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Modelo de análise aplicado ao estado da arte da epistemologia da administração

Modelo de análisis aplicado al estado del arte de la epistemología de la administración

Resumo

O artigo tem como objetivo propor uma sistematização dos paradigmas epistemológicos já identificados por pesquisas que estudaram o estado da arte da epistemologia da administração. Tal sistematização é realizada por meio de uma resenha analítica, na qual um modelo de análise, fruto de um consórcio teórico entre Alberto Guerreiro Ramos e Jean Piaget, é o fio condutor. Os diferentes paradigmas são analisados em função de seu grau de reflexividade, tendo como pano de fundo os fundamentos filosóficos da epistemologia geral. No campo da epistemologia da administração, foi observado que, dos trabalhos seminais aos atuais, os diferentes autores defendem um descentramento reflexivo capaz de gerar um movimento que leve a teoria das organizações do construto, chamada por Ramos de teoria da necessidade, para o campo da teoria da possibilidade e além, superando a utilização de arquétipos platônicos/aristotélicos/cartesianos por arquétipos kantianos e pós-kantianos. O modelo de análise é aplicado uma segunda vez, agora nos resumos das últimas 30 teses de um programa de pós-graduação em administração, defendidas de julho de 2019 a novembro de 2022. Foram analisados 10 resumos de cada uma das três linhas de pesquisa do programa. Nessa segunda aplicação, o modelo foi ajustado com a inclusão de outros aspectos teóricos e metodológicos, passando a conter 9 indicadores de reflexividade. Foi demonstrado que, em função dos diferentes graus de reflexividade, cada linha de pesquisa apresenta uma característica própria na forma de aplicar teorias e métodos.

Palavras-chave:
Epistemologia; Reflexividade; Administração

Resumen

El artículo tiene como objetivo proponer una sistematización de los paradigmas epistemológicos ya identificados por investigaciones que estudiaron el estado del arte de la Epistemología de la Administración. Tal sistematización se realiza a través de una revisión analítica, en la que un modelo de análisis, resultado de una unión teórica entre Ramos y Piaget, es el hilo conductor. Los diferentes paradigmas se analizan según su grado de reflexividad, teniendo como telón de fondo los fundamentos filosóficos de la Epistemología General. En el campo de la Epistemología de la Administración, se observó que, desde los trabajos seminales hasta los actuales, los diferentes autores defienden un descentramiento reflexivo capaz de generar un movimiento que tome la Teoría de las Organizaciones del constructo denominado por Guerreiro Ramos como Teoría de la Necesidad, al campo de la Teoría de la Posibilidad y más allá. Superando así el uso de arquetipos platónicos/aristotélicos/cartesianos por arquetipos kantianos y poskantianos. El modelo de análisis se aplica por segunda vez, esta vez a los resúmenes de las últimas 30 tesis de un programa de posgrado en Administración, defendidas desde julio de 2019 hasta noviembre de 2022. Se analizaron diez resúmenes de cada una de las tres líneas de investigación. En esta segunda aplicación, el modelo fue ajustado con la inclusión de otros aspectos teóricos y metodológicos, conteniendo ahora nueve indicadores de reflexividad. Se demostró que, debido a los diferentes grados de reflexividad, cada línea de investigación tiene sus propias características en la forma de adoptar teorías y métodos.

Palabras clave:
Epistemología; Reflexividad; Administración

Abstract

The article proposes a systematization of the epistemological paradigms already identified by research that studied the literature on administration epistemology. Such systematization is carried out through an analytical review, in which an analysis model, the result of a theoretical consortium between Ramos and Piaget, is the guiding thread. The different paradigms are analyzed according to their degree of reflexivity against the backdrop of the philosophical foundations of general epistemology. In the field of administration epistemology, it was observed that from the pioneering to the current works, the different authors defend a reflective decentring capable of generating a movement that takes the theory of organizations from the construct that Ramos calls the theory of necessity to the field of theory of possibility and beyond. Thus, the use of Platonic/Aristotelian/Cartesian archetypes by Kantian and post-Kantian archetypes was overcome. The analysis model is applied a second time to the abstracts of the last 30 theses of a graduate program in administration, defended from July 2019 to November 2022. Ten abstracts from each of the three lines of research were analyzed. In this second application, the model was adjusted with the inclusion of other theoretical and methodological aspects, now containing nine reflexivity indicators. It was demonstrated that, due to the different degrees of reflexivity, each line of research has its own characteristics in adopting theories and methods.

Keywords:
Epistemology; Reflexivity; Administration

INTRODUÇÃO

O trabalho busca contribuir para o esclarecimento de um problema recorrente no campo dos estudos organizacionais: o ponto de partida ontológico. Como nos ensina Paes-de-Paula (2015Paes-de-Paula, A. P.(2015). Repensando os estudos organizacionais: por uma nova teoria do conhecimento. Editora FGV.), um dos primeiros dilemas enfrentados numa pesquisa diz respeito ao posicionamento paradigmático do enfoque analítico utilizado, que, por sua vez, determina o entendimento e a prática científica.

O interesse da comunidade científica dos estudos organizacionais, na construção de uma epistemologia específica no campo da administração, já configura uma linha de pesquisa consolidada e em crescimento no Brasil (Serva, 2017Serva, M. (2017). Epistemologia da administração no Brasil: o estado da arte. Cadernos EBAPE.BR, 15(4), 741-750. https://doi.org/10.1590/1679-395173209
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). Como aponta Serva (2014Serva, M. (2017). Epistemologia da administração no Brasil: o estado da arte. Cadernos EBAPE.BR, 15(4), 741-750. https://doi.org/10.1590/1679-395173209
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), a oferta da disciplina de epistemologia em cursos de pós-graduação stricto sensu, o estabelecimento da epistemologia como tema em 2 divisões acadêmicas da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Administração (Anpad) e a realização de colóquios específicos dedicados ao tema criaram condições para a discussão frequente de assuntos ligados à epistemologia da administração e fomentaram publicações científicas.

Em seu artigo “O surgimento e o desenvolvimento da epistemologia da administração”, Serva (2014Serva, M. (2017). Epistemologia da administração no Brasil: o estado da arte. Cadernos EBAPE.BR, 15(4), 741-750. https://doi.org/10.1590/1679-395173209
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) realiza uma revisão analítica de alguns dos estudos sobre esse tema no contexto internacional, tendo por critério os estudos que declaram empreender uma abordagem epistemológica, com destaque para os fundadores. O autor também analisa as pesquisas que contribuem, em seu conjunto, para abordar diversas subáreas da administração e as que apresentam efetiva consistência teórica sobre o assunto.

