em primeiro lugar, mas não somente, como veremos a seguir. Quanto às limitações orçamentárias, todavia, basta verificar a lista de demandas apresentadas pelos presentes no Primeiro Fórum Social da UFSB, em 2015, para perceber que o atual arrocho é, sim, um fator fundamental para impedir boa parte dos avanços demandados pelos movimentos sociais da região ( Menezes; Góes, 2020MENEZES, P. D. R.; GÓES, E. D. A. Universidade pública e integração social. In: TUGNY, R. P.; GONÇALVES, G. (org.). Universidade popular e encontro de saberes. Salvador: Edufba, 2020. p. 175-220. ).
Além disso, há setores da universidade que têm preferido outras aproximações – não com os movimentos sociais, mas sim com grandes empresas da região, das áreas de celulose ou mineração, por exemplo. Gera-se, assim, uma discussão interna que nos remete aos debates sobre a chamada “delinquência acadêmica”, conforme denominava Tragtenberg (2004)TRAGTENBERG, M. A delinquência acadêmica. In: TRAGTENBERG, M. Sobre educação, política e sindicalismo. 3. ed. São Paulo: Unesp, 2004. p. 11-19. .9 9 S. Pimentel et al . (2020). Significativamente, o Conselho Estratégico Social foi praticamente anulado desde 2018. Sua reativação ocorreu apenas no fim de 2022, com mudanças substanciais – por exemplo, a nomeação de conselheiros acontece via edital, por autoindicação de entidades da região, não mais por eleição em um fórum popular.10 10 Além disso, seguindo modelo já aplicado ao Conselho Universitário da UFSB, foram adicionados diversos representantes da própria instituição ao CES, inclusive pró-reitores, diminuindo o peso das representações externas na composição desse colegiado. Disponível em: https://ufsb.edu.br/a-ufsb/conselhos/conselho-estrategico-social . Acesso em: 11 dez. 2022.
PESQUISA POPULAR?
O impacto dessa relação de uma universidade que se pretende popular com os movimentos sociais não se restringe ao campo do ensino. Pesquisa e extensão também são afetadas, uma vez que essas três áreas se influenciam mutuamente, tal como preconizado pela própria legislação do país – vide a Lei de Diretrizes e Bases (LDB), por exemplo –, mas também considerando os desafios que um projeto inovador como o da UFSB impõe a partir de diretrizes como as da já citada ecologia de saberes:
No âmbito universitário, a ecologia de saberes pode produzir um movimento de revolução epistemológica, sendo assim considerada uma forma de extensão ao contrário,11 11 O termo “extensão ao contrário” foi apresentado por B. Santos (2011) . de fora da universidade para dentro da universidade ( UFSB, 2014UFSB – UNIVERSIDADE FEDERAL DO SUL DA BAHIA. Plano orientador. Itabuna: UFSB, 2014. Disponível em: http://ufsb.edu.br/wp-content/uploads/Plano-Orientador-UFSB-Final1.pdf. Acesso em: 27 out. 2022.
http://ufsb.edu.br/wp-content/uploads/Pl... , p. 25).
Ou seja, o conceito tradicional de extensão poderia ser pensado de forma invertida. Se, na LDB, preconiza-se que ela visa “à difusão das conquistas e benefícios resultantes da criação cultural e da pesquisa científica e tecnológica geradas na instituição” ( Brasil, 2017BRASIL. Senado Federal. LDB: lei de diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, DF: Senado Federal, 2017. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/529732/lei_de_diretrizes_e_bases_1ed.pdf. Acesso em: 6 mar. 2023.
https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstrea...
, p. 33), em um projeto de universidade popular como o da UFSB imagina-se que, a partir do contato e do intenso encontro com os saberes da população da região onde a instituição se situa, possam surgir inovações e criações científicas e culturais compartilhadas. Entre as inovações previstas – embora nunca efetivada até o momento em razão da já citada crise orçamentária dos últimos anos –, estaria a criação dos Programas Integrados de Pesquisa, Extensão e Criação (Pipec), que deveriam dispor de “gestão administrativa própria” e “atividades custeadas preferencialmente por recursos extraorçamentários” (UFSB, 2014, p. 84).
Essas inovações levaram alguns autores ligados à UFSB a definir da seguinte maneira a nova forma institucional surgida do projeto: “com participação da sociedade, uma universidade pública efetivamente autônoma, inclusiva, democrática e popular: mais que extensionista, uma universidade extensa ” ( Menezes; Góes, 2020MENEZES, P. D. R.; GÓES, E. D. A. Universidade pública e integração social. In: TUGNY, R. P.; GONÇALVES, G. (org.). Universidade popular e encontro de saberes. Salvador: Edufba, 2020. p. 175-220. , p. 184, grifo do autor). Outro autor vinculado à UFSB, Benincá, utiliza o termo “extensão popular”, que vem sendo adotado por pesquisadores vinculados à educação popular (Melo Neto, 2014), com sentido próximo ao que aqui esboçamos, em diálogo com a ideia de ecologia de saberes (Benincá; Campos, 2017).
Essa prevista integração entre pesquisa, extensão e criação rompe, potencialmente, com o elitismo identificado por Brandão na universidade tradicional, que segregava a educação popular no campo da extensão, como vimos. Mas seria possível, em analogia à ideia de “extensão ao contrário”, pensar em uma “pesquisa ao contrário”? Uma “pesquisa popular” que fizesse jus a essa universidade popular pensada por gente como Paulo Freire e Anísio Teixeira?
