Resumo
A presente apresentação serve a triplo propósito: situar melhor a chamada de trabalho que havíamos lançado, elucidando um pouco mais nossa intenção com a problematização pensamento crítico versus pensamento organizacional; apresentar ao público uma distinção entre pensamento organizacional formal e pensamento organizacional, situando-os em seus respectivos planos teóricos e práticos; antecipar ao leitor as ideias subjacentes nos textos dos autores que se propuseram a sistematizar opiniões e argumentos em resposta à provocação que nossa chamada de trabalho lançou à comunidade acadêmica.
Palavras-chave: Estudos organizacionais; Teoria crítica; Management; Racionalidade; Política; Político
Resumen
Esta presentación cumple un triple propósito: situar mejor la convocatoria de trabajo que habíamos lanzado, dilucidando un poco más nuestra intención con la problematización del pensamiento crítico versus el pensamiento organizacional; presentar al público una distinción entre pensamiento organizacional formal y pensamiento organizacional, ubicándolos en sus respectivos planos teórico y práctico; anticipar al lector las ideas subyacentes en los textos de los autores que se propusieron sistematizar opiniones y argumentos en respuesta a la provocación que nuestra convocatoria de trabajo lanzó a la comunidad académica.
Palabras clave: Estudios organizacionales; Teoría crítica; Gestión; Racionalidad; Política; Político
Abstract
This presentation serves a triple purpose: to better situate the call for work that we had launched, elucidating a little more our intention with the problematization of critical thinking versus organizational thinking; present to the public a distinction between formal organizational thinking and organizational thinking, placing them on their respective theoretical and practical planes; to anticipate to the reader the ideas underlying the texts of the authors who set out to systematize opinions and arguments in response to the provocation that our call for work launched to the academic community.
Keywords: Organizational studies; Critical theory; Management; Rationality; Policy; Political
INTRODUÇÃO
"Só podemos pensar se temos gosto pelo que em si é o que cabe pensar cuidadosamente" (Heidegger, 2002, p. 112).
O ponto de partida que instruiu a chamada de trabalho que propusemos foi um problema que há muito tempo vem sendo denunciado por intelectuais críticos de nosso campo de estudo e vinculados a diversas vertentes da filosofia e das ciências humanas e sociais. Construídas sob a égide de uma concepção de racionalidade específica, a racionalidade instrumental, as teorias organizacionais que gozam de hegemonia no campo teórico e prático da administração naturalizam e legitimam o modus operandi do sistema econômico capitalista, que tenta articular por diversas ordens - científica, política, técnica, cultural etc. - o conjunto do tecido social para suas próprias e exclusivas finalidades. Essas críticas têm sido emitidas por intelectuais e acadêmicos estrangeiros e nacionais.1
As teorias às quais tais críticas são dirigidas moldam o que é conhecido como management (gerencialismo). Elas constituem o mainstream dos estudos organizacionais e correspondem ao que designamos aqui como pensamento organizacional formal. Com isso, queremos dizer que essa modalidade de pensamento é mais do que uma acomodação das ideias num sistema lógico formal abstrato e altamente idealizado, construído com o “desejo de 'garantir' (de algum modo) a verdade de certas proposições com base na verdade (conhecida ou presumida) de outras proposições (Hegenberg, 1995, p. 202). O que efetivamente o qualifica como pensamento organizacional formal é, por um lado, a crença de que somente os procedimentos inerentes no método de uma ciência natural de base matemática são adequados para a validação e a verificação do conhecimento - modus operandi do "operacionalismo positivista" (Ramos, 2022, pp. 87-88) -, e, por outro, o acolhimento, com exclusividade, tanto dos ingredientes da racionalidade instrumental quanto da racionalidade eletiva (Habermas, 1984; Ramos, 2022). Em outras palavras, o pensamento organizacional formal, ao conferir caráter dominante à racionalidade formal - instrumental e eletiva - no exame da ação social, confere à racionalidade material substantiva um papel secundário ou nulo na determinação da ação social dos agentes.2
As teorias que dão acabamento ao pensamento organizacional formal estão assentadas em premissas ôntico-epistemológicas duvidosas, as quais, não raro, têm sido astuciosamente arquitetadas num corpus teórico com o propósito de contribuir para explorar ao limite tanto os recursos naturais quanto os próprios seres humanos. Uma vez articuladas em pensamento, representações sociais, metáfora, ideias e, principalmente, ideologias disfarçadas de ciência organizacional, essas premissas cumprem o papel de ocultar e dissimular as reais finalidades e os meios operacionais coercitivos de que se valem as organizações formais para atingir seus propósitos, reduzindo o fenômeno organizacional à condição “fenômeno cripto-político, isto é, uma dimensão normativa disfarçada da configuração de poder estabelecida” (Ramos, 2022, p. 32). O cidadão mediano, bem-instruído e formatado por esse corpus mal chega a formar uma ideia lúcida da trama de poder e de interesses na qual é posto a labutar e trabalhar no dia a dia, operando, de modo geral, como legitimador de um sistema econômico que o desfavorece sob diversas maneiras, inclusive economicamente.
