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QUESTÕES TEÓRICAS NA DESIGUALDADE SOCIAL CONTEMPORÂNEA

Introdução

Em tempos de profundo mal-estar com as transformações sociais ocorridas nas últimas décadas por conta de uma economia de mercado capitalista desregulada globalmente, o presente dossiê busca problematizar as novas agendas da teoria social contemporânea, para discutir as desigualdades sociais características dessa conjuntura. A proposta parte do pressuposto da relevância de trazer novos debates sobre o tema, não apenas no que diz respeito à validade heurística das teorias sociais existentes, como também explorar os desafios teóricos e políticos postos diante das drásticas mudanças sociais ocorridas.

A literatura acadêmica tem apontado o crescimento das desigualdades sociais no mundo globalizado (Dowbor, 2017DOWBOR, L. A era do capital improdutivo. A nova arquitetura do poder, sob dominação financeira, sequestro da democracia e destruição do planeta. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.; Fraser; Jaeggi, 2018FRASER, N.; JAEGGI, R. Capitalism: a conversation in critical theory. Cambridge: Polity Press, 2018.; Lind, 2017LIND, M. The new class war. American Affairs, Denville, v. 1, n. 2 (Summer), p. 19-44, 2017.; Piketty, 2014PIKETTY, T. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.; Savage et al., 2017SAVAGE, M et al. New Direction in Elite Studies. Routledge, 2017.; Streeck, 2016STREECK, W. How will capitalismo end? London/New York: Verso, 2016.). O livro de Thomas Piketty, O capital no século XXI, tornou-se uma importante referência no debate intelectual, ao indicar a concentração cada vez maior de renda e riqueza e o perigo iminente do estabelecimento de “desigualdades insustentáveis e arbitrárias” que ameaçam os valores democráticos. Muito além do otimismo em relação à individualização dos estilos de vida e das inovações tecnológicas incessantes, condição para esse capitalismo globalizado, a teoria social contemporânea cumpre o papel de compreender as ambiguidades, dilemas e desafios ora postos na atual conjuntura. As mudanças nas condições do trabalho (Gorz, 1988GORZ, A. Métamorphoses du travail: Quête du Sens. Critique de la raison économique. Paris: Galilée, 1988., 1991GORZ, A. pitalisme,socialisme,ecologie:désorientations, orientations. Paris: Galilée, 1991.; Boltanski; Chiapello, 2009BOLTANSKI, L.; CHIAPELLO, È. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2009.; Sennett, 2011SENNETT, R. A cultura do novo capitalismo. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2011.), a perda de direitos sociais já conquistados (Bourdieu, 2003BOURDIEU, P. A miséria do mundo. 5º edição. Petrópolis: Vozes, 2003.; Castel, 1999CASTEL, R. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1999.), a erosão das capacidades de resolução de conflitos sociais pelo Estado-Nação, o enfraquecimento da democracia e o questionamento da política partidário-representativa (Castells, 2018CASTELLS, M. Ruptura. A crise da democracia liberal. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.; Fraser, 2017FRASER, N. From progressive neoliberalism to Trump – and beyond. American Affairs, Denville,v. I, n. 4, p. 46-64, 2017.; Santos, 1998SANTOS, B. de S. Reinventar a democracia. Lisboa: Gradiva, 1998.; Streeck, 2016STREECK, W. How will capitalismo end? London/New York: Verso, 2016.), além do “desaparecimento de energias utópicas”, para usar a expressão de Axel Honneth (2017)HONNETH, A. A ideia de socialismo. Tentativa de atualização. Lisboa: Edições 70, 2017., são exemplos emblemáticos dessas transformações sociais em tempos de globalização econômica acelerada e adoção acirrada de políticas neoliberais. Paralelamente, tem-se presenciado um alargamento da esfera pública com o advento das redes digitais, ainda que essa esfera se torne cada vez mais excludente para grupos desfiliados, estigmatizados e precarizados (Canclini, 2007CANCLINI, N. G. Diferentes, desiguais e desconectados. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2007.), sendo a esquerda incapaz de apresentar agendas emancipatórias para o combate das crescentes injustiças sociais. Ainda que os movimentos sociais, nas sociedades ocidentais, a partir da década de 60, tenham ampliado significativamente as lutas para muito além dos conflitos de classe, incorporando novos grupos sociais ao debate político (Melucci, 2001MELUCCI, A. A invenção do presente. Movimentos sociais nas sociedades complexas. Petrópolis: Vozes, 2001.; Touraine, 2009TOURAINE, A. Pensar outramente. O discurso interpretativo dominante. Petrópolis: Vozes, 2009.), esses movimentos também têm a limitação de representar apenas uma parte das experiências de exclusão social.

