Open-access Práxis de consumo: um estudo sobre a busca da libertação da opressão de gênero no contexto dos jogos on-line

Praxis del consumidor: un estudio sobre la búsqueda de la libertad frente a la opresión de género en el contexto de los juegos en línea

Resumo

O artigo teoriza sobre como as mulheres enfrentam a opressão de gênero no consumo. Utilizando dados do contexto de jogos on-line no Brasil coletados por meio de 15 entrevistas em profundidade e netnografia, introduzimos o conceito de “práxis de consumo” definido como uma ação reflexiva libertadora do oprimido em ambientes de consumo que reforçam a subalternização do outro. Os resultados revelam que as mulheres buscam libertação mediante uma ação dialógica frente à opressão de gênero, com mobilização e ocupação de mercado. A pesquisa avança nos estudos culturais do consumo demonstrando como uma prática de consumo pode auxiliar na busca pela libertação das relações de opressão em nossa sociedade.

Palavras-chave: Gênero; Libertação; Estudos feministas; Jogos on-line

Resumen

El artículo teoriza cómo las mujeres enfrentan la opresión de género presente en el consumo. Utilizando datos del contexto de los juegos en línea en Brasil, recopilados a través de 15 entrevistas en profundidad y netnografía, introducimos el concepto de praxis del consumidor definida como una acción reflexiva liberadora del oprimido, realizada en entornos de consumo que refuerzan la subordinación del otro. Los resultados revelan que las mujeres buscan la liberación a través de la acción dialógica frente a la opresión de género, con la movilización y la ocupación del mercado. La investigación avanza en los estudios culturales del consumo, demostrando cómo una práctica de consumo puede ayudar en la búsqueda de la liberación de las relaciones opresivas existentes en nuestra sociedad.

Palabras clave: Género; Liberación; Estudios feministas; Juegos online

Abstract

The article theorizes how women face the gender oppression present in consumption. Using data from the context of online games in Brazil collected through 15 in-depth interviews and netnography, we introduce the concept of consumer praxis, defined as a reflective action that seeks liberation of the oppressed and is performed in consumer environments that reinforce the subordination of the other. The results reveal that women seek liberation through dialogical action in the face of gender oppression, mobilization, and market occupation. The research advances in the cultural studies of consumption, demonstrating how a consumption practice can help in the search for liberation from the oppressive relations existing in our society.

Keywords: Gender; Liberation; Feminist Studies; Online Games

INTRODUÇÃO

Nossa vida social é revestida de arquétipos e estereótipos de gênero que rotulam e limitam o acesso das mulheres ao consumo, reforçando a desigualdade de gênero em nossa sociedade, que trata a mulher como um sujeito social em posição inferior ao homem (DaMatta, 1997). No campo do consumo, elas são submetidas a regulações e restrições que influenciam sua aparência (Rocha, Campos, Casotti, & Nascimento, 2020); o uso do véu islâmico (Lamrabet, 2014), de roupas (Sandikci & Ger, 2010; Scaraboto & Fischer, 2013) e de produtos eróticos (Walther & Schouten, 2016); bem como a realização de práticas esportivas (Thompson & Üstüner, 2015) e a participação em comunidades de marcas (Martin, Schouten, & McAlexander, 2006).

As mulheres, segundo pesquisas no campo da cultura e consumo (Martin et al., 2006; Scaraboto & Fischer, 2013; Thompson & Üstüner, 2015), para lidarem com a relação desigual de gênero no consumo, negociam com os atores de mercado maior acesso a ele. Contudo, por meio da negociação, estabelecem um acordo, mantendo as condições hierárquicas de gênero. Adotando a perspectiva de libertação do oprimido (Freire, 2019), nosso estudo tem como objetivo entender de que modo as mulheres, como sujeitos oprimidos pela hierarquia de gênero, buscam alterar as relações de consumo que reforçam a hierarquia de gênero. Como elas buscam se libertar da desigualdade de gênero nessa área?

Para responder a essa pergunta, realizamos uma pesquisa qualitativa no contexto dos games on-line no Brasil, escolhido por ser um ecossistema tachado de tóxico para todos os usuários, porém com acentuada piora dos aspectos negativos quando se trata de mulheres, como frequentes abusos verbais, assédio, expressões de machismo e ameaças. Tais comportamentos se revelam expressões da masculinidade hegemônica dominante nesse ambiente, controlado cultural e simbolicamente pelos homens (Caramello, 2016; Bristot, Pozzebon, & Frigo, 2017). Contudo, segundo pesquisa realizada pela empresa PGB, especializada em produção e publicação de pesquisas anuais sobre o público gamer, 53% dos jogadores on-line são mulheres (Pesquisa Game Brasil, 2020), sendo um campo fértil para estudos de gênero.

Como contribuição teórica, nossa pesquisa introduz o conceito de “práxis de consumo”, explicado na parte de resultados do artigo. Nas próximas seções, apresentamos o referencial teórico que discorre sobre as negociações realizadas pelas mulheres para maior inclusão e acesso ao consumo, bem como apresentamos o conceito de práxis de Paulo Freire (2019), a fim de explicar a libertação da mulher submetida à desigualdade de gênero nas relações de consumo. Em seguida, apresentamos os métodos qualitativos utilizados na coleta de dados e o contexto empírico da pesquisa: jogo on-line. Por fim, analisamos como as mulheres buscam a libertação da opressão de gênero em relações de consumo subalternizantes e discutimos os resultados obtidos na pesquisa.

