Open-access POLITICAL ECOLOGY OF WATER AND HYDROBIOPOLITICS IN THE SEMI-ARID OF BRAZILIAN NORTHEAST: the hierarchy of access between plate cisterns and tank wagons

ccrh Caderno CRH Cad. CRH 0103-4979 1983-8239 Universidade Federal da Bahia - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - Centro de Recursos Humanos This article aims to discuss traditional and recent public policies aimed at dealing with the problems of water shortages in the Brazilian Northeast semiarid region, more specifically tank wagons and government programs that invested in the construction of residential cisterns. The theoretical perspective adopted is used to analyse the data collected by direct observation in the area between the states of Pernambuco and Paraiba and conduct interviews with residents of the area to which the transposition of the waters of the São Francisco River was announced as the “solution” to the problems of water sustainability. Among the conclusions, we highlight that the government programs to construct residential cisterns do not solve the water supply problems in the focused region; and the tank wagons are insufficient to meet the demand for water during dry periods in the northeastern semi-arid region, implying expenses that are difficult to be borne by most family farmers interviewed. INTRODUÇÃO Graciliano Ramos, em seu livro Vidas secas (1938), descreve de modo visceral a ideia de reprodução ad aeternum de uma paisagem física e humana relativa aos problemas ligados às estiagens na região Nordeste, chamando a atenção para como a repetição de trajetórias e maneiras de lidar com a falta de água configuram uma recorrência da ação governamental sobre a natureza e dos arranjos sociopolíticos de que resulta a continuidade dos cenários de privação de água para grandes parcelas da população do semiárido nordestino. Neste artigo, focalizamos algumas recorrências na paisagem hídrica do semiárido nordestino, especificamente os efeitos da implementação de programas governamentais de construção de cisternas residenciais e a paradoxal continuidade da intensa circulação de caminhões-pipa na área mencionada, a despeito inclusive da recente transposição das águas do Rio São Francisco realizada na região, propondo-nos a analisar sintomas dos fluxos e antifluxos relativos aos agenciamentos hídricos no semiárido nordestino, que convergem no sentido de naturalizar a escassez hídrica estrutural na região citada, discutindo alguns elementos discursivos e ações apresentadas como resolutivas dos problemas seculares de desabastecimento de água experimentados no semiárido nordestino. Questionamos neste artigo as interações entre culturas formais e informais relativas à água, que se moldam em arenas em que valores relativos aos recursos hídricos são produzidos a partir de conflitos relativos a estes no Nordeste do Brasil. Assim, nossa tarefa se constitui da análise de maneiras pelas quais visões de mundo, modos de gestão hídrica e corpos de conhecimentos são mobilizados para a justificativa de hierarquias tradicionais de acesso e uso de recursos hídricos, bem como as estratégias de responsabilização pelas chamadas “crises hídricas” do semiárido nordestino. Chamamos a atenção dos leitores para os indícios da continuidade e intensidade da circulação dos caminhões-pipas, em uma área que tem sido alvo da implementação de programas enunciados como “tecnologias de convivência com o semiárido”, o P1MC – Programa Um Milhão de Cisternas 1 e o P1+2 – Programa Uma Terra e Duas Águas .2 A pesquisa em que este artigo se baseia teve dois pilares centrais: a observação sistemática, durante um dia em cada quinzena, do movimento de carros nas rodovias estaduais PE – 280 e PE – 275, na rodovia federal BR – 110, e na rodovia PB – 325, feita de janeiro de 2018 a janeiro de 2019; e a realização de vinte entrevistas semiestruturadas com uma amostra intencional de residentes das zonas rurais dos municípios da região semiárida dos estados de Pernambuco e Paraíba, como indicado no mapa apresentado na Figura 1 , dentre os quais estão beneficiários ou não das cisternas de placas, dialogando sobre suas rotinas de dependência da água fornecida por caminhões-pipas. Figura 1 – Percurso rodoviário entre Sertânia/PE e Catolé do Rocha/PB Fonte: elaboração dos autores a partir de imagem de satélite do Google Earth, 2022.3 Durante esse período, fizemos o acompanhamento quinzenal do movimento de caminhões-pipas entre os municípios de Sertânia/PE e Teixeira/PB, com o intuito de identificar as frequências referidas ao fluxo dos veículos, registradas a partir dos pontos indicados na Figura 1 por uma equipe de pesquisadores formada por estudantes, sob a supervisão dos professores coordenadores da pesquisa. Em termos de perspectiva teórica, três contribuições foram utilizadas na pesquisa de que apresentamos alguns resultados neste texto: a da Ecologia Política – em geral e especificamente referida à água; o debate sobre a capitalização/mercadorização da natureza; e os conceitos de hidrobiopolítica e de agenciamentos hídricos. Essas perspectivas teóricas são ferramentas a partir de que se analisam os aspectos referentes à hierarquização do acesso e uso dos recursos naturais na atual conjuntura socioeconômica, à maneira como se constroem as relações entre meio ambiente e sociedade, bem como à maneira como a proposta do acesso e uso sustentável da água é focalizada na formulação de políticas estatais destinadas à produção da governamentalidade das populações e o controle dos imaginários – em termos de discursos explicativos do que os indivíduos experimentam em termos de rotinas de acesso e uso de recursos hídricos. O texto deste artigo se estrutura em três seções que se sucedem a esta introdução: duas relativas às perspectivas teóricas adotadas e uma terceira de análise dos dados, seguindo-se as conclusões. PENSANDO COM A ECOLOGIA POLÍTICA DA ÁGUA A corrente denominada