No contexto brasileiro, Serva (2017Serva, M. (2017). Epistemologia da administração no Brasil: o estado da arte. Cadernos EBAPE.BR, 15(4), 741-750. https://doi.org/10.1590/1679-395173209
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) identifica em outro artigo, “Epistemologia da administração no Brasil: o estado da arte”, o estágio atual dos estudos em epistemologia no âmbito nacional, traçando o panorama das principais dimensões abordadas recentemente por autores brasileiros.

O objetivo deste artigo é analisar esse conjunto de trabalhos sintetizados por Serva (2014Serva, M. (2017). Epistemologia da administração no Brasil: o estado da arte. Cadernos EBAPE.BR, 15(4), 741-750. https://doi.org/10.1590/1679-395173209
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, 2017Serva, M. (2013). O surgimento e o desenvolvimento da epistemologia da administração: inferências sobre a contribuição ao aperfeiçoamento da teoria administrativa. Revista Gestão Organizacional, 6(3), 51-64. https://doi.org/10.22277/rgo.v6i3.1529
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) por meio de um modelo de análise que é fruto de um consórcio entre Alberto Guerreiro Ramos e Jean Piaget, tendo como principais categorias o conceito de reflexividade e descentramento (Piaget), bem como os tipos ideais chamados de teoria da necessidade e teoria da possibilidade (Ramos). Às duas categorias originais é acrescentada uma terceira: a teoria relativista (ou pós-estruturalista). A análise de dados é feita por meio de uma resenha analítica. Observou-se que, na amostra apresentada por Serva (2014Serva, M. (2017). Epistemologia da administração no Brasil: o estado da arte. Cadernos EBAPE.BR, 15(4), 741-750. https://doi.org/10.1590/1679-395173209
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, 2017Serva, M. (2013). O surgimento e o desenvolvimento da epistemologia da administração: inferências sobre a contribuição ao aperfeiçoamento da teoria administrativa. Revista Gestão Organizacional, 6(3), 51-64. https://doi.org/10.22277/rgo.v6i3.1529
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), dos trabalhos seminais aos atuais sobre epistemologia da administração, os diferentes autores defendem um descentramento reflexivo capaz de gerar um movimento que leve a teoria das organizações do campo da teoria da necessidade para o campo da teoria da possibilidade, superando arquétipos platônicos/aristotélicos/cartesianos por arquétipos kantianos e pós-kantianos.

O modelo de análise é ajustado a partir da inclusão de outros aspectos teóricos e metodológicos, passando a ter 9 indicadores de reflexividade, e é reaplicado nos resumos das últimas 30 teses defendidas num programa de pós-graduação stricto sensu. Foram analisados 10 resumos de cada uma das 3 linhas de pesquisa do programa. Na segunda aplicação, fica demostrado que, em função dos diferentes graus de reflexividade, cada linha de pesquisa apresenta uma característica própria na forma de adotar teorias e métodos.

ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

Na década de 1980, o sociólogo Alberto Guerreiro Ramos realizou 2 tipificações chamadas por ele de teoria da necessidade (teoria N) e teoria da possibilidade (Teoria P), na intenção de realizar uma síntese de diferentes correntes teóricas e apontar um caminho para o amadurecimento dos estudos organizacionais. No texto “A modernização em nova perspectiva: em busca do modelo de possibilidade”, Ramos (1983) apresenta uma análise das críticas que já vinham sendo formuladas contra as perspectivas reducionistas da realidade, representadas, segundo o autor, nas teorias sulcadas do manancial platônico/aristotélico. Tais críticas, nos estudos organizacionais, passaram a ser operacionalizadas por meio da teoria dos sistemas.

Ao examinar os diferentes trabalhos acadêmicos, o autor verificou que eles poderiam ser situados num contínuo, cujos polos designou de teoria da necessidade e teoria da possibilidade, as quais são tipos ideais. Os pressupostos fundamentais do primeiro tipo se assentam em leis deterministas, ao passo que os do segundo se caracterizam por não se orientarem por arquétipos platônicos/aristotélicos/cartesianos, e sim kantianos e pós-kantianos.

Ramos (1983Ramos, A. G. (1983). A modernização em nova perspectiva: em busca do modelo da possibilidade. Revista de Administração Pública, 17(1), 5-31. https://periodicos.fgv.br/rap/article/view/4173
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) faz uma classificação de diversos autores, alocando-os no contínuo por ele proposto. Aristóteles, Hegel e Descartes, por exemplo, estão no modelo de necessidade; Kant, Weber e Habermas, no de possibilidade. Há ainda certos autores com uma ambivalência teórica-metodológica. Nas palavras de Ramos, um “complexo hamletiano”, um “ser ou não ser”, com ideias pertinentes aos 2 campos teóricos. Esses casos representariam um ponto de transição, que recorrentemente está fundamentado mais num modelo do que em outro: “Teoricamente somos forçados a presumir que cada situação apresenta uma combinação própria desses aspectos” (Ramos, 1983Ramos, A. G. (1983). A modernização em nova perspectiva: em busca do modelo da possibilidade. Revista de Administração Pública, 17(1), 5-31. https://periodicos.fgv.br/rap/article/view/4173
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, p. 8).

O autor percebeu que as ciências sociais estavam vivendo uma fase de transição paradigmática. Segundo ele, nos momentos de transição, coexistem e sobrepõem-se, parcialmente, paradigmas contraditórios de pensamento científico. Inspirado pelo epistemólogo Thomas Kuhn, o autor compartilhava a ideia de que, ao contrário dos paradigmas nas ciências da natureza que se sucedem, com o seguinte substituindo o anterior, nas ciências sociais e no interior das sociedades eles convivem durante longo tempo, até que venha a predominar o padrão emergente (Gutiérez & Almeida, 2013).

