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À espera da Pediatric Acute Lung Injury Consensus Conference 3

Desde a publicação de uma série de casos por Ashbaugh et al. em 1967, com 11 pacientes adultos e apenas uma criança, os pediatras vêm tentando definir o que seria a síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA) na pediatria.(11 Ashbaugh DG, Bigelow DB, Petty TL, Levine BE. Acute respiratory distress in adults. Lancet. 1967;2(7511):319-23.) Somente em 1988, Murray et al. criaram um escore para classificação da SDRA, utilizando quatro variáveis: radiografia de tórax, razão entre pressão parcial de oxigênio e fração inspirada de oxigênio (PaO2/FiO2), pressão expiratória final de vias aéreas (PEEP) e complacência pulmonar, porém apenas para pacientes adultos.(22 Murray JF, Matthay MA, Luce JM, Flick MR. An expanded definition of the adult respiratory distress syndrome. Am Rev Respir Dis. 1988;138(3):720-3.) Seis anos depois, em 1994, a American-European Consensus Conference (AECC) publicou a primeira definição de SDRA, utilizando PaO2/FiO2, independentemente da PEEP, deixando novamente de fora a pediatria.(33 Bernard GR, Artigas A, Brigham KL, Carlet J, Falke K, Hudson L, et al. The American-European Consensus Conference on ARDS. Definitions, mechanisms, relevant outcomes, and clinical trial coordination. Am J Respir Crit Care Med. 1994;149(3 Pt 1):818-24.) Em 2012, foi publicada uma nova definição resultante de um consenso realizado na cidade de Berlim, na Alemanha, utilizando PaO2/FiO2 e também o nível da PEEP, que também não incluiu crianças ou adolescentes.(44 ARDS Definition Task Force; Ranieri VM, Rubenfeld GD, Thompson BT, Ferguson ND, Caldwell E, Fan E, et al. Acute respiratory distress syndrome: the Berlin Definition. JAMA. 2012;307(23):2526-33.) Independentemente disso, os pediatras começaram a adotar os critérios de Berlin para definir SDRA, na falta de uma definição própria. Ambas as definições de SDRA, a da AECC e a de Berlim, concentram-se na lesão pulmonar em adultos e apresentam limitações quando aplicadas a crianças. Por exemplo, uma deficiência importante é a necessidade de medição invasiva de oxigênio arterial, o que pode se tornar um desafio em lactentes e crianças com agitação ou pouco cooperativas. Uma segunda limitação é a utilização da PaO2/FiO2. Além de exigir a medição da PaO2, essa relação é influenciada pelas pressões do ventilador. Consequentemente, diferenças na prática clínica pediátrica podem influenciar o diagnóstico, particularmente por haver maior variabilidade nos parâmetros ventilatórios, com relação às unidades de terapia intensiva (UTIs) de adultos.

Somente em 2015, a ideia de uma definição pediátrica foi impulsionada pelo Pediatric Acute Lung Injury and Sepsis Investigators (PALISI), sendo posteriormente apoiada por diversos outros grupos de pesquisa pelo mundo. Assim surgiu a Pediatric Acute Lung Injury Consensus Conference (PALICC), no qual PaO2/FiO2 foi substituído pelo índice de oxigenação (FiO2 x pressão média de vias aéreas/pressão arterial parcial de oxigênio) e pelo índice de saturação de oxigênio (FiO2 x pressão média de vias aéreas/saturação de oxigênio), contemplando o manejo do paciente com as pressões no ventilador mecânico, além de incluir uma medida não dependente da gasometria arterial.(55 Pediatric Acute Lung Injury Consensus Conference Group. Pediatric acute respiratory distress syndrome: consensus recommendations from the Pediatric Acute Lung Injury Consensus Conference. Pediatr Crit Care Med. 2015;16(5):428-39.) Em 2023, um aprimoramento da definição foi publicado, a PALICC-2, que passou a incluir modos de ventilação não invasiva, dentre outras alterações.(66 Emeriaud G, López-Fernández YM, Iyer NP, Bembea MM, Agulnik A, Barbaro RP, Baudin F, Bhalla A, Brunow de Carvalho W, Carroll CL, Cheifetz IM, Chisti MJ, Cruces P, Curley MAQ, Dahmer MK, Dalton HJ, Erickson SJ, Essouri S, Fernández A, Flori HR, Grunwell JR, Jouvet P, Killien EY, Kneyber MCJ, Kudchadkar SR, Korang SK, Lee JH, Macrae DJ, Maddux A, Modesto I Alapont V, Morrow BM, Nadkarni VM, Napolitano N, Newth CJL, Pons-Odena M, Quasney MW, Rajapreyar P, Rambaud J, Randolph AG; Second Pediatric Acute Lung Injury Consensus Conference (Palicc-2) Group on behalf of the Pediatric Acute Lung Injury and Sepsis Investigators (Palisi) Network. Executive Summary of the Second International Guidelines for the Diagnosis and Management of Pediatric Acute Respiratory Distress Syndrome (Palicc-2). Pediatr Crit Care Med. 2023;24(2):143-68.)