Ecologia Política analisa as maneiras pelas quais as sociedades estabelecem relações com o meio ambiente físico, discutindo como as influências de diversos fatores econômicos, científicos, culturais, ideológicos, direitos de propriedade, movimentos sociais e da resistência da organização das comunidades locais e de grupos de interesses externos, dentre outros se exercem sobre as formulações e interpretações discursivas em geral, particularmente as científicas, sobre as formas humanas da apropriação da natureza. A ecologia política emergiu aproximadamente há vinte anos, como uma proposta que representa um novo campo de pesquisa e de reflexão dedicado a focalizar os processos de inter-relações que as sociedades humanas estabelecem com seus respectivos ambientes biofísicos, utilizando conceitos da economia política e representando o resultado de um diálogo intenso entre a Biologia, a Geografia, a História e a Ciência Política ( Little, 2006 ). Os autores da ecologia política fazem uso de um modelo transdisciplinar, buscando verificar as formas como os recursos naturais são utilizados em zonas de conflito, visando responder também perguntas como: a) De que maneira as posições sociais dos atores sociais determinam o privilegiamento ou o desprivilegiamento no que se refere ao acesso e uso da água? b) Como, quando e em que contextos as assimetrias socio-hídricas se intensificam e refluem? c) A que regulações estão sujeitas as elites hídricas? E d) A que coalizões sociohídricas pertencem? ( Little, 2006 ). Leff (2006) propõe uma metodologia baseada na racionalidade e na epistemologia ambientais, combinando-as na observação do conjunto dos instrumentos ocultos direcionados a regular a relação sociedade-natureza, que operariam em torno do uso, controle e gestão dos recursos naturais, fazendo com que os desequilíbrios socioambientais se reproduzam e eventualmente se intensifiquem. A proposta da Ecologia Política integra ainda em seu bojo a relação entre o sujeito epistêmico, a racionalidade, as observações e o objeto de estudo a ser explicado. Neste caso específico, os processos de enfrentamento dos problemas relativos à escassez da água , podendo ser analisado sob diferentes enfoques, tanto no campo das ciências sociais quanto no das naturais ( Castro, 2001 ). O sujeito epistêmico que emerge da hidrologia e da engenharia hidráulica faz uso de uma racionalidade técnico-científica, se preocupando exclusivamente com os indicadores quantitativos relativos às condições e causas físico-naturais e técnicas. O sujeito epistêmico que emerge da Ecologia política combina as abordagens técnicas com os elementos sociais, culturais e políticos. Para Leff (2006) , a ecologia política emerge incorporando uma perspectiva de saber num contexto em que a politização do conhecimento se volta para conduzir um processo de apropriação social da natureza, cujas ações se voltam para a construção de um novo território, que vai do pensamento crítico à execução de ações políticas. Nessa direção, Ioris (2006) coloca que o perfil do debate acerca da questão hídrica no Brasil hegemonicamente se restringe aos processos hidrológicos, deixando de lado uma reflexão que estabeleça relações nítidas entre exploração econômica do meio ambiente, seguida de exploração político-econômica de setores da sociedade. Segundo o autor, quando isso é priorizado deixa-se de reconhecer que a degradação do meio ambiente, tendo em vista as exigências do desenvolvimento dito sustentável, nada mais é do que a outra face da degradação social causada pela exploração de setores da população, resultante das políticas neoliberais. No que tange à abordagem dos arranjos sociohídricos de acesso à água, racionalidades específicas são utilizadas: o especialista econômico/financeiro faz uso de uma racionalidade mercantil, preocupada com a identificação dos indicadores quantitativos, a eficiência econômica e os critérios de mercado; o especialista institucional/administrativo faz uso de uma racionalidade político-administrativa, com o intuito de observar as normas burocráticas e os princípios de organização direcionados a mitigar os conflitos relacionados à água; o especialista político faz uso de uma racionalidade política, enfatizando o potencial de governabilidade das populações e da água em sua formulação e articulação de hidrobiopolíticas cujos agenciamentos favoreçam os interesses político-partidários; e o ecologista utiliza uma racionalidade ecológica com o intuito de pontuar os indicadores de sustentabilidade, de preservação, de qualidade de vida e a reflexão sobre os níveis de segurança hídrica para as gerações presentes e futuras. Castro (2001) ressalta que a Ecologia Política enfatiza uma racionalidade sociopolítica, produzindo análises preocupadas em identificar as configurações de poder, as desigualdades estruturais, as injustiças socioambientais, os níveis de equidade hídrica e a mobilização de discursos em que se combinam símbolos, ideias, concepções, valores, motivações e identidades sociais, na mediação dos conflitos em torno da apropriação e uso dos recursos hídricos nas diversas escalas geográficas consideradas. As considerações colocadas por Castro (2001) remetem à ideia de que o objeto de estudo aqui em análise reivindica o uso de uma metodologia que privilegia o eixo socioantropológico, em torno de que se agregam as contribuições eventualmente construídas a partir dos olhares das outras ciências e decorrentes dos lugares constituintes das dinâmicas a que se submetem os recursos naturais em geral, e os hídricos em particular. Em autores da área de Ecologia Política da água, encontramos a argumentação de que os conflitos referentes ao acesso à água – que costumam emergir em situações de “crises hídricas” – não se estruturam apenas em referência à anunciada escassez de água, ou seja, não se constituem apenas em termos “reais”, mas sim devido à ausência de clareza