NEGOCIAÇÕES DE GÊNERO NO CONSUMO

As tensões e as opressões nas relações de consumo revelam a desigualdade de gênero e a subalternização da mulher na sociedade (Chedid & Hemais, 2022; Duarte & Quintão, 2021; Lamrabet, 2014), mas pesquisas no campo da cultura e do consumo explicam como as mulheres, para lidarem com essa situação, empreendem esforços, negociando com os demais atores de mercado maior acesso e inclusão.

Martin et al. (2006), por exemplo, explicam como elas se valem das tensões de gênero surgidas na comunidade de consumo de motocicletas Harley-Davidson para ressignificar o próprio senso de feminilidade. Todavia, elas não buscam alterar o aspecto da hipermasculinidade hegemônica, uma vez que esse é um fator que as atrai para a comunidade e utilizado para performar diferentes feminilidades.

Thompson e Üstüner (2015) explicam a negociação do próprio senso de feminilidade realizada pelas mulheres praticantes de roller derby - esporte de contato sob patins - nos Estados Unidos, as quais performam feminilidades híbridas, mesclando significantes culturais masculinos e femininos, numa prática reflexiva de resistência de gênero. Contudo, os significantes tidos como socialmente femininos seguem como sinônimos de subalternidade, e a prática não é apresentada como libertadora nesse aspecto.

Negociações no mercado também são realizadas pelas mulheres que buscam maior acesso a bens de consumo específicos. Scaraboto e Fischer (2013) explicam a reivindicação das mulheres obesas por maior inclusão no mercado de moda, demonstrando que as consumidoras fazem uso da lógica institucional para buscar legitimidade como consumidoras e demonstrar que têm o direito a ter suas necessidades de consumo atendidas. Excluídas do mercado da moda mainstream, elas se envolvem num esforço para transformar essa realidade por meio do empreendedorismo institucional. Trata-se, pois, de uma busca por inclusão, e não de modificação de um mercado ou prática de consumo da qual fazem parte.

Nessa mesma linha, Sandikci e Ger (2010) analisam o esforço das mulheres turcas para terem o direito a usar o véu muçulmano, o qual carregava o estigma de opressão ao feminino, mas que para elas significava a expressão da própria fé e um escape ao assédio masculino. O item foi desestigmatizado, porém essa negociação foi influenciada pela opressão masculina, visto que o véu foi utilizado como proteção contra o assédio.

Por fim, as negociações femininas pela ampliação dos limites socialmente impostos ao consumo abrangem também a sexualidade, conforme demonstraram Walther e Schouten (2016). Os autores identificaram que elas fazem uso de produtos eróticos para superar as barreiras sociais internalizadas, entretanto o estudo não trata da libertação das mulheres de estigmas relacionados com a sexualidade, entre outras problemáticas sociais e estruturais.

Como demonstrado, pesquisas explicam como as mulheres agem para lidar com regulações e restrições, buscando maior inclusão e acesso ao consumo. No entanto, como elas enfrentam e tentam modificar a opressão de gênero no consumo? Para responder a essa pergunta, no próximo tópico, apresentamos uma discussão sobre o processo de libertação dos oprimidos.

LIBERTAÇÃO DO OPRIMIDO

O gênero, infelizmente, é um fator de exclusão social sob o qual as sociedades modernas foram construídas. Nesse sistema, as mulheres são colocadas em situação de inferioridade social em relação aos homens (Lugones, 2014; Spivak, 2010). O opressor cerceia a liberdade dos oprimidos, desumanizando-o, transformando-o em coisa, num ser inferior, num não humano. Ao longo do tempo, o opressor naturaliza um discurso dicotômico e hierárquico que legitima sua posição de privilégio e silencia os oprimidos (Fanon, 1968; Freire, 2019; Lugones, 2014).

A libertação dos oprimidos é um movimento histórico de recuperação da própria humanidade (Fanon, 1968; Freire, 2019) e só é possível porque a realidade social é uma construção humana. Somente ao oprimido cabe alterar essa relação, sendo a luta empreendida por meio da reflexão e da ação de inserção crítica na própria realidade. Desse modo, o oprimido emerge da vivência de desigualdade e busca transformar o mundo, libertando a si mesmo e ao opressor, superando a contradição opressor-oprimido (Dussel, 1977; Freire, 2019). Nessa perspectiva, o binômio reflexão-ação é, para Freire (2019), a unidade discursiva da práxis na qual a reflexão corresponde ao processo de teorização ou subjetivo, ao passo que a ação trata do fazer no mundo concreto, na realidade social.

