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Interpretações sociológicas do trabalho decente na economia social e solidária

Interpretaciones sociológicas del trabajo decente en la economía social y solidaria

Resumo

Este texto apresenta a edição temática sobre interpretações sociológicas acerca do trabalho decente na Economia Social e Solidária (ESS). Na primeira parte, são expostas diferentes correntes teóricas interpretativas sobre o trabalho na modernidade para contextualizar o conceito de trabalho decente ou digno, lançado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). Em sequência, a análise da interface entre a ESS e o trabalho decente, como campo de estudo, é desenvolvida com base em pesquisa bibliométrica elementar. Na última parte, os artigos que compõem este volume da revista são apresentados.

Palavras-chave:
Economia Social e Solidária; Trabalho decente; Justiça social; Gestão social

Resumen

Este texto presenta la edición temática sobre interpretaciones sociológicas del trabajo decente en la economía social y solidaria. En la primera parte se exponen diferentes corrientes teóricas interpretativas sobre el trabajo en la modernidad para contextualizar el concepto de trabajo decente lanzado por la Organización Internacional del Trabajo. Posteriormente, el análisis de la interfaz entre la economía social y solidaria y el trabajo decente como campo de estudio se desarrolla a partir de una investigación bibliométrica. En la última parte, se presentan los artículos que componen este volumen de la revista.

Palabras clave:
Economia Social e Solidária; Trabalho decente; Justiça social; Gestão social

Abstract

This text presents the thematic issue that approaches the sociological interpretations of decent work in the social and solidarity economy (SSE). The first part presents different interpretative theoretical currents about work in modernity and contextualizes the concept of decent work launched by the International Labor Organization. Subsequently, the interface between the SSE and decent work as a field of study is developed based on bibliometric research. The last part presents the articles that make up this issue of the journal.

Keywords:
Social and solidarity economy; Decent work; Social justice; Social management

O TRABALHO NA SOCIEDADE MODERNA

Nas sociedades ditas industriais, o trabalho ganhou centralidade em diferentes abordagens teóricas nos campos da Sociologia e da Economia. As razões para tal, segundo Offe (1989Offe, C. (1989). Trabalho como categoria fundamental?In C. Offe (Org.), Trabalho & sociedade: problemas estruturais e perspectivas para o futuro da sociedade do trabalho(Vol. 1, pp. 13-42). Tempo Brasileiro.), foram: (i) a possibilidade de distinção entre as esferas doméstica e do trabalho, assim como entre a propriedade e o trabalho remunerado; (ii) a existência de uma ética do trabalho difusa socialmente, a qual teria superado a antiga hierarquia entre o exercício de atividades inferiores e superiores ou entre os afazeres úteis e as manifestações significativas da vida; (iii) o estabelecimento proeminente de uma racionalidade do tipo instrumental como consequência da larga utilização industrial da força de trabalho. Também Arendt (2009Arendt, H. (2009). La condición humana. Paidós.) ressalta que o trabalho foi idealizado como (i) meio para alcançar um fim mais elevado; (ii) ato de transformação de uma estrutura em outra superior; (iii) forma de domínio sobre si e sobre a natureza; e, ainda, (iv) um modo de alcançar satisfação similar à obtida nas atividades de ócio.

Essas representações sociais e funcionalidades, no entanto, passaram a ser questionadas por teóricos como: Sabel (1982Sabel, C.(1982). Work and politics: the division of labor in industry. Cambridge University Press.) e Touraine (1971Touraine, A. (1971). A Sociedade Post-Industrial. Moraes.), ao ressaltarem a perda da capacidade de normalização do trabalho sobre o conteúdo das ações, dos interesses e do estilo de vida dos indivíduos nas sociedades pós-industriais; Habermas (1983Habermas, J. (1983). Técnica e ciência como “ideologia”. Edições 70.), para quem a categoria trabalho deixou de ser central na explicação das mudanças sociais; Bell (1976Bell, D. (1976). El advenimiento de la sociedad post-industrial: un intento de prognosis social. Alianza Editorial.) e Castel (2005Castel, R. (2005). As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Ed. Vozes.), que questionaram elementos de participação da tecnologia na criação da riqueza econômica e o papel do trabalho nessa dinâmica, bem como das metamorfoses da transformação social.

