Open-access Eventos adversos em pós-operatório cardíaco em uma unidade de terapia intensiva pediátrica: a contribuição do escore VIS e do RACHS-1

RESUMO

Objetivo:  Avaliar a ocorrência de eventos adversos em pós-operatório cardíaco em uma unidade de terapia intensiva pediátrica e estabelecer eventuais associações das características dos pacientes e a possibilidade de predizer tais eventos.

Métodos:  Coorte histórica de 7 dias de pós-operatório cardíaco, de abril a dezembro de 2019, por revisão de prontuários de pacientes com recuperação em unidade de terapia intensiva pediátrica. Foram revisados: características demográficas e clínico-laboratoriais, escores de gravidade dos pacientes e eventos adversos selecionados agrupados em: relacionados a dispositivos, a aspectos cirúrgicos e a aspectos não cirúrgicos.

Resultados:  Foram incluídos 238 prontuários. Ocorreu pelo menos um evento adverso em 110 pós-operatórios (46,2 %). O número total de eventos adversos foi 193 (81%), sendo mais frequente a complicação com cateteres vasculares, seguida de parada cardíaca, sangramento e reexploração cirúrgica. Na análise univariada, escore vasoativo-inotrópico (VIS- vasoactive-inotropic score), Risk Adjustment in Congenital Heart Surgery (RACHS-1) score, idade, Pediatric Index of Mortality (PIM-2), tempo de circulação extracorpórea e de clampeamento aórtico foram estatisticamente significantes com eventos adversos. Na análise multivariável, VIS ≥ 20 (OR 2,90; p = 0,004) e RACHS-1 ≥ 3 (OR 2,11; p = 0,019) mostraram-se relevantes e com significância estatística, enquanto idade e fechamento tardio do esterno possuíam apenas tendência a essa associação. Considerando a previsão de ocorrência de eventos adversos a partir dos valores de escore vasoativo-inotrópico e de RACHS-1, a área sob a curva mostrou valor de 0,73 (IC95% 0,66 - 0,79).

Conclusão:  A frequência de eventos adversos foi expressiva e aqueles relacionados a dispositivos foram os mais frequentes. O VIS e o RACHS-1, utilizados em conjunto, foram capazes de predizer a ocorrência de eventos adversos nesta amostra pediátrica.

Descritores: Segurança do paciente; Gestão da segurança; Período pós-operatório; Procedimentos cirúrgicos cardíacos/efeitos adversos; Fármacos cardiovasculares; Unidades de terapia intensiva pediátrica

ABSTRACT

Objective:  To evaluate the occurrence of adverse events in the postoperative period of cardiac surgery in a pediatric intensive care unit and to find any patient characteristics that can predict such events.

Methods:  This was a historical cohort study of patients recovering in the pediatric intensive care unit for the first 7 days after cardiac surgery between April and December 2019, by reviewing the medical records. The following were reviewed: demographic, clinical, and laboratory characteristics; patient severity scores; and selected adverse events, grouped into device-related, surgical, and nonsurgical.

Results:  A total of 238 medical records were included. At least one adverse event occurred in 110 postoperative patients (46.2%). The total number of adverse events was 193 (81%). Vascular catheters were the most common cause, followed by cardiac arrest, bleeding, and surgical reexploration. In the univariate analysis, the vasoactive-inotropic score (VIS), Risk Adjustment in Congenital Heart Surgery (RACHS-1) score, age, Pediatric Index of Mortality (PIM-2), cardiopulmonary bypass and aortic clamping duration were significantly associated with adverse events. In the multivariate analysis, VIS ≥ 20 (OR 2.90; p = 0.004) and RACHS-1 ≥ 3 (OR 2.11; p = 0.019) were significant predictors, while age and delayed sternal closure showed only trends toward significance. To predict the occurrence of adverse events from VIS and RACHS-1, the area under the curve was 0.73 (95%CI 0.66 - 0.79).

Conclusion:  Adverse events were quite frequent in children after cardiac surgery, especially those related to devices. The VIS and RACHS-1, used together, predicted the occurrence of adverse events well in this pediatric sample.