Contrapondo-se ao pensamento organizacional formal, surgiram teorias, estudos e análises antitéticas que questionam esse sistema e suas premissas, ideias e práticas associadas. Essas reflexões têm sido gradualmente agrupadas sob a rubrica de pensamento crítico, que tem acolhido para si o propósito de analisar não apenas a estrutura e a ordem econômica da sociedade, mas também seus impactos nas relações sociais de produção, distribuição e consumo de maneira abrangente. Os debates travados nesse âmbito contemplam tópicos diversos, como modernidade e modernização, relações de trabalho, ócio, lazer, estética, progresso científico-tecnológico, entre outros.
Por meio da chamada de trabalhos que lançamos, buscávamos atrair textos que explorassem a relação pensamento crítico versus pensamento organizacional, de forma a estimular o exercício acadêmico coletivo de pensar o pensamento, pensar a ação e pensar o pensamento na ação. Em outras palavras, nossa pretensão foi promover o tão necessário debate sobre o pensamento organizacional à luz do pensamento crítico e, por que não, examiná-lo à luz do próprio pensamento organizacional formal vigente. Os textos publicados nesta edição são evidências de que nosso objetivo foi alcançado. Desde já, agradecemos a todos os autores que, sensibilizados com a proposta e desejosos de compartilhar suas ideias, submeteram seus artigos à nossa chamada. Expressamos também nossa gratidão aos avaliadores, cujas contribuições tornaram possível - ou, no mínimo, mais ágil - a concretização deste empreendimento.
Antes de apresentarmos os resumos de cada um dos textos que compõem o presente número do Cadernos EBAPE.BR, desejamos expressar algumas palavras e ideias sobre o tema. Não será nossa intenção propor uma definição categórica para o pensamento organizacional, e sim traçar algumas diretrizes amplas que possam, principalmente, delimitá-lo frente ao pensamento organizacional formal, ao pensamento crítico e ao senso comum, de maneira a preservar, relativamente a eles, pelo menos, a autonomia distintiva e, por conseguinte, a potencialidade do pensamento organizacional, conforme o concebemos.
A principal característica do pensamento organizacional reside em sua dupla natureza ou pertencimento. Em termos aristotélicos, diríamos que ele diz respeito tanto ao intelecto prático (noûs praktikós), já que lida com realidades sensoriais, quanto ao intelecto especulativo (noûs dianoetikós), pois também se direciona aos objetos mentais. Assim, ele não se limita à especulação pela especulação nem à prática pela prática. Na verdade, o pensamento organizacional se encontra numa instância intermediária entre ambos, já que, ao pertencer ao domínio do pensamento e estar focado na realização, transita entre o imanente e o transcendente, entre o transcendente, entre o concreto e o abstrato. Ou seja, o pensamento organizacional é uma forma de especulação ativada pelo desejo e pelos desafios da vida, ao mesmo tempo que é uma prática orientada por aspectos substantivos dos modos de viver, em nível individual e coletivo, no qual, a racionalidade material - normativa ou substantiva - assume predominância sobre a racionalidade formal - instrumental e efetiva - na determinação do pensamento e da ação ou prática dos sujeitos.
O pensamento organizacional é elemento crucial da vida prática e reflexiva humana. Orientado pela investigação pragmática de "que é", "porque é" e "como é" o organizar e o ordenar nossos modos de vida, ele atua como princípio orientador da práxis social. Seu propósito é garantir que as aspirações individuais e coletivas de boa vivência possam se materializar durante o sucessivo processo que constitui nossa busca pelo bem-viver. O pensamento organizacional é uma atividade intelectual contínua, que tem em conta o balanço entre a ordem social vigente e os anelos de liberdade e de bem viver humanos, visando orientar a ação, especificamente a ação política organizadora e ordenadora da vida individual e social, sob a instrução de um ético e um justo, rumo a determinado propósito final ou telos.
