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De Rostow a Raworth: refletindo sobre economia solidária

No livro “The stages of economic growth: a non-communist manifesto” (Rostow, 1960), como base para o programa de governo proposto por J. F. Kennedy, Rostow propõe que o crescimento econômico ocorre em cinco estágios básicos, de duração variável: a sociedade tradicional; os pré-requisitos para decolagem; a decolagem em si; a maturidade; e, finalmente, a era do alto consumo de massa.

A sociedade tradicional é caracterizada pela grande proporção de recursos empregados na agricultura, em decorrência da baixa produtividade. Por ter uma estrutura social hierarquizada, nela há pouca mobilidade vertical, o poder político é concentrado nos proprietários de terras e no poder local, e os vínculos familiares e de clã são muito importantes. Num segundo momento, no qual observam-se as precondições para o arranco, há a ampliação da educação, surgem os novos tipos de homens de negócios, o sistema financeiro é desenvolvido, bem como intensifica-se o investimento em infraestrutura e exploração de matérias-primas; assim, floresce a moderna empresa industrial. Já a terceira fase, chamada de decolagem ou arranco, é caracterizada pelo aumento da renda, da poupança e, consequentemente, dos recursos para investimento. Assim, há uma mudança na mentalidade da sociedade, que passa a aceitar as novas técnicas agrícolas e industriais. Para Rostow, o aumento da produtividade agrícola é condição sine qua non para que a decolagem econômica ocorra. O quarto estágio é a maturidade, quando a tecnologia moderna se estende a toda a economia, a taxa de investimento atinge 10% a 20% do Produto Interno Bruno (PIB) e a produção cresce bem acima da população. No limite, Rostow (1960, p. 21) advoga que, nessa etapa, prevalece a “poderosa aritmética dos juros compostos aplicados ao estoque de capital”. Por fim, no último estágio, a de alto consumo em massa, a renda média supera as necessidades mínimas (alimentação, habitação, vestuário), e a população se torna majoritariamente urbana e os trabalhadores mais especializados, “conscientes e ansiosos por adquirir as benesses de consumo de uma economia amadurecida” (Rostow, 1960, p. 24).

Rostow argumenta que os países passam por cada uma dessas fases de forma bastante linear e estabelecem uma série de condições que provavelmente ocorreriam no investimento, no consumo e nas tendências sociais em cada Estado. No entanto, nem todas as condições ocorreriam em cada fase, e as fases e os períodos de transição podem ocorrer em durações variadas de país para país, e mesmo de região para região. O que Rostow não responde é o que fazer depois que todo o consumo intensivo perder o seu charme. Mais do que isso, será possível que todos os habitantes do nosso planeta irão alcançar esse estágio?

Os modelos e planos econômicos são desenhados para que a economia decole e nunca pouse, como se fosse possível crescer para sempre, quando a mesma economia nos recorda que os recursos são limitados.

Nesse sentido, Raworth (2017Raworth, K. (2017). Doughnut economics: seven ways to think like a 21st-century economist. Random House.) defende que devemos substituir as métricas financeiras, com o PIB como a única medida para o progresso. Ela entende que precisamos buscar um modelo econômico que floresça, de tal forma que as desigualdades externas não sejam naturalizadas, e introduzir toda a humanidade num sweet spot, no que ela chama Modelo Donut.

Donut é uma rosquinha comum nos Estados Unidos, e o modelo proposto por Raworth (2017Raworth, K. (2017). Doughnut economics: seven ways to think like a 21st-century economist. Random House.) é assim denominado por sua semelhança visual com esse doce. Sua base é o desenvolvimento sustentável, no qual são alinhados os limites planetários e os alicerces sociais, de tal forma que o desempenho econômico do nosso planeta, como um todo, não ultrapasse os tetos ecológicos da Terra.