ENTRE ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO POPULAR
A universidade popular, supostamente, não faria distinções disciplinares para definir uma área específica, como a antropologia, encarregada de realizar incursões e colaborações interculturais – pelo contrário, todas as áreas da instituição deveriam estar engajadas nessas ações, em alguma medida. Entre outras coisas, é também por isso que a interdisciplinaridade seria uma de suas marcas, conforme amplamente discutido nos principais documentos internos da UFSB (UFSB, 2014).
Na prática, a adesão às diretrizes do projeto associadas à ecologia de saberes não foi unânime. Como apontamos, algumas áreas, como as artes, abraçaram essas ideias associadas, enquanto outros conjuntos de professores – a partir dos colegiados de curso – preferiram construir suas ações e currículos de formas mais próximas às tradicionais. Uma breve análise dos projetos pedagógicos de curso (PPC) dos bacharelados interdisciplinares em humanidades, ciências, saúde e artes (UFSB, 2016a, 2016b, 2016c, 2016d) – pilares do primeiro ciclo na UFSB, além das licenciaturas interdisciplinares12 12 O modelo de ciclos tem, também, inspiração anisiana e se conjuga com os modelos norte-americano e europeu. O primeiro ciclo consiste em cursos divididos pelas grandes áreas citadas, com duração prevista de três anos. O segundo ciclo, opcional, é formado por cursos profissionalizantes, específicos, de dois anos. O terceiro ciclo corresponde às pós-graduações. Para mais detalhes, ver UFSB (2014) . As licenciaturas interdisciplinares são uma exceção: cursos de primeiro ciclo, mas também profissionalizantes. – permite perceber que os dois últimos aderem de forma bem mais intensa aos princípios associados à ecologia de saberes e à educação popular do que os dois primeiros, incorporando componentes como poéticas ameríndias, estéticas dos povos originários das Américas, estéticas e poéticas negrodescendentes ou o ateliê em encontros de saberes, no caso das artes, ou educação popular em saúde e cultura, saberes tradicionais e práticas em saúde, entre outros, no caso do BI saúde.
De forma sintética, poderíamos pensar que as diretrizes gerais da UFSB em torno da ecologia de saberes ou desses encontros de saberes significam, de certa forma, um impulso para que a universidade saia de seu próprio eixo tradicional e passe a pensar em suas práticas e a se desenvolver em diálogo com o que indicam as comunidades da região onde ela se localiza.
Como demonstraremos a seguir, essa guinada proposta pode ser aproximada a desafios enfrentados há algumas décadas pela antropologia, em suas pesquisas com as mais variadas comunidades em todo o mundo. Por meio dos dilemas da antropologia, e cotejando-os com as propostas da educação popular, vamos então buscar demonstrar que, ao fim e ao cabo, trata-se de uma discussão que representa a própria essência da transformação requerida no meio acadêmico para que se alcance a chamada universidade popular.
A crítica às origens colonialistas da antropologia não é novidade. Há uma ampla bibliografia a esse respeito. Kuper (1978)KUPER, A. Antropologia e colonialismo. In: KUPER, A. Antropólogos e antropologia. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978. p. 121-145. demonstra, em detalhes, como essa associação foi construída, no âmbito da administração colonial inglesa, ao longo das primeiras décadas do século XX, a ponto de a figura do antropólogo tornar-se um dos ícones da colonização, ao lado das figuras do missionário e do empresário capitalista.13 13 Conferir, ainda, Leclercq (1972) .
López y Rivas (2018)LÓPEZ Y RIVAS, G. Estudando a contrainsurgência dos Estados Unidos: manuais, mentalidades e o uso da antropologia. Goiânia: Imprensa Universitária, 2018. denunciou, mais recentemente, a “prostituição” da antropologia por meio da adesão de profissionais da área a projetos norte-americanos de contrainsurgência em regiões onde o país realizou guerras de ocupação neocolonial nas últimas décadas. No livro, dialoga com autores como González (2007)GONZÁLEZ, R. J. Towards mercenary anthropology? The new US Army counterinsurgency manual FM 3-24 and the military-anthropology complex. Anthropology Today, [s. l.], v. 23, n. 3, p. 14-19, 2007. , que chamou a atenção para o surgimento dessa “antropologia mercenária”. López y Rivas também destaca o uso da antropologia na América Latina como força auxiliar do chamado colonialismo interno (2018, p. 57).
Albert (2014)ALBERT, B. “Situação etnográfica” e movimentos étnicos: notas sobre o trabalho de campo pós-malinowskiano. Campos, Curitiba, v. 15, n. 1, p. 129-144, 2014. descreve de forma sintética a transição vivida globalmente como impacto da descolonização interna experimentada pelos povos indígenas nas últimas décadas, com a redemocratização de diversos países e a criação de novas Constituições que concederam cidadania plena a essas populações. Para ele, uma ilusão epistemológica foi desfeita em relação a esses povos, outrora considerados grupos junto aos quais se poderia estudar a chamada “sociedade tradicional” ou “primitiva”.
A menção a Albert nos interessa aqui porque, embora haja esse acúmulo crítico apontado em relação aos laços da antropologia com o colonialismo, ele não se converteu, necessariamente, nas últimas décadas, em inovações metodológicas. O método etnográfico continua sendo peça central na própria definição do campo da antropologia, como atesta sua centralidade nos cursos e publicações da disciplina por todo o mundo.