Como reconhecido, quando uma comunidade humana se depara com os desafios e as ameaças que colocam em risco sua continuidade e suas tradições, seus membros recorrem à razão, à memória das experiências passadas, às expectativas coletivas e às esperanças compartilhadas com o intuito de reencontrar orientação (Voegelin, 1982). Desse modo, cada comunidade, à sua maneira, possibilita a seus membros o exercício livre e conjunto do pensamento organizacional para refletir, deliberar, escolher, estabelecer e operacionalizar os critérios, os meios e os instrumentos que viabilizarão a concretização dos modos de vida que correspondem às suas aspirações de vida boa e de bem viver. As ações políticas organizadoras e ordenadoras dos propósitos comuns resultantes desse processo podem assumir, em algumas situações, caráter antagônico, conflituoso ou mesmo revolucionário em relação às atitudes, aos valores e à estrutura de poder que sustentam a realidade social. Essa característica sublinha a estreita ligação entre o pensamento organizacional e os âmbitos do político e da política, conforme delineados por Chantal Mouffe: “Entendo por ‘político’ a dimensão de antagonismo que considero constitutiva das sociedades humanas, enquanto entendo por ‘política’ o conjunto de práticas e instituições por meio das quais uma ordem é criada, organizando a coexistência humana no contexto conflituoso produzido pelo político” (Mouffe, 2015, p. 8).
A precisão no uso dos termos “político” e “política” aqui é crucial. A autora confere ao primeiro um ingrediente de caráter essencial: o antagonismo. O “político” pertence ao “nível ontológico” (Mouffe, 2015, p. 8) e é, por excelência, antagônico, deixando à mostra, portanto, os “atos da instituição da hegemonia” (Mouffe, 2015, p. 16). Por outro lado, a “política” pertence ao “nível ôntico” (Mouffe, 2015, p. 8) e é, por excelência, a construção da hegemonia, expressando, assim, “uma estrutura específica de relações de poder” estabelecida (Mouffe, 2015, p. 17). O “político” revela e confronta a “política”. A linha divisória que se estabelece entre eles “é essencialmente instável, exigindo constantes deslocamentos e renegociações entre os agentes sociais” (Mouffe, 2015, p. 17). À luz dessa concepção de Mouffe, o pensamento organizacional pode ser considerado uma entidade de fronteira, que transita constantemente do “político” para a “política”, e vice-versa, sem nunca se deixar converter a um ou a outro.
Condição semelhante do pensamento organizacional se revela quando o examinamos à luz da perspectiva de pensamento político proposta por Raymundo Faoro. Em seu texto “Existe um pensamento político brasileiro?”, Faoro sustenta que o “pensamento político é a política [em si], não a construção política” ou sua formulação teórica e especulativa (Faoro, 1994, p. 8). Isso quer dizer que o pensamento político não pode ser reduzido nem à ideologia nem à filosofia ou à ciência política. Reduzi-lo à esfera da filosofia ou da ciência política deturpa a natureza da própria política, que é, em essência, uma ação ou atividade; convertê-lo em mera ação ou prática ideológica resulta em distorção. Nas palavras de Faoro: “Ela, a política que não é filosofia, nem ciência, nem ideologia, que não se extrema na ação nem se racionaliza na teoria, ocupa, na verdade, o espaço do que se chama pensamento político, não necessariamente formulável, não coerentemente racionalizado em fórmulas” (Faoro, 1994, p. 12).
O pensamento político se encontra num meio-termo entre uma práxis que é ideologia e um logos que é filosofia e ciência política. Ele está arraigado na experiência política, quer dizer, na atividade real que é a ação política. Portanto, embora tenha uma natureza centrada no logos, isto é, logocêntrica, não é cientificamente premeditado em termos de proposições, princípios e enunciados teóricos (Faoro, 1994, p. 15), já que representa um “saber informulado”, “a-teórico” (Faoro, 1994, p. 16). Mesmo que esteja “sob a jurisdição da práxis” (Faoro, 1994, p. 17), ele se manifesta como uma ação direcionada pelo logos, ou seja, por “ideias abstratas e sistematizáveis” (Faoro, 1994, p. 16), em vez de ser regido por modelos, teorias ou filosofias prescritivas.