Supiot (2019Supiot, A. (2019). Para além do emprego: os caminhos de uma verdadeira reforma do direito do trabalho. Revista Direito das Relações Sociais e Trabalhistas, 4(3), 17-52. https://doi.org/10.26843/mestradodireito.v4i3.160
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), em estudo dedicado à análise das transformações do trabalho e ao futuro do direito do trabalho na União Europeia, argumentou a necessidade de o Estado estabelecer regulações para além do emprego e implementar as condições do “estado profissional da pessoa” visando assegurar a todos os trabalhadores a continuidade do estatuto social, independentemente das atividades e vínculos exercidos ao longo de suas vidas profissionais.

A esses debates somaram-se especificidades dos países do Sul Global, quais sejam, mercado de trabalho desestruturado e altos índices de informalidade, fatores característicos do Brasil (Oliveira, 2003Oliveira, F. (2003). Crítica à razão dualista: o ornitorrinco. Boitempo Editorial.; Pochmann, 2008Pochmann, M. (2008). O emprego no desenvolvimento da nação. Boitempo Editorial.).

Nesse cenário, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) lançou, nos anos de 2008, a Declaração sobre a Justiça Social para uma globalização equitativa. Estabeleceu, ainda, o pleno emprego produtivo e o trabalho decente como elementos centrais das políticas econômicas e sociais. Para isso, estimulou a adoção dos quatro objetivos1 1 São objetivos da agenda: respeito aos direitos no trabalho, especialmente aqueles definidos como fundamentais (liberdade sindical, direito de negociação coletiva, eliminação de todos as formas de discriminação em matéria de emprego e a ocupação e erradicação de todas as formas de trabalho forçado e trabalho infantil); promoção do emprego produtivo e de qualidade; ampliação da proteção social; e fortalecimento do diálogo social. estratégicos da Agenda do Trabalho Decente ou Digno como metas prioritárias das políticas nacionais e internacionais.

Com essa estratégia, a OIT difundiu o conceito nos quatro cantos do globo; contudo, não foi capaz de inovar na regulação econômica do trabalho. Seu estatuto seguiu orientado ao modelo de emprego como modo de organização da produção e da distribuição da riqueza social, excluindo diversas outras atividades não exercidas em condições de emprego e esquecendo-se de considerar as inúmeras relações precarizadas que avançaram no mundo do trabalho e forjaram empregos nada decentes. Aliás, o próprio conceito de decent work passou a ser alvo de diferentes interpretações em virtude de sua carga valorativa atrelada à dignidade.

Recém, as Nações Unidas entrelaçaram o trabalho decente ao crescimento econômico na Agenda para o Desenvolvimento Sustentável de 2030, ampliando a abrangência conceitual anterior ao introduzir novos elementos, tais como: promoção de políticas orientadas para o desenvolvimento de empreendedorismo, formalização e crescimento de micro, pequenas e médias empresas e melhoria da eficiência no consumo e na produção dos recursos globais correlacionados a aspectos ambientais. Sua essência, no entanto, seguiu restrita às atividades econômicas produtivas voltadas ao lucro, bem como permaneceu sendo adotado o vínculo de emprego como forma “digna” de inserção social, ainda que a realidade crescentemente desafie essa inclusão.

Em 2019 houve uma mudança de direção. Na 108ª Conferência Internacional do Trabalho (CIT) foi aprovada a Declaração do Centenário da OIT para o Futuro do Trabalho com o reconhecimento da Economia Social e Solidária (ESS) como um modelo econômico alternativo centrado nas pessoas e capaz de combinar objetivos sociais, econômicos e ambientais. Esse direcionamento foi reafirmado na 109ª CIT, ocorrida após a pandemia de COVID-19, quando a OIT adotou uma chamada global para recuperação econômica centrada nas pessoas. Igual caminho seguiu a Assembleia Geral das Nações Unidas no informe A/76/209 de 2021, ao identificar, na interface entre as cooperativas e as tecnologias de informação e comunicação (TIC), a oportunidade do estabelecimento de um novo contrato social que reconheça as inter-relações entre a economia, a proteção social, a saúde e o meio ambiente.