A transformação, contudo, dos métodos de pesquisa junto às comunidades que historicamente ficaram associadas à antropologia, como as populações africanas e afrodiaspóricas, os povos indígenas e outras populações tradicionais e rurais – os “povos antropológicos”, nas palavras de Albert (2014ALBERT, B. “Situação etnográfica” e movimentos étnicos: notas sobre o trabalho de campo pós-malinowskiano. Campos, Curitiba, v. 15, n. 1, p. 129-144, 2014. , p. 129) –, tem sido frequentemente requerida, em primeiro lugar, por esses coletivos, nas últimas décadas. É emblemática, nesse sentido, a obra de Smith (2018)SMITH, L. T. Descolonizando metodologias: pesquisa e povos indígenas. Curitiba: UFPR, 2018. , que, a partir de sua experiência como pesquisadora maori, elenca uma série de possíveis caminhos para uma pesquisa que realmente vá ao encontro dos interesses dos povos indígenas.
Albert lista alguns papéis que o antropólogo tem sido instado a assumir, nesta nova era culturalista global em que o discurso etnográfico segue tendo validade no jogo de identidades que permite aos povos indígenas afirmar-se politicamente, substituindo a anterior objetivação de sua cultura produzida pelo etnólogo por uma auto-objetivação cultural: mediação, documentação, criação de materiais didáticos e, o que é particularmente significativo para nós, o que ele chama de “pesquisas orientadas para a ação” (2014, p. 133).
Como Albert aponta, é cada vez mais comum que a legitimação da pesquisa estrita realizada pelo antropólogo só seja alcançada se ele desenvolve, ao mesmo tempo, essas outras atividades, determinadas, muitas vezes, pelas demandas dos movimentos indígenas ou de organizações não governamentais (ONG) associadas a ele.
Mora Bayo (2011)MORA BAYO, M. Producción de conocimientos en el terreno de la autonomía: la investigación como tema de debate político. In: BARONNET, B.; MORA BAYO, M.; STAHLER-SHOLK, R. (coord.). Luchas “muy otras”: zapatismo y autonomía en las comunidades indígenas de Chiapas. Ciudad de México: Universidad Autónoma Metropolitana, 2011. p. 79-110. , em consonância, relata sua experiência de pesquisa junto às comunidades vinculadas ao movimento neozapatista de Chiapas, México. Ela utiliza uma imagem sugerida por Gordon (1991)GORDON, E. T. Anthropology and liberation. In: HARRISON, F. V. (ed.). Decolonizing Anthropology: moving further toward an Anthropology for liberation. Washington, DC: Association of Black Anthropologists, 1991. p. 149-167.: 14 14 Observe-se que o autor faz essa formulação em livro publicado pela Associação de Antropólogos Negros dos Estados Unidos, intitulado “Descolonizando a Antropologia”. além do fieldwork , os pesquisadores têm, hoje, de se mostrar cada vez mais comprometidos com o homework demandado pelas comunidades: “Os compromissos sociais e políticos ultrapassam o espaço da pesquisa e, portanto, vivem-se as consequências de suas ações e publicações” ( Mora Bayo, 2011MORA BAYO, M. Producción de conocimientos en el terreno de la autonomía: la investigación como tema de debate político. In: BARONNET, B.; MORA BAYO, M.; STAHLER-SHOLK, R. (coord.). Luchas “muy otras”: zapatismo y autonomía en las comunidades indígenas de Chiapas. Ciudad de México: Universidad Autónoma Metropolitana, 2011. p. 79-110. , p. 87, tradução nossa).
Apesar dos vários sinais apontando na direção da necessidade de uma completa revisão metodológica, a antropologia, como dissemos, segue apostando na etnografia como emblema. Brandão, em suas elaborações sobre a pesquisa participante (1981, 1987), por exemplo, permanece pouco presente nos debates metodológicos da antropologia brasileira. Como o autor aponta, a disciplina inventou a observação participante, mas não percebeu que precisava tornar-se participativa – desobrigou-se, muitas vezes, ao longo da história, “das questões efetivamente sociais das condições de vida dos outros ” ( Brandão, 1987BRANDÃO, C. R. (org.). Repensando a pesquisa participante. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. , p. 12, grifo do autor).
AGROECOLOGIA E A UNIVERSIDADE DOS POVOS
No momento em que concluo este artigo, em dezembro de 2022, a Teia dos Povos lança sua mais nova iniciativa, a Universidade dos Povos. A Teia tem como epicentro o Assentamento Terra Vista, em Arataca (BA), 68 km ao sul de Itabuna, via BR-101. No local, há um importante cultivo de cacau orgânico no sistema cabruca,15 15 O sistema cabruca consiste no plantio de cacau sombreado em meio às árvores maiores da Mata Atlântica. Para detalhes, ver Piasentin (2011) . tradicional da região, bem como uma fábrica de chocolate.16 16 Sobre o Terra Vista, ver S. Santos (2016) e M. Lima (2017) .
Inicialmente, o curso oferecido pela Universidade dos Povos consiste em um módulo de uma semana de duração, com o título de “Formação agroecológica integral: aprender na prática”. Além de mestres dos saberes tradicionais camponeses, indígenas e afrodescendentes, também participam agrônomos e outros profissionais ligados à universidade. A organização e o controle pedagógico, contudo, estão totalmente a cargo da Teia dos Povos. Há alguns anos, por meio do Centro Estadual de Educação Profissional do Campo, da Floresta, do Cacau e do Chocolate Milton Santos, os moradores do Terra Vista que são envolvidos com a Teia dos Povos já vinham buscando oferecer cursos em nível técnico. A intenção de oferecer cursos de graduação e pós-graduação, por meio de parcerias com as universidades públicas da região, também era declarada. Apesar das restrições que as instituições têm enfrentado nos últimos anos, pelo menos um projeto nesse campo chegou a se concretizar: uma especialização em educação do campo, em parceria com a Universidade do Estado da Bahia (Uneb) – as aulas iniciaram em setembro de 2022.