no arranjo dos pactos de governança hídrica, estabelecidos no século XXI entre nações, que em muitos casos se tornam responsáveis pela existência de cenários restritivos do acesso e uso dos recursos hídricos pelos economicamente desfavorecidos (Boelens; Perreault; Vos, 2018; Castro, 2001 ; Ioris, 2006 ). À medida que a discussão dos conflitos socioambientais é construída no âmbito midiático com matizes apocalípticas, em torno de expressões tais como: “a água vai acabar!”, “morreremos de sede!” e “haverá guerras por causa da água!”, tendemos a nos distanciar de abordagens científicas, contribuindo com a formação de lacunas em relação à possibilidade de oferecer respostas objetivas, sem a contaminação de informações incompletas e viciadas, incapazes de se integrar em uma abordagem interdisciplinar e rigorosa da temática ( Castro, 2001 ). FOUCAULT, A BIOPOLÍTICA, A HIDROBIOPOLÍTICA E SEUS AGENCIAMENTOS O conceito de biopolítica aparece pela primeira vez em uma palestra proferida por Michel Foucault, no Rio de Janeiro, intitulada O Nascimento da Medicina Social (1979). Com a publicação dos textos de cursos ministrados no Collège de France, intitulados Em Defesa da Sociedade (1975-1976), Segurança, Território e População (1977-1978) e Nascimento da Biopolítica (1978-1979), Foucault constrói esse conceito com mais amplitude. Para esse autor, a partir do século XVIII, o Ocidente conheceu uma profunda transformação nos mecanismos de poder. O poder de soberania, o direito de causar a morte ou de deixar viver tão característico desse poder, é agora substituído por “um poder que gera a vida e a faz se ordenar em função de seus reclamos” ( Foucault, 1988 , p. 125). O século XVIII marca os fenômenos próprios à vida humana, que começam a ser levados em conta por mecanismos de poder e de saber que incidem sobre eles com o objetivo de produzir efeitos de controle e de moldagem. Diz Foucault (1988): O homem ocidental aprende pouco a pouco o que é ser uma espécie viva num mundo vivo, ter um corpo, condições de existência, probabilidade de vida, saúde individual e coletiva, forças que se podem modificar, e um espaço em que se pode reparti-las de modo ótimo. Pela primeira vez na história, sem dúvida, o biológico reflete-se no político; o fato de viver não é mais esse sustentáculo inacessível que só emerge de tempos em tempos, no acaso da morte e de sua fatalidade: cai, em parte, no campo de controle do saber e de intervenção do poder (p. 128). É pelo fato de encarregar-se da vida, mais do que a ameaça da morte, que o poder pode se apropriar dos processos biológicos para controlá-los e eventualmente modificá-los. Com efeito, para Foucault (1988) , Se pudéssemos chamar de “biohistória” as pressões por meio das quais os movimentos da vida e os processos da história interferem entre si, deveríamos falar de “biopolítica” para designar o que faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana (p. 134). Trata-se de uma biopolítica porque os novos objetos de saber, que se criam “a serviço” do novo poder, se destinam ao controle da própria espécie; e a população é o novo conceito que se constrói para dar conta de uma dimensão coletiva que até então não havia completado sua sociogênese no campo dos saberes. A população é esse “novo corpo: corpo múltiplo, corpo com inúmeras cabeças, se não infinito pelo menos necessariamente numerável” ( Foucault, 1999 , p. 292). A biopolítica vai se ocupar, portanto, dos processos biológicos relacionados ao homem-espécie, estabelecendo sobre eles uma espécie de regulamentação . E, para compreender e conhecer melhor esse corpo, é preciso não apenas descrevê-lo e quantificá-lo – por exemplo, em termos de nascimento e morte, fecundidade, morbidade, longevidade, migração, criminalidade etc. –, mas também jogar com tais descrições e quantidades, combinando-as, comparando-as e, sempre que possível, prevendo seu futuro por meio do passado. Há aí a produção de múltiplos saberes, como a Estatística, a Demografia e a Medicina Sanitária. Para Foucault, o “limiar de modernidade biológica” de uma sociedade reside exatamente no momento em que a espécie humana entra em jogo nas estratégias políticas de um Estado. “O homem”, diz ele, “durante muito tempo, permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivo e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal, em cuja política, sua vida de ser vivo está em questão” (Foucault, 1988, p. 134). Uma das consequências práticas desse poder encarregado de promover a vida é a instauração da norma. Isto é, dito de outro modo, um poder como esse, que tem como tarefa principal a garantia da vida, terá sempre a necessidade de mecanismos contínuos, reguladores e corretivos. E esse mecanismo é a norma. É por isso que, como afirma Foucault (1988) , “uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida” (p. 135). Foi a norma que conseguiu estabelecer um elo entre o elemento disciplinar do corpo individual (disciplina) e o elemento regulamentador de uma multiplicidade biológica (biopoder). A norma é tanto aquilo que se pode aplicar a um corpo que se deseja disciplinar como a uma população que se deseja regulamentar. A sociedade de normalização é uma sociedade em que se cruzam a norma disciplinar e a norma da regulamentação. Para Foucault, foi essa sociedade de normalização que conseguiu cobrir toda essa superfície que vai do orgânico ao biológico, do corpo à população, mediante a instauração dessas duas tecnologias, a disciplinar e a regulamentadora (Foucault, 1999, p. 302). Em resumo, a biopolítica se caracteriza, no século XVIII, como uma forma de racionalizar os problemas postos à prática governamental pelos fenômenos próprios de um conjunto de vivos que constituem uma população. Com a publicação de O nascimento da biopolítica (1978-1979), Foucault dá uma nova guinada em suas pesquisas. Seu objetivo é, agora, analisar as formas de controle biopolítico, segundo