Na história da filosofia ocidental, essa primeira transição demorou mais de 200 anos para ocorrer. Um dos principais filósofos da teoria N foi Aristóteles, do século IV a.C., que elaborou uma cosmovisão que organizava, em esferas concêntricas, todo o Universo. O planeta Terra estava no centro e era formado pelos elementos terra, fogo, ar e água - esse era o mundo sublunar. A partir da lua, os corpos celestes seriam feitos de éter, o mesmo elemento de que são constituídas as almas e as ideias, por isso seriam perfeitos, lisos, planos e cristalinos. Tudo tinha uma finalidade no mundo, e conhecer era descobrir essas finalidades (Aranha & Martins, 2013Aranha, M. L. A., & Martins, M. H. P.(2013). Filosofando(5a ed.). Moderna.).

Essa cosmovisão, com algumas adaptações, foi defendida até 1822, quando o papa Pio VII determinou que o sistema heliocêntrico passasse a ser o oficial. Antes, porém, 2 grandes figuras foram fundamentais para essa transição. Um deles foi Galileu Galilei, que, no início do século XVII, quando observou a lua e outros planetas com o auxílio de um telescópio, percebeu que Aristóteles estava errado, que a lua não era lisa, tinha montanhas, e que o planeta Terra não era o centro do cosmos. Ele viu as luas de Júpiter, de modo que havia outro centro cósmico. Essa constatação empírica refutava todo o sistema aristotélico e, embora não fosse essa sua intenção, implodiu as bases da metafísica aceita até então. Quem reorganizou o estrago foi o filosofo Immanuel Kant, no século XVIII, com seus arquétipos que fundamentavam que o conhecimento é construído, e não dado a priori (Aranha & Martins, 2013Aranha, M. L. A., & Martins, M. H. P.(2013). Filosofando(5a ed.). Moderna.).

Voltando a Ramos, no que diz respeito à teoria N, o autor constrói um tipo ideal, jamais enunciado plenamente por qualquer teórico contemporâneo nem aceito explicitamente por nenhum cientista. “Todavia, como conjunto de pressupostos, essa teoria se faz presente na maioria dos trabalhos de influência sobre modernização e desenvolvimento” (Ramos, 1983Ramos, A. G. (1983). A modernização em nova perspectiva: em busca do modelo da possibilidade. Revista de Administração Pública, 17(1), 5-31. https://periodicos.fgv.br/rap/article/view/4173
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, p. 18). Por outro lado, o modelo de possibilidade não obriga a um enfoque indeterminista, sendo essencial compreender que determinismo e liberdade não são opostos. Trata-se de um falso dilema (Ramos, 1983Ramos, A. G. (1983). A modernização em nova perspectiva: em busca do modelo da possibilidade. Revista de Administração Pública, 17(1), 5-31. https://periodicos.fgv.br/rap/article/view/4173
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). O modelo de possibilidade é composto por conjeturas cujo poder de convicção, se bem que possa ser justificado por um conhecimento positivo e controlável, não busca a revelação de leis universais, como esclarece Ramos (1983Ramos, A. G. (1983). A modernização em nova perspectiva: em busca do modelo da possibilidade. Revista de Administração Pública, 17(1), 5-31. https://periodicos.fgv.br/rap/article/view/4173
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). O que caracteriza a teoria P é a consciência dos limites de conhecer todas as causas necessárias, mas ter a capacidade de argumentar se um fenômeno é possível ou não, pois “escolher uma possibilidade em determinada situação é escolher dentro de certos limites” (Ramos, 1983Ramos, A. G. (1983). A modernização em nova perspectiva: em busca do modelo da possibilidade. Revista de Administração Pública, 17(1), 5-31. https://periodicos.fgv.br/rap/article/view/4173
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, p. 9).

Por fim, para complementar o arco teórico, foi incorporado neste trabalho a teoria relativista, que será nominada de teoria R, na intenção de ampliar o contínuo sugerido por Ramos (1983Ramos, A. G. (1983). A modernização em nova perspectiva: em busca do modelo da possibilidade. Revista de Administração Pública, 17(1), 5-31. https://periodicos.fgv.br/rap/article/view/4173
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) em direção a um polo cujo extremo seria radicalmente indeterminista e subjetivista. Estariam nesse modelo autores como Nietzsche, Foucault, Latour e outros pós-estruturalistas e decolonialistas. Ainda em relação à teoria R, não significa que Ramos desconhecesse teorias relativistas e pós-estruturalistas, porém ele não as demarca. O que essas 3 tipificações buscam destacar é o grau de centralidade ou descentralidade reflexiva, e interessa a esse ensaio refletir sobre como as teorias da administração que desdobram dos diferentes paradigmas podem dar pistas acerca desse grau de reflexividade.

Dando prosseguimento ao consórcio teorico aqui proposto, Piaget (1931Piaget, J. (1931). Bureau International d’Éducation: quatrième cours pour le personnel enseignant. Compte Rendu des Conférences International.) argumenta que tanto o indivíduo quanto a sociedade passam por períodos de reorganização profunda, durante os quais um novo estágio é alcançado e as mudanças são assimiladas. Cada progresso cognitivo se encontra associado a um progresso na socialização do pensamento, com um descentramento progressivo dos pontos de vista do sujeito cognoscente. Mas, para que isso ocorra, não basta experienciar; é necessário racionalizar os dados da ação por meio do diálogo e do confronto de projetos e ideias. Esse processo ocorre nas dimensões individual e social do ser humano, que vai de um egocentrismo inconsciente e radical à constituição de um universo compartilhado e momentaneamente estável. As novas capacidades de raciocínio se manifestam na linguagem, no comportamento experimental, bem como forma de pensar e se situar no mundo.

Cada estágio de desenvolvimento corresponde a um sistema, seguido de períodos de inércia egocêntrica. Somos autocentrados, diz Piaget (1931Piaget, J. (1931). Bureau International d’Éducation: quatrième cours pour le personnel enseignant. Compte Rendu des Conférences International.). Muitas vezes sem saber e sem querer, agimos orientados por preconceitos sociais numa série de áreas e situações. Por outro lado, o descentramento radical poderia ser autodestrutivo, incapaz de criar laços, entendimentos e traduções.

Piaget (1931Piaget, J. (1931). Bureau International d’Éducation: quatrième cours pour le personnel enseignant. Compte Rendu des Conférences International.) argumenta em favor do que chama de “instrumento de moderação”, uma metodologia capaz de estimular a aprendizagem por conflito cognitivo, favorecendo novas aquisições conceituais capazes de minimizar as dissonâncias cognitivas: “Precisamos de uma nova atitude intelectual e moral, de entendimento e cooperação, que, sem se afastar do relativo, alcança a objetividade ao relacionar os próprios pontos de vista particulares” (Piaget, 1931Piaget, J. (1931). Bureau International d’Éducation: quatrième cours pour le personnel enseignant. Compte Rendu des Conférences International., p. 65).