E por que tais definições são tão importantes? Definições válidas e confiáveis são essenciais para conduzir estudos epidemiológicos com sucesso e facilitar a inclusão de um fenótipo de paciente consistente em ensaios clínicos. Intensivistas também precisam de tais definições para implementar intervenções, observar fatores de risco e predizer desfechos, bem como discutir o prognóstico com as famílias e planejar a alocação de recursos.

O estudo de Capela et al.,(77 Capela RC, Souza RB, Sant'Anna MF, Sabt'Anna CC. Avaliação das classificações de gravidade na síndrome do desconforto respiratório agudo na infância pelo Consenso de Berlim e pelo Pediatric Acute Lung Injury Consensus Conference. Crit Care Sci. 2024;36:e20240229pt.) publicado na Critical Care Science, compara dois métodos para definição e classificação de gravidade na SDRA pediátrica: a classificação de Berlim, que utiliza PaO2/FiO2, e a classificação PALICC, que utiliza o índice de oxigenação. Os autores encontraram concordância significativa entre as classificações de gravidade da SDRA pediátrica (Berlim e PALICC), acompanhada de correlação numérica muito forte entre PaO2/FiO2 e o índice de oxigenação, bem como a presença de efeito significativo do bloqueador neuromuscular sobre essas classificações. Interessante observar que houve maior concordância entre as classificações nos pacientes sem uso do bloqueador neuromuscular, sugerindo influência dele sobre as classificações de gravidade da SDRA. Além disso, a depender de como era feito o ajuste do ventilador mecânico no paciente com SDRA, os valores da PaO2/FiO2 podiam alterar bastante, embora o índice de oxigenação permanecesse constante.

O tratamento da SDRA é envolto em controvérsias e falta de evidências, com poucos estudos randomizados controlados em pediatria. Dessa forma, uma definição robusta e validada para a população pediátrica é de extrema relevância para a condução de estudos de intervenção e identificação de melhores práticas clínicas na SDRA pediátrica. Utilizando os critérios da PALICC para classificar pacientes pediátricos com SDRA moderada/grave, o estudo internacional PROSPect (prospect-network.org), que compara ventilação mecânica convencional versus ventilação oscilatória de alta frequência, além da posição supina versus posição prona, está sendo conduzido em 56 UTIs pediátricas.(55 Pediatric Acute Lung Injury Consensus Conference Group. Pediatric acute respiratory distress syndrome: consensus recommendations from the Pediatric Acute Lung Injury Consensus Conference. Pediatr Crit Care Med. 2015;16(5):428-39.) O desfecho primário estudado será dias livres de ventilação mecânica. Em alguns anos, possivelmente, teremos um estudo robusto com evidências de como manejar melhor nossos pacientes com diagnóstico de SDRA.

Além do estudo que está sendo realizado, estudos epidemiológicos, como o PARDIE, são fundamentais para alicerçar nossa prática clínica e aprimorar as definições de SDRA.(88 Khemani RG, Smith L, Lopez-Fernandez YM, Kwok J, Morzov R, Klein MJ, Yehya N, Willson D, Kneyber MCJ, Lillie J, Fernandez A, Newth CJL, Jouvet P, Thomas NJ; Pediatric Acute Respiratory Distress Syndrome Incidence and Epidemiology (PARDIE) Investigators; Pediatric Acute Lung Injury and Sepsis Investigators (Palisi) Network. Paediatric acute respiratory distress syndrome incidence and epidemiology (PARDIE): an international, observational study. Lancet Respir Med. 2019;7(2):115-28.) Nesse sentido, o artigo de Capela et al.(77 Capela RC, Souza RB, Sant'Anna MF, Sabt'Anna CC. Avaliação das classificações de gravidade na síndrome do desconforto respiratório agudo na infância pelo Consenso de Berlim e pelo Pediatric Acute Lung Injury Consensus Conference. Crit Care Sci. 2024;36:e20240229pt.) nos auxilia a avaliar a implementação prática das definições de SDRA em cenários clínicos reais de pacientes pediátricos em uma unidade brasileira. Apesar de ser unicêntrico, observacional, baseado em uma amostra de conveniência e apresentar outras limitações metodológicas, os autores lançam luz sobre a complexidade da avaliação da SDRA em pacientes pediátricos, levando em consideração as condições clínicas e os medicamentos em uso ao interpretar os critérios de gravidade da doença. Capela et al.(77 Capela RC, Souza RB, Sant'Anna MF, Sabt'Anna CC. Avaliação das classificações de gravidade na síndrome do desconforto respiratório agudo na infância pelo Consenso de Berlim e pelo Pediatric Acute Lung Injury Consensus Conference. Crit Care Sci. 2024;36:e20240229pt.) trazem questionamentos relevantes e destacam a necessidade de um novo aprimoramento da definição de SDRA, levando em consideração a utilização de bloqueadores neuromusculares, prática ainda comum em unidades pediátricas.