Sob a óptica Freireana, dialogar é um meio para a libertação, o pronunciamento do mundo que surge do encontro de pessoas, mediatizadas pelo próprio mundo. O diálogo se configura como forma de transformar as realidades, um elemento essencial à existência humana, pois o ser humano não pode existir fora dele. Além disso, é o meio pelo qual os sujeitos significam a si mesmos, um elemento crucial à superação da contradição opressores-oprimidos. O pronunciamento da palavra deve ser feito de forma comprometida com a libertação. A palavra verdadeira advém da reflexão e da ação, comunica uma mensagem compreensível para o sujeito e os demais, desvelando a realidade (Freire, 1959).

Dessa maneira, a práxis Freireana, que se constitui pela reflexão e pela ação humana sobre o mundo, busca alterar o próprio mundo por meio de um processo dialógico e histórico empreendido por sujeitos conhecedores e críticos acerca de suas vivências em busca da libertação. A práxis, em essência, é colaborativa: “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão” (Freire, 2019, p. 71). Por meio da ação dialógica, os oprimidos buscam a própria humanização (Freire, 2019).

O olhar Freireano sobre a libertação do oprimido por meio da práxis permite revelar as relações de dominação cristalizadas na sociedade e promover a mudança social. A libertação do oprimido, no nosso estudo, significa a recuperação do direito de as mulheres serem reconhecidas como seres humanos, deixando de sofrer as imposições masculinas hegemônicas (Lugones, 2014; Spivak, 2010) nas relações de consumo. A seguir, apresentamos o contexto empírico de nossa pesquisa, caracterizado como tóxico e opressor às mulheres, e os métodos de pesquisa utilizados.

CONTEXTO EMPÍRICO E MÉTODOS DE PESQUISA

Jogos on-line

No mundo atual, aproximadamente 2,8 bilhões de pessoas jogam games. Essa indústria faturou, em 2020, quase 166 bilhões de dólares - crescimento de mais de 20% em relação ao ano anterior. O Brasil é o 13° maior mercado nesse setor e lidera o ranking de latino-americanos, tendo movimentado cerca de 1,6 milhão de dólares (Newzoo, 2020).

A dominação masculina sob os aspectos culturais e simbólicos no mundo gamer é uma realidade saliente (Cerdera & Lima, 2016; Gasoto & Vaz, 2018; Paaßen, Morgenroth, & Stratemeyer, 2017). Os jogos são produzidos por pessoas que reproduzem os padrões hegemônicos (Amorim, Leão, Gallo, & Liao, 2016; Bayde, 2019), destinados essencialmente ao público masculino (Caramello, 2016). Essa dominação pode ser percebida nas representações femininas, em sua maioria sexualizadas, obtusas e/ou submissas (Amorim et al., 2016; Portinari, Chagas, & T. L. Souza, 2019). Há também a problemática da falta de representatividade feminina como personagens (Bristot et al., 2017; Caramello, 2016), o que desencadeia a criação e a perpetuação de preconceitos e estereótipos negativos acerca do público feminino (Bristot et al., 2017).

Nesse cenário, as mulheres são a maior parcela de jogadores de videogame no Brasil - um total de 53% (Pesquisa Game Brasil, 2020). Essa realidade as insere num universo tachado de “tóxico” para elas (V. Carvalho, Teixeira, & B. Carvalho, 2015; L. G. Pereira, Silva, V. P. Souza, & Rezende, 2017; Flores & Real, 2018; Rodrigues, 2019), que enfrentam comentários negativos em relação a suas habilidades, assédio, difamação, ameaças (V. Carvalho et al., 2015; Duarte & Quintão, 2021) e machismo (B. V. Souza & Rost, 2019). Elas são, propositalmente, atrapalhadas durante as partidas e sofrem mais com trapaças (Flores & Real, 2018; Rodrigues, 2019). Essas violências afetam o desempenho delas no jogo, nas frequências e no tipo de jogo que escolhem (L. G. Pereira et al., 2017).

A manifestação dessas problemáticas é possível em razão da característica de interatividade dos jogos on-line. Conhecidos como multiplayer online battle arena (ou Moba), esses jogos são competições de equipes em tempo real (Gasoto & Vaz, 2018; B. V. Souza & Rost, 2019). A formação das equipes é aleatória, a menos que o jogador já tenha parceiros para jogar, e a interação acontece durante as partidas por meio de conversas via voz ou escrita (Flores & Real, 2018). Assim, o desenvolvimento dessa prática de consumo exige cooperação, mas há muita competição e segregação entre homens e mulheres (D. S. Souza, Pereira, & Ventura, 2019).

COLETA E ANÁLISE DOS DADOS

Para compreendermos como as mulheres enfrentam a opressão de gênero no consumo, realizamos uma pesquisa qualitativa utilizando netnografia e entrevistas em profundidade como formas de obtenção de dados. Para iniciarmos a imersão no contexto de pesquisa, a primeira autora realizou a netnografia durante 13 meses, seguindo as recomendações de Kozinets (2019), observando, interagindo e participando cotidianamente, em especial, de grupos ligados a jogos no Facebook (ver Quadro 1) que foram escolhidos por sua relevância no mundo gamer. Como características, os grupos estudados existem há pelo menos 3 anos, têm mais de 200 participantes, publicam novos tópicos de discursão semanalmente e apresentam casos de assédio ou hostilização contra mulheres em algum momento nas conversas.

