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Um estudo tipológico baseado nos atributos dos trabalhadores(as) da economia solidária para o aperfeiçoamento das políticas públicas de geração de trabalho e renda

Un estudio tipológico basado en los atributos de los trabajadores de la economía solidaria para la mejora de las políticas públicas de generación de trabajo e ingresos

Resumo

Estudo tipológico baseado nos atributos pessoais e nas atividades econômicas dos associados dos empreendimentos de economia solidária. O foco principal são os diferentes atores sociais que integram as diversas modalidades de iniciativas solidárias. O objetivo é demonstrar suas múltiplas demandas e desafios. Empregamos a análise fatorial múltipla (AFM), juntamente com variáveis extraídas da pesquisa amostral dos sócios e das sócias da economia solidária, realizada pela Secretaria Nacional de Economia Popular e Solidária (Senaes) nas regiões do Brasil, em 2013. A AFM permitiu sumarizar e, ao mesmo tempo, hierarquizar os resultados da modelagem estatística dos dados, definindo, assim, a existência de fatores comuns e de dissimilitude entre os 2.895 respondentes. Os clusters formados resultaram em três tipos, nomeados “agricultor familiar” (tipo 1), “povos e comunidades tradicionais” (tipo 2), e “trabalhadoras associadas urbanas” (tipo 3). A caracterização dos tipos e das suas demandas poderá se constituir ferramenta para dar subsídios aos formuladores e executores de políticas públicas de geração de trabalho e renda, uma vez que permite o direcionamento de ações que reflitam necessidades e especificidades de cada agrupamento.

Palavras-chave:
Políticas de desenvolvimento; Interseccionalidade; Trabalho associado

Resumen

Estudio tipológico basado en los atributos personales y las actividades económicas de los asociados de los emprendimientos de la economía solidaria. La atención se centra principalmente en los diferentes actores sociales que componen las diversas modalidades de iniciativas solidarias. El objetivo es demostrar sus múltiples demandas y desafíos. Empleamos el análisis factorial múltiple (AFM) junto con variables extraídas de la encuesta por muestreo a socios de la economía solidaria, realizada por la Secretaría Nacional de Economía Popular y Solidaria (Senaes) en las regiones de Brasil, en 2013. El AFM permitió resumir y, al mismo tiempo, clasificar los resultados de la modelización estadística de los datos, definiendo la existencia de factores comunes y de disimilitud entre los 2.895 encuestados. Las agrupaciones formadas dieron lugar a tres tipos, denominados “agricultor familiar” (tipo 1), “pueblos y comunidades tradicionales” (tipo 2), y “trabajadoras asociadas urbanas” (tipo 3). La caracterización de los tipos y sus demandas podría constituirse en una herramienta para brindar apoyo a los formuladores y ejecutores de políticas públicas de generación de trabajo y renta, ya que permite direccionar acciones que reflejen las necesidades y especificidades de cada agrupación.

Palabras clave:
Políticas de desarrollo; Interseccionalidad; Trabajo asociado

Abstract

This article presents a typological study based on the personal attributes and economic activities of associates of solidarity economy enterprises. The main focus is on the different social actors that integrate the different types of solidarity initiatives, intending to demonstrate their multiple demands and challenges. We used Multiple Factor Analysis (MFA) with variables extracted from the sample survey of the partners of the solidary economy, carried out by Senaes, in 2013, in the five regions of Brazil. MFA allowed summarizing and hierarchizing the results of the statistical data modeling, defining the existence of common factors and dissimilarity among the 2,895 respondents. The formed clusters resulted in three types, named family farmers (type 1), traditional peoples and communities (type 2), and associated urban workers (type 3). The characterization of the types and their demands may constitute a tool to provide subsidies to formulators and executors of public policies for job and income generation since it allows the targeting of actions that reflect the needs and specificities of each grouping.

Keywords:
Development policies; Intersectionality; Associated work

INTRODUÇÃO

Apesar de os empreendimentos da economia solidária enfrentarem condições adversas relacionadas à reduzida escala de produção, descapitalização e defasagem tecnológica, é indiscutível que geram trabalho e renda na realidade brasileira a inúmeros segmentos que historicamente foram incluídos parcialmente no assalariamento formal. A pesquisa amostral dos sócios e das sócias da economia solidária, que integra o Sistema Nacional de Informação em Economia Solidária (SIES), realizada pela Secretaria Nacional Economia Solidária (Senaes) em 2013, apresenta um conjunto de variáveis que permitem delinear as condições de vida e trabalho daqueles que asseguram sua reprodução nesse campo de atividade. Foram entrevistados 2.895 sócios em todas as regiões do país, com a finalidade de construir o perfil dos participantes da economia solidária e, com isso, subsidiar a formulação e implementação de políticas públicas.

O desmonte das políticas sociais no cenário brasileiro, a partir de 2016, com o impeachment da presidente Dilma Rousseff, e a extinção da Senaes, no então governo de Jair Bolsonaro, em 2019, limitou a aplicabilidade dos dados coletados no aprimoramento das políticas que estavam em curso. A riqueza das pesquisas que integram o SIES, depois de, pelo menos, uma década da sua realização, permanece, segundo Gaiger e Kuyven (2019Gaiger, L. I., & Kuyven, P. (2019). Dimensões e tendências da economia solidária no Brasil. Revista Sociedade e Estado, 34(3), 811-834. https://doi.org/10.1590/s0102-6992-201934030008
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), no entanto, é pouco explorada. Os autores ponderam a necessidade de estudos baseados em informações representativas quando seu objeto implique recorrência de fatos singulares, sejam comportamentos ou características de uma população. Ademais, destacam que podem ser feitas análises diacrônicas e retrospectivas que permitam delinear a tendência dos empreendimentos solidários ao longo do tempo. Com o ressurgimento da Senaes em 2023, no terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, este estudo mostra-se mais do que justificado, pois apresenta uma tipologia elaborada pelos atributos dos trabalhadores da economia solidária, ressaltando suas potencialidades e demandas com o intuito de subsidiar ações públicas que visem fortalecer o trabalho associado e autogestionário.

Entender os diferentes atores que compõem a diversidade de empreendimentos solidários resulta na qualificação de demandas e desafios que lhes são próprios e precisam ser enfrentados. Ao se expandir, a economia solidária abarcou diversas categorias sociais e variadas modalidades de organização, como grupos de geração de renda informais, associações nas comunidades rurais e nas áreas periféricas dos centros urbanos, cooperativas de produção e comercialização, de prestação de serviços e de crédito. O foco principal desses grupos, conforme Veronese et al. (2017Veronese, M. V.; Gaiger, L.I. & Ferrarini, A.V. (2017). Sobre a diversidade de formatos e atores sociais no campo da economia solidária. Cadernos do CRH, Salvador, 30(79), 89-104. https://doi.org/10.1590/S0103-49792017000100006
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), é o bem-estar social e a reprodução digna para seus associados. Devido à importância dos Empreendimentos da Economia Solidária (EES) na melhoria de condições para uma vida digna desses agrupamentos, os autores defendem a aprovação de um marco legal que contemple os múltiplos formatos que assumem e que responda às demandas dos diversos atores sociais que os constituem.