Keywords: Patient safety; Safety management; Postoperative period; Cardiac surgical procedures/adverse effects; Cardiovascular agents; Intensive care units, pediatric

INTRODUÇÃO

Crianças submetidas à cirurgia cardíaca possuem alto risco de morbidade e mortalidade. Desse modo, devem-se identificar e quantificar fatores do pós-operatório imediato que possam indicar os desfechos a curto e longo prazo.(1) A taxa de mortalidade dos pacientes submetidos a cirurgias cardíacas varia entre as instituições e reflete o potencial de melhorias na qualidade assistencial, por meio da identificação e da atenuação de fatores de risco associados a piores desfechos.(2)

Em relação à ocorrência de eventos adversos (EAs) em crianças com doença cardíaca, tem-se muito a aprender.(3) Esses pacientes são submetidos frequentemente a procedimentos cardíacos de alto risco para erros sistemáticos, tornando-os dependentes de um time de alta especialização.(4) Eles são mais vulneráveis aos eventos, por terem capacidade fisiológica limitada de tolerá-lo.(3) Vale ressaltar que, em cirurgia cardíaca pediátrica, os EAs geralmente ocorrem em cadeia, tendo situações de ápice distintas, conforme a localização do paciente: na sala cirúrgica, por exemplo, relacionados à circulação extracorpórea, ou na unidade de terapia intensiva (UTI) pediátrica, na extubação, na redução de drogas vasoativas, entre outros.(5)

A predição das complicações em pós-operatório cardíaco é o passo inicial e crítico para melhoria acerca da segurança do paciente e seu desfecho. Uma ferramenta específica para predizer a ocorrência de complicações em cirurgia cardíaca pediátrica não está disponível.(6) No cenário da cirurgia cardíaca, comunicação efetiva com métodos padronizados e treinamento técnico, tanto da equipe cirúrgica quanto da equipe de cuidados intensivos, são cruciais. É importante que um programa de melhorias para a segurança do paciente seja implementado.(3)

O objetivo do presente estudo foi avaliar a ocorrência de EA em pós-operatório cardíaco em uma UTI pediátrica e estabelecer eventuais associações das características dos pacientes e a possibilidade de predizer tais eventos.

MÉTODOS

Coorte histórica dos primeiros 7 dias de pós-operatório de pacientes submetidos à cirurgia cardíaca na UTI pediátrica do Hospital da Criança Santo Antônio, em Porto Alegre (RS), Brasil, com média de 125 internações e de 35 cirurgias cardíacas por mês. Essa é uma unidade de cuidados quaternários com pacientes de diversos tipos de patologias complexas, sendo realizados pós-operatórios cardíacos, de transplantes e de diversas malformações congênitas, além do cuidado clínico avançado para as doenças não cirúrgicas. A unidade possui 40 leitos para pacientes de até 18 anos. O hospital é ligado à Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre com Programa de Residência Médica em Pediatria e Terapia Intensiva Pediátrica.

A coleta de dados foi realizada por meio do acesso remoto aos prontuários eletrônicos pela pesquisadora principal e assistentes de pesquisa. Foram revisados os primeiros 7 dias de pós-operatório na UTI pediátrica. Para que a uniformidade de coleta fosse preservada, todos os dados foram revisados pela pesquisadora principal.

A amostra foi definida por conveniência, respeitando os critérios de inclusão e de exclusão descritos a seguir. Foram incluídos no estudo prontuários de pacientes de pós-operatórios de cirurgia cardíaca realizada de abril a dezembro de 2019 que internaram na UTI pediátrica, de zero a 18 anos, de ambos os sexos, com permanência mínima de 2 horas na UTI pediátrica. Foram excluídos os prontuários não recuperados apesar de busca ativa por diversos meios, pós-operatório em outro local que não a UTI pediátrica e prontuários com dados clínicos e laboratoriais faltantes que impossibilitassem os cálculos de escores utilizados no estudo.

A caracterização da amostra incluiu idade em meses, sexo, peso em quilogramas, diagnóstico dos defeitos congênitos do sistema cardiovascular,(7) Risk Adjustment in Congenital Heart Surgery score (RACHS-1),(8) Pediatric Index of Mortality (PIM-2),(9) escore vasoativo-inotrópico (VIS - vasoactive-inotropic score)(10) no pós-operatório imediato, a presença e o tempo de circulação extracorpórea (CEC), clampeamento aórtico e fechamento tardio do esterno.