Quadro 1
Grupos estudados

A netnografia possibilitou a construção de familiaridade com as relações desenvolvidas entre os participantes da comunidade, bem como seus valores, significados, tensões e disputas. A primeira autora também acompanhou canais de jogadoras no YouTube, realizando a leitura e o acompanhamento de blogs temáticos, sites de desenvolvedoras de jogos e notícias ligadas ao ecossistema gamer na grande mídia - alguns deles, links compartilhados nas próprias comunidades. Ao todo, foram coletados e analisados 8 horas e 15 minutos de vídeos, além de 277 páginas de informação textual - posts e reportagens, que integram o corpus de análise.

Além da netnografia, a primeira autora conduziu virtualmente, em razão da pandemia de covid-19, 15 entrevistas em profundidade (Thompson, Pollio, & Locander, 1994). As primeiras informantes (Quadro 2) foram recrutadas num tópico de discussão numa das comunidades acompanhadas durante a netnografia. A autora se identificou como pesquisadora nos grupos on-line e, após um período de observação, entrou em contato com as possíveis informantes. Depois das primeiras entrevistas, foi utilizada a estratégia de amostragem de bola de neve (Miles & Huberman, 1994), quando o informante indica possíveis novos participantes da pesquisa, ampliando o leque. O critério de seleção dos informantes foi a autoderminação como mulher e gamer, o que implica o envolvimento próximo ao diário com os jogos. As entrevistas objetivaram ampliar o entendimento das formas de atuação feminina na comunidade e suas interações como os demais atores do ecossistema. Em razão disso, foram identificados tópicos como a socialização nessa prática de consumo, situações problemáticas vivenciadas e (re)ações, além de relacionamento com jogadores e atores institucionais.

Quadro 2
Lista de informantes

Os dados coletados foram analisados e interpretados tendo como base a hermenêutica (Thompson, 1997). Por meio de uma série de interações “parte para todo”, buscamos desenvolver um entendimento sobre práticas e discursos de jogadoras e jogadores on-line, assim como das empresas que atuam no setor. Iniciamos a codificação dos dados identificando os diferentes aspectos das formas de atuação feminina e masculina na comunidade e suas relações com os demais atores desse mercado. Práticas e discursos nas entrevistas e na netnografia que revelavam a opressão de gênero foram analisados e categorizados, bem como seus desdobramentos: ações e reflexões realizadas pelas mulheres para alterar o sistema de dominação presente no ambiente tóxico de consumo de jogos on-line. Para refinar a análise, os dados foram agrupados em práticas femininas, masculinas e institucionais. As ações desses atores foram investigadas e relacionadas entre si, visando ao entendimento do fenômeno.

O segundo autor acompanhou a coleta de dados e realizou as análises conjuntamente com a primeira autora. Durante todo o processo, ambos se ajudaram para buscar o equilíbrio entre intimidade e distância do contexto (Arnould, Price, & Moisio 2006), melhorando a sensibilidade analítica em relação às questões de gênero no fenômeno estudado.

RESULTADOS

No mercado dos jogos on-line, as mulheres buscam a libertação da opressão de gênero por meio da práxis de consumo, que é uma ação reflexiva libertadora do oprimido em ambientes de consumo que reforçam a subalternização do outro. A práxis de consumo se constitui por 3 elementos: opressão, mobilização e ocupação, revestidos de práticas e diálogos reflexivos que impulsionam e fomentam a consciência do oprimido no processo de busca pela libertação. A opressão de gênero no consumo funciona como gatilho para o ganho e a ampliação de consciência por meio da mobilização do próprio sujeito oprimido, que se articula e ocupa os espaços de mercado com o objetivo de alterar os sistemas sociais que reforçam sua subalternização. A seguir, explicamos cada um dos elementos da práxis de consumo.

Opressão de gênero no consumo

A opressão de gênero no consumo se materializa com a manifestação e a propagação da ideologia da masculinidade hegemônica. A disseminação dessa ideologia serve aos propósitos de dominação masculina e sustenta a desigualdade de gênero em nossa sociedade (Connell, 1987; Connell & Messerschmidt, 2005), sendo o padrão de práticas que perpetua a dominação masculina sobre as mulheres, num sistema hierarquizado que inferioriza todo sujeito que não se enquadre no ideal hegemônico: homem branco, cisgênero, heterossexual (Connell, 1987; Connell & Messerschmidt, 2005).

A desvalorização das mulheres é uma das formas de exteriorização dessa ideologia e perpassa comportamentos como descrença nas habilidades das jogadoras, atribuição de funções consideradas menos importantes dentro da equipe e sexualização das personagens femininas. Para a informante Marina (21 anos, estudante), o simples fato de se apresentar como mulher é um motivador de xingamentos e ofensas durante os jogos, o que conduz à necessidade de provar seu nível de habilidade como forma de legitimar sua presença naquele local. Ela diz:

A gente tem que fazer o dobro para ter metade do reconhecimento. Então, se estamos num jogo, temos que provar ser extremamente foda. Sempre tem quem fale: “Ah! Mas xingam todo mundo.” Só que os caras precisam fazer alguma cagada para começar a ser xingados; a gente, só de estar ali, é xingada. A gente tem que provar que é foda para estar ali.

