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Uma economia para a sociedade: terceiro setor, economia social e economia solidária

Una economía para la sociedad: tercer sector, economía social y economía solidaria

Laville, J.-L. . (2023). Uma economia para a sociedade: terceiro setor, economia social e economia solidária . Ateliê de Humanidades Editorial. ISBN: 978-65-86972-18-4.

Palavras-chave:
Economia social; Economia solidária; Associacionismo; Democracia; Política

Palabras clave:
Economía social; Economía solidaria; Asociacionismo; Democracia; Política

O lançamento deste livro no Brasil, em 2023, é uma adaptação de A economia social e solidária: práticas, teorias e debates, edição portuguesa publicada em 2018 pela editora Almedina/CES. O propósito deste livro é analisar, por meio de uma contextualização histórica ampla, as dinâmicas democráticas relacionadas às economias social, solidária e ao terceiro setor, sob uma visão crítica que leva à reflexão, em termos teóricos e práticos, acerca do associativismo na realidade brasileira, latino-americana e europeia. Laville (2023Laville, J.-L. (2023). Uma economia para a sociedade: terceiro setor, economia social e economia solidária. Ateliê de Humanidades.) propõe recuperar o associacionismo com base em suas práticas sociais, descartando as várias interpretações depreciativas, por meio da problematização das relações entre democracia e economia. O livro está organizado em três grandes partes, além da introdução e da conclusão: na primeira, é examinada a história do associativismo; na segunda, a sua atualidade; na terceira, a análise concentra-se nas concepções que tornam o conjunto do fato associativo um objeto de estudo, procurando delimitá-lo.

Para Laville (2023Laville, J.-L. (2023). Uma economia para a sociedade: terceiro setor, economia social e economia solidária. Ateliê de Humanidades., p. 35) “[...] o que chama a atenção agora é a fragilidade preocupante da democracia frente ao caráter ilimitado da economia” no contexto das duas primeiras décadas do séc. XXI. Isso o faz refletir sobre as formas que o fenômeno do associacionismo tomou sob as designações de “economia social” e “economia solidária”. O contexto das grandes desigualdades no mundo, que persiste por séculos, leva-o a examinar o lugar que ocupa a economia dentro da sociedade, seja, por um lado, por meio da centralização do mercado (liberalismo e neoliberalismo), seja, por outro lado, por meio da centralização do Estado (socialdemocracia) com intervenções no mercado e na sociedade. Para Laville (2023Laville, J.-L. (2023). Uma economia para a sociedade: terceiro setor, economia social e economia solidária. Ateliê de Humanidades., p. 40), é necessário romper com esse determinismo econômico tanto do Estado quando do mercado contra a sociedade, pois “[...] uma sociedade que não seja portadora de esperança na emancipação individual e coletiva não suscita o menor entusiasmo”. Nesse caso, o autor propõe reapropriar-se da história das associações e explicar as suas dinâmicas atuais, aos moldes propostos por Albert O. Hirschman, sob a perspectiva de uma economia política para a sociedade.

Laville (2023Laville, J.-L. (2023). Uma economia para a sociedade: terceiro setor, economia social e economia solidária. Ateliê de Humanidades.) analisa o político sob a ótica dos escritos de J. Habermas (2003aHabermas, J. (2003a). Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Tempo Brasileiro., 2003bHabermas, J. (2003b). Direito e democracia: entre facticidade e validade (Vol. 2). Tempo Brasileiro., 2012Habermas, J. (2012). Teoria do agir comunicativo (Vol. 2). Editora WMF Martins Fontes.) a respeito das esferas públicas e a invenção democrática, tendo como ponto de partida o exercício dos direitos de cidadania, especialmente aqueles relacionados à liberdade e à igualdade. Ele avalia que a democracia é o resultado da busca de um equilíbrio entre o poder administrativo e o poder comunicativo. Assim, Laville (2023Habermas, J. (2003a). Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Tempo Brasileiro., p. 46) considera que “[...] existe um poder de agir em conjunto”, mesmo que nem toda associação seja estruturada por princípios democráticos modernos.