Essas diferentes configurações dos EES agregam uma diversidade de atores sociais, tais como: quilombolas, pescadores artesanais, artesãos, assentados por reforma agrária, agricultores familiares, povos tradicionais, catadores de materiais reciclados, entre outros. Portanto, são necessários estudos que demonstrem as diferenças entre esses atores que configuram os EES, pois, na compreensão de Veronese et al. (2017Veronese, M. V.; Gaiger, L.I. & Ferrarini, A.V. (2017). Sobre a diversidade de formatos e atores sociais no campo da economia solidária. Cadernos do CRH, Salvador, 30(79), 89-104. https://doi.org/10.1590/S0103-49792017000100006
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, p. 90), “[...] essa grande pluralidade precisa de maior detalhamento analítico por parte das pesquisas no campo da economia solidária”. Embora tenhamos uma produção significativa de pesquisa no Brasil e na América Latina, ainda há uma lacuna relacionada aos múltiplos estilos e condições de vida revelados pela pluralidade de práticas e racionalidades que são tangenciadas pelas questões de gênero, etnia, territórios e modos de vida singulares (Veronese et al., 2017Veronese, M. V.; Gaiger, L.I. & Ferrarini, A.V. (2017). Sobre a diversidade de formatos e atores sociais no campo da economia solidária. Cadernos do CRH, Salvador, 30(79), 89-104. https://doi.org/10.1590/S0103-49792017000100006
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).

Concomitantemente aos argumentos expostos, este artigo busca tornar esses trabalhadores visíveis mediante uma classificação tipológica que ressalta suas similitudes e diferenças, com o intuito de contribuir para o fortalecimento das inciativas solidárias. Reconhecemos que a institucionalização da economia solidária possibilitou aos segmentos mais vulneráveis a apresentação das suas reinvindicações nos governos do Partido dos Trabalhadores. No entanto, as políticas desenvolvidas visavam ao combate da pobreza extrema, salvo raras exceções, como a obrigatoriedade de aquisição dos produtos da agricultura familiar no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), em 2009. Por isso, a necessidade de aperfeiçoamento de uma política pública voltada à inclusão social pelo fortalecimento do trabalho associado, da produção e comercialização organizadas coletivamente e das finanças solidárias. Devido a esse contexto, a construção de uma tipologia baseada nos atores sociais que integram os empreendimentos de economia solidária pode constituir uma ferramenta que subsidie formuladores e executores de políticas públicas de desenvolvimento, uma vez que permitirá o direcionamento de ações que reflitam necessidades e especificidades de cada agrupamento.

O artigo está estruturado em seis seções. Além desta primeira, a segunda seção traz uma reflexão sobre o potencial de geração de trabalho e renda por parte das iniciativas da economia solidária, embora estas enfrentem sérias restrições para efetivar direitos sociais. Na terceira seção é apresentada a metodologia do trabalho, indicando os procedimentos adotados com o manuseio da base de dados oriunda da pesquisa amostral dos sócios e sócias da economia solidária. A quarta e quinta seções são dedicadas à caracterização dos tipos elaborados, com foco nas diferenças e similitudes, de modo a explicitar as demandas de cada agrupamento. Na última seção, assinalam-se os principais desafios que, uma vez solucionados, podem fortalecer esse campo de luta e resistência.

ECONOMIA SOLIDÁRIA COMO MECANISMO DE GERAÇÃO DE TRABALHO E RENDA

A economia solidária se constituiu um instrumento de desenvolvimento por meio do estímulo ao trabalho associado, à inclusão produtiva e à democratização do crédito via programas de apoio a finanças solidárias. A possibilidade de geração de trabalho decente1 1 A Organização Internacional do Trabalho (OIT) define trabalho decente como aquele que remunera de forma adequada, executado em condições de liberdade, equidade e segurança, capaz de assegurar vida digna a todas as pessoas que o desenvolvem Ministério do Trabalho e Emprego (2006). por meio de empreendimentos solidários é objeto de controvérsias em virtude das condições efetivas dos direitos sociais assegurados. Santos (2019Santos, A. M. (2019). Sob o fio da navalha: relações Estado e sociedade a partir da ação política da economia solidária no Brasil. Lutas anticapital., p. 37), no entanto, afirma “[...] que a economia solidária avança e os esforços dos sujeitos envolvidos nesta dinâmica não podem ser silenciados, desperdiçados e produzidos como inexistentes”. A autora destaca que a impossibilidade da proteção ao trabalho associado durante a fase de institucionalização da política de economia solidária em nível federal exemplifica o não atendimento das demandas sociais em um Estado que, embora tenha permitido maior participação das forças populares, ocupou uma posição periférica na distribuição orçamentária e não conseguiu estabelecer um marco legal adequado à economia solidária no país.

Promulgada a Lei nº 12.690/2012Lei nº 12.690, de 19 de julho de 2012. (2012). Dispõe sobre a organização e o funcionamento das cooperativas de trabalho e institui o Programa Nacional de Fomento às Cooperativas de Trabalho. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12690.htm
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, que regulamenta a organização e o funcionamento das cooperativas de trabalho, esperava-se que o trabalho associado, aquele caracterizado pela ajuda mútua, autogestão e partilhamento de resultados entre os trabalhadores, eliminasse as relações precárias, na medida em que ele representa uma alternativa de resistência e sobrevivência para diversos agrupamentos vulneráveis (Anjos & Matos, 2022Anjos, E., & Matos, I. L. (2022). Cooperativas de trabalho. In M. P. D. Griebeler, P. L. Büttenbender, P. L., R. T. T. Morais, J. L. A. Moraes, A. Sparemberger, & N. J. Thesing. Dicionário contemporâneo de cooperativismo(pp. 88-93). Conceito.). A referida lei assegura alguns direitos que se aproximam dos garantidos no trabalho assalariado, tais como: retiradas não inferiores ao piso da categoria profissional e, na ausência deste, não inferiores ao salário-mínimo; jornada de trabalho de 8 horas diárias e 44 horas semanais; repouso semanal remunerado; repouso anual remunerado etc. (Pereira & Silva, 2012Pereira, C. M., & Silva, S. P. (2012). A nova lei de cooperativas de trabalho no Brasil: novidades, controvérsias e interrogações. Mercado de Trabalho, 53, 65-74. http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/3872/1/bmt53_econ04_novalei.pdf
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). No entanto, na prática, a legislação aprovada expressa um distanciamento da realidade laboral dos trabalhadores que fazem parte de empreendimentos da economia solidária, sejam eles nos formatos de cooperativa, associação ou grupo informal. Isso se deve ao fato de que eles têm de enfrentar os desafios do mercado globalizado, que exige o cumprimento de uma intensa jornada em um contexto de competição exacerbada do sistema de capital, o qual demanda a inserção de seus produtos no mercado.

O estímulo à participação nos empreendimentos da economia solidária tem por finalidade inserir trabalhadores, predominantemente com baixa qualificação, em formas diferenciadas de obtenção de renda. Além disso, busca combater o subemprego que afeta parte da população economicamente ativa (PEA) e diminuir a pobreza. O movimento da economia solidária abrange atores diversos, com características e objetivos específicos à sua atividade. Kraychete (2021Kraychete, G. (2021). Economia dos setores populares: o trabalho para além da norma salarial. Oikos.) destacou que a predominância dos empreendimentos de agricultura familiar na economia solidária evidencia que as políticas de inserção pelo trabalho via EES encontram dificuldades de absorver cerca de 16 milhões de trabalhadores que atuam na economia popular por meio de empreendimentos individuais. Esses trabalhadores poderiam ser incluídos nas discussões sobre a inserção produtiva na gestão pública, uma vez que se encontram em situação de vulnerabilidade.