A desvalorização feminina se revela também na representação sexualizada das personagens, na baixa representatividade feminina entre personagens principais e na criação de narrativas que subalternizam a mulher. Nos jogos League of Legends e Dota 2, elas representam, respectivamente, 34% e 14% dos personagens jogáveis, enquanto as figuras masculinas são 42% e 77% do total - os demais são seres não humanos. Além disso, a ampla maioria das personagens femininas de LoL (77%) é sexualizada (Riot Games, 2021; Valve Corporation, 2021). Assim como na comunidade de consumo de motocicletas Harley-Davidson (Martin et al., 2006), o contexto de jogos on-line se caracteriza como um ambiente hipermasculinizado, sendo a presença feminina considerada uma anomalia.

Outra forma de exteriorização da masculinidade hegemônica é a intimidação das mulheres, que se dá por meio de manifestações de violência moral e psicológica. Elas são difamadas, acusadas de trapaça, imputadas com adjetivos pejorativos e ameaçadas de violência física, inclusive de morte. Essas ações são crimes previstos no ordenamento jurídico brasileiro (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940). Segundo Daniela (42 anos, tradutora), o fato de se apresentar como mulher nos jogos é fonte geradora de xingamentos e ofensas oriundas dos jogadores hegemônicos, sendo o nível de agressividade ampliado diante de qualquer erro cometido. Os xingamentos chegam a se tornar crimes de ameaça e de assédio. Ela diz:

Por exemplo, se colocamos lá “Joaninha” (exemplo de nick name feminino), assim que entramos na log (no jogo), já somos atacadas: “Ei! É mulher. Já lavou a louça hoje?”, ou “Já deu para o namorado hoje?”. Se erramos alguma coisa no jogo: “Vou à sua casa estuprar você e sua mãe”.

As mulheres são estigmatizadas, sujeitificadas e colocadas em posição de inferioridade, sendo silenciadas pelos agentes propagadores da masculinidade hegemônica (Connell & Messerschmidt, 2005; Lugones, 2014; Spivak, 2010). A opressão realizada de maneira prolongada conduz à normalização das relações de desigualdade (Connell & Messerschmidt, 2005; Lugones, 2014; Spivak, 2010). Entretanto, diante dessas situações, surge o processo reflexivo das mulheres, como reação à condição de subalternização em relação aos homens. A reação à opressão de gênero surge da reflexão sobre a realidade e a identificação de sua problemática como algo que precisa ser modificado. A constatação da opressão é o primeiro passo para a inserção crítica na realidade e a busca por libertação (Freire, 2019).

O reconhecimento dos opressores e a reflexão sobre essa situação se revelam nos diálogos entre as jogadoras, ocorrendo durante as partidas e em outros momentos de interação on-line da comunidade. Como exemplifica Vanessa (20 anos, estudante), ainda que de rápida duração, como durante as partidas, o diálogo surge mediante a reflexão e a problematização da violência sofrida: “Já aconteceu de um menino ser escroto comigo na partida e alguém do lado falar: ‘Sou menina também! Você vai xingar ela mesmo?’. Então, é importante juntarmos forças ali para nos defendermos”. O processo reflexivo da práxis de consumo é perceptível nos diálogos e nas ações de mobilização e ocupação de espaços, que serão apresentadas a seguir.

Mobilização do oprimido

A mobilização surge da reflexão feminina sobre como mudar a realidade opressora. Unindo-se por meio da mobilização, as mulheres encontram uma forma de contestar e enfrentar a estrutura de dominação masculina. A diligência feminina se inicia na procura de grupos e comunidades que as acolham, como Meninas Gamers, Garotas que Jogam Videogame, Mulher Gamer e Grupo Garotas Gamers, além de grupos privados criados nos aplicativos de mensagem instantânea. Para Bianca (30 anos, publicitária), os grupos voltados a minorias sociais são um espaço para que ela não tenha de conviver com a toxidade de grupos gerais, que perpetuam o discurso de ódio contra essas minorias. Ela diz:

Atualmente, procuro participar apenas de grupos liderados por mulheres no Facebook, por exemplo. Porque, por experiência própria, participei da moderação de um grupo bem grande: o Stim Brasil. Havia milhões de usuários, e o grupo caiu (deixou de existir) por denúncia. Sei que o pessoal costuma ter preconceito, ser bem machista, então prefiro entrar só nesses espaços que sei que vai ter apoio de mulheres e LGBT, porque, no geral, é uma coisa bem complicada. Os caras não aceitam mesmo mulher jogando. Nos grupos mais gerais sempre há piada de estupro, racista, machista etc., e essa galera não vê isso como problema. Se reclamamos, somos nós que estamos erradas. Não me sinto segura em grupos assim, por isso prefiro não participar.