Para Laville (2023Laville, J.-L. (2023). Uma economia para a sociedade: terceiro setor, economia social e economia solidária. Ateliê de Humanidades.), a Economia Social e Solidária (ESS) deve ser explicada com base em um entendimento amplo do fenômeno associacionista enquanto um “fato da sociedade”. O autor reconhece a diversidade dos tipos de associação, bem como o fato de que nem todas são democráticas. Contudo, analisa que “[...] as associações representam na sua gênese uma dimensão do espaço público proveniente da sociedade civil e, ao mesmo tempo, uma modalidade de atividade econômica não submetida à propriedade do capital” (Laville, 2023Habermas, J. (2003a). Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Tempo Brasileiro., p. 53). Sob essa perspectiva, procura analisar as relações entre as associações e o projeto democrático e solidário na confluência do direito com a expressão coletiva “autogoverno dos cidadãos associados”.

Uma das iniciativas de emancipação do associacionismo identificadas por Laville (2023Laville, J.-L. (2023). Uma economia para a sociedade: terceiro setor, economia social e economia solidária. Ateliê de Humanidades.) está na economia popular, a qual não se interpreta com base nas categorias da economia mercantil, mas por suas próprias lógicas, como procuram fazer os intelectuais da América do Sul, a exemplo de J.-L. Coraggio. Já na América do Norte, Laville (2023Habermas, J. (2003a). Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Tempo Brasileiro.) identifica que a economia popular está voltada a reivindicar o exercício da cidadania, fundamentando-se em Tocqueville, que considerava necessária a formação de associações para a realização da democracia igualitária.

Após relato de vários casos de movimentos de emancipação de mulheres e de trabalhadores nos séculos XIX e XX, Laville (2023Laville, J.-L. (2023). Uma economia para a sociedade: terceiro setor, economia social e economia solidária. Ateliê de Humanidades., p. 95) reconhece que a formação de esferas públicas possibilitou mudanças efetivas aos movimentos, bem como é relevante considerar que “[...] a especificidade irredutível do associacionismo consiste em provocar o encontro com a democracia”.

Fundamentado em autores latino-americanos como Mariátegui e Aníbal Quijano, Laville (2023Laville, J.-L. (2023). Uma economia para a sociedade: terceiro setor, economia social e economia solidária. Ateliê de Humanidades.) argumenta que as economias alternativas neste continente foram invisibilizadas. Nesse contexto, o autor considera que a economia popular é sinônimo de estagnação, situada em um setor tradicional em oposição a um setor moderno, voltado para acumulação capitalista, o que a configura como um “exército de reserva”. Por isso, na avaliação dele, a investida liberal contra as associações auto-organizadas visa a uma “domesticação generalizada” dos pobres, com base no discurso que invoca as liberdades econômicas e políticas para que “todos” participem da mesma conquista democrática.

Nessa perspectiva, Laville (2023Laville, J.-L. (2023). Uma economia para a sociedade: terceiro setor, economia social e economia solidária. Ateliê de Humanidades., p. 143) argumenta que o capitalismo do século XX e, mais recentemente, o novo espírito do capitalismo (Boltanski & Chiapello, 2009Boltanski, L., & Chiapello, É. (2009). O novo espírito do capitalismo. Editora WMF Martins Fontes.) têm induzido cada vez mais as pessoas ao individualismo e ao “esquecimento do bem comum”. Contudo, para ele, os movimentos antiautoritários e ecológicos colocaram em pauta não mais apenas a repartição das riquezas, mas também os direitos políticos de participação no poder. O movimento feminista colocou em causa as hierarquias e o patriarcado. Tais movimentos caracterizam-se pela ação política e não como alternativas ao poder. A motivação está na construção de um modo de vida que rompa com o “sistema”. Desse modo, Laville (2023Habermas, J. (2003a). Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Tempo Brasileiro., p. 173), por um lado, explora a visibilidade que a economia solidária alcançou nos últimos tempos, especificamente no Brasil, com a criação de duas redes de apoio, a Unitrabalho e as Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (ITCPs). Por outro lado, Laville (2023Habermas, J. (2003a). Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Tempo Brasileiro., p. 180) identifica nos países escandinavos novas organizações e movimentos sociais conhecidos como “promotores de projetos” e que cumprem o papel de “co-construção dos serviços”. Essas organizações atuam na forma de associações e cooperativas independentes do Estado e do Mercado, “[...] visto que é a pertença comum que pode fornecer recursos para uma luta emancipadora”. Assim, Laville (2023Habermas, J. (2003a). Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Tempo Brasileiro., p. 315) delineia a economia solidária como “[...] a vontade de reinscrever a solidariedade democrática no coração mesmo da economia [...]”, por meio dos serviços de proximidade, comércio justo, finanças solidárias ou moedas sociais. Portanto, a economia solidária trouxe para o debate público a utilidade pública e o interesse coletivo, o bem comum. A referência a este último, segundo Laville (2023Habermas, J. (2003a). Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Tempo Brasileiro., p. 380), “abre uma outra pista heurística”, que orienta o associacionismo pelo bem comum, normalmente confundido com interesse mútuo ou com o interesse geral.