Nesse contexto, faz-se necessário que a teoria social contemple inovações conceituais e novas abordagens para discutir as formas de dominação social injustas, adotando a perspectiva crítica para a transformação da ordem social existente. Seguindo o espírito da teoria crítica, nosso objetivo é apontar a tensão permanente entre a tendência de reprodução das desigualdades sociais e os potenciais emancipatórios em latência para a mudança social. As transformações sociais, na era globalizada, pedem uma constante revisão teórica sobre o alcance e os limites das análises consagradas, para que possam surgir inovações conceituais e novas abordagens na teoria social.

Avançar na discussão da importância das teorias sociais que respondem a essas mudanças do nosso tempo, buscando tanto prover diagnósticos sobre os problemas e desafios contemporâneos existentes como revelar as potencialidades emancipatórias, é a grande motivação deste dossiê. Nossa preocupação, no sentido macrossociológico, é trazer reflexões teóricas que possam também contribuir para análises empíricas do contexto internacional e da realidade brasileira. No plano microssociológico, nosso interesse é atentar para as especificidades e dilemas produzidos pela crescente desigualdade do novo arranjo global, com especial atenção para o enfraquecimento das democracias existentes no que se refere à impossibilidade de integração de grupos sociais junto à sistemática exclusão de parcelas significativas da sociedade, a despeito da constante luta da sociedade civil organizada, especialmente de movimentos sociais. Ao mesmo tempo em que há aprendizados morais coletivos relacionados à chave dos direitos humanos nas sociedades ocidentais, uma ideia forte como potencial de luta, há também o declínio nos níveis de solidariedade social identificado por vários autores e autoras, traduzido no crescimento da insensibilidade social consubstanciado sob as mais diversas formas de xenofobia, racismo, sexismo, homofobia, dentre outras tantas formas de intolerância. Além disso, não é por outro motivo que se identifica, tanto no cenário nacional quanto internacional, o crescimento de uma direita neoliberal regressiva, que coloca em xeque várias conquistas no que se refere à fruição de direitos conquistados.

Alguns desses temas são tratados no presente dossiê: a) a persistência do racismo na sociedade americana; b) o debate sobre desigualdade e diferença; c) os dilemas da integração de estrangeiros em tempos de migração transnacional; d) as potencialidades e limites da participação da sociedade civil; e) a relação entre desigualdade e justiça e a necessidade de a esquerda repensar os fundamentos de sua agenda para que possa ser porta-voz das lutas por justiça social. Os autores e as autoras convidados para participar desta discussão são intelectuais reconhecidos por suas contribuições para a teoria social contemporânea, com aportes acadêmicos significativos em cada um de seus campos de atuação. Cada um, à sua maneira, traz contribuições originais, relevantes e diversas para pensar as desigualdades sociais e as agendas que se impõem para a teoria social.

Abre este dossiê o artigo de Aldon Morris e Vilna Bashi Treitler, cujo título sugestivo é “The Racial State of the Union: Understanding Race and Racial Inequality in the United States of America”, mostrando que, em seus quase 250 anos de existência como nação, as elites brancas americanas deliberadamente construíram uma sociedade baseada na supremacia branca. Os autores trazem a discussão sobre a desigualdade racial americana em várias dimensões. Problematizam teoricamente a construção social da raça, pois, apesar de ser consenso a não existência de categorias raciais científicas, elas são organizadas hierarquicamente e levam a categorias raciais opacas. Para demonstrar tal processo, trazem dados sobre as desigualdades raciais persistentes, questionando as lutas contra a opressão racial desde o sistema escravocrata e contra a segregação racial do Jim Crow, ao mostrarem que o sistema de dominação racial se manteve inalterado apesar do Movimento dos Diretos Civis e do movimento black power . Hoje, ele está presente nas práticas sociais do racial profiling , que são traduzidas pela violência de policiais (brancos) contra negros, cuja face dramática é difícil de ser denunciada numa sociedade que procura não ver a questão racial depois de décadas de ação afirmativa. Os autores ainda apostam no ativismo do século XXI, de grupos como Dreamers ou Black Lives Matter , que têm o desafio de gerar mudança social em novas concertações, e afirmam: “… if the past is prologue, American racism will continue to face vigorous resistance with each victory leading to a more perfect union”.