Assim, a ideia defendida por Piaget (1931Piaget, J. (1931). Bureau International d’Éducation: quatrième cours pour le personnel enseignant. Compte Rendu des Conférences International.) é, na sua avaliação, simples e concreta. Trata-se de criar um método de compreensão e reciprocidade, em que todos os humanos, sem perder sua visão de mundo e sem suprimir suas crenças e sentimentos, aprendam a estar entre todos os outros, utilizando técnicas de aprendizagem cooperativa, que estimulem as trocas cognitivas nos grupos.

Cada indivíduo deve manter a própria perspectiva, como a única que conhece de dentro, mas entender a existência de outras: “Que todos entendam, acima de tudo, que a verdade, em todas as coisas, nunca é encontrada pronta, mas é dolorosamente elaborada, graças à própria coordenação dessas perspectivas” (Piaget, 1931Piaget, J. (1931). Bureau International d’Éducation: quatrième cours pour le personnel enseignant. Compte Rendu des Conférences International., p. 64). É na renúncia de todos os falsos absolutos e no esforço de colocar em relação as diferentes visões de mundo coexistentes que consistem, enfim, as bases metodológicas de seu instrumento de moderação.

A Figura 1 apresenta graficamente o modelo de análise deste ensaio, uma ferramenta ou instrumento de moderação, para falar com Piaget, que traz em si a ideia de um contínuo dividido em 3 partes, que representam as tipificações - teorias N, P e R -, que, por sua vez, têm gradações internas.

Figura 1
Grau de reflexividade

RESENHA ANALÍTICA

No que se refere à reflexão sistematizada sobre a natureza, os fundamentos e a construção dos conhecimentos científicos em administração, tal esforço se inicia no fim dos anos 1970 e no começo dos anos 1980 (Serva, 2014Serva, M. (2017). Epistemologia da administração no Brasil: o estado da arte. Cadernos EBAPE.BR, 15(4), 741-750. https://doi.org/10.1590/1679-395173209
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). A primeira obra que apresenta sinais de natureza epistemológica sobre a ciência administrativa com razoável difusão nos meios acadêmicos foi escrita por Gibson Burrel e Gareth Morgan, em 1979, com o título Sociological paradigms and organizational analysis, na qual os autores realizam, por meio de um enfoque sociológico, a tipificação e a análise de 4 paradigmas que, segundo eles, orientam a produção científica na análise organizacional: o funcionalismo, o humanismo, o estruturalismo e o interpretativismo (Serva, 2014Serva, M. (2017). Epistemologia da administração no Brasil: o estado da arte. Cadernos EBAPE.BR, 15(4), 741-750. https://doi.org/10.1590/1679-395173209
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). Dessa publicação deriva uma série de trabalhos sobre os paradigmas na análise organizacional, como estudos que buscam revelar as contradições entre os paradigmas funcionalista e crítico, além de propostas de modelos que empreguem simultaneamente diferentes paradigmas, chamado de metatriangulação.

O crescente interesse consolidou os estudos paradigmáticos como um dos temas frequentemente abordados por autores interessados na constituição do campo científico da administração e obstáculos epistemológicos a superar (Serva, 2014Serva, M. (2017). Epistemologia da administração no Brasil: o estado da arte. Cadernos EBAPE.BR, 15(4), 741-750. https://doi.org/10.1590/1679-395173209
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). Nessas obras iniciais já podemos observar que os autores identificam paradigmas aderentes aos 3 campos do modelo de análise e a ambivalência teórica-metodológica de que fala Ramos (1983Ramos, A. G. (1983). A modernização em nova perspectiva: em busca do modelo da possibilidade. Revista de Administração Pública, 17(1), 5-31. https://periodicos.fgv.br/rap/article/view/4173
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). O funcionalismo pertence ao campo da teoria da necessidade; o humanismo e o estruturalismo, ao da teoria da possibilidade; e o interpretativismo, ao da teoria relativista ou pós-estruturalista.

Após esses trabalhos pioneiros, a epistemologia da administração passou a ser desenvolvida por meio da análise da produção geral do conhecimento no campo e da análise em áreas específicas, como finanças, marketing, estratégia, empreendedorismo etc., desdobrando sobre questões metodológicas, de validação do que é produzido, além de aspectos sociais dos processos dessa produção (Serva, 2014Serva, M. (2017). Epistemologia da administração no Brasil: o estado da arte. Cadernos EBAPE.BR, 15(4), 741-750. https://doi.org/10.1590/1679-395173209
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).

O primeiro livro inteiramente dedicado à epistemologia da administração, segundo Serva (2014Serva, M. (2017). Epistemologia da administração no Brasil: o estado da arte. Cadernos EBAPE.BR, 15(4), 741-750. https://doi.org/10.1590/1679-395173209
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), é uma coletânea com 20 textos, fruto dos seminários do doutorado em administração da Universidade Laval, em Québec. Foi organizado por Michel Audet e Jean-Louis Malouin e publicando em 1986, sob o título La production des connaissances scientifiques de l’Administration. Os organizadores concluem que o campo da ciência administrativa é fracionado em múltiplos recortes que disputam opções epistemológicas e metodológicas, mas que toda tentativa de sufocar a diversidade e suas tensões só contribuirá para a estagnação do campo. Além de o campo da ciência administrativa ser analisado como um espaço de disputas de um processo social, sob um enfoque orientado por Pierre Bourdieu, as concepções clássicas da ciência e do método científico são revisitadas para, então, propor uma atualização delas. Também são apresentadas propostas para reduzir a oposição entre teoria e prática, bem como é introduzido o tema da complexidade nas organizações sob um enfoque inspirado por Edgar Morin e criticada a oposição entre os métodos qualitativos e quantitativos de pesquisa.

Os trabalhos dessa coletânea utilizam como referencial teórico autores do campo da teoria de possibilidade, como Bourdieu e Morin, e defendem que os fundamentos teóricos da administração devem se deslocar de suas bases cartesianas sem desprezar o desenvolvimento dos métodos quantitativos.