A ECONOMIA SOCIAL E SOLIDÁRIA E O TRABALHO DECENTE

O termo “economia social e solidária” emergiu no debate acadêmico como estratégia de enfrentamento da exclusão social de camadas da população marcadas pela alta vulnerabilidade socioeconômica e como mecanismo de desenvolvimento territorial baseado em um conjunto de ações coletivas e autogestionárias do trabalho.

Sua contribuição para a organização do trabalho decente, no entanto, está longe de ser incontroversa. De um ponto de vista generalista e de um olhar ocidental, reconhece-se a proximidade entre os ideários da ESS e do trabalho decente, que, no entanto, afastam-se, muitas vezes, nas práticas reais de trabalho ou emprego dessas organizações.

A isso somam-se distinções internas entre as vertentes da Economia social e da Economia Solidária, as quais não são propriamente displicentes e neutras. O conceito “economia social” emergiu na Europa do século XIX como resposta dos vários setores da sociedade (pensadores socialistas associacionistas, cristãos católicos e mesmo liberais como Walras e Mill) face às vicissitudes da exploração causada pelo capitalismo liberal e industrial, sob a forma de iniciativas associativas, cooperativas e mutualistas de cariz operário e camponês (Defourny, 2009Defourny, J. (2009). Empresa social. In A. Cattani, J.-L. Laville, L. I. Gaiger, & P. Hespanha (Orgs.), Dicionário internacional da outra economia(pp. 188-192). Almedina.). Já durante o século XX, recebeu o reforço do ideário da liberdade de associação e de outras figuras jurídicas, tais como fundações e empresas sociais, dentro de um ideário de adaptação reformista à evolução das economias capitalistas.

Para além das distinções de formas jurídico-institucionais, o essencial a se captar nesse movimento está nos seus princípios normativos e valores. A Economia Social adota como objetivos a produção de bens e a prestação de serviços aos seus membros (associados e/ou cooperados) ou à comunidade em geral. Tais objetivos ancoram-se na autonomia da gestão e no controle democrático, com processos de tomada de decisão, em particular, e da governança, em geral, centrados nas pessoas e no trabalho, não no capital. Há, todavia, uma forte dependência do Estado, que, muitas vezes, figura quase como uma forma de extensão na execução de políticas sociais, muito alinhadas a uma abordagem assistencialista e caritativa.

Para se diferenciar dessa abordagem, o conceito de “economia solidária” emergiu e distanciou-se das “[...] grandes organizações, quase sempre antigas e fortemente institucionalizadas” (Defourny, 2009Defourny, J. (2009). Empresa social. In A. Cattani, J.-L. Laville, L. I. Gaiger, & P. Hespanha (Orgs.), Dicionário internacional da outra economia(pp. 188-192). Almedina., p. 159), de base reformista. Assim, do ponto de vista conceitual, no âmbito dos estudos do Centro Internacional de Investigação e Informação sobre a Economia Pública, Social e Cooperativa (CIRIEC), marcado pelo protagonismo das cooperativas, mutualidades e associações, esse campo foi categorizado em dois subsetores, um não mercantil e outro mercantil, remetendo respectivamente à Economia Social e à Economia Solidária, também designada “nova economia social” (Defourny, 2009, p. 160).

A “nova economia social” orienta-se por um projeto político transformador, integrando práticas de produção agroecológica, consumo responsável e de proximidade, comércio justo, moedas sociais, bancos de tempo e clubes de troca, oficinas de recuperação e manutenção, turismo solidário e sustentável, microcrédito e finanças éticas, cantinas sociais, grupos de entreajuda, empresas de inserção, cooperativas integrais e populares (versus grandes empresas cooperativas). Sua preocupação central é a criação de trabalho e rendimento para e pelos seus membros, em uma perspectiva de independência dos indivíduos que pertencem a organização de gestão democrática ou a coletivo autogerido.