Não obstante, é inegável que há um percentual significativo de empreendimentos solidários cuja motivação principal é estabelecer-se como fonte de trabalho remunerado dos associados. Sob essa perspectiva, vale salientar as inferências alcançadas em estudos anteriores sobre a situação das mulheres, principalmente negras, nas iniciativas de trabalho solidárias. A atividade econômica desenvolvida no empreendimento representa o trabalho remunerado principal das mulheres. Entre estas, o percentual de mulheres negras é mais elevado em comparação com o de mulheres brancas. Essa constatação denota a continuidade da vulnerabilidade socioeconômica de diversos segmentos envolvidos nos EES, devido à incipiência dos direitos e benefícios assegurados pelas cooperativas que integram o Segundo Mapeamento Nacional da Economia Solidária (Anjos, 2020Anjos, E. (2020). A interseção das desigualdades de gênero e raça no campo da economia solidária. In A. R. Souza, A. R., I. A. O. Lussi, & M. Zanin(Org.), Engajamento e reflexão transversal em economia solidária (pp. 37-47). EdUFSCar /ABPES.).

A geração de trabalho e renda configurava-se uma ação direcionada aos segmentos mais pobres e mais suscetíveis ao desemprego nas periferias das cidades e nas comunidades rurais, que se articulavam em associações, grupos informais e cooperativas, sem possuir, contudo, estruturação necessária para assegurar sustentabilidade econômica. Gaiger e Laville (2009Gaiger, L. I., & Laville, J. L. (2009). Empreendimento econômico solidário. In A. D. Cattani, J. L. Laville, L. I. Gaiger, & P. Hespanha (Coord.), Dicionário internacional da outra economia(pp. 181-187). Almedina.) compreendem que as experiências econômicas desse campo envolvem uma diversidade de práticas cuja racionalidade é distinta daquela que vigora nos princípios capitalistas. As investigações realizadas permitem afirmar que experiências de trabalho solidárias constituem-se alternativas para os que foram parcialmente integrados no assalariamento e buscam, em condições adversas, a construção de um trabalho com conotação emancipatória, mas que assegure os direitos que permeiam o imaginário de toda a classe trabalhadora (Anjos et al., 2019Anjos, E., Rocha, A. G., Cerruci, I., & Silva, F. S. (2019). A indissociabilidade das categorias gênero e raça nas experiências de trabalho na economia solidária. Otra Economia Revista Latinoamericana de Economía Social y Solidaria, 12(22), 106-119. https://www.revistaotraeconomia.org/index.php/otraeconomia/article/view/14830.
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).

Tais práticas solidárias possuem formas próprias de comercialização, gerenciamento e integração social. Seu propósito é fortalecer a difusão do associativismo e do cooperativismo, contribuindo para mudar a realidade das condições de produção e trabalho. Isso ocorre por meio da valorização da autonomia do trabalhador - o que eleva sua autoestima -, principalmente daqueles que estão desprotegidos de direitos e oportunidades oferecidos pelo trabalho formal. Nessa perspectiva, os EES permitiriam um leque de possibilidades de atuação e de formas de inserção de acordo com os objetivos delimitados pelos associados.

Alguns autores, no entanto, avaliam cuidadosamente a disseminação da narrativa do empreendedorismo, visto que este pode dissimular mais desvantagens para quem atua na pluralidade das formas alternativas de trabalho (Kraychete, 2021Kraychete, G. (2021). Economia dos setores populares: o trabalho para além da norma salarial. Oikos.; Leite & Lindôso, 2021Leite, M., & Lindôso, R. O. (2021). Empreendedorismo, neoliberalismo e pandemia: o descaramento de uma ideologia. Contemporânea, 11(3), 791-820. https://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/1071
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).

Leite e Lindôso (2021Leite, M., & Lindôso, R. O. (2021). Empreendedorismo, neoliberalismo e pandemia: o descaramento de uma ideologia. Contemporânea, 11(3), 791-820. https://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/1071
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) ponderam que os direitos assegurados pelo trabalho formal são apontados como geradores de desigualdade. Isso leva à valorização social de práticas de trabalho desprotegidas, consideradas alternativas, pois se revestem do discurso do empreendedor que enfrenta os desafios do mercado de trabalho. As autoras identificam, nessa narrativa, o teor das políticas neoliberais encobertas pela noção de “empresário de si mesmo”, que propiciaria um lugar de vencedor na sociedade, independentemente do vínculo de trabalho que possa estabelecer.

A ponderação das autoras tem procedência, na medida em que diz respeito a um país que historicamente apresenta altos índices de informalidade, como demonstrou a Pesquisa Nacional de Amostra do Domicílio (PNAD) de 2019, apontando 41% da PEA nessa situação. Esse contexto reforça a necessidade de políticas públicas que garantam financiamento e alternativas efetivas de comercialização dos EES, caso contrário, eles entrarão no ciclo de nascimento e morte, típico de micro e pequenos empreendimentos.

Sob uma ótica distinta, Kraychete (2021Kraychete, G. (2021). Economia dos setores populares: o trabalho para além da norma salarial. Oikos.) expõe o grande contingente de trabalhadores excluídos da proteção social ocasionada pelo assalariamento formal e que se reproduzem no que o autor intitula “economia dos setores populares”. Essa exclusão não é, na concepção do autor, um problema conjuntural; antes disso, é um processo histórico que se inicia com as relações coloniais do trabalho escravo e resultado de um conjunto de atividades econômicas geralmente desvalorizadas e precarizadas. Para assegurar direitos a esses segmentos, ressalta a necessidade de as políticas sociais do trabalho considerá-los, uma vez que são pouco visíveis, até mesmo para as ações públicas que visam ao fortalecimento do trabalho associado. A alternativa, portanto, seriam os projetos coletivos que garantiriam a constituição de vínculos sociais e direitos de proteção e seguridade.

A reflexão de Kraychete (2021Kraychete, G. (2021). Economia dos setores populares: o trabalho para além da norma salarial. Oikos.) valoriza ainda mais as iniciativas da economia solidária. A razão de ser dos EES consiste no atendimento das necessidades materiais dos seus associados, assim como de suas aspirações não monetárias, como a autonomia, o reconhecimento, a inserção social e política. Esses empreendimentos representam uma alternativa de produção nos espaços rurais e urbanos e, igualmente, uma experiência mais democrática propiciada pela participação dos seus membros quando optam por uma modalidade coletiva objetivando assegurar não somente sua reprodução, como também a de sua família. Ao atuar dessa forma, introduzem, na dimensão econômica, questões éticas que passam a incidir sobre aquele universo, mediante princípios irredutíveis à lógica utilitarista.

No plano concreto, não ocorre uma reificação do conceito neste estudo, visto que a heterogeneidade dos EES, na perspectiva desta pesquisa, impõe uma análise interseccional, que considere o processo histórico de desenvolvimento implementado no Brasil, o qual foi demarcado por estratégias originadas de ações políticas e econômicas que resultaram em um país desigual regionalmente e segmentado em frações da classe trabalhadora segundo o gênero, o perfil racial e o geracional.

PROCEDIMENTO METODOLÓGICO

As peculiaridades presentes entre trabalhadores que atuam nas distintas iniciativas da economia solidária indicam diferenças relevantes quanto a potencialidades e limites que enfrentam, os quais conformam agrupamentos com interesses e estratégias próprios de produção, comercialização, prestação de serviços, gestão e acesso a políticas. Nesse contexto, uma tipologia baseada nos atributos daqueles que integram as experiências solidárias poderá ser uma referência para a formulação e/ou aperfeiçoamento das políticas que visam à inclusão socioeconômica, principalmente dos segmentos em maior situação de vulnerabilidade.

