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Uma década do estudo ORCHESTRA: características organizacionais, desfechos dos pacientes, desempenho e eficiência no cuidado intensivo

INTRODUÇÃO

A organização e a estrutura das unidades de terapia intensiva (UTIs) afetam a qualidade e a eficiência no cuidado intensivo.(11. Weled BJ, Adzhigirey LA, Hodgman TM, Brilli RJ, Spevetz A, Kline AM, Montgomery VL, Puri N, Tisherman SA, Vespa PM, Pronovost PJ, Rainey TG, Patterson AJ, Wheeler DS; Task Force on Models for Critical Care. Critical Care Delivery: the importance of process of care and ICU structure to improved outcomes: an update from the American College of Critical Care Medicine Task Force on Models of Critical Care. Crit Care Med. 2015;43(7):1520-5.,22. Sakr Y, Moreira CL, Rhodes A, Ferguson ND, Kleinpell R, Pickkers P, Kuiper MA, Lipman J, Vincent JL; Extended Prevalence of Infection in Intensive Care Study Investigators. The impact of hospital and ICU organizational factors on outcome in critically ill patients: results from the Extended Prevalence of Infection in Intensive Care study. Crit Care Med. 2015;43(3):519-26.) Como os cuidados agudos variam significativamente entre os países, as populações de pacientes e as práticas locais de cuidado, espera-se que as associações entre a estrutura, o processo e os desfechos nas UTIs também sejam diferentes dependendo do contexto. Atualmente, a maior parte da informação disponível sobre UTIs é proveniente de estudos realizados em países desenvolvidos, e tais resultados podem não ser totalmente aplicáveis aos países em desenvolvimento.

Uma breve história do estudo ORCHESTRA

Para ajudar a preencher a lacuna referida, em 2014, o estudo ORCHESTRA (ORganizational CHaractErSTics in cRitical cAre) foi concebido para descrever a estrutura, o processo e a organização das UTIs, além de investigar o impacto dessas características nos desfechos dos pacientes e no desempenho e eficiência nos cuidados intensivos. O estudo foi desenhado em fases, para propor hipóteses consistentes com o conhecimento atual e incluir novos centros e pacientes em cada fase. No início, incluiu exclusivamente UTIs brasileiras, mas, em fases mais recentes, também foram incluídas UTIs do Uruguai. A figura 1 mostra o número de pacientes e centros incluídos em todas as fases. Nas três primeiras fases, foram incluídos mais de 475 mil pacientes em mais de 200 UTIs. No entanto, o estudo foi interrompido durante a pandemia da doença do coronavírus 2019 (COVID-19) porque as UTIs e as instalações hospitalares foram gravemente afetadas; além disso, também foram afetados os dados dos casos dos pacientes.(33. Quintairos A, Rezende EA, Soares M, Lobo SM, Salluh JI. Leveraging a national cloud-based intensive care registry for COVID-19 surveillance, research and case-mix evaluation in Brazil. Rev Bras Ter Intensiva. 2022;34(2):205-9.) Atualmente, a quarta fase está em andamento e inclui internações em UTIs de 2022 a 2023. O Apêndice 1S (Supplementary Material) apresenta a lista de centros e investigadores que participaram de todas as fases.

Figura 1
Número de hospitais, unidades de terapia intensiva e pacientes incluídos em cada uma das quatro fases do ORCHESTRA. O estudo não foi realizado entre 2019 e 2021.

* A Fase 4 ainda está em andamento. O número final de hospitais, unidades de terapia intensiva e pacientes ainda não é conhecido.

UTI - unidade de terapia intensiva.