Outros autores no contexto internacional são citados por Serva (2014Serva, M. (2017). Epistemologia da administração no Brasil: o estado da arte. Cadernos EBAPE.BR, 15(4), 741-750. https://doi.org/10.1590/1679-395173209
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). Em 1990, Alain-Charles Martinet, baseado no paradigma da complexidade de Morin, argumenta em favor de uma “abertura do método” para superar dicotomias e fazer a ciência administrativa evoluir, centrando os esforços na elaboração de enunciados claros, comunicáveis, refutáveis, e cuja reflexão seja capaz de pensar a coexistência dos contrários. Esse tipo de abordagem é típico da teoria P. Também em 1990, André Micallef analisa a epistemologia do marketing, lançando um olhar sobre os grandes ciclos históricos da pesquisa científica na área. O autor procura identificar os pressupostos epistemológicos dessa produção científica, concluindo seu estudo com certo pessimismo, pois, apesar de reconhecer o relativo sucesso do chamado “paradigma do intercâmbio social”, tal paradigma não é suficiente para garantir o rigor da produção cientifica, uma vez que resta aberta a questão metodológica.

Em 1996, Audet e Richard Déry abrem uma nova frente de pesquisa para a epistemologia da administração ao sugerirem uma nova forma de retraçar a trajetória histórica do campo, remontando à historiografia da teoria administrativa não como uma série cumulativa de abordagens, e sim sob o ângulo das escolhas epistemológicas predominantes em cada período. Desse modo, foram extraídos 4 grandes períodos desse exame histórico-epistemológico: positivismo, neopositivismo, polimorfismo e construtivismo (Serva, 2014Serva, M. (2017). Epistemologia da administração no Brasil: o estado da arte. Cadernos EBAPE.BR, 15(4), 741-750. https://doi.org/10.1590/1679-395173209
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). Novamente, observa-se que os estudos que analisam, sob uma perspectiva histórica, o desenvolvimento teórico da administração capta o movimento de descentramento que a vanguarda da pesquisa no campo realiza. Contudo, os autores não identificaram enfoques teóricos pertencentes à teoria R.

Em 2000, Armand Hatchuel apresenta outra perspectiva para a historiografia da administração, em que o primeiro período (1900-1939) é caracterizado pela imposição das doutrinas clássicas da administração às antigas formas de divisão do trabalho. No segundo período (1940-1965), ocorre a consolidação da engenharia, sob um enfoque neopositivista, e no terceiro, a partir de 1965, há crises e avanços da disciplina. Os autores concluem que, apesar da expansão nos períodos anteriores, o campo se vê abalado por questões epistemológicas. Aqui, os autores percebem o que Piaget (1931Piaget, J. (1931). Bureau International d’Éducation: quatrième cours pour le personnel enseignant. Compte Rendu des Conférences International.) chama de inércia egocêntrica, em que as estruturas obsoletas, ainda que sob crítica, estão mais consolidadas que as estruturas emergentes.

Em 2004, Stewart Clegg identifica a base epistemológica da gestão estratégica com o cartesianismo, o que conduziria a 7 falácias que guiam os estudos nessa área. Para contornar o problema, o autor sugere uma agenda de pesquisa baseada em temas como poder, identidade profissional, atores não humanos, ética, linguagem e instituições, propondo uma teoria centrada na estratégia como prática no lugar da ortodoxia cartesiana (Serva, 2014Serva, M. (2017). Epistemologia da administração no Brasil: o estado da arte. Cadernos EBAPE.BR, 15(4), 741-750. https://doi.org/10.1590/1679-395173209
https://doi.org/10.1590/1679-395173209...
). Nessa publicação, ele argumenta em favor de uma ruptura com a teoria N ortodoxa e da implementação da teoria P, cuja aplicabilidade é mais sofisticada e abrangente.

Por fim, Serva (2014Serva, M. (2017). Epistemologia da administração no Brasil: o estado da arte. Cadernos EBAPE.BR, 15(4), 741-750. https://doi.org/10.1590/1679-395173209
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) apresenta Épistémologie des sciences de gestion, livro de Martinet e Yvon Pesqueux, publicado em 2013, que faz uma leitura epistêmica crítica do corpus de pesquisa sobre as organizações, propondo um sistema epistêmico-pragmático-ético da ciência administrativa, o qual amplia as responsabilidades desse campo sobre a vida dos humanos, das sociedades e do planeta.

Mais uma vez a questão ética vem à tona, agora com o conceito de sistema. A epistemologia da administração começa a ter características que indicam um amadurecimento: quando é capaz de realizar esse grande consórcio normativo, a inércia egocêntrica aparenta ceder lugar a novos consensos.

No contexto brasileiro, Serva (2017Serva, M. (2017). Epistemologia da administração no Brasil: o estado da arte. Cadernos EBAPE.BR, 15(4), 741-750. https://doi.org/10.1590/1679-395173209
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) oferece um mapeamento do estágio atual dos estudos sobre a epistemologia da administração realizados no país, indicando dimensões que se destacam na produção recente dessa epistemologia específica. O autor faz ressalvas quanto à extensão da pesquisa bibliográfica, argumentando que se trata de um breve levantamento, mas capaz de oferecer um bom panorama sobre o tema, uma vez que a amostra analisada contempla os trabalhos seminais da epistemologia da administração no país e os trabalhos mais recentes apresentados em importantes eventos científicos.

A primeira reflexão sobre essa epistemologia específica feita por um brasileiro não é publicada inicialmente no Brasil. Trata-se de Ramos, que, em 1981, publica no Canadá seu livro A nova ciência das organizações, no qual apresenta críticas à teoria administrativa dominante na época e propõe uma abordagem substantiva da organização, “embasada epistemologicamente na racionalidade substantiva, por oposição à teoria administrativa funcionalista, que é embasada na racionalidade instrumental” (Serva, 2017Serva, M. (2017). Epistemologia da administração no Brasil: o estado da arte. Cadernos EBAPE.BR, 15(4), 741-750. https://doi.org/10.1590/1679-395173209
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, p. 741). O trabalho de Ramos é de cunho crítico e fundamental para o amadurecimento dos estudos organizacionais.