o eixo das economias de mercado, influenciado pelo neoliberalismo econômico da Escola de Chicago. Na visão de Foucault, sob a influência do neoliberalismo econômico do pós-guerra, o homem foi compreendido em termos de homo oeconomicus , isto é, como um ser agente que, estimulado pelas diversas exigências do mercado, busca responder a essas exigências. O interesse de Foucault, então, se dirige às diversas formas de controle dos indivíduos e das populações, tal como elas se dão nas modernas economias em que se “governa sob os interesses do mercado” (Foucault, 2008, p. 143). Nossa proposta de utilização do conceito de hidrobiopolítica, uma extensão do conceito foucaultiano de biopolítica, se refere à análise dos processos pelos quais o governo da população se exerce sobre os cotidianos de apropriação e uso dos recursos hídricos pelos indivíduos, clivados pela sua localização na estratificação social considerada. A hidrobiopolítica se refere, por exemplo, a) às prioridades enunciadas e praticadas pelos estados-nações em termos das políticas públicas hídricas em sua interface com as relações entre acesso e consumo de água e saúde; b) aos modos de prospecção, formulação e implementação de estratégias para enfrentar as deficiências no atendimento das necessidades de água de camadas socialmente vulneráveis da população; e c) à articulação entre as dinâmicas de regulação estatal na esfera hídrica e processos de produção e reprodução de hierarquias políticas e econômicas nas sociedades envolventes. A hidrobiopolítica se reflete em agenciamentos que abrangem questões amplas tais como as diretrizes e efeitos práticos das políticas nacionais de manejo de resíduos sólidos e suas pressões sobre mananciais e solos, em termos de exposição de populações em geral e mais intensamente das camadas de indivíduos socialmente vulneráveis a condições precárias de vida; a implementação precária de sistemas de saneamento urbano e rural; a condescendência com o desmatamento de áreas florestais (Amazônia, Cerrado e Mata Atlântica); a falta de políticas efetivas de proteção dos mananciais, entre outros elementos. Os mecanismos de funcionamento das hidrobiopolíticas secularmente exercitadas no país produzem a ideia de acesso adequado à água canalizada para a população brasileira, disseminando-se o dado produzido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2010), segundo o qual aproximadamente 85% dos domicílios brasileiros teriam acesso a serviço de abastecimento de água por rede geral em 2010. Esse indicador não leva em consideração fatores como, por exemplo, as fontes de poluição, a qualidade dos tratamentos convencionais, a contaminação no percurso da distribuição, o desabastecimento, o racionamento, a intermitência de fornecimento, as formas inadequadas de armazenamento, ou a dificuldade de pagamento de contas de água por falta de recursos. Os agenciamentos das hidrobiopolíticas apontam para a produção de assimetria hídrica, opacizada pelas metáforas de coletividade e generalidade, que têm como efeito a naturalização da desigualdade do acesso à água em quantidades adequadas e qualidade desejada, verificada em relação às variáveis de renda, regiões e áreas de ocupação urbana ( Perreault, 2014 ; Del Grande et al ., 2016). A REPRODUÇÃO DA PAISAGEM HÍDRICA SECULAR NO SEMIÁRIDO NORDESTINO: A CONTINUIDADE DOS CAMINHÕES-PIPA E A PROMESSA IRREALIZADA DAS CISTERNAS RESIDENCIAIS Uma das hidrobiopolíticas mais tradicionais formuladas e implementadas pelo Estado brasileiro para o enfrentamento dos problemas de desabastecimento de água no semiárido nordestino foi estabelecida pela Portaria Interministerial nº1, firmada entre o Ministério da Integração Nacional (MI) e o Ministério da Defesa (MD) em 2012, estabelecendo uma mútua cooperação técnica e financeira entre ambos para a realização de ações complementares com o intuito de implementar a distribuição emergencial de água potável, visando principalmente o atendimento das populações atingidas por seca e estiagem na região do Semiárido nordestino ( Brasil, 2012 ). A Operação Carro-Pipa (OCP), como dispõe a referida Portaria, foi definida no âmbito de uma série de atividades complementares de distribuição de água potável para o consumo humano, que é realizada por meio dos denominados “carros-pipas” às populações rurais e urbanas atingidas pela estiagem, sendo dada prioridade aos municípios que se encontram em situação de emergência ou estado de calamidade pública devidamente reconhecidos por ato do Governo Federal. A OCP também inclui localidades em situações distintas das supramencionadas, mas que tenham sido indicadas pela Secretaria Nacional de Defesa Civil (Sedec). A distribuição da água potável pela Operação, portanto, não objetiva suprir todas as necessidades diárias das pessoas atendidas, mas se ocupa de assegurar o mínimo suficiente para as atividades imprescindíveis de alimentação e hidratação do corpo humano ( Brasil, 2012 ). Segundo o IBGE (2010), embora no Nordeste se concentre a maior frequência do recurso ao transporte de água em caminhões para fazer face às necessidades hídricas, ela acontece também em outras regiões, como podemos ver no Gráfico 1 . Gráfico 1 – Número de domicílios que são abastecidos por carros-pipas no Brasil Fonte: IBGE (2010). O Gráfico 1 e o Gráfico 2 são significativos quanto à continuidade da alternativa dos caminhões-pipas como forma de enfrentar o desabastecimento de água no Brasil. Apenas no Nordeste, cerca de 595.140 domicílios sofrem com problemas de abastecimentos e recorrem à água oriunda da chuva ou de carro-pipa. Em torno de 945.179 pessoas eram atendidas em 2010 por caminhões-pipas. Gráfico 2 – Número de pessoas abastecidas por carro-pipa no Brasil Fonte: IBGE (2010). De acordo com o Ministério da Integração Nacional (2017) , em 2016 a OCP atendeu 827 municípios situados em nove estados diferentes (Alagoas, Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Sergipe, Rio