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Desfechos clínicos da fraqueza muscular adquirida na unidade de terapia intensiva em pacientes graves com COVID-19. Estudo de coorte prospectivo

Ao Editor

A fraqueza muscular adquirida na unidade de terapia intensiva (FAUTI) é uma das complicações neurológicas mais comuns em pacientes de unidade de terapia intensiva (UTI),(11 Herridge MS, Azoulay E. Outcomes after critical illness. N Engl J Med. 2023;388(10):913-24.,22 Vanhorebeek I, Latronico N, Van den Berghe G. ICU-acquired weakness. Intensive Care Med. 2020;46(4):637-53.) e a prevalência de FAUTI após o surgimento da síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA) relacionada à doença pelo coronavírus 2019 (COVID-19) foi de 70 a 100%.(33 Yamada K, Kitai T, Iwata K, Nishihara H, Ito T, Yokoyama R, et al. Predictive factors and clinical impact of ICU-acquired weakness on functional disability in mechanically ventilated patients with COVID-19. Heart Lung. 2023;60:139-45.) Os fatores de risco da FAUTI, como uso frequente de bloqueadores neuromusculares (BNM) e uso constante de corticosteroides são inúmeros e estão bem descritos na população com COVID-19.(33 Yamada K, Kitai T, Iwata K, Nishihara H, Ito T, Yokoyama R, et al. Predictive factors and clinical impact of ICU-acquired weakness on functional disability in mechanically ventilated patients with COVID-19. Heart Lung. 2023;60:139-45.

4 Bax F, Lettieri C, Marini A, Pellitteri G, Surcinelli A, Valente M, et al. Clinical and neurophysiological characterization of muscular weakness in severe COVID-19. Neurol Sci. 2021;42(6):2173-8
-55 Núñez-Seisdedos MN, Lázaro-Navas I, López-González L, López-Aguilera L. Intensive care unit- acquired weakness and hospital functional mobility outcomes following invasive mechanical ventilation in patients with COVID-19: a single-centre prospective cohort study. J Intensive Care Med. 2022;37(8):1005-14.) Esses fatores de risco da FAUTI são semelhantes aos da população sem COVID-19.(22 Vanhorebeek I, Latronico N, Van den Berghe G. ICU-acquired weakness. Intensive Care Med. 2020;46(4):637-53.) A FAUTI, sobretudo, está associada ao aumento do número de dias de ventilação mecânica (VM) e à internação prolongada na UTI,(11 Herridge MS, Azoulay E. Outcomes after critical illness. N Engl J Med. 2023;388(10):913-24.) apesar de poucos estudos terem avaliado os desfechos clínicos na população com COVID-19.(55 Núñez-Seisdedos MN, Lázaro-Navas I, López-González L, López-Aguilera L. Intensive care unit- acquired weakness and hospital functional mobility outcomes following invasive mechanical ventilation in patients with COVID-19: a single-centre prospective cohort study. J Intensive Care Med. 2022;37(8):1005-14.,66 Schmidt D, Piva TC, Glaeser SS, Piekala DM, Berto PP, Friedman G, et al. Intensive care unit-acquired weakness in patients with COVID-19: occurrence and associated factors. Phys Ther. 2022;102(5):pzac028.) Pacientes graves com COVID-19 podem apresentar incapacidade funcional prolongada.(77 Fontes LC, Costa PJ, Fernandes JC, Vieira TS, Reis NC, Coimbra IM, et al. The impact of severe COVID-19 on health-related quality of life and disability: an early follow-up perspective. Rev Bras Ter Intensiva. 2022;34(1):141-6.) Assim, este estudo visou avaliar a associação entre a presença de FAUTI e os desfechos clínicos nessa população.

Este estudo de coorte prospectivo incluiu pacientes admitidos em uma UTI terciária entre junho de 2020 e maio de 2021. Foi aprovado conforme as diretrizes nacionais (Plataforma Brasil 66240017.0.0000.5530).