Anteriormente, também em parceria com a Uneb e com apoio do Governo Federal, via Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), foi formada no assentamento uma turma de graduação em engenharia agronômica (2008-2013). Por fim, fundou-se uma turma de especialização em agroecologia aplicada à agricultura familiar, no modelo residência agrária, em parceria com a Universidade Estadual da Santa Cruz (Uesc), também via Pronera.
A diferença primordial, nesta nova fase, é que a Universidade dos Povos envolve cursos autônomos, sem depender da parceria com as universidades tradicionais.17 17 O que não exclui a possibilidade de cooperação com profissionais ligados às universidades para acessar saberes específicos que interessam às comunidades. A questão é o controle comunitário exercido sobre o projeto pedagógico como um todo. Nesse sentido, há um evidente passo em direção à já citada soberania pedagógica, que é um ideal estabelecido pela Teia dos Povos, como se viu.
A iniciativa da Teia não é uma exceção no campo dos movimentos sociais e étnicos. Tem sido cada vez mais comum encontrar exemplos em que os próprios coletivos elaboram e executam seus projetos pedagógicos, com diferentes graus de autonomia. O MST, ao qual o Terra Vista se vincula, é um dos maiores, se não o maior, exemplo no país nesse tema. A 270 km do Terra Vista, por sinal, localiza-se a Escola Popular de Agroecologia e Agrofloresta Egídio Brunetto (EPAAEB), no município do Prado, principal centro de formação vinculado ao MST no extremo sul da Bahia. A escola tem parceria com a UFSB e a Uneb e é coorganizadora da já citada especialização em educação do campo e agroecologia. Em Lapa (PR), o MST também mantém a Escola Latino-Americana de Agroecologia (ELAA), que oferece cursos superiores nas áreas de agroecologia, educação do campo e ciências da natureza. Em Parauapebas (PA), existe ainda o Instituto de Agroecologia Latino Americano (IALA) Amazônico, que inicialmente realizou parcerias com universidades públicas, mas também tem oferecido cursos próprios de especialização, buscando “liberdade político-pedagógica” ( Engelmann, 2018ENGELMANN, S. Iala Amazônico é um marco de resistência contra o capital, aponta dirigente Sem Terra. MST, [s. l.], 23 nov. 2018. Disponível em: https://mst.org.br/2018/11/23/iala-amazonico-e-um-marco-de-resistencia-contra-o-capital-aponta-dirigente-sem-terra/. Acesso em: 8 dez. 2022.
https://mst.org.br/2018/11/23/iala-amazo...
).
O movimento negro, igualmente, tem exemplos nessa linha, como a Universidade Zumbi dos Palmares (Unipalmares) em São Paulo. Também poderíamos falar dos cursos exclusivamente dedicados a estudantes indígenas em instituições federais e estaduais – sobretudo as licenciaturas interculturais, existentes hoje em vários estados. Em Mato Grosso do Sul e Mato Grosso há exemplos de universidades que já criam suas Faculdades Interculturais Indígenas. Em Dourados (MS), atualmente, a Faculdade Intercultural Indígena (Faind) é, inclusive, dirigida por um professor indígena, Eliel Benites. Em outros países, como o México, existem também as Universidades Interculturais Indígenas (Salmerón Castro, 2018). No caso das licenciaturas interculturais, apesar de não haver uma parceria formal, o apoio do movimento indígena é fundamental. Em várias universidades isso é notório: muitos alunos dessas licenciaturas são professores que participam ativamente do movimento indígena. Na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), o curso se chama Teko Arandu (viver com sabedoria) e pode-se perceber uma clara presença e parceria, ao longo dos anos, da Grande Assembleia Kaiowá e Guarani (Aty Guasu).
Restringindo-nos, contudo, ao universo dos movimentos camponeses, podemos perceber algumas regularidades que nos remetem ao caso da Teia dos Povos. A principal questão que se conjuga parece ser a associação dessas iniciativas à agroecologia. Nesse sentido, poderíamos observar que, de fato, estamos falando de uma revolução ontológica e epistemológica com dimensões próprias (Aiterwegmair et al ., 2021). Ou seja, a partir do momento em que as comunidades compreendem que a agroecologia é central para planejarem um futuro sustentável para si mesmas, torna-se imperativo realizar uma transformação no âmbito das escolas de ensino básico sediadas nesses locais e construir condições para tomar as rédeas dessas instituições. Para isso, formar professores é fundamental – pode-se levantar, por exemplo, a hipótese de que a aposta recorrente nas especializações esteja relacionada a esse fator.
A agroecologia, na dimensão proposta pelos movimentos sociais latino-americanos, ultrapassa de forma completa os limites epistemológicos ocidentais que forjaram nosso sistema de educação e pesquisa. Como já percebido pelos movimentos de educação popular no continente ao longo dos últimos 40 anos, não é infrequente que métodos como o conhecido “campesino a campesino” possam ser muito mais eficazes que qualquer universidade, por mais bem equipada que ela seja.