Desenho e metodologia do estudo

Uma descrição completa dos métodos é fornecida no Apêndice 2S (Material Suplementar). Resumidamente, o ORCHESTRA é um estudo de coorte retrospectivo multicêntrico que usou dados coletados prospectivamente de admissões consecutivas em UTIs. O estudo usa uma abordagem pragmática. Foram convidadas a participar as UTIs registradas na Brazilian Research in Critical Care Network (BRICNet)(44. [BRICNet, a collaborative brazilian network to conduct and to promote multicenter studies in intensive care]. Rev Bras Ter Intensiva. 2007;19(3):408. Portuguese.) que utilizam o Epimed Monitor System (Epimed Solutions, Rio de Janeiro, Brasil),(55. Zampieri FG, Soares M, Borges LP, Salluh JI, Ranzani OT. The Epimed Monitor ICU Database: a cloud-based national registry for adult intensive care unit patients in Brazil. Rev Bras Ter Intensiva. 2017;29(4):418-26.) um sistema de registro comercial baseado em nuvem para fins de melhoria da qualidade e benchmarking. Os dados anonimizados de todos os pacientes adultos (≥ 16 anos de idade) são obtidos do Epimed Monitor System. Foram excluídos os pacientes readmitidos ou cujos dados principais (por exemplo: diagnóstico de admissão e desfechos hospitalares) estivessem faltando. Os dados são inseridos prospectivamente em um formulário eletrônico estruturado de relato de caso por meio de uma combinação de dados integrados com prontuários eletrônicos de saúde locais e dados inseridos manualmente por um gestor de caso treinado. Os dados coletados incluem dados demográficos, diagnósticos, comorbidades e avaliações de fragilidade; pontuações usadas regularmente em cuidados críticos, incluindo o Simplified Acute Physiology Score (SAPS) 3; uso de suporte de órgãos; e desfechos de UTI e hospitalares, entre outras variáveis. Todas as variáveis do Epimed Monitor System são estruturadas com códigos internos vinculados, sem campos de texto livre, com procedimentos e controles para auxiliar na entrada de dados e minimizar erros de processamento e o registro de valores discrepantes ou implausíveis.

Em seguida, o coordenador da UTI e/ou o enfermeiro-chefe preenchem um formulário on-line sobre as características organizacionais, estruturais e de processo do hospital e da UTI. Os domínios do inquérito baseiam-se na literatura em todas as fases do estudo e incluem, por exemplo, caracterizações da UTI e do hospital, padrões de pessoal, rodadas multidisciplinares, uso de listas de verificação, implementação de protocolos para evitar complicações associadas à assistência médica e a políticas de assistência à família. O desfecho primário do estudo é a mortalidade intra-hospitalar. Os desfechos secundários incluem mortalidade na UTI e as durações das internações na UTI e hospitalar. Além disso, são avaliadas medidas de desempenho e eficiência da UTI.(66. Salluh JI, Soares M, Keegan MT. Understanding intensive care unit benchmarking. Intensive Care Med. 2017;43(11):1703-7.,77. Salluh JI, Soares M. ICU severity of illness scores: APACHE, SAPS and MPM. Curr Opin Crit Care. 2014;20(5):557-65.)

Os dados anonimizados dos pacientes e das UTIs são processados e analisados de forma centralizada em servidores dedicados com controle de acessos e registros em conformidade com as normas de privacidade e proteção de dados.

Principais publicações e resultados

Os resultados de todas as publicações relacionadas ao ORCHESTRA estão resumidos na tabela 1S do Material Suplementar; no entanto, há alguns estudos em andamento. Apresentamos aqui uma amostra selecionada dos principais resultados.