Na sequência, Sérgio Costa, no artigo “Inequality, Difference, Articulation”, examina as limitações conceituais do paradigma reconhecimento–redistribuição desenvolvido por Axel Honneth e Nancy Fraser, a abordagem das desigualdades categoriais de Charles Tilly e a abordagem das desigualdades horizontais–verticais desenvolvida por Frances Stewart, para discutir teórica e politicamente a correlação entre diferença e desigualdade sem subsumir uma categoria na outra. Reconhecendo que a discussão sobre diferença e desigualdade vem sendo posta desde os autores clássicos e se tornou uma necessidade política, Sérgio Costa identifica como déficit nessas teorias a tendência a tratar como fixas e binárias categorias (branco-negro, homem-mulher, mestiço-indígena etc.) que são móveis, repletas de nuances e continuamente negociadas. Tais teorias, aponta ele, caem na armadilha das explicações economicista e culturalista, que não conseguem correlacionar apropriadamente desigualdade e diferença, isto é, não dão conta de explicar por que determinadas diferenças emergem como politicamente relevantes e outras não. Para além do economicismo e do culturalismo, o autor advoga que a abordagem da articulação de Homi Bhabha e Stuart Hall permite pensar como as diferenças se tornam politicamente relevantes dentro de um contexto histórico e de circunstâncias conjunturais, demonstrando como “desigualdade e diferença se constituem mutuamente, sem precedência de uma sobre a outra”. Como base empírica de sua reflexão sobre o caráter contingente da politização das diferenças, o autor analisa o processo de constituição política das populações quilombolas no Brasil.

Já Emil Sobbotka demonstra, em seu artigo “Constelações pós-nacionais e a questão da integração social”, a atualidade do debate entre Charles Taylor e Jürgen Habermas, desenvolvido nos anos 90, para pensar as tensões da integração de estrangeiros em tempos de intensas migrações transnacionais. O crescimento do nacionalismo e da preocupação com a questão da unidade na comunidade política volta ao centro das discussões na arena pública nas sociedades europeias, trazendo à tona a pertinência de repensar e rever as análises feitas por Taylor e Habermas. Em face das medidas adotadas pela União Europeia – fechamento de fronteiras, crescente rigidez na seletividade dos migrantes e patrulhamento do Mediterrâneo –, bem como do surgimento de partidos nacionalistas fortes nas sociedades afluentes, o autor examina alguns desafios políticos e teóricos que se colocam para a teoria sociológica contemporânea.

Em seu texto “Teorias sobre a participação social: desafios para a compreensão das desigualdades sociais”, Maria da Glória Gohn analisa dez abordagens teóricas reconhecidas no que diz respeito à participação social, com o intuito de debater a contribuição dessas teorias para tratar das desigualdades sociais. A autora reconhece que a maioria das abordagens subestima a dimensão econômica das desigualdades sociais, dando especial ênfase ao plano sociocultural, de inclusão cultural a partir das diferenças. Dessa forma, identifica um déficit nessas abordagens para a reflexão mais acurada sobre as mudanças estruturais necessárias para se pensar em formas de superação das desigualdades no plano econômico. Mesmo identificando as limitações dos movimentos sociais para dar conta das variadas experiências de injustiça social, Maria da Glória Gohn acredita que o movimento feminista e as teorias feministas podem servir de inspiração, uma vez que as feministas têm logrado êxito em estabelecer diálogo com diferentes formas – simbólicas e econômicas – de manifestação das desigualdades sociais.