Isso – na percepção dos movimentos sociais, inclusive no caso da Teia dos Povos – se deve a fatos que as pesquisas vêm tentando explicar, por exemplo, por meio da recente expressão “agroecologia profunda” (Aiterwegmair et al ., 2021; Botelho; Cardoso; Otsuki, 2016; McFadden, 2019MCFADDEN, S. Deep agroecology: farms, food, and our future. [S. l.]: Light and Sound Press, 2019. ; García López et al ., 2019). Nesse sentido, muitas vezes, essa transição agroecológica envolve a recuperação de saberes ancestrais presentes na própria comunidade, mas que, há décadas, vêm sendo desvalorizados a partir da chamada Revolução Verde e da imposição de um sistema educacional público imposto pelos governos que marginaliza ainda mais esses conhecimentos. Relacionando à discussão antropológica contemporânea, poderíamos dizer que se trata de cosmopolitizar a discussão sobre a agroecologia, por um lado (Pimentel, S., 2021), mas também de um esforço paralelo de converter essa discussão profunda em propostas de ações coletivas – o que inclui também, mas não somente, políticas públicas – igualmente densas.
Entendemos que o movimento de criação de cursos autônomos, como o que a Teia tem buscado com sua Universidade dos Povos – e com certo grau de correspondência com o que o MST tem realizado em suas outras escolas de agroecologia –, é uma clara expressão dos limites epistemológicos, metodológicos e, poderíamos dizer também, ontológicos das escolas e das universidades tradicionais.
Mesmo quando pretende, de forma decisiva, se popularizar, no sentido preconizado por grandes pensadores da educação como Anísio Teixeira, implantando um modelo como o dos colégios universitários, por exemplo, a universidade continua refém das ontologias ocidentais relacionadas à escola – essa é a crítica que fica muito evidente no acompanhamento das reflexões e diretrizes públicas de uma rede como a Teia dos Povos, como vimos no início. Por isso, o que se requer é o apoio da UFSB (e de outras universidades da região) para viabilizar projetos criados pelas comunidades, e não a adesão das comunidades a projetos criados pela universidade, sem o devido diálogo, por mais iluminados que se concebam.18 18 É importante perceber que, também no âmbito da UFSB, a crítica radical descrita neste artigo segue convivendo com as demandas por inclusão epistêmica na universidade tradicional por parte de acadêmicos negros e indígenas (Lima, F.; Santos, M., 2020; Santos, M.; Santos, R., 2020). Ou seja, a aliança com determinados indivíduos ou coletivos dentro das instituições universitárias atuais continua sendo buscada, desde que a “soberania epistêmica” das comunidades, poderíamos dizer, não seja usurpada.
Podemos perceber que pensadores como Paulo Freire ( Freire; Illich, 1975FREIRE, P.; ILLICH, I. Diálogo Paulo Freire-Ivan Illich. Buenos Aires: Búsqueda, 1975. ) e Ivan Illich (1985)ILLICH, I. Sociedade sem escolas. Petrópolis: Vozes, 1985. , cada um a seu modo, destacaram as várias limitações do ambiente escolar, indo ao encontro das discussões que propõem atualmente atores populares como os ligados à Teia dos Povos – e convergindo com preocupações como as expressadas por meus interlocutores entre os Kaiowá e Guarani, como vimos no início do texto. Essas críticas podem ser estendidas à universidade, como demonstra o próprio plano orientador da UFSB, que se ampara, também, na obra freiriana para formular sua proposta mestra de atuação (UFSB, 2014).
Como argumenta G. Silva (2015)SILVA, G. C. A polêmica Paulo Freire e Ivan Illich: notas sobre educação e transformação. Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação, Brasília, DF, n. 24, p. 102-120, 2015. , enquanto Illich realiza uma crítica direta e irrestrita à escolarização, Freire entendia que a educação escolar surge como produto de determinada sociedade, em dado momento, e por isso é preciso lutar pela sua transformação na medida das possibilidades históricas. G. Silva destaca o seguinte trecho do livro resultante do encontro entre Freire e Illich:
Portanto, em lugar de negar a existência da educação, eu a critico: posso ser utópico, porém devemos sê-lo, e incluo-me na busca de outro tipo de educação. […] E o que me preocupa muito mais é tratar de entender as situações concretas em que a educação é destrutiva, com o propósito de buscar logo caminhos de transformá-la em uma educação melhor ( Freire; Illich, 1975FREIRE, P.; ILLICH, I. Diálogo Paulo Freire-Ivan Illich. Buenos Aires: Búsqueda, 1975. , p. 86 apud Silva, G., 2015, p. 108).
Embora haja essas reconhecidas diferenças entre os dois pensadores, ambos têm, também, pontos de convergência, e a partir deles podemos pensar algumas aproximações com as reflexões que vêm sendo propostas pelos movimentos sociais ligados à Teia dos Povos – em consonância com a crítica feita à escola por povos indígenas como os Kaiowá e Guarani, como se viu.