Grande do Norte) e na região norte de Minas Gerais, contando com 6.926 carros-pipa para distribuir a água nas casas das famílias participantes do programa. Na Paraíba, esses números não eram significativamente diferentes no período, proporcionalmente, no que se refere aos dados apresentados. Os caminhões-pipas não abastecem apenas locais com pouca ou sem água. É comum na região do semiárido nordestino, principalmente durante os períodos de seca, ocorrer uma diminuição da vazão dos rios, em que corpos d’água receptores de esgoto acabem exalando o mau cheiro, tornando mais evidente os efeitos de neles depositar resíduos sanitários, tornando necessário recorrer ao abastecimento por caminhões-pipa, mesmo quando há água nas torneiras. O semiárido paraibano está inserido no polígono das secas, possuindo em torno de 20 municípios atendidos por abastecimento de caminhões-pipas, um dos destaques em termos das hidrobiopolíticas secularmente exercitadas como estratégia de combate ao desabastecimento de água na região citada, tanto para o abastecimento total quanto como complemento na demanda d’água. A oferta dos caminhões-pipa, um agenciamento da hidrobiopolítica, configura um cenário marcado por uma discrepância entre a procura e a oferta de água no semiárido nordestino, sendo a primeira muito maior do que a segunda, o que abre espaço para a reprodução da situação de assimetria hídrica estrutural, já que, com o processo de mercantilização da água, a população mais carente sofre por não poder pagar, sendo privilegiados os indivíduos que podem ( Silva, 2010 ). Os problemas ambientais e sociais que perpassam a hidrobiopolítica de uso de caminhões-pipa no Brasil, principalmente no semiárido nordestino, demonstram a exposição de amplos setores da população regional à vulnerabilidade hídrica e seus efeitos em termos de qualidade de vida. As observações diretas do fluxo das rodovias já citadas apontam para uma grande quantidade de caminhões-pipa em trânsito. As entrevistas realizadas também indicam a incidência de altos níveis de dependência dos caminhões-pipas por parte das populações rurais, incluindo indivíduos que possuem e que não possuem cisternas de placas em suas residências. Porta-vozes do exército declararam que a água que eles transportam é majoritariamente utilizada para abastecer cisternas, sendo dirigida à comunidade em geral, levando-se em consideração critérios de acessibilidade explícitos às condições de circulação dos caminhões-pipa e a idade dos beneficiados. O exército também determina que, após o reabastecimento de cada cisterna, a água deve ser distribuída entre os membros da família que habitam a zona dentro do raio máximo de 500 metros. Também se exige dos receptores da água o desligamento da calha da cisterna, com o objetivo de evitar a contaminação pela possibilidade de mistura entre a água da chuva e a água distribuída pelos caminhões-pipas. Nossas observações e entrevistas feitas na área pesquisada apontam para o fato de que a distribuição de água para as cisternas de placas, de 16 mil litros, feita por meio dos caminhões-pipa sob a responsabilidade do exército, não atende às necessidades das famílias da região. Muitas pessoas não têm acesso à água em alguns períodos críticos, levando-as a desembolsarem aproximadamente R$ 300,00 ao mês para comprar a água de que necessitam. Vejamos o que diz um dos entrevistados sobre esse ponto: A crise maior que existe no Sertão é a falta de água. Você imaginar perder todo o rebanho por fome e sede, abandonar sua casa porque não tem água para botar uma panela no fogo é muito duro. Comprar água ninguém tem condições. Uma pipa de mil litros já subiu pra 35 reais e uma de 9 mil litros para 200 reais. O pobre não tem como comprar, porque, ou passa fome ou sede (Agricultor familiar, 38 anos). Essa fala aponta para uma situação de injustiça hídrica, definida no debate sobre Justiça Ambiental como aquela configurada quando, sendo a água um recurso que provoca conflitos profundos, ademais em uma conjuntura de crescimento da demanda e diminuição da disponibilidade dela, instaura-se uma concorrência e os pobres tendem a perder em termos de apropriação e uso do recurso, quando confrontados com novos concorrentes – incluindo megacidades, empresas de mineração, silvicultura e agronegócio – que usurpam as maiores parte dos recursos de águas superficiais e subterrâneas disponíveis (Crow et al ., 2014; Donahue; Johnston, 1998 ; Escobar, 2006 ; Grain, 2012 ; Harvey, 1996 ; Perreault, 2014 ). Essas situações de injustiça hídrica e assimetria acentuada na apropriação e uso do recurso produzem a privação e a insegurança hídrica, afetando as áreas urbanas marginalizadas e comunidades rurais que concentram agricultores familiares, representando em muitas regiões ameaças profundas à sustentabilidade ambiental e à segurança alimentar local e nacional ( Escobar, 2008 ; Mehta; Veldwisch; Franco, 2012; Mena-Vásconez; Boelens; Vos, 2016). No trecho de uma das entrevistas que realizamos, é feita uma descrição que impressiona pela clareza com que apresenta o funcionamento dos agenciamentos da hidrobiopolítica, evidenciando a percepção que apresenta um misto de naturalização e de crítica em relação às diferenças entre as experiências de pobres e ricos com a seca no semiárido nordestino e à atuação do governo: A seca só existe para o pobre, o agricultor sofrido e esquecido, para quem precisa de chuva para plantar e botar comida pra dentro de casa. O rico não tá nem aí. Não sabe nem o que é crise, seca, falta d’água. Não sabe nem o que é calor, tudo dentro dos quartos com ar condicionado. Quem tem dinheiro compra uma pipa de 16 mil litros, tem seus 3 meses garantidos. Isso quando o próprio governo não manda deixar de graça, porque o rico tem o dinheiro e os votos do pobre que é sujeito a ele, por um emprego ou uma casa de morada e é isso que interessa pro