Há, na atividade e, a fortiori, na prática, o trânsito entre formas e estruturas de existência em dupla perspectiva. De um lado, no território do ser, de outro lado, no campo do valor. O que é virá a ser, mas virá a ser de acordo com os valores: o direito, a justiça, limitados o ser e o valor pela sugerência. Essa dimensão vincula a prática à experiência, ao saber informulado e à realidade. [...] A prática política descende, portanto, da ética, mas não é a ética, embora ambas participem da razão prática. A atividade que está no pensamento político participa no campo do ser sem que seja mero valor: é o ser que se desenvolve num mundo de valores (Faoro, 1994, p. 17).
Ora, o pensamento organizacional é modalidade do pensamento político a que alude Faoro (1994). E sob essa perspectiva, ele não é a organização, seu produto; na verdade, jamais o será ipso facto, pois, dada a sua natureza, ele é a essência do processo do “tornar-se” ou “vir-a-ser” da organização; é o que antecede, precede e procede a construção ou o design de uma organização o pensamento organizacional representa a potencialidade; o organizar, o ato orientado por aquele pensamento; a organização, a concretização objetiva, tanto em termos material quanto subjetiva e intersubjetivamente, do pensamento e da ação organizadora. Em outros termos, diríamos que o pensamento organizacional tem suas raízes no substantivo, ao passo que o ato de organizar e a organização, ainda que sob a vigência daquele, têm suas bases assentadas no instrumental (Ramos, 2022). Tal consideração não implica relação dicotômica entre o substancial e o instrumental/operacional, mas apenas quer aludir ao fato de que o insight ou ato inteligente que irrompe o pensamento organizacional desvanece à medida que adquire concretude via a ação individual ou coletiva. Vem daí a exigência que o pensamento organizacional pujante nos impõe, qual seja, que não percamos de vista o constante movimento de trasladar do ato à potência, da potência ao ato, tornando, tanto quanto for possível, um e outro atuais entre si.
Uma concepção estreita de pensamento organizacional pode ser encontrada no pensamento organizacional formal. Essa modalidade assume os quadros sociais instituídos como naturalmente estabelecidos e legítimos, convertendo-se em defesa apologética dos princípios que sustentam os quadros em vigor. No afã de encerrar o pensamento organizacional a enunciados formalísticos, as teorias organizacionais lhe conferem racionalidade, lógica, normas e métodos procedimentais para convertê-lo em conhecimento formal. Essas teorias se movem por proposições, sentenças, conceitos e definições nominais. Estabelecer equivalências entre pensamento organizacional e pensamento organizacional formal implica promover um reducionismo, pois se deixa de atentar à distinção fulcral que Ramos estabeleceu entre teoria substantiva e teoria formal da vida humana associada (Ramos, 2022, pp. 53-73).
O intento do cientificismo vigente em nosso campo disciplinar é suprimir o pensamento organizacional, transformando-o num tipo de comportamento político-administrativo com fortes conotações conservadoras e quietistas sob o disfarce do tecnicismo apolítico. Isso termina por colaborar para a tese da dicotomia administração-política. Esse tipo de teoria formal propõe a “abolição do elemento político da vida humana associada” (Ramos, 2022, p. 70). Por sua vez, o pensamento organizacional, resistente às tentativas de ser reduzido a uma mera prática de legitimação do status quo, quando guia a ação política organizativa, o faz de modo a torná-la avessa às manobras de conveniências, que só visam à acomodação de interesses e poderes estabelecidos.
À medida que o management adquiriu o status de conhecimento administrativo oficial nos programas de pós-graduação, graduação e no mundo dos negócios, o inquirimento e, por conseguinte, o interesse pelo pensamento organizacional aos poucos foram sendo abandonados. O senso comum passou a incorporar o gerencialismo e, ao seu próprio modo, estabilizou em suas práticas e representações sociais aspectos desse caráter formal do pensamento organizacional. Esse processo não ocorreu sem enfrentar certa resistência no próprio senso comum, que impediu que o caráter formal atribuído ao pensamento organizacional dominasse por completo suas formas de compreensão essencial ou substancial das coisas. Por isso, nele ainda perduram traços da vitalidade do pensamento organizacional não formalizado, tal qual demonstram várias iniciativas alternativas de práticas de gestão.