O Donut enfatiza que a verdadeira medida do sucesso econômico não deve ser apenas o crescimento do PIB, mas também o bem-estar das pessoas e a saúde do nosso planeta. Este modelo desafia os países a se remodelarem em torno de economias que sejam regenerativas por design e distributivas por intenção, garantindo que todos tenham o que é fundamental para uma vida digna, sem comprometer os recursos planetários para as gerações futuras.

Nessa proposta, os alicerces sociais são: segurança alimentar; saúde; educação; renda e trabalho; paz e justiça; democracia; equidade social; igualdade de gênero; habitação; capital social; energia e água. Já os limites planetários, ou teto ecológico, são: a mudança climática (as emissões antropogênicas de gases de efeito estufa, que retêm o calor na atmosfera, alterando o clima da Terra); a acidificação dos oceanos (quando o dióxido de carbono antropogênico é absorvido pelos oceanos, tornando a água mais ácida e diminuindo a capacidade da vida marinha de desenvolver esqueletos e conchas); a poluição química (liberação de materiais tóxicos na natureza que reduz a biodiversidade, bem como a fertilidade dos animais); os ciclos biogeoquímicos do nitrogênio e do fósforo (o uso ineficiente ou excessivo de fertilizantes, que faz com que sejam escoados para os corpos d’água, resultando nas proliferação de algas, que matam a vida subaquática); o uso da água doce; a intensa conversão de terras para atividades econômicas; a perda da biodiversidade; a emissão de aerossóis na atmosfera; e, por fim, a destruição da camada de ozônio.

A economia solidária, portanto, vai além do conceito de crescimento econômico para abraçar uma visão mais holística que inclui a justiça social, a inclusão e a sustentabilidade. Ela propõe uma mudança radical na maneira como pensamos sobre a economia, o trabalho e a sociedade, incentivando práticas como a cooperação, a gestão democrática, o comércio justo, e o consumo responsável.

Ao refletirmos sobre os ensinamentos de Rostow e as ideias de Raworth, torna-se evidente que a transição para uma economia solidária requer mudanças substanciais nas políticas públicas, na cultura empresarial e na consciência social. Este paradigma emergente sugere que, ao invés de perseguir o crescimento a todo custo, devemos buscar uma prosperidade que seja compartilhada equitativamente e sustentável ambientalmente. Isso representa uma evolução significativa no pensamento econômico que pode ajudar a solucionar alguns dos problemas mais prementes do nosso tempo, como a desigualdade extrema e a crise climática.

Na busca por reinventar nossas percepções e interações com o mundo ao nosso redor, esta edição especial é dedicada a explorar e reavaliar as múltiplas facetas da economia solidária através de uma variedade de perspectivas ontológicas. Nosso objetivo é proporcionar uma plataforma rica e diversificada onde pensadores de todos os campos possam convergir para refletir sobre práticas sustentáveis e justiça social, essenciais para o bem-estar coletivo e a preservação do nosso planeta.

Com artigos que desafiam o status quo, esta publicação especial não apenas encoraja uma reflexão profunda sobre as possibilidades de um sistema econômico mais inclusivo e equitativo, mas também convida os leitores a participar ativamente da moldagem de um futuro onde a economia solidária não seja apenas uma alternativa, mas a norma.

Iniciamos refletindo sobre as “Interpretações sociológicas do trabalho decente na economia social e solidária”, uma introdução escrita por Stefania Becattini Vaccaro, José Roberto Pereira e Cristina Parente, que apresentam as diferentes correntes teóricas interpretativas sobre o trabalho na modernidade para contextualizar o conceito de Trabalho Decente ou Digno, lançado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). Na sequência, os autores analisam a interface entre a economia social e solidária e o trabalho decente como campo de estudo.

A seguir, no ensaio intitulado “A economia solidária além da questão do trabalho”, Jean-Louis Laville e Jeová Torres Silva Junior discutem as limitações da abordagem ortodoxa de trabalho em relação à economia solidária adotada pela OIT e pela visão clássica da sociologia do trabalho.