Trata-se de uma abordagem progressista, que não fragmenta a vida em relações econômicas e sociais, pretendendo recolocar as pessoas no centro da economia e colocar a economia a serviço das pessoas. Sua abordagem aponta para um projeto de sociedade, inspirado na emancipação das pessoas, na atuação local e na pequena escala. Nela o trabalho decente é central à transição para sociedades com condições de justiça ecossocial.

Para além dessas diferenças, a Economia Social e a Economia Solidária têm sido acopladas diante de um progressivo interesse e aceitação (Moreno & Chaves, 2006Moreno, A. S., & Chaves, R. (2006, noviembre). Balance y tendencia en la investigación sobre tercer sector no lucrativo. Especial referencia al caso español. Revista de Economía Pública, Social y Cooperativa, 56, 87-116. https://ciriec-revistaeconomia.es/wp-content/uploads/5604_Sajardo_y_Chaves.pdf
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). Autores como Coraggio (2015Coraggio, J. L. (2015). Institutionalizing the social and solidarity economy in Latin America. social and solidarity economy: beyond the fringe. Zed Books/UNRISD.) entendem que a complementariedade entre dinâmicas mercantis (venda de bens e serviços no mercado), não mercantis de redistribuição (relações, protocolos, contratos com instituições estatais e para-públicas) e não monetária (relações comunitárias, familiares, de vizinhança, em suma, de reciprocidade, entreajuda e dádiva) integra a gênese do trabalho produtivo e reprodutivo, bem como das lógicas de racionalidade não instrumentais. Essa abordagem reconhece todas as atividades necessárias à reprodução ampliada da vida.

A despeito da riqueza desse campo de pesquisa, a interseção entre a Economia Social e Solidária em interface com o trabalho decente passou a ser investigada com mais profundidade a partir de 2020, como indica o levantamento bibliométrico realizado na Web of Science e SciELO, conforme protocolo de pesquisa apresentado no Quadro 1.

Quadro 1
Procedimentos de operacionalização do mapeamento da categoria trabalho decente no âmbito da Economia Social e/ou Solidária

Ao realizar a busca na Web of Science utilizando somente TS=(“solidarity economy” or “social economy” or “economia solidária” or “economia social”), foram encontrados 2470 resultados. Já as buscas com as palavras-chave incluindo a interface com trabalho decente, TS=(“solidarity economy” or “social economy” or “economia solidária” or “economia social”) and TS=(“trabalho decente” or “decent work” or “decent job” or “proper job” or “decent working” or “decent labor), resultaram em 11 achados, dentre os quais 10 artigos foram publicados entre os anos 2020 e 2023, conforme apresentado no Gráfico 1.

Gráfico 1
Produção de artigos por ano (2023)

Esses artigos foram publicados nas seguintes revistas com os respectivos quantitativos: Sustainability (3); Revista de Economia Publica Social y Cooperativa (CIRIEC), España (2); APUNTES - Revista de Ciencias Sociales (1); DIXI (1); International Journal of Environmental Research and Public Health (1); Revista Jurídica Portugalense (1); Revista Latinoamericana de Derecho Social (1). Os países mais relevantes na produção científica dessa interface são: Espanha, França, Colômbia, Chile, Costa Rica, Equador, México. Os artigos mais citados encontram-se no Quadro 2.

Quadro 2
Artigos mais citados nas revistas encontradas nas bases de dados (2023)

Com efeito, a lacuna no campo de pesquisa incitou alguns questionamentos:

  • A ESS é um modelo alternativo ao sistema capitalista em se tratando de trabalho e emprego?

  • A Agenda de Trabalho Decente da OIT é um fator de transformação da ESS?

  • Como a ESS combina objetivos sociais, culturais, econômicos e ambientais para transformar a realidade local centrado nas pessoas?

  • É possível articular a ESS com a economia de mercado globalizada para ampliar o bem viver?

  • Como as formas próprias de organização da ESS são gerenciadas para garantir as condições de trabalho decente e alcançar efetivamente o bem comum?

As questões suscitadas guiaram as reflexões críticas que compõem esta edição especial temática.