Como participantes dos grupos, as mulheres se envolvem em diálogos reflexivos sobre as práticas opressoras masculinas. Nesses locais, são frequentes desabafos e postagens relativas à violência de gênero que elas sofrem, além do descontentamento com a objetificação feminina nos jogos. A reflexão se revela nesses diálogos mediante a identificação da problemática, como no post vinculado no grupo Meninas Gamers, na qual uma participante relata: “Só existe homem lixo no LoL? [...] Queria saber como vocês lidam com essas situações. Não tenho o costume de passar por isso, pois sempre joguei jogos single player (omitindo identificação da declarante).” Esse relato resultou em diversos comentários e respostas ponderando sobre o problema e sugerindo estratégias para lidar com a toxidade masculina - entre elas, especialmente, buscar apoio em outras mulheres.

A práxis de consumo se revela na mobilização, na busca pela libertação da situação de opressão, em ações como criação de ferramentas de divulgação de informação sobre jogadoras profissionais e desenvolvedoras de jogos (Comunidade Gamer Feminina, 2020), na promoção de maratonas para o desenvolvimento de jogos (Game Jam das Minas, 2020; Women Game Jam, 2020) e no fomento à profissionalização feminina no desenvolvimento de jogos ou como jogadoras profissionais (Borboletas Digitais, 2020; Coutinho, 2020; DevGirls, 2020; Meninas Digitais, 2020; Rellstab & Laurence, 2018;). As mulheres se mobilizam aderindo aos grupos em resposta aos desafios da realidade problematizada, o que caracteriza “a ação dos sujeitos dialógicos sobre ela, para transformá-la” (Freire, 2019, p. 229), e a reflexão se apresenta imbuída nessa ação. Nossas informantes não buscam mudanças de questões individuais, como o investigado por Walther e Schouten (2016), e sim transformações coletivas.

A mobilização como elemento da práxis de consumo é uma possibilidade de transformação da realidade opressora, sendo mais uma etapa na inserção crítica e na tomada de consciência das mulheres no mundo gamer. Ao sofrerem com a opressão, elas refletem sobre essa vivência, o que faz surgir o anseio pela mudança, que se materializa na ação de criação de parcerias com outras mulheres. Ao se mobilizarem, elas deixam de ser jogadoras isoladas, ocultas e silenciadas. A união entre oprimidas desenvolve a consciência problematizadora e dá a elas o suporte para o próximo passo no processo de busca pela libertação da opressão de gênero no ambiente de consumo. Isso significa estar presente nos espaços da comunidade como mulher, conforme detalhamos a seguir. Essa inserção (ou ocupação do mercado) é um processo de integração que exige do oprimido um máximo de razão e consciência (Freire, 1999).

Ocupação do mercado

O mercado de games on-line é dominado por homens (Cerdera & Lima, 2016; Gasoto & Vaz, 2018; Paaßen et al., 2017), porém as mulheres têm aumentado sua participação nesse espaço. Apresentamos a seguir as formas de ocupação do mercado pelas mulheres, agrupadas como assunção da identidade feminina, produção de conteúdo e criação de jogos.

Assunção da identidade feminina

Ao se unirem, as consumidoras passam a reivindicar para si o direito de participar do mercado de game on-line como mulheres consumidoras e produtoras. Assim, o primeiro passo na ocupação desse espaço é a assunção da identidade de gênero diante da comunidade, antes oculta pela utilização de pseudônimos neutros ou masculinos ou revelada apenas em grupos femininos.

As consumidoras assumem um nick name feminino e enfrentam as consequências dessa escolha. Como é o caso de Marina (21 anos, estudante), enfática ao afirmar: “Sim, jogo com nick feminino”. Para ela, nenhuma outra opção seria possível. Nessa mesma linha, Ágata (23 anos, desempregada) afirma ser fundamental assumir a identidade de gênero para que a situação de opressão se faça saliente e, assim, seja passível de contestação e alteração.

Sempre uso nick feminino. Acho que seria mais fácil usar um nick neutro ou masculino, como a maioria das meninas faz, mas não quero me privar do conforto de ter um nick de que gosto por causa de uma comunidade idiota. Por mais que eu entenda que, às vezes, a pressão é muito forte e que eles falam muita besteira - às vezes muito pesadas -, prefiro manter o nick feminino e mutar [o jogador tóxico]. Porque, se formos esconder cada vez mais que somos mulheres, não há como a empresa saber que se trata de uma mulher reclamando de uma comunidade tóxica nem como fortalecer as outras mulheres que estão no meio.

O crescente número de mulheres atuando como jogadoras de games profissionais (e-atletas) também revela o maior comprometimento com a ocupação do mercado. Essas jogadoras têm conseguido mais espaço. Um exemplo é a estreia, em 2020, da primeira mulher num campeonato oficial no Brasil, promovido pela Riot Games, depois de anos de controvérsias, que incluíram acusações de assédio moral e desistência das profissionais, impedindo outras mulheres de estrearem no campeonato (B. Pereira, 2020; Rigueiras, 2020). Além disso, há um crescente número de equipes femininas e mistas ocupando posições de destaque na comunidade (Flor, 2019; Villela & Tunholi, 2019), além de jogadoras solo se tornando notórias (Villela & Tunholi, 2019; Quevedo, 2020). Nossas informantes vão além da busca por inclusão no mercado (Scaraboto & Fischer, 2013) e da fuga da opressão masculina (Sandikci & Ger, 2010). Elas buscam mudar a realidade opressora, fomentando também o diálogo com os demais integrantes desse mercado.