Em 1997, Anna Maria Campos apresenta o estudo intitulado Contribuição para o resgate da relevância do conhecimento para a administração, em que revela a incapacidade das teorias das organizações em responder aos desafios da atualidade, pois está limitada ao paradigma mecanicista e especializado, que vem produzindo um conhecimento crescentemente especializado, o que é inadequado para lidar com a complexidade dos problemas contemporâneos (Serva, 2017Serva, M. (2017). Epistemologia da administração no Brasil: o estado da arte. Cadernos EBAPE.BR, 15(4), 741-750. https://doi.org/10.1590/1679-395173209
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). A autora propõe a revisão desse paradigma dominante por um viés crítico, que valorize a subjetividade, seja aberto à interdisciplinaridade e à transdisciplinaridade, bem como tenha uma postura não dogmática e um comprometimento ético (Serva, 2017Serva, M. (2017). Epistemologia da administração no Brasil: o estado da arte. Cadernos EBAPE.BR, 15(4), 741-750. https://doi.org/10.1590/1679-395173209
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).

Como primeira obra de epistemologia da administração publicada no Brasil, a autora demonstra conhecer a vanguarda sobre o assunto. Ela postula o movimento de descentramento em direção às teorias P, R, e recomenda uma vigilância crítica quanto à próxima inércia egocêntrica, ciente dos desafios que envolvem a percepção da complexidade e da responsabilidade ética.

Em 2000, Fernando Coutinho Garcia e Marcelo Bronzo apresentaram, no primeiro EnEO, o trabalho intitulado As bases epistemológicas do pensamento administrativo convencional e a crítica à teoria das organizações, no qual criticam os pressupostos do positivismo da teoria clássica, a escola de relações humanas e o estruturalismo, propondo a interdisciplinaridade entre a administração e a teoria econômica. Ao direcionar sua perspectiva crítica da teoria clássica ao estruturalismo, pode-se inferir que os autores fundamentam seus argumentos sobre bases pós-estruturalistas, logo se identificam com as bases epistemológicas contidas na teoria R.

Para traçar o panorama atual da epistemologia da administração tomando como referência os estudos apresentados nos EnAnpad 2016 e 2017, bem como no V Colóquio Internacional de Epistemologia e Sociologia da Ciência da Administração, realizado em 2015, Serva (2017Serva, M. (2017). Epistemologia da administração no Brasil: o estado da arte. Cadernos EBAPE.BR, 15(4), 741-750. https://doi.org/10.1590/1679-395173209
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) selecionou 16 artigos apresentados no tema epistemologia nas divisões Ensino e Pesquisa em Administração e Contabilidade (EPQ) e Estudos Organizacionais (EOR) do EnAnpad, além de 12 artigos originados do Colóquio, totalizando 28 trabalhos. O autor identificou 8 dimensões que agrupam os estudos por semelhança de objetivos e interesses de pesquisa: abordagens epistemológicas centradas no pragmatismo e nas práticas organizacionais; debate sobre opções epistêmicas e filosóficas; racionalidade; problemática da instituição escolar e do ensino; administração pública; história e organizações; abordagem decolonial; análise da inovação.

Na análise que Serva (2017Serva, M. (2017). Epistemologia da administração no Brasil: o estado da arte. Cadernos EBAPE.BR, 15(4), 741-750. https://doi.org/10.1590/1679-395173209
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) desenvolve dos 28 artigos, foi possível identificar 19 enfoques teóricos. A Figura 2 apresenta tais enfoques submetidos ao modelo deste trabalho. Eles foram inseridos em 1 dos 3 construtos teóricos, em função da aderência das teorias a cada um deles.

Figura 2
Enfoques teóricos organizados segundo o modelo de análise

A distribuição das diferentes teorias em 1 dos 3 construtos é um primeiro passo. A intenção do próximo tópico será sugerir 2 indicadores que permitam ajustar o modelo de análise com outros graus de reflexividade, na forma de aspectos teóricos e metodológicos. Nos primeiros, são brevemente abordados os delimitadores filosóficos; nos segundos, é sugerida uma escala que atribui valor às naturezas do método em função da tripla tipificação (teorias N, P e R). Nessa escala, os métodos quantitativos tendem à centralidade; os qualitativos, à descentralidade; os métodos mistos, à média.

AJUSTE DO MODELO DE ANÁLISE

Aspectos teóricos

O que se pretende neste tópico é justificar um enquadramento do pensamento científico ocidental no modelo de análise, ou seja, seus limites, fronteiras. Por isso, são apresentados argumentos que procuram definir o que seria o menor e o maior graus de reflexividade da ciência. O menor deles está indicado no centro da escala da teoria N, pois o centramento além desse ponto já teria relação com o pensamento místico-religioso. Por analogia, o maior está no centro da escala da teoria R, uma vez que o descentramento além desse ponto teria relação com idiossincrasias, ou seja, razões subjetivas não passíveis de tradução, demonstração ou consenso científico.

Em relação ao esforço para compreender o menor grau de reflexividade, Habermas (2016Habermas, J. (2016). Teoria do agir comunicativo: racionalidade da ação e racionalização social. Martins Fontes.) afirma que Weber, em seus estudos sobre as religiões, aponta um caminho para analisar a transição gradual de uma sociedade de racionalidade mítica para uma sociedade de racionalidade religiosa, até chegar a uma sociedade moderna de racionalidade científica. Habermas argumenta que Weber investiga de que maneira o potencial cognitivo, surgido com a racionalização de imagens de mundo, se torna socialmente eficaz. Segundo ele, Weber sugere que, para medir a racionalização de uma imagem de mundo, o ponto de partida está na dissolução do pensamento mágico, sugerindo uma graduação baseada em 2 parâmetros: “Um deles é o grau em que a religião descartou a magia; o outro, o grau de unidade sistemática com que ela conduz a relação entre deuses e o mundo, e, de acordo com isso, sua própria relação ética com o mundo” (Habermas, 2016Habermas, J. (2016). Teoria do agir comunicativo: racionalidade da ação e racionalização social. Martins Fontes., p. 365). Seria um tipo de sistema métrico que partiria da superação da consciência mítica “para um complexo e não muito claro grau de dogmatização” (Habermas, 2016Habermas, J. (2016). Teoria do agir comunicativo: racionalidade da ação e racionalização social. Martins Fontes.p. 365).