EDIÇÃO ESPECIAL TEMÁTICA

O tema de análise desta edição temática gira em torno das possíveis interpretações sociológicas da ESS no contexto da organização do trabalho decente, tendo como pano de fundo os princípios norteadores da autogestão, da gestão social dos bens comuns, do cooperativismo e do associativismo.

O objetivo da proposta foi incentivar reflexões críticas para ampliar a compreensão das potencialidades e dos desafios da ESS como modelo econômico alternativo centrado nas pessoas e capaz de combinar objetivos sociais, econômicos e ambientais. Igualmente, pretendeu-se permitir a divulgação de metodologias empíricas de incubação de empreendimentos coletivos e de práticas de gestão social. Nesse âmbito, foram selecionados nove artigos com contribuições nacionais e internacionais ao tema, os quais estão organizados em três grandes grupos.

No primeiro grupo, estão reunidos três artigos de análise macro sobre ESS e sobre o trabalho decente no contexto europeu. No segundo grupo, tem-se três artigos que examinam a interação da ESS com as políticas públicas na promoção do trabalho decente, em um contexto de diálogo na América Latina. Já no terceiro grupo, encontram-se três artigos de abordagem empírica sobre experiências práticas no Brasil.

O artigo “A economia solidária além da questão do trabalho”, de Jean-Loius Laville e Jeová Torres Silva Junior, inaugura a coletânea apresentando as limitações teóricas tanto da abordagem da sociologia clássica do trabalho quanto daquela realizada pela OIT. Segundo os autores, “[...] a sociologia do trabalho apresenta a economia solidária como dependente do neoliberalismo, ao passo que a OIT a coloca como resistente ao neoliberalismo”. Para os autores, esse paradoxo interpretativo resulta da insuficiência dos quadros teóricos adotados pelas concepções tradicionais, os quais seguem lastreadas nas chaves conceituais restritivas do trabalho assalariado e da atividade econômica dominante nas empresas. Assim, os autores propõem a ampliação desses referenciais teóricos com base nas epistemologias do Sul, na abordagem substantiva da ação econômica, isto é, de uma economia plural e democracia plural, incluindo a noção de democracia deliberativa.

O segundo artigo intitula-se “A dignidade do trabalho e a economia social em Portugal”. Seu autor, Pedro Hespanha, examina detalhadamente, por meio de pesquisa qualitativa de diferentes formas de organização da Economia Social, como as relações de trabalho se estabelecem no seu interior. De início, o autor ressalta que as restrições legais de atribuição de personalidade jurídica aos empreendimentos “[...] encobre inúmeras experiências informais, espontâneas, inovadoras e democráticas”. Em sequência, analisa os diferentes vínculos de trabalho dentro das cooperativas, das associações mutualistas, das instituições particulares de solidariedade social, das organizações autogestionárias e das organizações de base comunitária. Com efeito, observa a existência de um alto índice de trabalho assalariado em detrimento de outras formas de trabalho, uma remuneração média dos trabalhadores inferior à da economia nacional, deslocamento de trabalhadores para a Economia Social sem o reconhecimento de seus valores e princípios, entre outros achados. Sua pesquisa, em essência, evidencia “[...] um conjunto de dificuldades no reconhecimento de igual dignidade ao trabalho associado e contratado” no âmbito dos empreendimentos ligados à Economia Social.

O terceiro artigo, “Trabajo decente en la economía solidaria de Cataluña”, de Jordi Estivill Pascual, apresenta uma análise histórica do surgimento do conceito de trabalho decente e sinaliza suas ambiguidades. O autor expõe, ainda, um panorama do trabalho decente na economia solidária da Catalunha com base em pesquisa qualitativa, por meio da qual verificou a aderência dos empreendimentos aos princípios2 2 Princípio de portas abertas e participação voluntária, controle democrático e participação dos associados, autonomia e independência, colaboração econômica entre cooperativas, preocupação dos resultados orientados à comunidade. e valores da Aliança Cooperativa Internacional (ACI). Por fim, recorre a uma análise quantitativa com base em dois questionários: um direcionado ao mapeamento geográfico dos empreendimentos com base em quinze indicadores e outro centrado na análise de 47 indicadores econômicos e sociais. Ambos os questionários foram aplicados pela Rede de Economia Solidária Catalã, em 2007 e 2015 respectivamente, sem descontinuidade. O estudo aponta o crescimento das iniciativas de Economia Solidária e a maior proximidade desse setor com o ideal do trabalho decente. Salienta, todavia, o desafio de ser a Economia Solidária ainda minoritária dentro do sistema dominante e sujeita a contradições.