O estudo tipológico ressalta os traços constitutivos de uma determinada população, a fim de criar subconjuntos com métricas estatísticas de similaridade e/ou diferenças (métodos fatoriais quantitativos), caracterizando cada tipo elaborado pelas variáveis que explicam sua diversidade (Mingoti, 2005Mingoti, S. A. (2005). Análise de dados através de métodos de estatística multivariada: uma abordagem aplicada. Editora UFMG.). A Senaes (2013Santos, A. M. (2019). Sob o fio da navalha: relações Estado e sociedade a partir da ação política da economia solidária no Brasil. Lutas anticapital.) empreendeu um levantamento amostral com 2.895 sócios da economia solidária nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, São Paulo, Minas Gerais, Pará, Tocantins, Alagoas, Bahia, Ceará, Piauí, Rio Grande do Norte, Goiânia e o Distrito Federal. Trata-se de uma amostra representativa de tipo estratificada regionalmente (Bolfarine & Bussab, 2004Bolfarine, H., & Bussab. W. O. (2005). Elementos de amostragem. Editora Blucher.), que, além de captar a multiplicidade de atores integrantes dos EES e de suas trajetórias, permitiu dimensionar o papel da economia solidária no processo de desenvolvimento do país.

A composição do quadro social desses EES é definida em termos de classe, raça, gênero e geração. Desse modo, estudar essa composição e os condicionadores sociais para entender as estruturas de dependências entre os indivíduos e suas organizações resulta em análises que podem qualificar as políticas de geração de trabalho e renda. Assim, foi selecionado um conjunto de variáveis por meio de inferência individual mediada por avaliação de dados secundários provenientes do Questionário de Sócias e de Sócios dos Empreendimentos Econômicos Solidários (QSES) da pesquisa amostral.

Como a ferramenta em questão não foi desenvolvida para essa finalidade, foram consideradas as restrições metodológicas apontadas em Foddy (2003Foddy, W. (2003). Constructing questions for interviews and questionnaires theory and practice in social research. Cambridge University Press.), tais como: cuidado ao interpretar corretamente o objetivo de determinada coleta de dados e observação de como ela se adéqua ao objeto do presente estudo. A modelagem de dados não delineados, fora do contexto experimental, necessita de abordagens que levem em consideração a complexidade (Hostiou et al., 2006Hostiou, N., Veiga, J. B., & Tourrand, J. F. (2006). Dinâmica e evolução de sistemas familiares de produção leiteira em Uruará, frente de colonização da Amazônia brasileira. Revista de Economia e Sociologia Rural, 44(2), 295-311. https://doi.org/10.1590/S0103-20032006000200007
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) de objetos de estudo com múltiplas dimensões, como é o caso dos empreendimentos da economia solidária e seu quadro social. Nessa categoria, encontram-se dados referentes aos perfis raciais, de gênero e geracional, subjacentes aos seus determinantes socioeconômicos. Considerando que tais configurações incidem nos processos de tomada de decisão e representatividade, a modelagem buscou identificar e correlacionar fatores explicativos nesse sentido. Adotou-se uma abordagem exploratória e multidimensional (Lebart et al., 2002Lebart, L., Morineau, A., & Piron, M. (2002). Statistique exploratoire multidimensionnelle(3a ed.). Dunod.), com extração dos autovalores correspondentes a cada fator para cada observação, o que permitiu obter os tipos funcionais por meio de classificação hierárquica ascendente (Pagès, 2014Pagès, P. J. (2014). Multiple factor analysis by example using R. CRC Press.).

O banco de dados manuseado, juntamente com as variáveis e suas inter-relações, descreve o que se denomina “problemas multivariados” (Abdi & Valentin, 2007Abdi, H., & Valentin, D. (2007). Multiple correspondence analysis. In N. Salkind (Ed.), Encyclopedia of measurement and statistics (pp. 651-657). Sage.). Desse modo, a estratégia analítica possibilitou: i) identificar as relações lineares entre as variáveis originais, indivíduos e construtos, ii) reduzir a dimensionalidade dos conjuntos de dados originais e iii) encontrar dimensões sintéticas que agreguem a inércia, ou seja, capacidade explicativa, em eixos interpretativos (Escofier & Pàges, 2008Escofier, B., & Pagès, J. (2008). Analyses factorielles simples et multiples: objectifs, méthodes et interprétation. Dunod.).

Em termos mais específicos:

  1. As relações lineares entre as variáveis originais, os indivíduos e construtos dizem respeito ao conjunto de relações e dependências entre os sócios, sua própria origem social e pessoas de seu convívio, relações de trabalho e a materialização desses fenômenos em sua vida e relação com o EES. As questões presentes no QSES foram utilizadas nesse sentido.

  2. Reduzir a dimensionalidade dos conjuntos de dados originais se faz necessário, uma vez que fenômenos descritos por muitas variáveis de maneira simultânea tendem a gerar um volume muito grande de informações e de interações entre informações. Assim, a análise de forma discursiva ou mesmo a formalização em um modelo estruturado convencional tornam-se opções pouco realistas no intuito de extrair informações úteis, mas que no contexto agregam maior relevância para o conjunto de dados (variáveis do QSES) e objeto (sócios).

Dessa forma, a análise fatorial múltipla (AFM) permitiu sumarizar e, ao mesmo tempo, hierarquizar os resultados da modelagem estatística dos dados do QSES. Neste estudo, visando atender aos critérios supracitados, as variáveis foram submetidas à AFM, usada com o intuito de definir a existência de fatores comuns e de dissimilitude com as variáveis apresentadas no Quadro 1.

Quadro 1
Variáveis selecionadas para elaboração da tipologia

Da AFM foram derivadas duas dimensões principais que congregam cerca de 56% da variância explicada. Os grupos temáticos de variáveis ligadas a “moradia, sexo e estado civil”; “ocupação, trabalho e renda” contribuíram com a maior parte da variância explicada para a dimensão 1. Na dimensão 2, houve grupos de variáveis ligados a “educação formal”, “caracterização social” e “indicadores socioeconômicos”.

Na condução da AFM, recorreu-se à biblioteca Rcmdr para prover a interface do R e do pacote FactoMiner, objetivando implementar o modelo de interação da análise. A interpretação dos tipos elaborados com o método adotado está sumarizada na seção seguinte.

FORMAÇÃO DA TIPOLOGIA POR MEIO DA AFM

A Classificação Hierárquica Ascendente (Escofier & Pages, 2008Escofier, B., & Pagès, J. (2008). Analyses factorielles simples et multiples: objectifs, méthodes et interprétation. Dunod.) foi empregada tendo como base as variáveis originais, agrupadas nos grupos temáticos (Quadro1). Essa abordagem teve como resultado a formação de clusters de casos que, interpretados à luz das dimensões principais (fatores), deram origem à tipologia.

As variáveis sintéticas, formadas por meio da aplicação da AFM ao conjunto de dados, conforme descrito anteriormente, foram classificadas de acordo com a sua variância explicada, ou seja, a capacidade de discriminar os casos analisados.

Figura 1
Contribuição das variáveis com base nas dimensões criadas na AFM nas duas dimensões principais consideradas - dimensão 1 (em azul) e dimensão 2 (em vermelho)

A contribuição das variáveis é atribuída majoritariamente a uma das dimensões da AFM (dimensão 1 e dimensão 2). Recorrendo-se aos autovalores, que representam a integração das variâncias individuais das variáveis originais em cada dimensão, procedeu-se à classificação dos casos em diferentes tipos. A plotagem dos escores dos indivíduos no plano fatorial, criado mediante procedimento citado, dá origem a uma “nuvem de casos”. A classificação desses casos, segundo a Distância Euclidiana elevada ao quadrado, facilita o agrupamento dos casos da nuvem original. Tais agrupamentos seguem o critério da máxima homogeneidade intragrupo; em outras palavras, baixa variância e máxima heterogeneidade intergrupos. Os procedimentos matemáticos, bem como a explicação mais detalhada dos modelos de iteração encontram-se em Escofier e Pages (2008Escofier, B., & Pagès, J. (2008). Analyses factorielles simples et multiples: objectifs, méthodes et interprétation. Dunod.). A seguir é apresentada a figurada sumarização das variáveis originais nos grupos temáticos da AFM.