Um segundo movimento de descentramento pode ser ilustrado pela gênese da filosofia. Na obra A filosofia na época trágica dos gregos, Nietzsche (2008Nietzsche, F. (2008). A filosofia na época trágica dos gregos. Escala.) explica o que faz de Tales de Mileto o primeiro filósofo grego. Para Nietzsche, a filosofia grega parece começar com uma ideia extravagante: a tese segundo a qual a água seria a origem e a matriz de todas as coisas. O filósofo destaca 3 razões para nos determos nessa tese e levá-la a sério. Em primeiro lugar, porque a afirmação “tudo é água” trata, de algum modo, da origem das coisas; em segundo lugar, porque faz isso sem fabulação ou sentido figurado; em terceiro lugar, porque contém, embora em estado de crisálida, o pensamento que tudo é um. Nietzsche argumenta que a razão citada em primeiro lugar deixa Tales ainda em comunidade com místicos e religiosos, mas que a segunda e terceira razões o excluem dessa sociedade, alçando-o a pensador da natureza, que fundamenta sua tese por meio do axioma metafísico de unidade universal, ou seja, tudo é um, e esse um é a água.

Para Habermas (2016Habermas, J. (2016). Teoria do agir comunicativo: racionalidade da ação e racionalização social. Martins Fontes.), a gênese da filosofia está assentada num conceito formal de mundo, em geral na forma de leis, com um grau de reflexividade que não atribui aos fenômenos nem causas mitológicas nem subjetivas, uma vez que uma ordem cosmológica-metafísica substitui a primeira e um eu epistêmico, supostamente neutro, substitui a segunda. Esses aspectos fundamentam os pensadores da natureza de Platão a Isaac Newton.

Já em relação ao maior grau de reflexividade, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (2017Castro, E. V. (2017). Física, metafísica e mitofísica (Apresentação oral). In Colóquio do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. https://www.youtube.com/watch?v=hygylCWmdYg&t=816s
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) oferece um exemplo do que seria o pensamento além desse grau. Chamado por ele de “naturalismo ameríndio”, o autor apresenta o contraste entre as formas ideais do conhecimento científico ocidental e as formas ideais do conhecimento do mundo ameríndio, em que, no primeiro caso, o conhecimento é fruto da acumulação de informações quantitativas e qualitativas de um objeto ou fenômeno, buscando suas causas ou sua compreensão, necessárias ou possíveis. Assim, para que ocorra o conhecimento, deve-se descartar o máximo daquilo que emana do sujeito. A qualidade de uma metodologia é avaliada por sua capacidade de oferecer resultados iguais a despeito das opiniões do cientista. A impessoalidade e a neutralidade são as virtudes que acompanham a reprodutibilidade, e as correntes epistemológicas ocidentais tendem a corroborar a ideia de que o conhecimento é fruto dessa acumulação de informações reproduzíveis de um objeto e que suas causas não têm correlação com o que o cientista, como indivíduo, pensa sobre elas. O conhecimento está em descartar do fenômeno que se quer conhecer juízos de valor individuais, buscando as características capazes de um consenso, mesmo que provisório, entre os iniciados que dominam certa linguagem (Castro, 2017Castro, E. V. (2017). Física, metafísica e mitofísica (Apresentação oral). In Colóquio do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. https://www.youtube.com/watch?v=hygylCWmdYg&t=816s
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).

No naturalismo ameríndio, o processo consiste na atribuição de um máximo de subjetividade àquilo que se conhece. Isto é, quanto mais o indivíduo consegue transformar uma causa numa razão ou ação intencional, ou quanto mais consegue atribuir um tipo de agência pessoal por trás dos fenômenos à sua volta, mais o conhece. Não há uma relação sujeito-objeto, como na ciência ocidental. A relação é sujeito-sujeito, posto que emana de todo o cosmos uma aura humana (Castro, 2017Castro, E. V. (2017). Física, metafísica e mitofísica (Apresentação oral). In Colóquio do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. https://www.youtube.com/watch?v=hygylCWmdYg&t=816s
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).

Aspectos metodológicos

O segundo ajuste do modelo de análise leva em conta métodos quantitativos, qualitativos ou ambos. Sobre o uso de metodologias quantitativas no campo dos estudos organizacionais, é fato histórico que tais estratégias de pesquisa são marcadas pelo caráter utilitarista e funcionalista de suas epistemologias (Cunha & Ribeiro, 2010Cunha, J. A. C., & Ribeiro, E. M. S. (2010). A etnografia como estratégia de pesquisa interdisciplinar para os estudos organizacionais. Qualit@s. Revista Eletrônica, 9(2), 692.). Contudo, o olhar crítico de Haguette (1992Haguette, T. M. F. (1992). Metodologias qualitativas na sociologia(3a ed.). Ed. Vozes.) já indicava que, mesmo em pesquisas de natureza quantitativa, os dados não desvendam mecanicamente o real vivido. Elas não são autônomas nem neutras, haja vista que são caudatárias de um olhar prévio sobre o mundo historicamente localizado. Por sua vez, a aplicação de métodos qualitativos deve ser exposta a críticas, já que, além de ser mais vulnerável a subjetivismos, a dinâmica organizacional que o pesquisador está presenciando é fruto de uma trama histórica (Cunha & Ribeiro, 2010Cunha, J. A. C., & Ribeiro, E. M. S. (2010). A etnografia como estratégia de pesquisa interdisciplinar para os estudos organizacionais. Qualit@s. Revista Eletrônica, 9(2), 692.).

No modelo de análise, métodos quantitativos (QT), métodos quantitativos e qualitativos consorciados (QT/QL) e métodos qualitativos (QL) são distribuídos levando em conta o campo da reflexividade científica ocidental. A utilização de um desses 3 procedimentos pode ser um indicador do grau de reflexividade em função de um dos três construtos (teorias N, P e R) em que estiver inserido, dada sua carga de subjetividade imanente. A Figura 3 procura sintetizar os aspectos teóricos e metodológicos no ajuste proposto, criando 9 graus de reflexividade.

Figura 3
Modelo de análise ajustado

APLICAÇÃO DO MODELO DE ANÁLISE AJUSTADO

A análise a seguir foi realizada por meio da leitura dos resumos de 30 teses de um programa de pós-graduação em administração, com conceito 5 na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), e defendidas de julho de 2019 a novembro de 2022. Nesse recorte temporal, foi coletada uma amostra de10 teses de cada uma das 3 linhas de pesquisa do programa: gestão estratégica, marketing e inovação; organizações, gestão e sociedade; estratégia de negócios globais e finanças corporativas.