No terceiro artigo, “A dignidade do trabalho e a Economia Social em Portugal”, Pedro Hespanha analisa sociologicamente como a economia social em Portugal estrutura as relações de trabalho, uma vez que se define centrada nas pessoas, não no capital, reivindicando, portanto, um papel ativo na busca pela justiça social e pelo trabalho digno para todos, contribuindo assim para a democratização da economia.

Já em “Trabajo decente en la economía solidaria de Cataluña”, Jordi Estivill Pascual apresenta um panorama do trabalho decente na economia solidária da Catalunha. Para tal, aponta as ambiguidades do conceito, bem como os seus sucessos internacionais.

Posteriormente, Daiane Lima da Silva e Vicente da Rocha Soares Ferreira descrevem a contribuição das políticas públicas para o processo de institucionalização do campo da economia solidária, em “Economia solidária e seu estágio de institucionalização: a contribuição das políticas públicas”.

Um estudo tipológico baseado nos atributos dos(as) trabalhadores(as) da economia solidária para o aperfeiçoamento das políticas públicas de geração de trabalho e renda” é o sexto artigo, no qual Eliene Gomes dos Anjos e Carlos Eduardo Crispim de Oliveira Ramos apresentam um estudo tipológico baseado nos atributos pessoais e nas atividades econômicas dos associados dos empreendimentos de economia solidária. Seu foco principal são os diferentes atores sociais que integram as diversas modalidades de iniciativas solidárias.

Por sua vez, no estudo chamado “El nuevo municipalismo y la gestión de lo común: la experiencia de la Red de Municipios Cooperativos (República Argentina, 2016-2022)”, Ariel Oscar García e Aldana García Tarsia apresentam uma experiência de geração de políticas públicas elaboradas no intercâmbio entre burocracias locais e o setor cooperativo sob o preceito de gerar uma dinâmica econômica associada às compras locais cooperativas, em que o crédito é uma dimensão relevante para a geração e manutenção das fontes locais de emprego e fortalecimento da estrutura econômica municipal.

Em “Inovação social rural em práticas de economia solidária no coletivo Cooptar no Sul do Brasil”, Denise de Oliveira, Adriane Vieria Ferrarini e Denize Grzybovski resgatam as disputas pela terra e a luta pelo direito ao trabalho e à vida digna de trabalhadores rurais no Brasil. As autoras apreendem o potencial transformador da inovação social rural (ISR) desenvolvida na Cooperativa de Produção Agropecuária Cascata Ltda. (Cooptar), um coletivo decorrente de um dos assentamentos agrários formados na ocupação da Fazenda Annoni, no Rio Grande do Sul, pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Devir da relação entre extensão universitária e participação social na economia social e solidária: o caso do colegiado territorial rural da baía da Ilha Grande (RJ)” é um estudo sobre a relação entre economia social e solidária (ESS) e gestão social (GS) no caso do colegiado territorial rural da baía da Ilha Grande, de Patrick Maurice Maury, Lamounier Erthal Villela, Rafaela Chaves Cardoso e Isabella Dias de Carvalho.

No décimo artigo, “A gestão orgânica de conflitos desenvolvida em empreendimentos formados por mulheres da economia solidária: uma análise pós-colonialista sobre uma prática feminista de autogestão”, Maria de Nazaré Moraes Soares, Sílvia Maria Dias Pedro Rebouças e José Carlos Lázaro da Silva Filho trabalham sobre algumas práticas que se performatizam na economia solidária, nomeadas de práticas feministas de autogestão.

Esta edição também é composta por uma resenha bibliográfica, “Uma economia para a sociedade: terceiro setor, economia social e economia solidária”, escrita por José Roberto Pereira.

Boa leitura!

REFERÊNCIAS

  • Raworth, K. (2017). Doughnut economics: seven ways to think like a 21st-century economist Random House.
  • Rostow, W. W. (1960). The stages of economic growth: a non-communist manifesto Cambridge University Press

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024
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