Figura 2
Agrupamento temático das variáveis da AFM segundo a característica discriminatória das variáveis originais e variância explicada de acordo com as duas dimensões principais consideradas

Utilizando-se da chave interpretativa demonstrada no Quadro 1, é possível fazer a leitura integrada da tipologia formada pela ótica dos grupos temáticos de variáveis da AFM. Tais grupos nada mais são que a classificação das variáveis originais em grupos interpretativos próprios da área de estudos em questão (Abdi, Williams, & Valentin, 2013Abdi, H., Williams, L. J., & Valentin, D. (2013). Multiple factor analysis: principal component analysis for multitable and multiblock data sets. Wiley Interdisciplinary reviews: computational statistics, 5(2), 149-179. https://doi.org/10.1002/wics.1246
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). Por esse procedimento, foram obtidos os tipos que classificaram os trabalhadores solidários segundo as variáveis originais da pesquisa amostral, por meio dos critérios analíticos explicados acima.

CARACTERIZAÇÃO DOS TRABALHADORES SOLIDÁRIOS SEGUNDO OS TIPOS ELABORADOS

Após a elaboração dos clusters da AFM com as variáveis selecionadas, foram identificadas aquelas que apresentaram maior peso para discriminar subgrupos dentro do conjunto original de trabalhadores selecionados na pesquisa amostral. Essa identificação levou a três tipos, que podem ser descritos com algum nível de alteridade no campo da economia solidária. A distribuição dos 2.895 sócios entre os três tipos elaborados resultou em 1.605 no tipo 1, 264 no tipo 2 e 1.026 no tipo 3.

Como as variáveis relacionadas a moradia, sexo e estado civil, seguidas por aquelas que descreveram ocupação, trabalho e renda, tiveram maior contribuição na explicação das observações (Figura 2), terão mais peso comparativo entre os tipos 1, 2 e 3. Sucessivamente, as variáveis nos grupos subsequentes formalizados na AFM explicaram aspectos menos marcantes na discriminação tipológica dos casos.

Tipo 1 - predominam homens (69,6%), majoritariamente na faixa etária de 41 a 60 anos (85,1%), há menor proporção de jovens entre os tipos (7,3%). A população negra tem maior representação (58,8%) e, em seguida, a branca (38,9%). Casados representam mais de 80%, assim como católicos (84,6%). A maioria reside no espaço rural, com presença significativa na região Nordeste (47,5%), seguida da região Sul (20,8%). A categoria mais expressiva é a de agricultor familiar (71,3%), seguida da categoria de assentados (22,3); a agricultura e a pecuária são as ocupações mais destacadas. A administração da residência está centrada no casal (46%) e no respondente da pesquisa (32,3%). Este agrupamento expressa a versão rural da economia solidária, com preponderância do trabalho masculino, o que sugere a persistência da invisibilidade do trabalho das mulheres nos espaços rurais. O percentual dos que dominam a leitura e a escrita é de 56%, ao passo que, em um percentual significativo de 43,2%, estão os que não leem nem escrevem, embora 87,6% tenham frequentado a escola em algum momento. Entre os escolarizados, o nível com maior alcance é o fundamental, com 52%, seguido do ensino médio, com 20,2%. Este é o tipo com maior percentual de participação social e o que mais pretende ampliar suas atividades no EES (49,7%). Por suas características - pessoais, sociais e econômicas -, foi nomeado agricultor familiar.

Tipo 2 - agrupamento com presença mais equilibrada entre homens (51,5%) e mulheres (48,5%) e uma distribuição quase equânime entre o rural e o urbano, em termos de residência. É característico da região Norte e Nordeste (83,3%), com presença pouco observada nas demais regiões. A faixa etária predominante é de 20 a 50 anos (61%). O percentual dos que se autodeclaram católicos é de 62,9%. Apresenta prevalência de negros e pardos (71,3%) e conta com a maior proporção de indígenas entre os tipos elaborados (9,5%). Esse tipo apresenta a maior proporção de pessoas que se identificam como povos ou comunidades tradicionais, como pescadores, indígenas, ribeirinhos e quilombolas, perfazendo 77,4%. A maioria é casada, e as ocupações mais expressivas incluem agricultores, artesãos, autônomos e assentados. Em relação à escolarização, possui o maior percentual de pessoas que não leem e/ou escrevem (15,2%) e dos que apresentam dificuldades nesse quesito (38,6%), totalizando 53,8% de pessoas não proficientes na linguagem escrita. Também se destaca pelo maior percentual de pessoas que nunca frequentaram a escola (10,6%), com predominância do ensino fundamental para 7,1%. É o tipo que apresenta maior percentual de responsáveis pela administração da residência (38,6%), seguidos por casal (26,5%). Embora apresente participação social relativamente menor (35,2%), 27,3% afirmam ter a intenção de, no futuro, ampliar suas atividades no EES. Dadas as suas características - pessoais, sociais e econômicas -, foi nomeado povos e comunidades tradicionais.

Tipo 3 - agrupamento com predomínio de mulheres (68,7%) e maior proporção de domicílios nos espaços urbanos (80,3%). Embora apresente percentual de 50% de casados, é o tipo com maior percentual de solteiros (34,6%) e divorciados (8,4%). Também é aquele que agrega a maior proporção de jovens entre 20 e 30 anos (18,8%) e possui menor percentual de pessoas na faixa etária de 51-60 anos (17,9%). Seu perfil racial é semelhante ao do tipo 1, com 59,1% de negros e pardos e 37,9% de brancos. Regionalmente, tem presença mais significativa no Nordeste (31,4%), mas sua distribuição entre as demais regiões é mais uniforme. Em termos de ocupações, apresenta maior diversidade, com destaque para maior representação dos artesãos (27,7%) e, em seguida, de catadores (13,8%), agricultores familiares (13,6%), trabalhadores autônomos (11,6%), técnicos profissionais (7,2%). No âmbito da educação, é o tipo que apresenta a maior taxa de alfabetização formal (81,3%). Também nesse grupo, observam-se os percentuais mais expressivos com relação a ensino médio (49,1%), graduação (24,8%) e pós-graduação lato sensu (6,2%), contrastando notadamente dos demais tipos nesse aspecto. No quesito “administração da casa”, também apresenta maior diversidade, com 25% dos respondentes assumindo essa tarefa, seguidos pelo casal (20%) e pelo cônjuge (20%). Outro aspecto que difere em relação aos demais tipos diz respeito à participação social, visto que somente 15% respondem afirmativamente, embora 46% afirmem ter a intenção de aumentar suas atividades no EES. Pelas características desse tipo - pessoais, sociais e econômicas -, foi nomeado trabalhadoras associadas urbanas.

DIVERSIDADE DE EXPERIÊNCIAS E DEMANDAS NA ECONOMIA SOLIDÁRIA

O agrupamento da agricultura familiar (tipo 1) traduz o domínio dos homens na produção e comercialização e, ainda, a pouca visibilidade do trabalho das mulheres rurais, além da presença incipiente da juventude. A face rural da economia solidária é a mais publicizada, uma vez que foram os empreendimentos solidários do campo que continuaram recebendo algum apoio público, mesmo com o desmonte das políticas sociais nos últimos quatro anos. O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa Aquisição de Alimentos (PAA), renomeado como Programa Alimenta Brasil, em 2021, tiveram continuidade. As organizações de representação da agricultura familiar pressionaram pela sua execução devido ao papel desempenhado pelos programas no acesso a mercados.