As teorias organizacionais formais e aquele setor do senso comum por elas obscurecido não conseguem encerrar a força ativa do pensamento organizacional. Isso ocorre porque esse tipo de pensamento apresenta novidade, inovação e surpresa quando consegue ser expresso no ainda não pensado. O ato de pensar que estabelece os fundamentos de uma epistemologia crítica se funda num “saber engajado”, lúcido, crítico, e num “interesse emancipatório” (Paula, 2015). Como tal, pode adquirir, como já frisado, caráter confrontador, antagônico, conflituoso ou revolucionário perante o que está instituído como status quo. Em termos heideggerianos, diríamos que esse ato de pensar está dirigido a “o que mais cabe pensar”, a “o que dá a pensar”, ou seja, a “o pensável” (Heidegger, 2002, p. 113). Afinal, como afirma o filósofo, “só podemos pensar se temos gosto pelo que em si é o que cabe pensar cuidadosamente. [...] [E] o que cabe ser mais cuidadosamente pensado se mostra” e, concomitantemente, se retrai, atraindo o pensamento para junto de si (Heidegger, 2002, pp. 112-113).
Para nós, cabe a pergunta: o que, na realidade social contemporânea, mais cabe pensar cuidadosamente em nosso campo? Os leitores verão que os artigos aqui publicados nos alertam sobre esse “o que mais cabe pensar cuidadosamente” e, por isso, exige atenção daqueles preocupados com o pensamento organizacional.
Mesmo que não subsumido inteiramente à práxis, o pensamento organizacional está na práxis, quer dizer, ele não apenas se manifesta por meio de ideias, conceitos, concepções, visão de mundo, mentalidades, entre outros; está presente em práticas sociais que organizam e orientam a vida individual e coletiva. Essas práticas resultam tanto da reflexão demorada sobre nossa condição humana, sobre o modo como vivemos, quanto dos próprios desafios que enfrentamos ao agir para modificar essa condição. É por essa razão que o pensamento organizacional tem a capacidade de deixar registro no subjetivo e no intersubjetivo, ou seja, na memória individual e coletiva, bem como em produtos culturais diversos. Ao observarmos uma cidade, uma vila, uma fábrica, um modo de vida, uma residência ou um grupo pequeno com uma família ou uma reunião de amigos, podemos inferir que, subjacente a essas estruturas, existe um pensamento organizacional que guia e institui a ordem, o arranjo e o modo de ser organizacional que apresentam. É a práxis, normativa por excelência, que confere a tais organizações forma, conteúdo e substância singulares.
Essa ação normativa que visa organizar e ordenar pode assumir, repetimos, um caráter antagônico, conflituoso ou revolucionário, ou seja, ela é instruída pelo pensamento organizacional contestador. No entanto, também é possível que essa mesma ação adquira um caráter ideológico, legitimador, conservador ou protocolar. Nesses casos, isso significa que o elemento de autenticidade e de inovação do pensamento organizacional ficou perdido no tempo e no espaço, nos acontecimentos históricos como possibilidades não realizadas, recolhendo-se ao plano do vir a ser como esperança, ou, usando as palavras de Heidegger (2002, p. 118), recolhendo-se à memória e à lembrança: “Memória é a concentração do pensar da lembrança daquilo que, antes de tudo e antes de mais nada, cabe pensar”. Quando tal situação ocorre, é um forte indício de que o “pensamento organizacional”, aqui entre aspas, opera predominantemente sob o domínio particular da racionalidade formal. Isso significa que tanto o pensamento quanto a ação estão a promover o não pensar e o não agir, em suma, o aquietar-se.
Foi principalmente a esse tipo de pensamento organizacional, isto é, o formal, que demos destaque na chamada de trabalhos. Naturalmente, nossa expectativa também se dirigia ao pensamento organizacional conforme o caracterizamos acima. Mas, ao opormos pensamento crítico e pensamento organizacional, nossa intenção maior era destacar a presença de duas bases epistemológicas distintas e capazes de fornecer orientação às práticas organizacionais. Procurávamos, sob a óptica do pensamento crítico, pôr em questão tanto os limites e a validade cognitiva do pensamento organizacional formal e suas práticas sociais quanto os limites do senso comum “conservador, mistificado, mistificador” (Santos, 2001, p. 107) ou "ofuscado" (Ramos, 2022, p. 72). Ambos são representações mentais hegemônicas e determinantes da funcionalidade utilitária dos sistemas sociais formalmente estruturados.