Os EAs estudados foram agrupados em três categorias: cirúrgicos (tamponamento cardíaco; reexploração cirúrgica; sangramento), não cirúrgicos (pneumotórax ou hemotórax; parada cardíaca; lesão por pressão) e relacionados a dispositivos (extubação acidental; complicações com cateteres vasculares; complicações com sonda vesical ou dreno de tórax). Os EAs foram definidos por serem considerados de repercussão clínico-assistencial relevante e menos influenciados pelos registros de prontuários.

Foi realizada a classificação de gravidade dos EAs conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS):

  • - Leve: sintomas leves, perda de função ou danos mínimos-moderados, duração rápida, apenas intervenções mínimas necessárias.

  • - Moderado: paciente sintomático, necessitando intervenção.

  • - Grave: paciente sintomático, necessitando intervenção para suporte de vida ou intervenção clínica/cirúrgica de grande porte, causando diminuição da expectativa de vida, grande dano ou perda de função permanente ou de longo prazo.

  • - Óbito: dentro das probabilidades, em curto prazo o evento causou ou acelerou a morte.(11)

O desfecho dos pacientes foi classificado em alta da UTI pediátrica, óbito e outros (reinternação na UTI pediátrica e transferência para outro serviço).

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Irmandade Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre (ISCMPA), com o parecer 3.963.919, e foi realizado segundo os padrões éticos estabelecidos na Declaração de Helsinque de 1964 e suas emendas posteriores ou padrões de ética equivalentes. Além disso, foi registrado na Plataforma Brasil sob CAAE 27472619.7.0000.5683. Tanto o Termo de Consentimento como o de assentimento não foram realizados, por se tratar de estudo observacional, sem interferência na assistência ao paciente.

Dados quantitativos foram descritos por média e desvio-padrão. Na quebra de pressupostos gaussianos, utilizamos mediana e amplitude interquartil (P25 - P75). Dados categóricos foram expressos por contagens e percentuais. As comparações entre variáveis quantitativas foram realizadas pelo teste t ou por seu substituto não paramétrico (teste de Mann-Whitney). Nas situações de variáveis categóricas, usamos o teste qui-quadrado ou, quando necessário, o teste exato de Fisher.

Para avaliar a associação entre variáveis selecionadas e a ocorrência de EAs, utilizamos um modelo de regressão logística. Esse modelo permite, além de obter medidas de magnitude de efeito, estimar a probabilidade de ocorrência de “eventos”. Com isso, obtivemos valores de odds ratio, seus intervalos de confiança de 95% (IC95%) em modelo univarado ou multivarável com estimativas mutuamente ajustadas.

A partir da probabilidade de ocorrência de EAs estimada pelo modelo, obtivemos seu desempenho preditivo, que foi expresso por área sob a curva receiver operating characteristics (ROC). Achados com valor p ≤ 0,05 foram considerados estatisticamente significativos. As análises foram executadas com o auxílio do programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) da IBM, versão 27.0.

RESULTADOS

De 261 prontuários de pós-operatórios cardíacos, 238 preencheram os critérios de inclusão do estudo. Houve exclusão de 23, pois 2 não foram localizados, 7 foram a óbito no bloco cirúrgico, 5 estavam em pós-operatórios com recuperação fora da UTI pediátrica e 9 com dados faltantes para cálculo de escores. As características da população estão demonstradas na tabela 1.

Tabela 1
Características sociodemográficas e clínico-laboratoriais e desfechos dos pacientes submetidos a cirurgias cardíacas

Os EAs pesquisados estão dispostos na tabela 2. O número total de EAs foi 193 (81%). A categoria mais frequente foi relacionada a dispositivos invasivos. Destes, as complicações com cateteres vasculares ocorreram em maior número. Os aspectos não cirúrgicos foram o segundo mais frequente e, por último, os relacionados a aspectos cirúrgicos.