Ao mesmo tempo que fazem diversas críticas contundentes ao sistema escolar e universitário, boa parte das comunidades mantém demandas firmes referentes à escola pública, pois a presença dessa instituição nos territórios representa um fluxo contínuo de recursos públicos – seja por meio da infraestrutura construída e mantida, dos salários de professores ou de auxílios como materiais escolares e merenda – que é considerado direito dessas populações.19 19 Para uma análise de um caso típico da região de atuação da Teia dos Povos, em uma comunidade que tem bastante afinidade com os ideais de autonomia, como é característico dessa rede, ver Pavelic (2019) , que reconstituiu e acompanhou etnograficamente os processos de educação escolar na aldeia Serra do Padeiro, dos Tupinambá de Olivença (município de Buerarema – BA). Há, ainda, uma série de imposições decorrentes da instalação das escolas públicas nos territórios indígenas, camponeses, quilombolas, entre outros, além de um movimento, por parte das comunidades, para contornar esses inconvenientes e buscar convertê-las em equipamentos que estejam, efetivamente, a serviço dos desafios coletivos reais que são identificados nos processos políticos de organização local.
No caso das universidades, contudo, podemos perceber que a crítica é mais contundente, pois se trata de uma instituição que não se distribui de maneira “democrática” pelo território. Por demandarem um grande volume de gastos, as universidades públicas são concentradas em um ponto normalmente mais acessível à população urbana dos maiores centros de determinada região. É esse sentido que identificamos na criação de soluções como a pedagogia da alternância, surgida, justamente, a partir de reivindicações de camponeses, tanto na França como no Brasil, e hoje também aplicada a populações tradicionais – nas licenciaturas interculturais, por exemplo (Teixeira; Bernartt; Trindade, 2008). Quando, porém, surgem iniciativas como a Universidade dos Povos e as escolas de agroecologia do MST, trata-se de uma crítica ainda mais contundente à instituição universitária tradicional.
Brandão apontava, em sua crítica às limitações metodológicas da antropologia, que, em contraposição à “observação participante”, mas politicamente indiferente que foi construída por Malinowski, seria possível lembrar que Marx havia proposto a ideia de que a pesquisa deveria “conhecer para servir”. Nas palavras do autor, “estava inventada a participação da pesquisa”:
Quando o outro se transforma em uma convivência, a relação obriga a que o pesquisador participe de sua vida, de sua cultura. Quando o outro me transforma em um compromisso, a relação obriga a que o pesquisador participe de sua história. […] quando o outro, próximo, enquanto um sujeito vivo mas provisório da “minha pesquisa”, torna-se o companheiro de um compromisso cuja trajetória, traduzida em trabalho político e luta popular, obriga o pesquisador a repensar não só a posição de sua pesquisa, mas também a de sua própria pessoa. A relação de participação da prática científica no trabalho político das classes populares desafia o pesquisador a ver e compreender tais classes, seus sujeitos e seus mundos, tanto através de suas pessoas nominadas, quanto a partir de um trabalho social e político de classe que, constituindo a razão da prática, constitui igualmente a razão da pesquisa. Está inventada a pesquisa participante ( Brandão, 1987BRANDÃO, C. R. (org.). Repensando a pesquisa participante. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. , p. 12).
Ora, quando falamos de comunidades afetadas pela preocupação com a agroecologia – devotadas à transição ecológica –, o estranhamento com a educação tradicionalmente oferecida pelas escolas públicas – e pelas universidades tradicionais – parece ampliar-se de forma exponencial.20 20 Posso dizer, ainda, que o estranhamento que diversas comunidades indígenas têm com a escola, como apontamos com relação aos Kaiowá e Guarani, é, em grande parte, de ordem agroecológica – pois diversos sistemas produtivos indígenas podem ser, hoje, percebidos como agroflorestais ou agroecológicos, como vem ficando cada vez mais claro. Conferir depoimentos em S. Pimentel (2021) . Da mesma forma, em analogia ao que aponta Brandão, é possível perceber que esse desencontro se estende ao campo da pesquisa e da extensão. Uma atividade de pesquisa e extensão que pretenda se ater aos modelos clássicos oferecidos pela universidade tende a ser inócua e inútil para essas comunidades.
É dessa forma, então, que podemos sintetizar o desafio atual que os movimentos sociais ligados à agroecologia impõem à universidade, expondo ao máximo suas limitações estruturais. Para enfrentar esse desafio, percebemos que a ecologia de saberes precisará ser radicalizada em relação ao que hoje ainda é praticado, mesmo em programas ousados como é o caso do projeto Encontro de Saberes.21 21 Para um balanço das realizações do projeto Encontro de Saberes em seus dez primeiros anos, ver Carvalho e Vianna (2020) . Não se trata apenas de incorporar os alunos oriundos das comunidades ou os mestres dos saberes tradicionais ao ambiente universitário, mas sim de transferir para os territórios esse ambiente – e de construir ambientes universitários totalmente novos, na verdade, para os quais os docentes e técnicos das instituições de ensino superior, muitas vezes, não estão nem um pouco adaptados. Nesse contexto tão desafiador, a educação popular, considerada como uma nova forma de os professores e pesquisadores se relacionarem com as alteridades, pode apresentar importantes chaves e orientar, talvez, um verdadeiro programa, tanto para ações autônomas das comunidades e movimentos como para as políticas públicas.