A genealogia do potencial de reificação do pensamento organizacional formal, ou seja, das teorias organizacionais que o constituem, desde sua origem no século XIX até os dias atuais, tem servido às finalidades econômicas em detrimento de questões sociais e ambientais de maior valor substancial. Em outras palavras, o fenômeno do determinante econômico, originado na cultura de mercado, tem sido a principal influência nas racionalidades que instrumentalizam as ações das organizações. Esse fenômeno não se limita somente às operações dos agentes econômicos de mercado, uma vez que, com o avanço científico e tecnológico, em especial por meio da tecnologia da informação, se expande de forma considerável, abrangendo quase todas as atividades produtivas, em âmbito estatal ou na esfera da sociedade civil. Isso intensifica consideravelmente o potencial de transformar não apenas a força de trabalho responsável pela produção de bens e serviços em meras mercadorias, mas também a sociedade como um todo.
Nesse contexto, o pensamento organizacional surge como uma ação cognitiva cuja base epistemológica proporciona a compreensão correta das anomalias e das contradições provenientes das ilusórias projeções do pensamento organizacional formal. A fim de evitar que essa proposição seja considerada de cunho fundamentalista radical, consideremos a possibilidade de que a adoção de teoria e/ou tecnologias organizacionais sejam, previamente, submetidas a teorias sociais de orientação crítica, uma vez que tais teorias têm qualidades inatas de percepção da realidade social, portanto preliminar à percepção de realidades organizacionais. O que desejamos dizer é que não devemos jogar a água da vasilha de banho com a criança dentro. Ou seja, o pensamento organizacional de orientação exclusivamente econômico-instrumental pode ser praticado, desde que os indivíduos concernentes a sua relação de produção, como produtor ou consumidor, não sejam pensados como mercadoria, como código de barras, mas como ser humano com direitos e que está dado a viver em um ecossistema carente de atenção incessante.
O presente número do Cadernos EBAPE.BR pretende divulgar artigos que atendam a esta proposição antitética: pensamento crítico versus pensamento organizacional. Seguem a seguir o título dos textos e seus respectivos resumos.
“Teorizando a partir de noções habermasianas na pesquisa em administração”, de Ricardo Lebbos Favoreto e Ewerton Roberto Inocêncio
O pensamento habermasiano constitui um significativo referencial da sociologia e da filosofia contemporâneas. Nas ciências sociais, espraiou-se por vários campos, inclusive a administração, ao qual ainda tem muito a oferecer. O translado da sociologia e da filosofia - seus loci originários - para campos diversos não se dá, no entanto, de maneira intuitiva; é necessário mediação. O objetivo do presente artigo é, em nível epistemológico e metodológico, demonstrar uma forma de mobilização do referencial habermasiano na pesquisa em administração, o que se faz por meio de ilustração didática, servindo-se de uma pesquisa que investigou distorções comunicativas em relatórios organizacionais de sustentabilidade. As questões de método apontadas exploram o modo de proceder utilizado na pesquisa, visando ao potencial explicativo do procedimento. A partilha empreendida tenciona estimular o manuseio do referencial habermasiano na pesquisa em administração, seja pela réplica da forma apresentada, seja, sobretudo, inspirando outras formas de operacionalização do referencial.
“Corpos, intenções e afetos: reflexões para os estudos não representacionais das práticas organizacionais”, de Ítalo da Silva, Pamela Karolina Dias, Elisabeth Cavalcanti dos Santos e Flávia Zimmerle da Nóbrega Costa
Neste artigo, o objetivo central é posicionar a discussão sobre corporeidade, intenções e afetos como dimensões analíticas não representacionais para os estudos das práticas organizacionais, particularmente no que se refere à (re)criação de relações de poder que promovem inclusões ou exclusões na prática. Em primeiro lugar, evidenciamos o problema de a teoria organizacional negligenciar os corpos, as intenções e os afetos sob uma perspectiva antirracionalista e anticognitivista. Assim, argumentamos em favor de uma imersão pré-reflexiva em contato com as práticas organizacionais. Em segundo lugar, sugerimos a categoria analítica da intencionalidade corporal-afetiva como imersão pré-reflexiva na compreensão das práticas organizacionais, uma vez que é por meio dessa percepção analítica que se constituem as atmosferas afetivas ou os fluxos de afetos. Em terceiro lugar, resgatamos as noções de diferenças, performance e performatividade para compreender como a intencionalidade corporal-afetiva faz fluir inclusões e exclusões nas práticas organizacionais. Ao final, oferecemos questões reflexivas para novas pesquisas na área, com a expectativa de que a proposta de relação analítica entre corpos, intenções e afetos, em conjunto com os conceitos de atmosferas, diferenças, performance e performatividade, contribua, de modo geral, para área dos Estudos Organizacionais não representacionais, e, em específico, para a área dos Estudos Baseados em Prática.