Tabela 2
Eventos adversos pesquisados nos prontuários de pós-operatórios cardíacos

Em 110 pós-operatórios (46,2 %), ocorreu pelo menos um EA. A caracterização dos pacientes em dois grupos - com e sem EAs - está expressa na tabela 3. Idade e peso menores, PIM 2 e VIS mais elevados, RACHS-1 3 e 4, fechamento tardio do esterno, tempo de CEC e clampeamento aórtico maiores foram associados a EA com significância estatística. O RACHS-1 1 teve associação significativa com ausência de EA. Quanto ao desfecho, os pacientes com EA tiveram associação a óbito e os pacientes sem EA à alta da UTI pediátrica.

Tabela 3
Associações das variáveis de interesse do estudo com os pós-operatórios cardíacos com ou sem eventos adversos

A figura 1 expressa a distribuição do número total de EAs nos pós-operatórios avaliados. Ocorreram 1 EA em 57 pós-operatórios (51,8%), 2 em 31 (28,2%), 3 em 15 (13,6%), 4 em 6 (5,5%) e 5 em 1 pós-operatório (0,9%).

Figura 1
Eventos adversos nas cirurgias.

A associação entre variáveis selecionadas e a ocorrência de EAs, no modelo de regressão logística, está na tabela 4. Na análise univariada, VIS ≥ 20, RACHS-1 ≥ 3, idade ≤ 24 meses, PIM-2 ≥ 5, tempo de CEC ≥ 120 minutos e tempo de clampeamento aórtico ≥ 30 minutos obtiveram relação positiva e com significância estatística com a ocorrência de evento. Ao ser realizada análise multivariável, VIS ≥ 20 (OR 2,90; p = 0,004) e RACHS-1 ≥ 3 (OR 2,11; p = 0,019) mostram-se relevantes e com significância estatística, enquanto idade e fechamento tardio do esterno possuem apenas tendência a essa associação.

Tabela 4
Regressão logística das variáveis selecionadas para ocorrência de evento adverso

A figura 2 mostra que, considerando a previsão de ocorrência de EAs a partir dos valores de VIS e de RACHS-1, a área sob a curva ROC foi de 0,73 (IC95% 0,66 - 0,79).

Figura 2
Área sob a curva ROC para predição de eventos adversos a partir de escore vasoativo-inotrópico e do Risk Adjustment in Congenital Heart Surgery.

Do total de EAs, 50,3% foram classificados como leve, seguidos de 37,3% de EAs graves. Os EAs relacionados a dispositivos foram, em sua maioria, de classificação leve (84,3%). Os relacionados a aspectos cirúrgicos tiveram 51% de classificação grave. Já os relacionados a aspectos não cirúrgicos foram, em sua maioria (60%), de intensidade grave, sendo parada cardíaca aquela com maior frequência de associação direta a óbito (25%). A classificação da intensidade do dano dos EAs encontra-se na tabela 5.

Tabela 5
Eventos adversos e classificação de intensidade do dano

DISCUSSÃO

A ocorrência de EAs contribui de maneira evidente para piores desfechos dos pacientes em pós-operatório cardíaco. Saber de antemão quais pacientes possuem maior risco de sua ocorrência é imprescindível para o manejo clínico e melhor evolução deles no pós-operatório. Como não dispomos de ferramenta específica com esse fim,(6) o presente estudo buscou apresentar fatores para predição da ocorrência de EAs selecionados.

A incidência de EAs em crianças em serviços de saúde varia de 1 a 62%.(12) Estudos usando método de detecção por trigger em UTI pediátrica podem chegar a 76% de ocorrência de EAs.(13) Em relação a número de pacientes acometidos, 59% - 62% dos internados em UTI pediátrica sofreram ao menos um EA.(14,15) Em estudos em crianças submetidas à cirurgia cardíaca, 32% - 43% apresentaram pelo menos um evento.(16,17) Nossos números se aproximam dos apresentados na literatura. Foi maior em relação à incidência geral, mas semelhante em relação ao número de pacientes acometidos em pós-operatório cardíaco.