A Secretaria de Agricultura Familiar (SAF), do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), seguiu com as políticas direcionadas ao cooperativismo rural para enfrentar o problema da operacionalização das compras governamentais e diversificar os canais de comercialização. As exigências para participar dos programas de compras governamentais favoreceram a expansão dos formatos associativos da agricultura familiar, promovendo uma maior organização coletiva, conforme demonstrado pela pesquisa amostral da Senaes (2013). Esta revelou que, no ano anterior ao levantamento realizado, 40,7% dos sócios comercializaram no EES. Reforçando as demandas de mercado, a comercialização (51,8%) e, em seguida, o consumo (21,1%) são as principais atividades econômicas desse subconjunto.

O acesso a mercados continua representando um grande gargalo para a agricultura familiar, principalmente nas regiões Norte e Nordeste. Diante disso, o estímulo da política pública à organização coletiva é fundamental para ampliar escala, reduzir os custos de transação e aumentar os ganhos de quem produz (Anjos et al., 2022Anjos, E., Rocha, A. G. P., & Silva, D. O. (2022). O cooperativismo como estratégia de fortalecimento da agricultura familiar na Bahia. Desenvolvimento Regional em debate, 12(2), 8-31. https://www.periodicos.unc.br/index.php/drd/article/view/3724
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). Ainda assim, é possível constatar que ampliar a participação desse segmento nos empreendimentos consiste em outro grande desafio, uma vez que o Censo Agropecuário 2017, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2019Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (2019). Censo Agropecuário 2017: resultados definitivos. https://censoagro2017.ibge.gov.br/resultados-censo-agro-2017/resultados-definitivos.html
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), revelou que, dos 3.897.408 estabelecimentos familiares no Brasil, somente 40,1% estão vinculados a alguma organização associativa. Ainda que o tipo 1 seja aquele que apresenta maior participação social, a economia solidária tem um amplo campo para fortalecer a comercialização nos espaços rurais que concentram um grande contingente dos mais vulneráveis e com sérias dificuldades para criar perspectiva de um futuro alvissareiro à permanência da juventude rural.

A importância da renda oriunda dos EES para o tipo 1 é um indicador da relevância das políticas nesse campo, com potencial de ser ampliada, uma vez que 34,6% afirmam que é a fonte principal dos seus rendimentos, o maior percentual entre os tipos identificados. Outros 31,2% têm neste rendimento uma complementação a outras fontes de renda. Com o ressurgimento do ministério específico para a agricultura familiar no atual governo Lula, expandir a assistência técnica, o crédito e o financiamento poderá ser uma estratégia alvissareira para ampliar a produção de alimentos, conforme defendem representantes do cooperativismo solidário, como a União das Cooperativas Solidárias (Unicopas). No entanto, será fundamental desenvolver políticas que valorizem o trabalho feminino, pois, ainda que as experiências de geração de trabalho e renda da economia solidária sejam apontadas como espaços de protagonismo feminino, repercutindo na autonomia financeira (Cintrão & Siliprandi, 2011Cintrão, R., & Siliprandi, E.(2011). O progresso das mulheres rurais. In L. L. Barsted, & J. Pitanguy (Orgs.), O Progresso das Mulheres no Brasil 2003-2010 (pp. 186-230). ONU Mulheres.), as mulheres rurais não assumiram lugar de destaque no tipo que melhor caracteriza o universo rural dos EES.

Hora et al. (2021Hora, K., Nobre, M., & Butto, A. (2021, maio). As mulheres no Censo Agropecuário 2017. São Friedrich Erbert Stiftung. https://www.embrapa.br/documents/1355154/69822227/HORA%2C+NOBRE+E+BUTTO+CENSO+2017.pdf f391dda1-c8f8-6e51-117f-f221042e5a0e
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) ponderam que, apesar da importante contribuição das mulheres na agricultura familiar, seu trabalho ainda apresenta pouca visibilidade e ínfimo reconhecimento devido à desigualdade nas relações de gênero. Essa abordagem é reforçada pelos dados do Censo Agropecuário 2017 (IBGE, 2019Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (2019). Censo Agropecuário 2017: resultados definitivos. https://censoagro2017.ibge.gov.br/resultados-censo-agro-2017/resultados-definitivos.html
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), que apontam baixo percentual de mulheres produtoras rurais nos estabelecimentos familiares. Estes estabelecimentos são dirigidos majoritariamente por homens (80%), e, mesmo entre os que estão vinculados a algum formato associativo, as mulheres também são minoria, pois representam 19,7% da totalidade registrada no Brasil. Esse cenário demonstra o desafio de evidenciar e reconhecer o trabalho das agricultoras familiares, que continuam desempenhando um papel essencial, especialmente no trabalho reprodutivo e em iniciativas solidárias. Como exemplo desse cenário, no tipo 1 foram representadas somente por 30%.

O tipo 2 retrata um cenário histórico de desigualdades que impõe ações transversais a fim de reparar as mazelas enfrentadas por esse agrupamento. A implantação do Programa Brasil Quilombola, por exemplo, apesar de ter alcançado avanços no reconhecimento das demandas das comunidades quilombolas certificadas, não conseguiu assegurar a titularização da terra na mesma proporção (Arruti, 2009Arruti, J. M. (2009). Políticas públicas para quilombos: terra, saúde e educação. In M. Paula, & R. Heringer (Org.), Caminhos convergentes: estado e sociedade na superação das desigualdades raciais no Brasil (pp. 75-111). HBS.). O perfil desses trabalhadores demonstra que não terão êxito permanente as políticas oriundas da Senaes voltadas a ampliar os espaços de comercialização e estímulo ao crédito, na medida em que, sem o diálogo com outras instâncias, não é possível enfrentar os problemas estruturais, como o baixo nível educacional e a falta de infraestrutura das localidades. A atuação conjunta entre Ministérios dos Povos Originários, da Igualdade Racial e de Direitos Humanos pode fortalecer as demandas institucionalmente e fortalecer a mobilização para a criação de um marco legal que contemple as especificidades e vulnerabilidade dos segmentos inseridos nos EES.

A principal atividade econômica desse tipo é a comercialização (59,5%), o percentual mais expressivo observado na tipologia. No entanto, para além de contribuir com os circuitos curtos de comercialização, o tipo 2 (59,5%) - seguido do tipo 3 (58,4%) e do tipo 1 (55,1%) - apresentou o maior percentual de trabalhadores que não exerceram atividades econômicas fora do EES em 2012, ano anterior à pesquisa amostral. Essas estatísticas demonstram que, à época, os EES constituíam-se a única atividade econômica de um percentual expressivo dentre esses trabalhadores. Esse dado torna-se mais relevante com a constatação de que, na vida laboral dos trabalhadores que compuseram a amostra, 34,1% do tipo 2, 25,5% do tipo 3 e 15% do tipo 1 relataram terem passado por períodos prolongados sem trabalho ou renda própria. Ademais, em 25% dos domicílios nos tipos 1 e 2, residem, pelo menos, duas pessoas que dependem da renda desses trabalhadores.

Apesar de a coletividade ser uma característica dos grupos que representam o tipo 2, os percentuais pouco expressivos de participação social e de planos futuros por parte dos trabalhadores desse subconjunto no EES apontam a necessidade de fortalecer a organização associativa com finalidade econômica. Os vínculos construídos pelas relações comunitárias parecem ter impacto relativo nos resultados econômicos dos povos, dado que 23,9% dependem principalmente da renda obtida no empreendimento para a sua sobrevivência. Para 28,4%, os rendimentos são complementares a outras fontes. Apesar disso, trata-se do tipo com o maior percentual de pessoas motivadas a permanecer no EES: 80,7% contra 65,4% e 71% dos tipos 1 e 2 respectivamente.