“Modelo de análise aplicado ao estado da arte da epistemologia da administração”, de Lucas Canestri de Oliveira, José Roberto Pereira e Eloisa Helena de Souza Cabral
O artigo tem como objetivo propor uma sistematização dos paradigmas epistemológicos já identificados por pesquisas que estudaram o estado da arte da epistemologia da administração. Tal sistematização é realizada por meio de uma resenha analítica, na qual um modelo de análise, fruto de um consórcio teórico entre Alberto Guerreiro Ramos e Jean Piaget, é o fio condutor. Os diferentes paradigmas são analisados em função de seu grau de reflexividade, tendo como pano de fundo os fundamentos filosóficos da epistemologia geral. No campo da epistemologia da administração, foi observado que, dos trabalhos seminais aos atuais, os diferentes autores defendem um descentramento reflexivo capaz de gerar um movimento que leve a teoria das organizações do construto, chamada por Ramos de teoria da necessidade, para o campo da teoria da possibilidade e além, superando a utilização de arquétipos platônicos/aristotélicos/cartesianos por arquétipos kantianos e pós-kantianos. O modelo de análise é aplicado uma segunda vez, agora nos resumos das últimas 30 teses de um programa de pós-graduação em administração, defendidas de julho de 2019 a novembro de 2022. Foram analisados 10 resumos de cada uma das três linhas de pesquisa do programa. Nessa segunda aplicação, o modelo foi ajustado com a inclusão de outros aspectos teóricos e metodológicos, passando a conter 9 indicadores de reflexividade. Foi demonstrado que, em função dos diferentes graus de reflexividade, cada linha de pesquisa apresenta uma característica própria na forma de aplicar teorias e métodos.
“Pensar la organización y los estudios organizacionales desde la filosofía de la praxis”, de Maria Ceci Misoczky
Este ensaio propõe uma reflexão sobre os temas da organização e dos estudos organizacionais tomando as proposições de Adolfo Sánchez Vásquez sobre filosofia da práxis como fundamento. As proposições do autor se encontram sistematizadas na primeira parte do texto no que se refere às definições de práxis e teleologia - o que define a atividade propriamente humana -; à relação inseparável entre teoria e prática na práxis; aos níveis e forma da práxis - reiterativa e criadora, espontânea e reflexiva; à filosofia da práxis. Na sequência, com base nesses fundamentos, se realiza uma reflexão sobre as Teorias Administrativas, as Teorias Organizacionais, o Management como versão hegemônica na Administração e nos Estudos Organizacionais (EO), a Análise Organizacional entendida como atividade teórica marcadamente interpretativa e construcionista, e os Critical Management Studies. Se finaliza com uma discussão sobre os EO como um espaço com potencial para uma práxis criadora em relação com a organização de lutas sociais libertadoras. O desafio é conceber organização como uma categoria com possibilidades de conteúdo desenvolvidos a partir de diálogos criativos e processos de aprendizagem com o conhecimento que é produzido na práxis de organizar lutas libertadoras concretas, inseridas na materialidade de relações sociohistóricas concretas.
“Negócios periféricos e o pensamento miltoniano: aproximações e possibilidades para o campo dos estudos organizacionais”, de Thiago Cunha de Oliveira e Sergio Eduardo de Wanderley
Neste ensaio teórico, tem-se como objetivo geral identificar de que formas a aproximação entre a noção de negócio periférico e o pensamento miltoniano pode agregar, no aspecto teórico, ao campo dos estudos organizacionais. Como objetivos específicos, buscou tanto estabelecer aproximações teóricas entre a noção de negócio periférico e o pensamento miltoniano quanto analisar a viabilidade da utilização da noção de “negócio periférico” como base teórica e metodológica para a análise materialista histórico-dialética, ancorada no pensamento miltoniano. Para tanto, recorreu-se a uma triangulação teórica entre a noção de negócio periférico, elaborada por Márcio Sá e demais pesquisadores, bem como à teoria dos dois circuitos urbanos dos países subdesenvolvidos, estruturada por Milton Santos e aportada em noções marxistas. Não há incompatibilidades teóricas entre a noção de negócio periférico e o pensamento miltoniano, e a aproximação entre as perspectivas tende a agregar ao campo dos estudos organizacionais, por possibilitar análises empíricas, com base no materialismo histórico-dialético, sobre como organizações e sujeitos localizados num dos circuitos ou em ambos se relacionam.