O EA de maior frequência no presente estudo foi relacionado a dispositivos - complicações com cateteres vasculares. Esse dado é relevante e se replica na literatura. A perda de cateter central de inserção periférica foi o EA de maior ocorrência em estudo brasileiro, com 18 vezes (25%).(18) Outro estudo, também brasileiro, demonstrou eventos relacionados a acesso vascular como de maior prevalência, com 227 eventos (40,8%).(19) Já em uma publicação internacional, os eventos associados a equipamentos como “linhas e tubos” foram o de segunda maior ocorrência, com 101 vezes (22%).(20) No presente estudo, o segundo evento mais frequente foi relacionado a aspectos não cirúrgicos: parada cardíaca. Em estudo multicêntrico, a taxa total de reanimação cardiopulmonar foi de 2,6%, número menos expressivo que o presente.(21) Outra taxa inferior à nossa - ocorrência de reanimação cardiopulmonar em 20 dos 325 pacientes avaliados (6,1%) - foi indicada em estudo retrospectivo de centro único.(17) Frequência de reanimação cardiopulmonar de 52%, superior aos nossos achados, foi obtida em estudo que analisou óbitos em programas de cirurgia cardíaca pediátrica.(22) Seguindo ordem de frequência, em relação a sangramento, nossos achados de ocorrência situam-se dentro de intervalo relatado na literatura. Taxas de 7% de pacientes com sangramento,(17) menor que a nossa, bem como frequência total de sangramento de 35%(22) - maior que a obtida por nós - foram encontradas na literatura. Em relação à reexploração cirúrgica, dado semelhante ao nosso foi expresso em estudo em que 11% dos recém-nascidos necessitaram de reintervenção cirúrgica cardíaca precoce.(23) Números menores que os do presente estudo foram relatados, com 3,5%,(24) 5,6%(25) e 5,5% de reintervenção.(17) Cifra expressiva foi observada com 32% de reintervenção cirúrgica não programada.(22)

Com relação à intensidade do dano, obtivemos cerca de metade dos eventos classificados como leves - achado que difere da literatura(15,26) - sendo a maioria relacionada a dispositivos. Parada cardíaca e reexploração cirúrgica, que possuem relação estabelecida a maior risco de óbito,(17,21,23-25) tiveram frequência expressiva em classificação de maior gravidade no presente estudo.

Idade, peso, tempo de CEC e de clampeamento aórtico, fechamento tardio do esterno e PIM-2 foram variáveis relevantes na análise univariada. Dados semelhantes aos nossos foram relatados na literatura - crianças submetidas à cirurgia cardíaca com complicações no pós-operatório eram mais novas, de menor peso e menor estatura.(6) Foi demonstrada também associação positiva com tempo cirúrgico, tempo de CEC e de clampeamento aórtico maiores e fechamento tardio do esterno.(6) Outro estudo demonstrou que crianças menores de 1 ano tiveram maior taxa de complicações.(16) O maior tempo de CEC foi fator de risco para maior ocorrência de complicações cardíacas e não cardíacas.(17) O PIM-2, quando utilizado como trigger para EA, obteve identificação fácil e rápida dos pacientes sob risco de EAs.(27)

De maneira geral, independentemente de idade ou gravidade no momento da internação na UTI pediátrica, a ocorrência de EAs está associada a piores desfechos, tendo relação a aumento de morbidade e mortalidade.(20,28) Esse dado é confirmado no presente estudo, pois o óbito se apresentou relevante no grupo de pacientes com EA.

Diante da inexistência de uma ferramenta específica para predizer a ocorrência de EAs em pós-operatório de cirurgia cardíaca pediátrica e analisando as eventuais associações das variáveis selecionadas com EAs, constatamos a importante contribuição do escore VIS e do RACHS-1. Eles já são utilizados para predizer morbidade, mortalidade e tempo de internação. Demonstramos, a partir deste estudo, seu uso combinado para predizer EAs em pós-operatório cardíaco pediátrico.