Revisitando, afinal, o programa proposto pela Teia dos Povos, podemos perceber que se trata de um desafio a ser enfrentado de forma personalizada, em cada território – o que deveria estimular ainda mais as universidades públicas a se aproximar da agroecologia profunda que está sendo gestada pelos camponeses e povos tradicionais em tantos lugares do Brasil. Como se percebe no projeto da UFSB22 22 Segundo a Carta de Fundação da UFSB, de 20 de setembro de 2013, os quatro princípios da instituição são: eficiência acadêmica; integração social; compromisso com a educação básica; e compromisso com o desenvolvimento regional ( UFSB, 2014 ). e como a Teia preconiza, o desafio principal é auxiliar as comunidades em uma transformação completa de suas escolas – eis a lição de casa que deveria estar em discussão neste momento em muitos de nossos centros de pesquisa:
Por fim, é fundamental entender que essa escola precisa encantar as crianças e os jovens em relação a seu território e seu povo . Não se trata apenas de trabalhar a autoestima, mas de ter o conhecimento das mazelas do mundo e de eles saberem que estão protegidos no território que constituem ali e na grande aliança. Apenas por meio da experiência partilhada de acolhimento, alegria e exemplo, é possível construir valores e princípios, tais como a unidade da natureza, do povo, do território e da luta. Desse modo, nossas crianças e jovens podem perceber-se como parte de algo maior, sentindo-se completas a ponto de não acreditarem na besteira de “ter que ser algo quando crescerem” – desde crianças, elas já são parte fundamental de um grande projeto de emancipação humana e da terra […]. Cada escola precisa ser o espelho de seu território e refletir o espírito de luta fundamental ali. […] Diferente das escolas oficiais, que chegam com um modelo pronto, desconsiderando cada lugar, nossa escola precisa ser plantada de nossa própria semente, para que nasça com as características da terra onde foi semeada ( Ferreira; Felício, 2021FERREIRA, J.; FELÍCIO, E. Por terra e território: caminhos da revolução dos povos no Brasil. Arataca: Teia dos Povos, 2021. , p. 87, grifo do autor).
REFERÊNCIAS
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Para uma revisão sobre a história do movimento Kaiowá e Guarani de luta pela recuperação de terras tradicionais em Mato Grosso do Sul, conferir S. Pimentel (2012)PIMENTEL, S. K. Elementos para uma teoria política Kaiowá e Guarani. 2012. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. e Benites (2014)BENITES, T. Rojeroky hina ha roike jevy tekohape (rezando e lutando): o movimento histórico dos Aty Guasu dos Ava Kaiowa e dos Ava Guarani pela recuperação de seus tekoha. 2014. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.
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Entre os Kaiowá, os cantos xamânicos têm uma ampla gama de aplicações na vida cotidiana, em áreas como saúde, caça, agricultura, convivência familiar, vida amorosa, espiritualidade, entre outras, e são fundamentais para a transmissão de conhecimentos ( Tugny et al., 2016TUGNY, R. P. et al. A memória das canções como um território de resistência entre os povos indígenas da América do Sul: um projeto coletivo de documentação. In: LÜHNING, A.; TUGNY, R. P. (org.). Etnomusicologia no Brasil. Salvador: Edufba, 2016. p. 139-183. ). Em razão dessa centralidade, os rezadores – nhanderu e nhandesy – têm grande importância na vida (cosmo) política do grupo.
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As informações oficiais sobre a Teia dos Povos estão disponíveis no site https://teiadospovos.org/sobre/ Acesso em: 11 dez. 2022.
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O líder camponês Joelson Ferreira Oliveira é um dos fundadores e principais referências da Teia dos Povos. Atualmente vive no Assentamento Terra Vista, em Arataca (BA). Foi, também, fundador do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na Bahia e participante da coordenação nacional dessa organização. Erahsto Felício é professor de história do ensino médio no Instituto Federal da Bahia em Valença (BA) e militante da Teia dos Povos.
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Na UFSB, o termo designa situações de ensino realizadas por videoconferência ao vivo (como as chamadas lives que se popularizaram durante a pandemia), com todos os alunos em uma sala de aula nos colégios universitários. Idealmente, deve haver monitores e outras formas de suporte, como as equipes de aprendizagem ativa ( UFSB, 2014UFSB – UNIVERSIDADE FEDERAL DO SUL DA BAHIA. Plano orientador. Itabuna: UFSB, 2014. Disponível em: http://ufsb.edu.br/wp-content/uploads/Plano-Orientador-UFSB-Final1.pdf. Acesso em: 27 out. 2022.
http://ufsb.edu.br/wp-content/uploads/Pl... ). -
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Tal conceito aparece na obra de Boaventura de Sousa Santos, interlocutor referencial de diversos docentes que participaram do processo de criação da UFSB (Santos, B., 2010). Posteriormente, devido à proximidade de outros pesquisadores da instituição com o projeto Encontro de Saberes, criado por José Jorge de Carvalho, essa proposta se tornou outra referência central na instituição para a discussão da chamada interepistemicidade (Pimentel, S.; Menezes, 2022; Tugny; Gonçalves, 2020TUGNY, R. P.; GONÇALVES, G. (org.). Universidade popular e encontro de saberes. Salvador: Edufba, 2020. ).
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Aproximo os conceitos porque, na prática, dentro da UFSB, pesquisadores próximos ao projeto Encontro de Saberes passaram a desenvolver atividades desde 2014, visando ao acercamento dos mestres dos saberes tradicionais da região à universidade. Ou seja, na prática, a diretriz da ecologia de saberes possibilitou essas atividades, ainda que o desenvolvimento conceitual dos termos seja distinto e envolva um rol de ações que, no caso do Encontro de Saberes, é bem definido.
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Efetivamente, é contraditório que somente na UFMG tenha sido possível realizar essa titulação. Esse aparente descompasso é resultado de disputas políticas internas na UFSB – desde 2017, a universidade é gerida por um grupo que diverge de diversos pontos do projeto original e, por isso, não se mostrou disposto a colaborar em iniciativas como a titulação de mestres ligados à Teia dos Povos.