governo, pro prefeito e vereador. A situação do pobre pra eles não faz diferença alguma. E pobre é bicho besta de iludir! Uma carona de carro novo, um aperto de mão em época de eleição consegue o voto do pobre. Você veja que o governo constrói essas cisternas nas casas, mas não manda abastecer nessa época, que é quando mais estamos precisando. Manda máquinas pra prefeitura, mas não mandam cavar os açudes. Numa seca dessa era pra tá tudo cavado, as paredes tudo com forra, pra quando chover caber mais água. Manda o exército, mas o pobre tem que pagar 3 mil reais por poço. Era pra ser de graça e cavar cada baixio desses, construir aquelas barragens subterrâneas pra conter água. Só falta a vontade de fazer (Agricultor familiar, líder de associação, 55 anos). A afirmação de que “o rico não tá nem aí. Não sabe nem o que é crise, seca, falta d’água” indica o caráter de classe das experiências com o desabastecimento de água que os períodos de longas estiagens provocam. Como afirmam Del Grande et al . (2016), a posição social influencia radicalmente as rotinas de acesso, uso e capacidade de abastecimento de água. A força da regulação social mediada pelas hidrobiopolíticas dos caminhões-pipas e das cisternas aparece no comentário sobre a estrutura da dádiva – dar/receber/retribuir – mobilizada por meio da água fornecida pelo governo e transformada em retorno eleitoral. O elemento da funcionalidade política dos agenciamentos das hidrobiopolíticas citadas pode ser um elemento explicativo de sua continuidade ao longo do tempo na região estudada. Um exemplo de crítica à ineficácia das hidrobiopolíticas implementadas pelo governo federal no semiárido nordestino está presente no trecho final da fala do agricultor entrevistado, que avalia a ineficiência das cisternas residenciais ao passo que elas precisam ser abastecidas; a constatação do envio de máquinas que poderiam cavar açudes, mas não o fazem; a dupla responsabilização dos indivíduos, que pagam seus impostos, mas ainda precisam desembolsar montantes de capital para que o exército perfure poços. Mesmo sendo a seca um fato inevitável e recorrente no discurso dominante na região, as narrativas em torno dela compõem uma história composta por vácuos e incompletudes – os indivíduos comuns esperam por chuvas abundantes, resistindo em não reconhecer o semiárido como uma região cujos índices pluviométricos são baixos, a evapotranspiração é intensa e, portanto, sem a intervenção de tecnologias de abastecimento hídrico eficiente, não é viável para a produção agropecuária. Vejamos mais dois exemplos de questionamento dos beneficiários das cisternas: Os 52 mil litros de água do cisternão só dá para cultivar algumas hortaliças, a exemplo de uma horta de 2 m2 (risos). Ora, tenho uma pequena área plantada de melancia, a qual irrigo com 38 mil litros d’água diariamente […] a cisterna só daria praticamente para irrigar uma vez. Menino, isso não dá para nada não (Agricultora familiar, 46 anos). As cisternas são boas porque dá pra gente armazenar água, mas a gente continua dependendo dos carros-pipas para abastecê-las. Aí a gente tem que arrumar dinheiro para pagar (Agricultor familiar, 45 anos). As falas dos entrevistados trazidas nos levam a questionar a eficácia de programas como o P1MC, apresentados recentemente como alternativa para a “convivência” com o semiárido. Essa ineficácia seria funcional em dois sentidos: a) enquanto hidrobiopolítica, na medida em que permite aos políticos locais a reprodução da distribuição de caminhões-pipas como moeda de troca, por meio da qual se alimenta o capital político de prefeitos, vereadores e deputados da região; e b) como estratégia de expansão do mercado de águas, reproduzindo-se a cadeia dos fornecedores da água distribuída pelas instâncias governamentais, bem como os fornecedores diretos à elite hídrica – formada pelos consumidores que podem comprar os caminhões-pipa. CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste artigo focalizamos a continuidade de hidrobiopolíticas implementadas secularmente, com o objetivo enunciado de enfrentar os problemas de desabastecimento de água enfrentados no semiárido nordestino, a saber: as cisternas de placas e a distribuição de água potável por meio de caminhões-pipas, constatando-se que as raízes da tradicional “indústria da seca” continuam ramificadas na região observada. A média por nós registrada, durante cada evento de observação, durante o período de janeiro de 2018 a janeiro de 2019, foi de quarenta carros-pipas circulando no intervalo de aproximadamente dez horas de acompanhamento de pontos fixos nas rodovias citadas, das 6h às 16h em dias da semana alternados, com base quinzenal. Na região estudada, mesmo nos períodos em que há ocorrência de chuvas, ainda que na maioria das vezes estas sejam irregulares, a dinâmica de circulação dos carros-pipas não é significativamente alterada. Os níveis de segurança hídrica de amplos setores da população permanecem baixos, mesmo com a implementação dos seculares programas governamentais de abastecimento emergencial de água potável por meio de caminhões-pipas, e dos recentes Programa 1 milhão de Cisternas (P1MC) e o Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2), já concluídos. A sucessão de invernos e verões pouco altera a paisagem hidrossocial analisada, em que a dificuldade de acesso à água de boa qualidade pelos consumidores das camadas pobres da população se reproduz ad aeternum . As entrevistas com moradores dos municípios-alvos da pesquisa revelaram diferentes modos de acesso e uso dos recursos hídricos entre os atores sociais. Tais diferenças envolvem hierarquias e interações que englobam também as cisternas de placas enquanto uma tecnologia vinculada aos programas citados. A partir de 2012, esses programas cessaram suas respectivas ações, iniciando-se o que foi enunciado com sua continuidade, o Programa “Água para Todos” ( Silva et al., 2015 ). As cisternas de placas e suas tecnologias, inspiradas na tradição regional de armazenamento de água, tiveram resultados importantes para a população beneficiada. Entretanto, merecem uma análise que leve em consideração as tensões no campo hidrossocial regional, pontos dentre os quais destacamos os seguintes: seus efeitos concretos em termos de garantia da segurança hídrica; o fortalecimento da indústria de carros-pipas; os vieses políticos da distribuição das cisternas; a dúvida quanto às políticas de manutenção periódica das cisternas e à incorporação de tecnologias complementares cada vez mais necessárias; o desvio de finalidades do uso das cisternas; o processo de precificação da água para abastecê-las, quando o Estado não o faz; as redes de clientelismo tecidas por meio da mercantilização e distribuição estatal da água; os limites do alcance da tecnologia; a alocação politicamente determinada das cisternas de placas. Discutimos os limites intrínsecos às hidrobiopolíticas implementadas no semiárido nordestino, a exemplo da recorrência dos caminhões-pipa e das cisternas de placas, a partir de categorias tais como as da hierarquização social e da ideologia, as conexões entre a mudança e a continuidade nas hidrobiopolíticas e suas consequências no cotidiano do acesso e uso dos recursos hídricos vivenciados por indivíduos pertencentes a diferentes estratos sociais, aparecendo as cisternas de placas enquanto viáveis para os subcidadãos – os indivíduos das camadas pobres da população (Boelens; Perreault; Vos, 2018; Ioris, 2006 ). Juntamente com a discussão da necessidade de implementação de tecnologias complementares, a exemplo de poços artesianos, barragens subterrâneas, barreiros-trincheira e tanques de pedra, ou de encanação de água proveniente da integração de cadeias de adutoras, por exemplo, também observamos como entre os beneficiados pelas cisternas de placas se constrói a intenção de “fazer a coisa certa” em relação ao uso da água e uma condenação dos que se apropriam da água de suas propriedades de forma considerada “egoísta” e “interesseira”. Vejamos como a lógica da mercadorização que gradualmente tem sido introduzida na gestão da água é condenada em termos individuais, como vemos na fala a seguir: Não, o povo é ruim demais também! Eu vejo aí pessoas que têm poços bons dentro de suas terras, negando água aos vizinhos. Pior, deixa de dar ao próprio gado dele, pra vender. Lá em Jardim mesmo, aquele rapaz lá, filho de Zezim, tem um poço com vazão de 3 mil litros por hora, vende todinha a água. Deixa o gado todinho morrendo de sede do vizinho […], mas não oferece nem mesmo uma pipa de água. E ainda diz mais, tomara que ano que vem, só chova pra passar água aqui no Riacho, porque enche meu cacimbão e eu ganho um dinheirinho. É gente uma pessoa dessas?! Por isso que não chove. Eu mesmo só tenho pena dos bichos que são irracionais e não sabe de nada. Mas do povo, o povo de hoje não presta não (Agricultora familiar, 35 anos). Nessa fala está ilustrada uma concepção tendencialmente encontrada nas entrevistas, segundo a qual os indivíduos se avaliam em relação a um léxico da apropriação dos recursos hídricos mediante relações conflituosas e mercadológicas. Em relação à água se estabeleceu um campo cujas dinâmicas podem ser compreendidas a partir da abordagem da ecologia política. Corroborando o encontrado, por exemplo, em Montenegro e Montenegro (2012) , as entrevistas realizadas apontam para os limites das cisternas de placas construídas no âmbito de programas governamentais, que envolveram ONGs e o esforço de populações locais ( P1MC e P1+2 ). Anunciadas como alternativas para amenizar a vulnerabilidade hídrica das comunidades, não acumulam água suficiente para as atividades agropecuárias, nem para garantir o consumo de água potável pelos longos períodos de estiagem enfrentados na região. A recorrência do uso de caminhões-pipas como uma alternativa paliativa para amenizar a escassez hídrica de famílias das zonas rurais de municípios do semiárido aponta para a reprodução de práticas seculares para o atendimento emergencial de 26 municípios do semiárido paraibano situados em regiões afetadas por períodos de estiagem. Segundo a Agência Executiva de Gestão das Águas do Estado da Paraíba – AESA e o 31º Batalhão de Infantaria Motorizado – BIMTZ (2019), para realizar o atendimento dos municípios carentes de água potável, o Exército realiza o cadastramento das famílias, estabelece a periodicidade de abastecimento das casas, os critérios para o armazenamento da água e as rotas a serem cobertas pelos caminhões-pipa. Os dados referidos a essa ação governamental podem ser observados na Tabela 1: Tabela 1 – Municípios atendidos, reservatórios-fontes, populações e pipeiros Reservatório Municípios atendidos População Número de pipeiros Cachoeira dos Cegos Assunção Livramento Santa Luzia São José do Sabugi São José dos Cordeiros Taperoá 49.636 71 Saulo Maia Queimadas Lagoa Seca Puxinanã Caturité 76.153 39 Camalaú Boa Vista Cabaceiras Coxixola Gurjão Parari Santo André São João do Cariri Serra Branca 40.070 38 Araçagi Alcantil Barra de Santana Barra de São Miguel Boqueirão Campina Grande Fagundes Riacho de Santo Antônio São Domingos do Cariri 461.056 105 TOTAL 26 municípios 626.915 253 Fonte: Informações coletadas pelos autores junto ao 31º BIMTZ/IBGE/AESA (2019). Os problemas hídricos que emergem nos períodos de estiagem no semiárido nordestino, quando os problemas de desabastecimento de água emergem, têm sido enfrentados em termos de políticas públicas por meio da continuidade de hidrobiopolíticas secularmente praticadas na região citada. Mesmo com a transposição das águas do Rio São Francisco, segundo observações sistemáticas do tráfego nas rodovias estaduais PE – 280 e PE – 275 e na rodovia federal BR – 110 (feitas de janeiro de 2018 a janeiro de 2019), que cortam o semiárido pernambucano e paraibano, e a realização