O modelo permite observar como as linhas de pesquisa se distinguem em função das opções teóricas e metodológicas. De maneira descritiva, pode-se dizer que as teses em marketing têm uma distribuição entre os construtos teorias N e P, com 5 ocasiões para cada, e que sempre utilizam métodos quantitativos quando seu enfoque analítico é da teoria N e métodos qualitativos quando se trata da teoria P - com exceção da tese 6 -, além de métodos mistos em 3 casos, 2 deles na teoria N e 1 na teoria P.

As teses da linha de pesquisa em organizações estão distribuídas pelas 3 tipificações. Contudo, com maior concentração na teoria P (7 ocasiões), todas se valem de métodos qualitativos, mesmo quando inscrita na teoria N (1 ocasião). Essa linha foi a única a usar enfoques da teoria R na amostra (2 ocasiões). Por fim, as teses da linha de pesquisa em finanças se encontram todas na teoria N e utilizam, na maioria das vezes, métodos quantitativos (8 ocasiões, sendo 2 delas métodos mistos). Nas outras 2 ocasiões, valem-se de métodos qualitativos.

As linhas de marketing e finanças diversificam mais na natureza do método, ao passo que a linha de organizações diversifica mais nos fundamentos epistemológicos. A Figura 4 apresenta a distribuição desses trabalhos utilizando o modelo de análise ajustado.

Figura 4
Graus de reflexividade organizados segundo o modelo de análise ajustado

CONCLUSÃO

O objetivo deste artigo foi fazer dois experimentos teóricos em duas diferentes fontes: nos estudos sobre o estado da arte em epistemologia da administração realizados por Serva (2014Serva, M. (2017). Epistemologia da administração no Brasil: o estado da arte. Cadernos EBAPE.BR, 15(4), 741-750. https://doi.org/10.1590/1679-395173209
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, 2017Serva, M. (2013). O surgimento e o desenvolvimento da epistemologia da administração: inferências sobre a contribuição ao aperfeiçoamento da teoria administrativa. Revista Gestão Organizacional, 6(3), 51-64. https://doi.org/10.22277/rgo.v6i3.1529
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) e em 30 resumos de teses defendidas num programa de pós-graduação. O primeiro experimento abordou as teorias de modo mais amplo e o segundo passou por ajustes teóricos-metodológicos que permitiram indicadores mais específicos. No entanto, ambos necessitam de maior aprofundamento no que diz respeito aos critérios de alocação de teorias e autores num dos graus de reflexividade propostos, bem como lidar com ambivalências que colocariam determinas teorias e autores numa situação de transição ou hibridismo.

Em defesa do complexo hamletiano ou da ambivalência teórica-metodológica permanente, Paes-de-Paula (2015Paes-de-Paula, A. P.(2015). Repensando os estudos organizacionais: por uma nova teoria do conhecimento. Editora FGV.) argumenta que esse hibridismo não precisa ser provisório, e sim um exercício constante, que pode ser o caminho para o amadurecimento no campo das pesquisas organizacionais. Diferentemente de Ramos (1983Ramos, A. G. (1983). A modernização em nova perspectiva: em busca do modelo da possibilidade. Revista de Administração Pública, 17(1), 5-31. https://periodicos.fgv.br/rap/article/view/4173
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), que avalia que a transição é hibrida até que prevaleça o novo paradigma, Paes-de-Paula substitui o conceito de paradigma pela expressão “abordagens sociológicas”, contestando a tese da incomensurabilidade inevitável nas ciências sociais e buscando demonstrar que existem caminhos convergentes na diversidade de abordagens.

Assim, foram encontrados nos resumos das teses referenciais teóricos que utilizam abordagens consorciadas ou híbridas, como funcionalismo (teoria N) com análise do discurso (teoria P) ou construtivismo (teoria P) com teoria ator-rede (teoria R). Para realizar essa análise, seria necessário se debruçar sobre toda a tese, não apenas sobre seus resumos. Contudo, avaliamos que, como reflexão inicial, o exercício teórico cumpre seu papel na tentativa de auxiliar uma visão panorâmica da epistemologia da administração e no potencial de aplicação em outros conjuntos de textos, como a produção de determinado espaço científico do campo dos estudos organizacionais ao longo de um período, possibilitando identificar suas transformações e dinâmica.

Quanto às diferenças encontradas, não se trata de uma questão de certo ou errado; não é uma avaliação moral. A inspiração em Piaget (1931Piaget, J. (1931). Bureau International d’Éducation: quatrième cours pour le personnel enseignant. Compte Rendu des Conférences International.) recomenda a criação de um instrumento de moderação em relação às diferenças, buscando a aprendizagem por conflito cognitivo, por meio de um método de compreensão e reciprocidade que alcance a objetividade sem desconsiderar o relativo, promovendo cooperações, trocas, empatias, hibridismos e desenvolvimento.

REFERÊNCIAS

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  • Castro, E. V. (2017). Física, metafísica e mitofísica (Apresentação oral). In Colóquio do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. https://www.youtube.com/watch?v=hygylCWmdYg&t=816s
    » https://www.youtube.com/watch?v=hygylCWmdYg&t=816s
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  • DISPONIBILIDADE DE DADOS

    O conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo não está disponível publicamente. Detalhes da construção do consórcio teórico podem ser encontrados no link: http://repositorio.ufla.br/jspui/handle/1/46088

PARECERISTAS

  • 4
    Marcelo de Souza Bispo (Universidade Federal da Paraíba, Paraíba / PB - Brasil). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5817-8907
  • 5
    Maurício Roque Serva de Oliveira (Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis / SC - Brasil). ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2416-3405
  • RELATÓRIO DE REVISÃO POR PARES

    O relatório de revisão por pares está disponível neste link: https://periodicos.fgv.br/cadernosebape/article/view/91503/85939

Editado por

Hélio Arthur Reis Irigaray (Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro / RJ - Brasil). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9580-7859
Fabricio Stocker (Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro / RJ - Brasil). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6340-9127

Disponibilidade de dados

O conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo não está disponível publicamente. Detalhes da construção do consórcio teórico podem ser encontrados no link: http://repositorio.ufla.br/jspui/handle/1/46088

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    01 Dez 2022
  • Aceito
    11 Ago 2023
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