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S. Pimentel et al . (2020).
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Além disso, seguindo modelo já aplicado ao Conselho Universitário da UFSB, foram adicionados diversos representantes da própria instituição ao CES, inclusive pró-reitores, diminuindo o peso das representações externas na composição desse colegiado. Disponível em: https://ufsb.edu.br/a-ufsb/conselhos/conselho-estrategico-social . Acesso em: 11 dez. 2022.
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O termo “extensão ao contrário” foi apresentado por B. Santos (2011)SANTOS, B. S. A universidade no século XXI: para uma reforma democrática e emancipatória da universidade. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2011. .
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O modelo de ciclos tem, também, inspiração anisiana e se conjuga com os modelos norte-americano e europeu. O primeiro ciclo consiste em cursos divididos pelas grandes áreas citadas, com duração prevista de três anos. O segundo ciclo, opcional, é formado por cursos profissionalizantes, específicos, de dois anos. O terceiro ciclo corresponde às pós-graduações. Para mais detalhes, ver UFSB (2014)UFSB – UNIVERSIDADE FEDERAL DO SUL DA BAHIA. Plano orientador. Itabuna: UFSB, 2014. Disponível em: http://ufsb.edu.br/wp-content/uploads/Plano-Orientador-UFSB-Final1.pdf. Acesso em: 27 out. 2022.
http://ufsb.edu.br/wp-content/uploads/Pl... . As licenciaturas interdisciplinares são uma exceção: cursos de primeiro ciclo, mas também profissionalizantes. -
13
Conferir, ainda, Leclercq (1972)LECLERC, G. Anthropologie et colonialisme. Paris: Librairie Arthème Fayard, 1972. .
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Observe-se que o autor faz essa formulação em livro publicado pela Associação de Antropólogos Negros dos Estados Unidos, intitulado “Descolonizando a Antropologia”.
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O sistema cabruca consiste no plantio de cacau sombreado em meio às árvores maiores da Mata Atlântica. Para detalhes, ver Piasentin (2011)PIASENTIN, F. B. O sistema cabruca no sudeste da Bahia: perspectivas de sustentabilidade. 2011. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Sustentável) – Centro de Desenvolvimento Sustentável, Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2011. .
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Sobre o Terra Vista, ver S. Santos (2016)SANTOS, S. B. História do assentamento Terra Vista. 2016. Monografia (Licenciatura em História) – Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus, 2016. e M. Lima (2017)LIMA, M. C. A. Pra aprender tem que botar sentido: diálogos sobre despossessão, terra e conhecimento com mestres do assentamento Terra Vista – BA. 2017. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2017. .
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O que não exclui a possibilidade de cooperação com profissionais ligados às universidades para acessar saberes específicos que interessam às comunidades. A questão é o controle comunitário exercido sobre o projeto pedagógico como um todo.
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É importante perceber que, também no âmbito da UFSB, a crítica radical descrita neste artigo segue convivendo com as demandas por inclusão epistêmica na universidade tradicional por parte de acadêmicos negros e indígenas (Lima, F.; Santos, M., 2020; Santos, M.; Santos, R., 2020).
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Para uma análise de um caso típico da região de atuação da Teia dos Povos, em uma comunidade que tem bastante afinidade com os ideais de autonomia, como é característico dessa rede, ver Pavelic (2019)PAVELIC, N. L. B. Aprender e ensinar com os outros: a educação como meio de abertura e de defesa na Aldeia Tupinambá de Serra do Padeiro (Bahia, Brasil). 2019. Tese (Doutorado em Cultura e Sociedade) – Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2019. , que reconstituiu e acompanhou etnograficamente os processos de educação escolar na aldeia Serra do Padeiro, dos Tupinambá de Olivença (município de Buerarema – BA).
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Posso dizer, ainda, que o estranhamento que diversas comunidades indígenas têm com a escola, como apontamos com relação aos Kaiowá e Guarani, é, em grande parte, de ordem agroecológica – pois diversos sistemas produtivos indígenas podem ser, hoje, percebidos como agroflorestais ou agroecológicos, como vem ficando cada vez mais claro. Conferir depoimentos em S. Pimentel (2021)PIMENTEL, S. K. Teia dos Povos: afetos-encantos afro-indígenas-populares numa coalizão cosmopolítica. Tellus, Campo Grande, v. 21, n. 46, p. 253-281, 2021. .
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Para um balanço das realizações do projeto Encontro de Saberes em seus dez primeiros anos, ver Carvalho e Vianna (2020)CARVALHO, J. J.; VIANNA, L. C. R. O encontro de saberes nas universidades: uma síntese dos dez primeiros anos. Revista Mundaú, Maceió, n. 9, p. 23-49, 2020. .
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Segundo a Carta de Fundação da UFSB, de 20 de setembro de 2013, os quatro princípios da instituição são: eficiência acadêmica; integração social; compromisso com a educação básica; e compromisso com o desenvolvimento regional ( UFSB, 2014UFSB – UNIVERSIDADE FEDERAL DO SUL DA BAHIA. Plano orientador. Itabuna: UFSB, 2014. Disponível em: http://ufsb.edu.br/wp-content/uploads/Plano-Orientador-UFSB-Final1.pdf. Acesso em: 27 out. 2022.
http://ufsb.edu.br/wp-content/uploads/Pl... ).
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
15 Maio 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
20 Dez 2022 -
Aceito
27 Fev 2023