Incluímos pacientes internados em UTI com SDRA devido à pneumonia confirmada por SARS-CoV-2 com VM invasiva. Foram coletados dados das seguintes características clínicas: idade, sexo, comorbidades, Simplified Acute Physiology Score (SAPS 3) e Sequential Organ Failure Assessment (SOFA) na admissão à UTI. O diagnóstico de FAUTI ficou estabelecido em pacientes com escore Medical Research Council (MRC) < 48 pontos, sendo que MRC < 36 pontos é considerado indicativo de FAUTI grave.(22 Vanhorebeek I, Latronico N, Van den Berghe G. ICU-acquired weakness. Intensive Care Med. 2020;46(4):637-53.) Esse escore produz uma estimativa global da função motora ao avaliar seis categorias motoras bilateralmente em grupos musculares distintos. Medimos o MRC em dois momentos: ao acordar da sedoanalgesia intravenosa contínua, momento em que o paciente era capaz de obedecer aos comandos ao acordar (MRC 1), e ao receber alta da UTI (MRC 2). Calculamos a variabilidade do MRC, definida como MRC 2 – MRC 1. O desfecho primário do estudo foi a mortalidade hospitalar. Os desfechos secundários foram número de dias sem ventilação (DSVs) aos 28 e 60 dias e necessidade de traqueostomia. Os DSVs foram definidos como número de dias em que os pacientes estavam vivos e sem VM invasiva. Os pacientes que morreram foram considerados com zero DSVs. As estatísticas descritivas incluíram frequências e porcentagens para variáveis categóricas e médias/medianas ± desvios-padrão/intervalos interquartis para variáveis contínuas. Avaliamos as variáveis contínuas com o teste de Mann-Whitney. Usamos a análise de variância unidirecional para comparar os DSVs no Dia 60 entre os pacientes sem FAUTI, com FAUTI grave e com FAUTI, e o teste post hoc de Tukey ao comparar as diferenças entre os grupos. Para analisar variáveis categóricas, usamos o teste do qui-quadrado. A associação entre as variáveis e a mortalidade hospitalar foi avaliada por meio de regressão logística reversa, que mostrou as razões de chances (RCs) e os intervalos de confiança de 95% (IC95%), considerando a mortalidade hospitalar como variável dependente. Escolhemos as variáveis independentes de acordo com as diferenças entre os grupos, com p < 0,2 como ponto de corte. Os testes estatísticos foram bicaudais, considerando-se valor de p < 0,05 como indicativo de significância estatística. Para todas as análises, usamos o jamovi 2.3.21.0.

Avaliamos 438 pacientes (taxa de mortalidade de 13%) (Tabela 1). O tempo médio de VM invasiva foi de 14 (8 - 23) dias. O tempo médio de medição do MRC 1 foi de 10 (6 - 14) dias. O tempo médio de internação na UTI foi de 17 (10 - 27) dias e o tempo médio de internação hospitalar foi de 31 (20 - 47) dias. Todos os pacientes receberam corticosteroides para o tratamento da COVID-19: dexametasona 6mg/dia por 10 dias.(88 RECOVERY Collaborative Group; Horby P, Lim WS, Emberson JR, Mafham M, Bell JL, Linsell L, et al. Dexamethasone in hospitalized patients with Covid-19. N Engl J Med. 2021;384(8):693-704.) Os pacientes que precisaram de BNM tiveram chance maior de desenvolver FAUTI (RC 4,74; IC95% 2,49 - 9,01; p < 0,001). A mediana do MRC 1 foi de 36 (±12) pontos e a mediana do MRC 2 foi de 45 (±10) pontos; 381 pacientes (86%) tiveram FAUTI e 185 (42%) tiveram FAUTI grave. O número médio de dias entre as duas medições do MRC foi de 4 (2 - 7) dias. Os pacientes que sobreviveram tiveram escore MRC de 1 mais alto do que os pacientes que morreram: 36 (12,6) versus 31 (12,2), com diferença média de −4,8 (IC95% −8,9 - −0,7; p = 0,02). No entanto, não houve diferença na variabilidade do MRC entre sobreviventes e não sobreviventes, com diferença média de zero (IC95% −4 - 3; p = 0,82). De acordo com a análise multivariada, um escore MRC de 1 foi associado à sobrevida na alta hospitalar (Tabela 1). Houve diferença no escore MRC 1 entre os pacientes que precisaram de traqueostomia e os que não precisaram: 28 (21 - 34) versus 38 (30 - 47); p < 0,01, respectivamente. No entanto, não houve diferença na variabilidade do MRC entre os pacientes que precisaram de traqueostomia e os que não precisaram: 2 (zero a 10) versus 0,5 (-2 - 13), com p = 0,96. Os pacientes sem FAUTI tinham mediana de 53 DSVs no Dia 60 (48 - 56) em comparação com aqueles diagnosticados com FAUTI leve (49 dias, IQ25 – 75% 43 - 52) ou aqueles diagnosticados com FAUTI grave (39 dias, IQ25 – 75% 23 - 47); com diferença estatisticamente significativa (p < 0,01) (Figura 1). Os pacientes com traqueostomia (n = 98) tiveram escores MRC 1 mais baixos do que os sem traqueostomia (n = 340): 28 (20 - 34) versus 38 (30 - 47); p < 0,01.