de 20 entrevistas semiestruturadas com residentes das zonas rurais dos municípios da região semiárida dos estados citados, a paisagem hídrica da região apresenta um quadro de inalteração, repetindo-se a continuidade dos problemas de abastecimento enfrentados, bem como a ineficiência das estratégias governamentais de construção de cisternas ( P1MC e P1+2 ) e de uso de caminhões-pipas para sua solução. Para melhor expressar a sistemática do trabalho de campo no tocante à realização das entrevistas, produzimos a Tabela 2 .4 Tabela 2 – Entrevistados durante o processo de realização do trabalho de campo4 Zona rural das cidades em que realizamos as entrevistas Entrevistas Nome do agricultor (a) Idade Tipo de Cisterna Mês da entrevista Zona Rural da cidade de Sertânia/PE 01 Jeová 63 P1MC e P1+2 Janeiro de 2018 Zona Rural da cidade de Sertânia/PE 02 Gelva 47 P1MC e P1+2 Janeiro de 2018 Zona Rural da cidade de Sertânia/PE 03 Aureliana 57 P1MC e P1+2 Fevereiro de 2018 Zona Rural da cidade de Sertânia/PE 04 Cirlândia 32 P1MC e P1+2 Fevereiro de 2018 Zona Rural da cidade de Sertânia/PE 05 Antônio 72 P1MC e P1+2 Fevereiro de 2018 Zona Rural da cidade de Tuperetama/PE 06 Joaquim 56 P1MC Março de 2018 Zona Rural da cidade de Tuperetama/PE 07 Severina 61 P1MC Abril de 2018 Zona Rural da cidade de Tuperetama/PE 08 Maria da Conceição 58 P1MC Maio de 2018 Zona Rural da cidade de São José do Egito/PE 09 Genésio 63 P1MC e P1+2 Junho de 2018 Zona Rural da cidade de São José do Egito/PE 10 Ivonete 49 P1MC e P1+2 Julho de 2018 Zona Rural da cidade de São José do Egito/PE 11 Carlos 55 P1MC e P1+2 Agosto de 2018 Zona Rural da cidade de São José do Egito/PE 12 Pedro 57 P1MC e P1+2 Agosto de 2018 Zona Rural da cidade de São José do Egito/PE 13 Quitéria 59 P1MC e P1+2 Setembro de 2018 Zona Rural da cidade de Patos/PB 14 Dalva 64 P1MC e P1+2 Setembro de 2018 Zona Rural da cidade de Patos/PB 15 Heleno 63 P1MC e P1+2 Outubro de 2018 Zona Rural da cidade de Patos/PB 16 Bispo 70 P1MC e P1+2 Outubro de 2018 Zona Rural da cidade de Patos/PB 17 Maria José 52 P1MC e P1+2 Novembro de 2018 Zona Rural da cidade de Catolé do Rocha/PB 18 Orlando 60 P1MC e P1+2 Novembro de 2018 Zona Rural da cidade de Catolé do Rocha/PB 19 Vilma 40 P1MC e P1+2 Dezembro de 2018 Zona Rural da cidade de Catolé do Rocha/PB 20 Ivonete 58 P1MC e P1+2 Dezembro de 2018 Fonte: Elaborada pelos autores a partir de trabalho de campo (2018). Essa continuidade das hidrobiopolíticas precisa ser estudada com mais profundidade, principalmente considerando a diversidade do semiárido nordestino e as especificidades das expectativas dos efeitos das ações de transposição das águas do Rio São Francisco. Os ritmos de transformação das hidrobiopolíticas são influenciados pela esfera da cultura e da política. Sua compreensão exige tempo e atenção intelectual concentrada. Este artigo é um passo de um caminho ainda a ser completado, observando-se os efeitos da poderosa passagem dos dias sobre o cenário da governança hídrica brasileira em suas diversas escalas. REFERÊNCIAS ARTICULAÇÃO SEMIÁRIDO BRASILEIRO. Programa uma Terra e duas águas (P1+2). ASA, Recife, 13 set. 2021. Disponível em: https://www.asabrasil.org.br/acoes/p1-2. Acesso em: 7 nov. 2022. 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Prestação de Contas do Exército de 2016. Brasília, DF: Secretaria-Executiva, 2017. MINISTÉRIO DA INTEGRAÇÃO NACIONAL Prestação de Contas do Exército de 2016 Brasília, DF Secretaria-Executiva 2017 MONTENEGRO, A. A. A.; MONTENEGRO, S. M. G. L. Olhares sobre as políticas públicas de recursos hídricos para o semiárido. In: GHEYI, H. R. et al. (org.). Recursos hídricos em regiões áridas e semiáridas: estudos e aplicações. Campina Grande: Instituto Nacional do Semiárido; UFPB, 2012. p. 1-27. MONTENEGRO A. A. A. MONTENEGRO S. M. G. L Olhares sobre as políticas públicas de recursos hídricos para o semiárido GHEYI H. R et al org Recursos hídricos em regiões áridas e semiáridas: estudos e aplicações Campina Grande Instituto Nacional do Semiárido; UFPB 2012 1 27 PERREAULT, T. What kind of governance for what kind of equity? Towards a theorization of justice in water governance. Water International, Abingdon, v. 39, n. 2, p. 233-245, 2014. 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Conflitos sociopolíticos, recursos hídricos e programa um milhão de cisternas na região semiárida da Paraíba Novos Cadernos NAEA Belém 18 2 69 92 2015 1 O P1MC foi criado em 2003, sendo destinado a estabelecer uma prática eficiente de convivência dos indivíduos com o semiárido. Antes desse programa, predominava a máxima de garantia de água para todos dentro do paradigma da intervenção estatal e da lógica do desenvolvimento sustentável. Na implementação do referido programa, mobiliza-se o discurso da convivência com o semiárido, a que se agregam símbolos e metáforas da microação coletiva, apresentada pelos representantes da ASA (Articulação no Semiárido Brasileiro) como modelo revolucionário e eficiente ( Silva et al., 2015 ). 2 O Programa P1+2 foi criado em 2007 e tem como objetivo principal estocar água nos tempos considerados de alta pluviosidade métrica para enfrentar o período da anunciada escassez hídrica no semiárido. O discurso colocado pelo programa é de que os beneficiários terão uma segurança hídrica e alimentar, por reconhecer que a água da chuva armazenada serve para produzir alimentos e sementes. Tem o intuito de ampliar o estoque de água das famílias, comunidades rurais e populações tradicionais, para dar conta das necessidades dos plantios e das criações animais (Articulação no Semiárido Brasileiro, 2021). Disponível em: https://earth.google.com/web/@- -7.5711128,-37.29926123,589.37868642a,163581. 38184512d,35y,-0h,61.22931671t,0r. Acesso em: out. 2022. 4 Por questão de ética, modificamos os nomes dos respondentes, a fim de preservar suas identidades.
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