“Organização alternativa: da crítica da organização a organização da crítica”, de Matheus Machado e Fabio Bittencourt Meira
O termo “organização alternativa” (OA) tem sido, frequentemente, utilizado de forma assistemática, remetendo a concepções intuitivas e de senso comum. Ao mesmo tempo, autores que o utilizam aspiram incorporar a crítica como elemento distintivo de práticas organizativas. O presente ensaio objetiva problematizar a concepção de OA, buscando na literatura elementos que permitam conceber a crítica como componente das práticas de organizar. Para tanto, foi necessário situar o enfrentamento dos problemas da realidade social, sem cair em concepções dogmáticas ou relegar as OAs a uma posição de subordinação. No intuito de contribuir com a discussão, este ensaio apresenta uma compilação de perspectivas críticas encontradas na literatura que trata da OA, acrescida da abordagem relativamente recente da crítica imanente (CI), conforme concebida por Rahel Jaeggi (2018). Trata-se de uma perspectiva dialética não essencialista, que toma como ponto de partida as reivindicações e condições postas na realidade social, para responder aos problemas e às crises que se colocam em contexto. Portanto seu potencial transformador centra-se nas próprias práticas de organizar, procurando transformá-las. Essa perspectiva aponta para uma concepção de organização como mediadora na solução parcial de problemas decorrentes das contradições da realidade social.
Desejamos aos leitores uma boa e instigante leitura!
AGRADECIMENTOS
Somos gratos ao editor e ao coeditor da revista Cadernos EBAPE.BR, professores Hélio Arthur Reis Irigaray e Fabricio Stocker, respectivamente, que, de pronto, avaliaram e decidiram acolher a proposta de chamada de trabalhos que lhes submetemos. Sem o apoio, a confiança, o estímulo e o fomento à discussão acadêmica que deles recebemos, dificilmente teríamos levado adiante a ideia. Nossos agradecimentos especiais seguem também à equipe editorial da revista - no caso, Fabiana Braga Leal e Jackelyne de Oliveira da Silva -, que, com profissionalismo e dedicação, não mediram esforços para concretizar a publicação dos textos que compõem a presente chamada. Não poderíamos deixar de agradecer, obviamente, aos avaliadores de todos os textos submetidos em resposta à chamada de trabalho. A vocês, nosso muito obrigado pela dedicação e pelo esmero.
REFERÊNCIAS
- Faoro, R. (1994). Existe um pensamento político brasileiro? Ed. Ática.
- Habermas, J. (1984). The theory of communicative action: reason and the rationalization of society Beacon Press.
- Hegenberg, L.(1995). Dicionário de lógica Ed. EPU.
- Heidegger, M. (2002). Ensaios e conferências Ed. Vozes.
- Mouffe, C. (2015). Sobre o político Ed. Martins Fontes.
- Paula, A. P. P. (2015). Repensando os estudos organizacionais: por uma nova teoria do conhecimento Ed. FGV.
- Ramos, A. G. (2022). A nova ciência das organizações: reconceituação da riqueza das nações Enunciado Publicações.
- Santos, B. de S. (2002). A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência Ed. Cortez.
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Sell, C. E. (2012). Racionalidade e racionalização em Max Weber. Revista Brasileira de Ciência Sociais, 27(79), 153-172. https://doi.org/10.1590/S0102-69092012000200010
» https://doi.org/10.1590/S0102-69092012000200010 - Sell, C. E. (2013). Max weber e a racionalização da vida Ed. Vozes.
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O Cadernos EBAPE.BR têm sido um agente ativo no fomento do debate crítico sobre o pensamento administrativo e organizacional do ponto de vista brasileiro. Não seria exagero dizer que talvez essa tenha sido a raison d’être de sua criação e condução ao longo de sua trajetória, de 2003 aos dias atuais. Exemplificam esse protagonismo o volume 4, número 3, de 2006, e o volume 7, número 3, de 2009.
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A opção pelo uso do par conceitual weberiano de racionalidade formal/material se dá por conveniência explicativa. Isso não significa, no entanto, que desconheçamos o fato de Weber, em determinados momentos de sua obra, também ter lançado mão do par conceitual racionalidade teórica/prática, conforme adverte Sell (2012, 2013), em seu exame da racionalidade e da racionalização na obra do autor alemão.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
19 Ago 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
16 Abr 2024 -
Aceito
26 Abr 2024