Figura 1
Dias sem ventilação aos 60 dias conforme estratos de fraqueza muscular adquirida na unidade de terapia intensiva.
Tabela 1
Variáveis basais e suas associações com a mortalidade intra-hospitalar

Em pacientes com COVID-19, a FAUTI foi associada a um atraso no tempo de independência funcional. Em nossa coorte, os pacientes com FAUTI tiveram maior mortalidade, menos DSVs e maior necessidade de traqueostomia. Nossos dados destacam a relevância clínica da presença de FAUTI na população de pacientes com COVID-19 grave e são semelhantes aos de outras coortes na literatura.(33 Yamada K, Kitai T, Iwata K, Nishihara H, Ito T, Yokoyama R, et al. Predictive factors and clinical impact of ICU-acquired weakness on functional disability in mechanically ventilated patients with COVID-19. Heart Lung. 2023;60:139-45.,55 Núñez-Seisdedos MN, Lázaro-Navas I, López-González L, López-Aguilera L. Intensive care unit- acquired weakness and hospital functional mobility outcomes following invasive mechanical ventilation in patients with COVID-19: a single-centre prospective cohort study. J Intensive Care Med. 2022;37(8):1005-14.) O MRC é o critério de diagnóstico mais amplamente utilizado para FAUTI. Trata-se de uma técnica volitiva, com a desvantagem de que os pacientes devem estar acordados e ser cooperativos.(22 Vanhorebeek I, Latronico N, Van den Berghe G. ICU-acquired weakness. Intensive Care Med. 2020;46(4):637-53.) Essa técnica limita a avaliação de pacientes com delirium ou sedação excessiva; a baixa taxa de mortalidade encontrada nessa coorte de pacientes graves com COVID-19 poderia ser justificada por esse fato. Também não monitoramos o MRC após a alta da UTI, o que nos impede de determinar a trajetória clínica desses pacientes, especialmente em relação à condição funcional de longo prazo. Nessa coorte prospectiva de pacientes com COVID-19 grave, a presença de FAUTI inicial foi associada a desfechos desfavoráveis clinicamente relevantes.

  • Notas de publicação

REFERENCES

  • 1
    Herridge MS, Azoulay E. Outcomes after critical illness. N Engl J Med. 2023;388(10):913-24.
  • 2
    Vanhorebeek I, Latronico N, Van den Berghe G. ICU-acquired weakness. Intensive Care Med. 2020;46(4):637-53.
  • 3
    Yamada K, Kitai T, Iwata K, Nishihara H, Ito T, Yokoyama R, et al. Predictive factors and clinical impact of ICU-acquired weakness on functional disability in mechanically ventilated patients with COVID-19. Heart Lung. 2023;60:139-45.
  • 4
    Bax F, Lettieri C, Marini A, Pellitteri G, Surcinelli A, Valente M, et al. Clinical and neurophysiological characterization of muscular weakness in severe COVID-19. Neurol Sci. 2021;42(6):2173-8
  • 5
    Núñez-Seisdedos MN, Lázaro-Navas I, López-González L, López-Aguilera L. Intensive care unit- acquired weakness and hospital functional mobility outcomes following invasive mechanical ventilation in patients with COVID-19: a single-centre prospective cohort study. J Intensive Care Med. 2022;37(8):1005-14.
  • 6
    Schmidt D, Piva TC, Glaeser SS, Piekala DM, Berto PP, Friedman G, et al. Intensive care unit-acquired weakness in patients with COVID-19: occurrence and associated factors. Phys Ther. 2022;102(5):pzac028.
  • 7
    Fontes LC, Costa PJ, Fernandes JC, Vieira TS, Reis NC, Coimbra IM, et al. The impact of severe COVID-19 on health-related quality of life and disability: an early follow-up perspective. Rev Bras Ter Intensiva. 2022;34(1):141-6.
  • 8
    RECOVERY Collaborative Group; Horby P, Lim WS, Emberson JR, Mafham M, Bell JL, Linsell L, et al. Dexamethasone in hospitalized patients with Covid-19. N Engl J Med. 2021;384(8):693-704.

Editado por

Editor responsável: Pedro Póvoa https://orcid.org/0000-0002-7069-7304

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    05 Jan 2024
  • Aceito
    01 Abr 2024
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