A práxis de consumo se revela no posicionamento feminino de assumir a própria identidade na busca da humanização das relações. O “ser mais” (Freire, 2019), nesse contexto, é o direito de ocupar esse espaço, de consumir sem sofrer represálias de natureza sexista e machista, superando os limites impostos pela ideologia da masculinidade hegemônica.

Produção de conteúdo

Outra forma de ocupação de espaço no mercado é a produção de conteúdo no jornalismo especializado e a criação de canais para transmissão de partidas - as streamers, que compõem a práxis de consumo. O jornalismo especializado em games é uma realidade que cresceu a partir dos anos 2000 (Lima & Santos, 2019). Nessa seara, as mulheres têm promovido iniciativas como o sitePreta, Nerd & Burning Hell (2020), que discute a questão do gênero e problemáticas raciais; Garotas Geeks (2020), destinado a mostrar o ponto de vista feminino sobre a cultura nerd/geek; Liga das Garotas (2020), que propõe informar sobre novidades e atualizações acerca de games sob uma perspectiva feminina, sendo o olhar crítico um elemento compartilhado por todas elas.

Nos streamings de jogos, a mulher assume o próprio gênero e expõe suas habilidades para a comunidade. O número de mulheres streamers vem crescendo nos últimos anos, com os seguintes destaques: Ingredy Barbi Games, com um canal no YouTube criado em 2012 e mais de 6 milhões de inscritos, transmite principalmente o jogo Free Fire, e Malena, com mais de 6 milhões de seguidores no YouTube e realizando transmissões de diversos jogos, em especial The Sims.

Como streamers, a maior parte do conteúdo produzido por essas jogadoras está relacionado com jogos e diversão, todavia as questões das dificuldades vivenciadas pelas mulheres na comunidade estão fortemente presentes em seus conteúdos. É o caso da Loud Mii, que tem um vídeo intitulado “Como é ser uma menina em jogo on-line?” entre os mais populares de seu canal. Nesse vídeo, ela é atacada verbalmente, acusada de não ser uma mulher e de usar ferramentas hackers para trapacear, pois estava sobressaindo na partida.

A produção e o compartilhamento de conteúdo revelam o envolvimento das mulheres gamers com a comunidade e a abertura do diálogo com os demais atores de mercado. Essas mulheres se percebem como detentoras do direito de ocupar esse espaço, ou seja, se reconhecem em sua humanidade como detentoras da vocação histórica de Ser Mais (Freire, 2019), rompendo as limitações socialmente impostas a seu consumo. Essas ações de produção de conteúdo, seja como streamers ou jornalista, denotam a busca pela tomada de consciência e o posicionamento feminino enquanto sujeito ativo e reflexivo. Nesse sentido, elas buscam legitimar o direito de ocuparem espaços dentro da comunidade gamer.

Criação de jogos

A criação de jogos se caracteriza pela entrada das mulheres no mercado de desenvolvimento de jogos e pela busca, por parte dessas profissionais, da criação de jogos com enredos e designs inclusivos e não estereotipados. A inserção feminina no mercado ocorre de maneira crítica, objetivando retratar a realidade de forma igualitária e respeitosa.

A baixa inclusão do universo feminino nos jogos on-line incentivou Michele (34 anos, designer gráfico) a iniciar o desenvolvimento de games. Ela afirma ter o desejo de criar jogos desde muito cedo, sobretudo para neles se identificar. A informante salienta que o crescimento da cena independente tem contribuído para a possibilidade de diversificação dos jogos on-line.

Estou começando a trabalhar na área de jogos. (O jogo) vai ter tema LGBT, vai ter tema de racismo... Acho que comecei a querer inventar coisa para jogo desde cedo. A gente, que era criança e queria se ver nas obras, hoje é adulto fazendo as obras. Então, por mais que seja dominado por essa galera que não gosta e tal, a gente está conseguindo entrar no meio. Estou vendo muito a cena indie (sem financiamento de publicadoras de jogos eletrônicos) ficar mais famosa, o que me dá esperança para meu jogo também.

O desejo por mudança guia as ações dessas profissionais. Anny (26 anos, gamer designer) expõe essa realidade salientando que esse desejo por transformação advém de sua socialização como mulher negra e da falta de representatividade que sempre percebeu em todas as esferas de seu consumo ao longo dos anos.

É uma parada que bato muito o pé com o time com o qual trabalho. Porque passei anos da minha vida, e ainda passo, sem me ver nas coisas. E sei que, assim como eu, mais da metade da população brasileira também se vê nessa mesma situação, assim como outras mulheres no mundo. Jogo é para todo mundo; não é para um público só. É um trabalho de formiguinha, mas é uma parada que sempre bato na tecla. Ou então não faz um personagem humano.

Anny (26 anos, gamer designer) revela ainda que a realidade no mercado para as mulheres é muito opressora. Esse cenário, por vezes, a fez ter vontade de mudar de profissão. Todavia, o desejo de transformar essa situação de opressão a mantem motivada a continuar a desenvolver seu trabalho.