O reduzido nível de escolarização identificado pela AFM e a presença mais significativa de indígenas evidenciam, sob a perspectiva do presente estudo, a necessidade de qualificar as demandas e contextos dos subgrupos que compõem este agrupamento. Embora os quilombolas, os indígenas e outros povos tradicionais tenham a titularidade da terra como uma das principais reivindicações (Arruti, 2009Arruti, J. M. (2009). Políticas públicas para quilombos: terra, saúde e educação. In M. Paula, & R. Heringer (Org.), Caminhos convergentes: estado e sociedade na superação das desigualdades raciais no Brasil (pp. 75-111). HBS.), os indígenas em aldeias, os quilombolas nos espaços urbanos, os pescadores artesanais demandam políticas específicas que dialoguem com órgãos diversos do governo. Essa multiplicidade impõe desafios ao marco legal da economia solidária, por um lado, mas, por outro, sinaliza a transversalidade da política como estratégia para suprir necessidades diversas.

Os resultados da tipologia sugerem ações públicas que poderiam qualificar o tipo 1 e, sobretudo, o tipo 2 com a valorização da produção da sociobiodiversidade. Tais ações podem ser formuladas pelo serviço de assistência técnica, o qual, além de uma orientação específica para o manejo agrícola e o processo de comercialização, poderia catalogar a diversidade culinária desses dois agrupamentos para a criação de novos cardápios, adequados à alimentação escolar. O desenvolvimento de novos produtos e formas de beneficiamento, por meio da sociobiodiversidade, promoveria a valorização de práticas ancestrais, ao mesmo tempo que, com o fomento da ecogastronomia2 2 Trata-se de um conceito que incorpora a preservação da biodiversidade, o estímulo à alimentação saudável com a valorização do alimento e do seu produtor. , ampliaria a participação da agricultura familiar, dos povos e comunidades tradicionais nos programas de compras públicas.

Ter neste estudo um tipo em que as mulheres predominam nos espaços urbanos dimensiona os desafios para assegurar o trabalho com proteção social. Isto porque, diferentemente das políticas direcionadas à agropecuária, as ações que estavam em curso para fortalecer o trabalho associado no âmbito da Senaes já enfrentavam uma redução orçamentária significativa no governo de Dilma Roussef (Silva, 2020Silva. S. P. (2020). Crise de paradigma? A política nacional de economia solidária no PPA-2016/2019. In A. R. Souza, I. A. Lussi, M. Zanin (Org.), Engajamento e reflexão transversal em economia solidária(pp. 179-190). EdUFSCar/ABPES.). São as mulheres que vivenciam mais desvantagens no mercado de trabalho, sobretudo as negras, como foi demonstrado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese, 2022Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. (2022). As mulheres são fortemente afetadas pela deterioração do mercado de trabalho em 2020. DIEESE.) com os dados da PNAD de 2021. No terceiro trimestre de 2021, a taxa de subutilização das mulheres era de 33,3%, a dos homens, 20,9%. Já a taxa de desocupação entre as mulheres negras no mesmo período era de 18,9%, e a referente a não negras, 12,5%. Esses dados explicitam a árdua luta das trabalhadoras associadas em uma modalidade de trabalho que ainda está muito distante de assegurar os direitos laborais e alterar as assimetrias que historicamente compõem o mundo do trabalho na realidade brasileira, principalmente no que se refere às questões de gênero e raça.

Em pesquisas anteriores, demonstrou-se que os empreendimentos solidários representam o trabalho remunerado principal em maior proporção para as mulheres negras (Anjos, 2020Anjos, E. (2020). A interseção das desigualdades de gênero e raça no campo da economia solidária. In A. R. Souza, A. R., I. A. O. Lussi, & M. Zanin(Org.), Engajamento e reflexão transversal em economia solidária (pp. 37-47). EdUFSCar /ABPES.). Neste estudo, o tipo 3 explicita a diversidade das formas de ocupação da economia solidária, com presença singular no meio urbano e com um elevado grau de escolarização quando comparado aos demais tipos. O perfil etário mais jovem e escolarizado pode explicar por que esse tipo, dentre os elaborados, apresentou menor percentual de atividade econômica fora do EES amostral no ano anterior ao levantamento, perfazendo 28,4%. Já os tipos 1 e 2 apresentaram 38,1% e 32,2% respectivamente. Tal dado reforça o papel dos EES como uma alternativa de trabalho aos seus associados, de modo que é nesse tipo que encontramos o percentual mais expressivo daqueles que apresentam o trabalho remunerado como a principal atividade econômica (37%). Os tipos 1 e 2 apontam 6,4% e 5,3%, em retrospecto. Ademais, dos 492 trabalhadores da pesquisa amostral que apontaram o trabalho remunerado no EES como sua principal atividade econômica, 81,5% afirmaram que a frequência com que o trabalho é exercido é permanente, enquanto 92,5% deles têm a remuneração assegurada pelo próprio EES.

As análises relacionadas ao tipo 3 reafirmam os argumentos de Kraychete (2021Kraychete, G. (2021). Economia dos setores populares: o trabalho para além da norma salarial. Oikos.) acerca das condições mais adversas dos empreendimentos associativos urbanos comparativamente aos da agricultura familiar. Segundo o autor, os trabalhadores urbanos, em geral, não dispõem de meios e objetos de trabalho e de uma produção prévia que sirva de base para um empreendimento. Desse modo, há maior urgência na obtenção de resultados positivos, sobretudo quando não se possui outra fonte de renda. O predomínio do tipo 3 nos espaços urbanos expressa as formas de geração de trabalho e renda adotadas pelos setores populares. Embora represente uma face minoritária no âmbito da economia solidária, talvez esse segmento possua maior possibilidade de ampliação dessas iniciativas em virtude do expressivo número de trabalhadores voltados ao empreendedorismo. A capacidade de absorver um maior contingente de assalariados formais é limitada pelo avanço tecnológico, resultando em políticas descontínuas de estímulo ao empreendedorismo individual (Leite & Lindôso, 2021Leite, M., & Lindôso, R. O. (2021). Empreendedorismo, neoliberalismo e pandemia: o descaramento de uma ideologia. Contemporânea, 11(3), 791-820. https://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/1071
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). Reside nesse segmento uma oportunidade de fortalecer as políticas de economia solidária, as quais podem promover o empreendedorismo associativo entre os segmentos que compõem a economia popular.

Kraychete (2021Bolfarine, H., & Bussab. W. O. (2005). Elementos de amostragem. Editora Blucher.) identificou que, nos espaços urbanos, os participantes de empreendimentos associativos não possuem trabalho assalariado regular; em geral, estão vinculados também a empreendimentos individuais ou familiares, o que constitui uma característica típica dos setores populares. O Portal do Microempreendedor registrava, em maio de 2023Portal do Microempreendedor. (2023). Total de empresas optantes no SIMEI em maio/2023, por mês/dia. https://www8.receita.fazenda.gov.br/simplesnacional/aplicacoes/atbhe/estatisticassinac.app/
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, 15.161.694 trabalhadores inscritos como microempreendedor individual (MEI). Apesar dos milhões de inscritos, não é possível estimar com precisão o percentual dos que cumprem efetivamente a contribuição mensal necessária para o acesso aos benefícios de proteção social. Além disso, segundo o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), 29% dos MEIs encerram suas atividades com menos de cinco anos.