Para finalizar, Josué Pereira da Silva em seu artigo “What is Left? Nota crítica sobre desigualdade e justiça”, recorre, provocativamente, à ambivalência da expressão What is Left para discutir, tanto a definição de esquerda apresentada na teoria política, quanto o que se perdeu ou sobrou da agenda política de esquerda nos dias de hoje. Seu objetivo é identificar, no debate político e teórico contemporâneo, temas e propostas que possam revigorar a agenda da esquerda. Apoiando-se na definição de Norberto Bobbio de que o fundamento da esquerda é a luta contra a desigualdade social, o autor aponta as propostas de combate às desigualdades sociais implementadas ao longo do século XX por governos socialdemocratas e socialistas, indicando as variações internas nos modelos de socialdemocracia e socialismo, para discutir a crise atual da esquerda e os erros da esquerda ortodoxa. Tomando o caso brasileiro como exemplo empírico dessa crise, o autor analisa o fracasso dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) na luta pelo combate às desigualdades sociais. Advoga que, apesar das políticas de transferência de renda adotadas pelos governos do PT, o programa de reformas instituído pelo partido ficou aquém de realizar transformações mais profundas, capazes de atacar as persistentes desigualdades sociais no Brasil, sendo muito mais uma “política de social-liberalismo com viés populista”, limitada à “redução de danos”. Para reatualizar a agenda da esquerda, Josué Pereira da Silva apresenta as características principais de um programa de esquerda, dialogando com autores que veem a radicalização da democracia, a crítica ao capitalismo, a defesa da ecologia e da ética como bases desse projeto. Inspirado no diagnóstico feito por Alain Caillé, que considera a desigualdade social e a corrupção endêmica como os principais problemas a serem tratados por aqueles que “lutam por emancipação”, o autor argumenta que a esquerda não deve ter seu foco exclusivamente nas desigualdades sociais, sendo condescendente com os desvios éticos e a corrupção.

Assim, convidamos os leitores e leitoras a apreciarem os textos descritos acima. Os artigos apresentados demonstram inquietação epistemológica e empírica a respeito das novas agendas para a teoria social contemporânea. Tomando emprestada a citação de Isaac Newton usada no final do texto de Maria Glória Gohn, reforçamos a convicção da importância do diálogo acadêmico:

“Se vi mais longe foi por estar de pé sobre ombros de gigantes”.

REFERÊNCIAS

  • BOLTANSKI, L.; CHIAPELLO, È. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2009.
  • BOURDIEU, P. A miséria do mundo. 5º edição. Petrópolis: Vozes, 2003.
  • CANCLINI, N. G. Diferentes, desiguais e desconectados. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2007.
  • CASTEL, R. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1999.
  • CASTELLS, M. Ruptura. A crise da democracia liberal. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
  • DOWBOR, L. A era do capital improdutivo. A nova arquitetura do poder, sob dominação financeira, sequestro da democracia e destruição do planeta. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.
  • FRASER, N.; JAEGGI, R. Capitalism: a conversation in critical theory. Cambridge: Polity Press, 2018.
  • FRASER, N. From progressive neoliberalism to Trump – and beyond. American Affairs, Denville,v. I, n. 4, p. 46-64, 2017.
  • GORZ, A. Métamorphoses du travail: Quête du Sens. Critique de la raison économique. Paris: Galilée, 1988.
  • GORZ, A. pitalisme,socialisme,ecologie:désorientations, orientations. Paris: Galilée, 1991.
  • HONNETH, A. A ideia de socialismo. Tentativa de atualização. Lisboa: Edições 70, 2017.
  • LIND, M. The new class war. American Affairs, Denville, v. 1, n. 2 (Summer), p. 19-44, 2017.
  • MELUCCI, A. A invenção do presente. Movimentos sociais nas sociedades complexas. Petrópolis: Vozes, 2001.
  • PIKETTY, T. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.
  • SANTOS, B. de S. Reinventar a democracia. Lisboa: Gradiva, 1998.
  • SAVAGE, M et al. New Direction in Elite Studies. Routledge, 2017.
  • SENNETT, R. A cultura do novo capitalismo. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2011.
  • STREECK, W. How will capitalismo end? London/New York: Verso, 2016.
  • TOURAINE, A. Pensar outramente. O discurso interpretativo dominante. Petrópolis: Vozes, 2009.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jun 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    22 Ago 2018
  • Aceito
    03 Dez 2018
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