No primeiro estudo, o número de protocolos totalmente implementados e de protocolos clínicos de gestão conjunta (mais de um prestador de cuidados envolvido) foi associado à menor mortalidade.(88. Soares M, Bozza FA, Angus DC, Japiassú AM, Viana WN, Costa R, et al. Organizational characteristics, outcomes, and resource use in 78 Brazilian intensive care units: the ORCHESTRA study. Intensive Care Med. 2015;41(12):2149-60.) Em um estudo subsequente em pacientes com câncer, além do número de protocolos, a presença de farmacêuticos dedicados na UTI e a ocorrência de reuniões diárias entre oncologistas e intensivistas no planejamento de cuidados foram associadas a taxas de mortalidade mais baixas e ao uso mais eficiente de recursos.(99. Soares M, Bozza FA, Azevedo LC, Silva UV, Corrêa TD, Colombari F, et al. Effects of organizational characteristics on outcomes and resource use in patients with cancer admitted to intensive care units. J Clin Oncol. 2016;34(27):3315-24.) Checklists e protocolos também são essenciais para garantir a continuidade da qualidade dos cuidados durante os fins de semana, especialmente em pacientes com cirurgia programada.(1010. Zampieri FG, Lisboa TC, Correa TD, Bozza FA, Ferez M, Fernandes HS, et al. Role of organisational factors on the "weekend effect" in critically ill patients in Brazil: a retrospective cohort analysis. BMJ Open. 2018;8(1):e018541.) A implementação de protocolos associada a melhores desfechos é um achado recorrente de vários estudos relacionados ao ORCHESTRA (Tabela 1S - Material Suplementar) e contrasta com os achados de estudos realizados em países desenvolvidos.(1111. Checkley W, Martin GS, Brown SM, Chang SY, Dabbagh O, Fremont RD, Girard TD, Rice TW, Howell MD, Johnson SB, O'Brien J, Park PK, Pastores SM, Patil NT, Pietropaoli AP, Putman M, Rotello L, Siner J, Sajid S, Murphy DJ, Sevransky JE; United States Critical Illness and Injury Trials Group Critical Illness Outcomes Study Investigators. Structure, process, and annual ICU mortality across 69 centers: United States Critical Illness and Injury Trials Group Critical Illness Outcomes Study. Crit Care Med. 2014;42(2):344-56.,1212. Sevransky JE, Checkley W, Herrera P, Pickering BW, Barr J, Brown SM, Chang SY, Chong D, Kaufman D, Fremont RD, Girard TD, Hoag J, Johnson SB, Kerlin MP, Liebler J, O'Brien J, O'Keefe T, Park PK, Pastores SM, Patil N, Pietropaoli AP, Putman M, Rice TW, Rotello L, Siner J, Sajid S, Murphy DJ, Martin GS; United States Critical Illness and Injury Trials Group-Critical Illness Outcomes Study Investigators. Protocols and hospital mortality in critically ill patients: yhe United States Critical Illness and Injury Trials Group Critical Illness Outcomes Study. Crit Care Med. 2015;43(10):2076-84.) Podemos levantar a hipótese de que, em um cenário com menor concentração de enfermeiros e outros prestadores de cuidados por paciente, os processos protocolizados para prevenir complicações associadas à assistência médica e aderir às melhores práticas de evidência contribuem para atenuar os efeitos na continuidade do atendimento. A análise de agrupamentos com aprendizado de máquina foi usada para investigar se os padrões relacionados à equipe estavam associados a melhores desfechos.(1313. Zampieri FG, Salluh JI, Azevedo LC, Kahn JM, Damiani LP, Borges LP, Viana WN, Costa R, Corrêa TD, Araya DE, Maia MO, Ferez MA, Carvalho AG, Knibel MF, Melo UO, Santino MS, Lisboa T, Caser EB, Besen BA, Bozza FA, Angus DC, Soares M; ORCHESTRA Study Investigators. ICU staffing feature phenotypes and their relationship with patients' outcomes: an unsupervised machine learning analysis. Intensive Care Med. 2019;45(11):1599-607.) As unidades de terapia intensiva pertencentes ao agrupamento com intensivistas em tempo integral, farmacêuticos dedicados e níveis mais altos de autonomia do enfermeiro tiveram os melhores desfechos.

Além disso, aproveitamos a oportunidade para avaliar e validar vários escores usados rotineiramente em cuidados intensivos. Por exemplo, o SAPS 3, recomendado pela Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB) para avaliar o desempenho da UTI no Brasil, só foi validado em estudos com um número limitado de instituições e pacientes. Um estudo de validação usando o banco de dados ORCHESTRA revelou que a equação padrão do SAPS 3 foi bem ajustada para recomendação no Brasil. Notavelmente, também validamos a razão de uso de recursos padronizada como uma medida de eficiência no uso de recursos na UTI.(88. Soares M, Bozza FA, Angus DC, Japiassú AM, Viana WN, Costa R, et al. Organizational characteristics, outcomes, and resource use in 78 Brazilian intensive care units: the ORCHESTRA study. Intensive Care Med. 2015;41(12):2149-60.,1414. Rothen HU, Stricker K, Einfalt J, Bauer P, Metnitz PG, Moreno RP, et al. Variability in outcome and resource use in intensive care units. Intensive Care Med. 2007;33(8):1329-36.)

CONCLUSÃO

O estudo ORCHESTRA é um dos maiores estudos contemporâneos de coorte em todo o mundo e contribuiu para identificar alvos potencialmente modificáveis para melhorar a organização da UTI e a assistência ao paciente. Além disso, foi interessante validar instrumentos relevantes para caracterizar e estratificar pacientes em estado crítico e avaliar o desempenho e a eficiência da UTI. As perspectivas futuras para as próximas fases incluem UTIs de outros países onde seja possível atender aos critérios de elegibilidade do estudo.

REFERENCES

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Editado por

Editor responsável: Dimitri Gusmao-Flores - https://orcid.org/0000-0002-1973-6099

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    11 Abr 2024
  • Aceito
    22 Maio 2024
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