Já pensei muito em desistir, mas isso é o que gosto de fazer. Uma coisa que sempre coloquei na cabeça para não desistir e para não ficar chorando na cama é que, se eu não ocupar esse espaço, outra pessoa, que não é uma mulher, vai ocupar. E vai ficar cada vez mais difícil. Então, se eu ocupar um espacinho, o menor que for, vou estar dando chance para outra pessoa que vem depois de mim. Então, vou indicar outra menina, que vai indicar outra e que também vai servir de espelho para crianças que estão vendo a gente fazer isso e podem pensar em seguir essa carreira. Se não for eu, talvez ninguém faça, então faço.

As ações de Anny (26 anos, gamer designer) surgiram da reflexão sobre a situação real de opressão, que, para ela, envolve gênero e etnia. O trabalho contínuo no tempo, exemplificado na fala da informante, é a tarefa histórica de transformação da realidade, apontada por Paulo Freire (1999, 2010) como única possibilidade real de transformação e superação da contradição opressores-oprimidos. Dessa forma, a busca pela libertação é um processo histórico realizado pelas mulheres no contexto dos jogos em prol da superação da contradição opressor-oprimido (Freire, 2019).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscando compreender como as mulheres enfrentam a opressão de gênero presente no consumo, introduzimos o conceito de práxis de consumo. Diante da opressão de gênero nas relações de consumo, o oprimido se mobiliza para refletir de maneira crítica e dialógica, ampliando sua consciência como sujeito no mundo, elaborando ações de atuação no mercado para ocupá-lo com objetivo de se libertar da realidade opressora presente no consumo.

Pesquisas do campo de cultura e consumo explicam como as consumidoras lidam com hierarquias e relações de poder de gênero. Por meio da negociação (Martin et al., 2006; Murray 2002; Sandikci & Ger, 2010; Scaraboto & Fischer, 2013; Thompson & Üstüner, 2015; Walther & Schouten, 2016), as consumidoras reinterpretam os significados ideológicos de produtos e serviços oferecidos pelo mercado em relação aos próprios projetos e objetivos de identidade. A negociação, portanto, implica um acordo mutuamente alcançado pela ressignificação de objetos e serviços consumidos, que mantêm as estruturas sociais opressoras, não alterando a realidade subalternizante.

O processo de libertação por meio da práxis de consumo, porém, transforma as mulheres em sujeitos ativos em relação à realidade vivenciada, sujeito esse que produz mudanças na sua consciência e na sociedade. No nosso estudo, as consumidoras vão além da negociação por inclusão (Sandikci & Ger, 2010) e aceitação (Scaraboto & Fischer, 2013), não se apropriando de signos da masculinidade hegemônica (Martin et al., 2006; Thompson & Üstüner, 2015) ou buscando mudanças individuais (Walther & Schouten, 2016). Elas se envolvem numa ação que busca transformar a realidade opressora, iniciando um processo de libertação de maneira dialógica entre mulheres e demais consumidores e atores de mercado.

O conceito de práxis de consumo contribui para os estudos sobre consumo especialmente relativos à hierarquia de gênero (Bristor & Fischer, 1993), adotando uma perspectiva crítica (Murray & Ozanne, 1991) que desvela o sistema de restrições produzidas pelo ser humano e reforçadas pelas estruturas, identificando as ações de mudança dessas estruturas sociais. Os consumidores afetam e são afetados pelo mundo social, tendo agência para promover transformações no consumo.

Utilizando a perspectiva ontológica de Paulo Freire (1959, 1999, 2010, 2019), nossa pesquisa introduziu novas perspectivas de lentes teóricas para o campo de pesquisa da cultura e do consumo (Arnould, Thompson, & Giesler, 2013). Segundo Freire, os atores sociais transformam o mundo por meio da reflexão e da ação, adotando um viés crítico, imaginativo e prático. A óptica de Freire amplia as oportunidades de refletir sobre os fenômenos de consumo, introduzindo novas possibilidades de explicar as relações entre as forças das estruturas sociais e a agência do sujeito consumidor.

Investigações sobre a práxis de consumo considerando outros sujeitos sociais oprimidos - classe social, etnia, raça, periferia e centro - se mostra um campo fértil de pesquisa para ampliar o entendimento a respeito de opressão de gênero no consumo e identificar nuances que não tenham sido reveladas na presente pesquisa. O conceito de práxis de consumo poderia refinar e estender o entendimento sobre temas como estratificação social, relações de poder, ideologias dominantes, hierarquia de gênero e outras forças estruturantes que atuam em nossa sociedade (Bristor & Fischer, 1993; Holt, 1997; Murray, 2002; Quintão, Lisboa, & Lima, 2021; Quintão, Lisboa, Freitas, & Oliveira, 2019; Shankar, Cherrier, & Canniford, 2006).

AGRADECIMENTOS

Agradecemos à Fapemig pelo financiamento de pesquisa por meio de bolsa de mestrado.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Nov-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    10 Nov 2021
  • Aceito
    11 Maio 2022
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