O VIS é uma das variáveis que pode influenciar desfechos negativos em pós-operatório cardíaco. Estudos na população pediátrica têm mostrado que VIS com valores elevados predizem desfechos desfavoráveis, incluindo morbidade e mortalidade após cirurgia cardíaca.(29) Crianças com altas doses de drogas vasoativas no pós-operatório imediato têm alta probabilidade de morbidade e mortalidade.(30) O VIS com 2 horas de pós-operatório foi associado como fator independente para predizer síndrome de baixo débito.(31) A ocorrência de síndrome de baixo débito esteve associada a maior número de complicações.(31) O VIS elevado com 48 horas pós-operatório foi considerado um alerta de que o paciente possui risco de desfechos desfavoráveis.(32) Em outro estudo, o VIS mais alto foi associado com mortalidade em 30 dias de pós-operatório, parada cardíaca, necessidade de diálise, alterações neurológicas, tempo de ventilação mecânica e tempo de internação em UTI pediátrica.(10) Estudo demonstrou que o VIS máximo em 48 horas de pós-operatório foi significativamente associado a desfecho desfavorável, morbidade e mortalidade.(1) O mesmo estudo relatou ainda que VIS mais alto é possivelmente um marcador de fisiologia cardíaca pobre no período imediato após a cirurgia, podendo levar a terapias mais prolongadas, complicações e recuperação cardiopulmonar deficiente.(1)

Não encontramos, na literatura, dados do emprego do VIS em relação específica com o EA, o que, apesar de dificultar a comparação dos nossos resultados, torna nosso estudo relevante neste achado. Em nosso material, pensamos ter demonstrado a importância do VIS como preditor de ocorrência de EA. Esse escore foi considerado elevado no presente estudo, conforme revisão de literatura, quando ≥ 20 e foi calculado no pós-operatório imediato.

Com relação ao RACHS-1, sabe-se que o escore é utilizado amplamente para predizer mortalidade dos pacientes em pós-operatório cardíaco. Encontramos, na literatura, estudos acerca do seu uso para outros desfechos. Como modelo de predição de óbito, RACHS-1 demonstrou poder discriminatório moderado, com área sob a curva ROC de 0,68 (IC95% 0,58 - 0,79).(33) Apresentou também bom poder de discriminação entre sobreviventes e não sobreviventes em publicação do mesmo centro que o presente estudo, com área sob a curva ROC de 0,70 (IC95% 0,63 - 0,77).(34) Ainda quanto à predição de óbito, estudos brasileiros demonstraram bom poder de predição de óbito.(35)

Relacionado a complicações de pós-operatório cardíaco infantil, publicação recente apresentou o RACHS-1 com bom poder de predição (área sob a curva ROC de 0,68).(6) Estudos demonstraram associação de escores de RACHS-1 maiores com a ocorrência de EA (p < 0,001) e sua predição.(36,37) Foi demonstrado com significância estatística que pacientes com RACHS-1 maiores tiveram mais chance de complicações nos pós-operatórios cardíacos.(16,17) No presente estudo, corroboramos os achados de que escore de RACHS-1 mais elevados estão associados a EAs. Especificamente RACHS-1 3 e 4 foram mais relacionados ao desfecho EA.

No presente estudo, enfatizamos que a análise conjunta de VIS e RACHS-1 obteve bom poder discriminatório para ocorrência de EA em pós-operatório cardíaco infantil, considerando o valor de 0,73 encontrado na análise da curva ROC. Quanto maior o valor do VIS no pós-operatório imediato, bem como o do RACHS-1, maior a possibilidade de ocorrência de EAs. Acreditamos que esse achado possa ter aplicação clínica no cuidado e na prevenção de EAs nesses pacientes.

Entre as limitações do presente estudo, consideramos que a validação externa possa ser prejudicada, uma vez que foi realizado em única UTI pediátrica. O tempo de realização do estudo e a detecção dos EAs, feita por meio de revisão de prontuários, podem ter influenciado na identificação dos eventos.

Por outro lado, como ponto forte do presente estudo, a identificação do uso conjunto do escore VIS e do RACHS-1 na predição específica de EA em pós-operatório cardíaco infantil pode ser de auxílio na prática clínica.

CONCLUSÃO

O presente estudo demonstrou que eventos adversos foram frequentes na população pediátrica submetida à cirurgia cardíaca. O evento adverso mais frequente esteve relacionado a complicações com dispositivos. O escore vasoativo-inotrópico e o Risk Adjustment in Congenital Heart Surgery poderiam ser considerados elementos adequados para predizer a ocorrência de eventos adversos em pós-operatório cardíaco pediátrico.

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Editado por

  • Editor responsável: Arnaldo Prata-Barbosa

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    24 Ago 2023
  • Aceito
    29 Set 2023
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