Não obstante, o MEI vem sendo utilizado pelos trabalhadores dos empreendimentos associativos da economia solidária como via de acesso à proteção social. Esse meio, porém, não proporciona seguridade social pelo vínculo coletivo constituído, na medida em que o pagamento do tributo previdenciário fica sob responsabilidade individual de cada trabalhador. O contexto de privação enfrentado pelos segmentos inseridos na economia solidária, sobretudo nos espaços urbanos, contribui para dimensionar as dificuldades à seguridade social, principalmente para as trabalhadoras solidárias em idade reprodutiva que têm nesse campo sua principal fonte de rendimentos (Anjos et al., 2019Anjos, E., Rocha, A. G., Cerruci, I., & Silva, F. S. (2019). A indissociabilidade das categorias gênero e raça nas experiências de trabalho na economia solidária. Otra Economia Revista Latinoamericana de Economía Social y Solidaria, 12(22), 106-119. https://www.revistaotraeconomia.org/index.php/otraeconomia/article/view/14830.
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).

Assegurar a proteção social às trabalhadoras associadas urbanas não integradas à seguridade, assim como aos demais trabalhadores solidários, demanda políticas voltadas a um sistema que os integrem aos direitos previdenciários por meio da inserção associativa. Políticas que fortalecem os empreendimentos solidários, como espaços coletivos de comercialização, são primordiais para tornar realidade a proteção social de cada associado em empreendimentos com sustentabilidade nos aspectos relacionados aos recursos humanos que integram seus quadros.

Além dos contextos mais focalizados em cada tipo analisado, constatam-se necessidades similares, porém, com intensidade variada, sugerindo que as políticas já implementadas apresentaram impactos distintos em diversos beneficiados. Cabe ressaltar aquelas que apresentaram percentuais mais elevados em virtude de uma demanda muito importante para os trabalhadores. Políticas de apoio do governo são a reivindicação mais proeminente em todos os tipos, alcançando 97,6% no tipo 3. Também este último apontou maior capacitação técnica e gerencial, com 94,6%, seguido do tipo 2, com 93,2%, e do tipo 1, com 82%.

Ao considerar o nível formal de educação dos associados, nota-se o desafio de qualificar a gestão dos empreendimentos para que alcancem maior eficiência produtiva, ampliem a comercialização e aumentem seus rendimentos - três outras demandas que se destacam entre os agrupamentos. Ademais, os resultados apontam que urge maior participação nas decisões dos EES em todos os subconjuntos, com percentuais mais expressivos nos tipos 2 e 3.

Os percentuais mais expressivos do tipo 2 - povos e comunidades tradicionais - divergiram, em certa medida, nos quesitos “sede própria” e “registro formal do EES”, com 86% e 62,9% respectivamente, enquanto os demais apresentaram, em média, 60% e 37%. Esses dados sugerem uma maior vulnerabilidade dos segmentos que compuseram esse tipo, indicando a necessidade de os formuladores de políticas e a sociedade reconhecerem os problemas estruturais que enfrentam. Além disso, apontam que políticas pontuais não serão suficientes para debelar conflitos fundiários e promover a valorização da diversidade cultural que caracteriza os modos de vida desses povos e comunidades.

CONCLUSÃO

Este estudo tipológico baseado nos atributos pessoais e nas atividades econômicas dos trabalhadores da economia solidária explicitou os aspectos comuns e as dissimilitudes nos tipos nomeados “agricultores familiares” (tipo 1), “povos e comunidades tradicionais” (tipo 2) e “trabalhadoras associadas urbanas” (tipo 3). No subconjunto 1, destacou-se o domínio masculino nas experiências da agricultura familiar, com participação ainda reduzida das mulheres rurais e da juventude. Ainda que a participação social e a motivação para ampliar sua atuação no EES tenham se destacado em relação ao demais tipos, depreende-se a necessidade de formação, para além da capacitação gerencial, que possibilite o reconhecimento do trabalho feminino rural e maior dinamismo para envolver os jovens. Como a população inserida na nomenclatura “agricultura familiar é expressiva, os empreendimentos desse subconjunto apresentam tendência de crescimento, desde que as estratégias de fomento à organização coletiva diversifiquem os canais de comercialização e qualifiquem a gestão coletiva.

O tipo 2 tem especial relevância por agrupar os povos e comunidades tradicionais, diferindo-se dos demais agrupamentos nomeados “agricultores familiares”. Além de revelar um perfil de gênero mais equitativo entre homens e mulheres, demonstrou as profundas desigualdades que persistem nas regiões do país ao representar o agrupamento com maior vulnerabilidade, presente majoritariamente nas regiões Norte e Nordeste. Caracteriza-se pelos menores níveis de escolarização e registra os períodos mais longos de desemprego ou falta de renda ao longo da trajetória ocupacional. Adicionalmente, os integrantes desse tipo apresentam as necessidades mais acentuadas de formalização dos EES e de possuir sede própria.

O tipo 3, majoritariamente formado por mulheres das áreas urbanas, tem papel relevante como fonte principal de renda para os trabalhadores. Esse tipo permitiria aprofundar a questão dos direitos que devem ser assegurados pelo trabalho associado, considerando sua importância para a ocupação feminina, sobretudo as mulheres negras, cujos rendimentos são mais baixos e cuja inserção no trabalho formal ocorre de forma intermitente. Esse agrupamento possui um conjunto mais jovem, com nível mais elevado de escolarização. Tal dado sugere que o perfil das trabalhadoras e, em menor percentual, dos trabalhadores, também está mudando. Não se pode afirmar que as iniciativas de geração de trabalho e renda solidárias restringem-se àqueles que detêm baixa qualificação. No entanto, ainda há um longo caminho a percorrer para garantir a esse subconjunto os direitos laborais que não foram assegurados com a aprovação da lei do cooperativismo do trabalho.

Considerando a importância da economia solidária na promoção do desenvolvimento socioeconômico em áreas remotas do Brasil, caracterizadas por diversas formas de desigualdade, não bastará aos atuais gestores da Senaes a simples implementação de políticas focadas nos empreendimentos. Se não houver uma transversalidade efetiva da política, não haverá condições de acessar mercados com mais dinamismo e gerar um volume de resultados econômicos que garantam a proteção social e condições de vida mais digna, com autonomia e reconhecimento daqueles que resistem mantendo a diversidade cultural e, ao mesmo tempo, partilhando demandas comuns que podem delinear um país menos desigual e mais inclusivo.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos o apoio do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), as contribuições dos avaliadores e a equipe editorial do Cadernos EBAPE.BR.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    A Organização Internacional do Trabalho (OIT) define trabalho decente como aquele que remunera de forma adequada, executado em condições de liberdade, equidade e segurança, capaz de assegurar vida digna a todas as pessoas que o desenvolvem Ministério do Trabalho e Emprego (2006Ministério do Trabalho e Emprego. (2006). Agenda nacional do trabalho decente. https://acesso.mte.gov.br/data/files/FF8080812BCB2790012BD50168314818/pub_Agenda_Nacional_Trabalho.pdf
    https://acesso.mte.gov.br/data/files/FF8...
    ).
  • 2
    Trata-se de um conceito que incorpora a preservação da biodiversidade, o estímulo à alimentação saudável com a valorização do alimento e do seu produtor.
  • DISPONIBILIDADE DE DADOS

    Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo está disponível mediante solicitação à Secretaria Nacional de Economia Popular e Solidária (Senaes).

PARECERISTAS

  • 6
    Os dois revisores não autorizaram a divulgação de suas identidades.
  • RELATÓRIO DE REVISÃO POR PARES

    O relatório de revisão por pares está disponível neste link: https://periodicos.fgv.br/cadernosebape/article/view/91212/85730

Editado por

Hélio Arthur Reis Irigaray (Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro / RJ - Brasil). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9580-7859
Fabricio Stocker (Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro / RJ - Brasil). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6340-9127

Disponibilidade de dados

Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo está disponível mediante solicitação à Secretaria Nacional de Economia Popular e Solidária (Senaes).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2023
  • Aceito
    19 Jul 2023
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