Enquanto estamos à espera da PALICC-3, novos estudos metodologicamente robustos e colaborativos são necessários para melhor compreensão da SDRA e redução da morbimortalidade associada a essa condição desafiadora nos pacientes pediátricos.

REFERENCES

  • 1
    Ashbaugh DG, Bigelow DB, Petty TL, Levine BE. Acute respiratory distress in adults. Lancet. 1967;2(7511):319-23.
  • 2
    Murray JF, Matthay MA, Luce JM, Flick MR. An expanded definition of the adult respiratory distress syndrome. Am Rev Respir Dis. 1988;138(3):720-3.
  • 3
    Bernard GR, Artigas A, Brigham KL, Carlet J, Falke K, Hudson L, et al. The American-European Consensus Conference on ARDS. Definitions, mechanisms, relevant outcomes, and clinical trial coordination. Am J Respir Crit Care Med. 1994;149(3 Pt 1):818-24.
  • 4
    ARDS Definition Task Force; Ranieri VM, Rubenfeld GD, Thompson BT, Ferguson ND, Caldwell E, Fan E, et al. Acute respiratory distress syndrome: the Berlin Definition. JAMA. 2012;307(23):2526-33.
  • 5
    Pediatric Acute Lung Injury Consensus Conference Group. Pediatric acute respiratory distress syndrome: consensus recommendations from the Pediatric Acute Lung Injury Consensus Conference. Pediatr Crit Care Med. 2015;16(5):428-39.
  • 6
    Emeriaud G, López-Fernández YM, Iyer NP, Bembea MM, Agulnik A, Barbaro RP, Baudin F, Bhalla A, Brunow de Carvalho W, Carroll CL, Cheifetz IM, Chisti MJ, Cruces P, Curley MAQ, Dahmer MK, Dalton HJ, Erickson SJ, Essouri S, Fernández A, Flori HR, Grunwell JR, Jouvet P, Killien EY, Kneyber MCJ, Kudchadkar SR, Korang SK, Lee JH, Macrae DJ, Maddux A, Modesto I Alapont V, Morrow BM, Nadkarni VM, Napolitano N, Newth CJL, Pons-Odena M, Quasney MW, Rajapreyar P, Rambaud J, Randolph AG; Second Pediatric Acute Lung Injury Consensus Conference (Palicc-2) Group on behalf of the Pediatric Acute Lung Injury and Sepsis Investigators (Palisi) Network. Executive Summary of the Second International Guidelines for the Diagnosis and Management of Pediatric Acute Respiratory Distress Syndrome (Palicc-2). Pediatr Crit Care Med. 2023;24(2):143-68.
  • 7
    Capela RC, Souza RB, Sant'Anna MF, Sabt'Anna CC. Avaliação das classificações de gravidade na síndrome do desconforto respiratório agudo na infância pelo Consenso de Berlim e pelo Pediatric Acute Lung Injury Consensus Conference. Crit Care Sci. 2024;36:e20240229pt.
  • 8
    Khemani RG, Smith L, Lopez-Fernandez YM, Kwok J, Morzov R, Klein MJ, Yehya N, Willson D, Kneyber MCJ, Lillie J, Fernandez A, Newth CJL, Jouvet P, Thomas NJ; Pediatric Acute Respiratory Distress Syndrome Incidence and Epidemiology (PARDIE) Investigators; Pediatric Acute Lung Injury and Sepsis Investigators (Palisi) Network. Paediatric acute respiratory distress syndrome incidence and epidemiology (PARDIE): an international, observational study. Lancet Respir Med. 2019;7(2):115-28.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    04 Abr 2024
  • Aceito
    15 Abr 2024
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