Economia solidária e seu estágio de institucionalização: a contribuição das políticas públicas”, de Daiane Lima da Silva e Vicente da Rocha Soares Ferreira, apresenta uma pesquisa cujo intuito foi verificar o grau de institucionalização das políticas públicas de Economia Solidária em quatro entes federativos (Bahia, Pernambuco, Minas Gerais e Distrito Federal). A investigação recaiu sobre a análise de cinco fatores: (i) instrumentos de apoio à comercialização dos empreendimentos econômicos solidários; (ii) ações de apoio técnico; (iii) incentivo à formalização dos empreendimentos solidários; (iv) programas de acesso ao crédito; (v) ações intragovernamentais com a sociedade civil organizada e a universidade. Os resultados de pesquisa descrevem um vasto rol de iniciativas que podem servir de referência a outros entes federativos. Ademais, indica a ausência de um banco de dados nacional3 3 Já existe o Cadastro Nacional de Empreendimentos de Economia Solidária (CADSol), instituído no ano de 2014 (Portaria 1.780), porém sem ações de registro e mapeamento mais estruturados e restrito a empreendimentos formalizados. atualizado de Economia Solidária como um dos grandes desafios para ampliar a institucionalização das políticas setoriais. O artigo ainda sugere uma ampla agenda de pesquisa a ser desenvolvida na área.

O quinto artigo, intitulado “Um estudo tipológico baseado nos atributos dos trabalhadores(as) da economia solidária para o aperfeiçoamento das políticas públicas de geração de trabalho e renda”, tem a autoria de Eliene Gomes dos Anjos e Carlos Eduardo Crispim de Oliveira Ramos, os quais conduzem uma investigação na base de dados amostral do SENAES hierarquizando similitudes e diferenças, por meio da Análise Fatorial Múltipla (AFM), dos atributos pessoais e das atividades econômicas exercidas pelos indivíduos na Economia Solidária. Com efeito, os dados foram agrupados em três conjuntos, revelando traços constitutivos em cada um deles e se constituindo como uma importante ferramenta para os formuladores e executores de políticas públicas direcionadas à Economia Solidária.

Em “El nuevo municipalismo y la gestión de lo común: la experiencia de la Red de Municipios Cooperativos (República Argentina, 2016-2022)”, Ariel Oscar García e Aldana García Tarsia recuperam a história de surgimento e desafios da iniciativa Argentina de articular burocracias locais e setor cooperativo. De um lado, os autores, sob as bases teórica da gestão do comum e da Economia Social, conectam a sustentabilidade da iniciativa às relações de confiança das partes dentro de uma gestão comunitária. De acordo com os autores, a expansão da rede pode ampliar a esfera de autonomia das municipalidades com respeito a decisões políticas em nível superior. De outro lado, apontam que a federalização da ferramenta de compra local pode vir a constituir “[...] uma forma de aproveitamento das economias locais e das vantagens comparativas de cada região do país”.

O sétimo artigo, “Inovação social rural em práticas de economia solidária no coletivo Cooptar no Sul do Brasil”, de Denise de Oliveira, Adriane Vieria Ferrarini e Denize Grzybovski, traz a análise, sob as lentes da Inovação Social Rural (ISR), das práticas da Cooperativa de Produção Agropecuária Cascata (Cooptar). As autoras realizam um estudo de caso baseado em entrevistas semiestruturadas para verificar os processos de aprendizagem e de transformação desse empreendimento de Economia Solidária que existe há mais de 30 anos.

No oitavo artigo, “Devir da relação entre extensão universitária e participação social na economia social e solidária: o caso do colegiado territorial rural da baía da Ilha Grande (RJ)”, Patrick Maurice Maury, Lamounier Erthal Villela, Rafaela Chaves Cardoso e Isabella Dias de Carvalho, investigam a influência da gestão social na ruptura dos ciclos de inserção e de desmantelamento das políticas públicas de Economia Social e Solidária. Por meio de pesquisa de campo participativa, os autores realizam uma retrospectiva para situar historicamente o contexto da extensão rural e, desse modo, diferenciá-lo da extensão universitária. Analisam, ainda, a relação entre a extensão universitária e as organizações do território que integram os colegiados caracterizando-a como um processo de gestão social. A pesquisa evidencia os colegiados territoriais rurais como instâncias de coordenação das políticas públicas relacionadas com a agricultura familiar, descentralizadas nos municípios, além disso, “[...] aponta a natureza emancipatória da participação nesses espaços levando aos indivíduos à capacidade crítica necessária ao reconhecimento do interesse bem compreendido como referência da sociedade democrática”.

Encerra esta edição temática o artigo “A gestão orgânica de conflitos desenvolvida em empreendimentos formados por mulheres da economia solidária: uma análise pós-colonialista sobre uma prática feminista de autogestão”, de Maria de Nazaré Moraes Soares, Sílvia Maria Dias Pedro Rebouças e José Carlos Lázaro. Seus autores apresentam o resultado de pesquisa de campo realizada de 2018 a 2021 em um grupamento de mulheres no âmbito da Rede Feminista da Economia Solidária (RFES). O estudo identifica um modo específico feminista de gerir os conflitos, o qual os autores denominam gestão orgânica de conflito e exige uma ressignificação das noções de eficiência, racionalidade, conflito, entre outros. Esta pesquisa permite, ainda, identificar três características próprias das práticas feministas de autogestão de conflitos que a diferenciam de outros modos de enfrentá-los.

Esta edição temática traz um conjunto de reflexões teóricas e práticas para avançar nos estudos da Economia Social e Solidária em interface com o trabalho decente.

Desejamos boa leitura!

REFERÊNCIAS

  • Arendt, H. (2009). La condición humana Paidós.
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    » https://ciriec-revistaeconomia.es/wp-content/uploads/5604_Sajardo_y_Chaves.pdf
  • Offe, C. (1989). Trabalho como categoria fundamental?In C. Offe (Org.), Trabalho & sociedade: problemas estruturais e perspectivas para o futuro da sociedade do trabalho(Vol. 1, pp. 13-42). Tempo Brasileiro.
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  • Pochmann, M. (2008). O emprego no desenvolvimento da nação Boitempo Editorial.
  • Prado, J. W., Alcântara, V. C., Carvalho, F. M., Vieira, K. C., Machado, L. K., & Tonelli, D. F. (2016). Multivariate analysis of credit risk and bankruptcy research data: a bibliometric study involving different knowledge fields (1968-2014). Scientometrics, 106(3), 1007-1029. https://doi.org/10.1007/s11192-015-1829-6
  • Sabel, C.(1982). Work and politics: the division of labor in industry Cambridge University Press.
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    » https://doi.org/10.26843/mestradodireito.v4i3.160
  • Touraine, A. (1971). A Sociedade Post-Industrial Moraes.
  • 1
    São objetivos da agenda: respeito aos direitos no trabalho, especialmente aqueles definidos como fundamentais (liberdade sindical, direito de negociação coletiva, eliminação de todos as formas de discriminação em matéria de emprego e a ocupação e erradicação de todas as formas de trabalho forçado e trabalho infantil); promoção do emprego produtivo e de qualidade; ampliação da proteção social; e fortalecimento do diálogo social.
  • 2
    Princípio de portas abertas e participação voluntária, controle democrático e participação dos associados, autonomia e independência, colaboração econômica entre cooperativas, preocupação dos resultados orientados à comunidade.
  • 3
    Já existe o Cadastro Nacional de Empreendimentos de Economia Solidária (CADSol), instituído no ano de 2014 (Portaria 1.780), porém sem ações de registro e mapeamento mais estruturados e restrito a empreendimentos formalizados.
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    Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

Disponibilidade de dados

Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    22 Dez 2023
  • Aceito
    08 Jan 2024
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