Laville (2023Laville, J.-L. (2023). Uma economia para a sociedade: terceiro setor, economia social e economia solidária. Ateliê de Humanidades., p. 337) considera que “[...] o que é determinante é o empenhamento pessoal em redes sociais mobilizadas em torno de um bem comum”. Apesar de considerar relevantes as formas jurídicas típicas da economia social, que garantem a igualdade entre os membros, conclui que elas são insuficientes para um funcionamento democrático. Para ele, há que se prestar atenção e utilizar meios de gestão que provoquem autorreflexividade. No meu entendimento, seriam meios de gestão social como temos tratado em nossos estudos no Brasil1 1 Ver as publicações de Cançado et al. (2015) e Campos e Pereira (2023). , especialmente na abordagem habermasiana, incluindo métodos participativos de diagnóstico2 2 Em relação a diagnóstico participativo, ver Pereira (2017) e de planejamento. Isto porque, na avaliação de Laville (2023Habermas, J. (2003a). Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Tempo Brasileiro., p. 339) “[...] o peso das tutelas públicas e a predominância do modelo da empresa privada acabarão por sufocá-las”. A saída é considerar que a força do associacionismo pode influenciar a ação pública, por meio das esferas públicas, como demonstra a tese de doutorado de Machado (2024Machado, J. de C. (2024). Esferas públicas sobre economia solidária no Brasil (Tese de doutorado). Universidade Federal de Lavras, Lavras, MG, Brasil. http://repositorio.ufla.br/jspui/handle/1/58834
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), que trata das esferas públicas sobre economia solidária no Brasil. Laville (2023, p. 343) reconhece a necessidade desse esforço: “[...] é essencial uma auto-organização da sociedade civil capaz de representar os atores da economia solidária e de os aproximar, ao mesmo tempo, de outras ações coletivas e dos movimentos sociais”. Assim, ele vislumbra o surgimento de uma política de espaço público que, na verdade, se configura conforme uma política deliberativa proposta por Habermas (2003bHabermas, J. (2003b). Direito e democracia: entre facticidade e validade (Vol. 2). Tempo Brasileiro.). Por isso, avalia, ao final, que a economia solidária coloca em prática a orientação segundo a qual a economia plural e a democracia plural se condicionam mutuamente.

Laville (2023Laville, J.-L. (2023). Uma economia para a sociedade: terceiro setor, economia social e economia solidária. Ateliê de Humanidades.) considera que a democracia participativa deve articular-se com as instâncias da democracia representativa e, esta, por sua vez, ser fortalecida por formas de democracia direta, mediante ações coletivas que procuram renovar o debate público e formar quadros deliberativos globais. Em tal contexto, é possível considerar a existência de uma democracia plural, assim como uma economia plural, as quais se complementam. Acrescento, aqui, que há, também, uma gestão plural, que intermedia a economia e a democracia. Assim, é preciso considerar as contraposições entre gestão estratégica e gestão social3 3 Ver a esse respeito o artigo de Pereira et al. (2023). , cujo paradigma seja comprometido com a emancipação social por meio da democracia deliberativa, como é o caso da gestão social no Brasil orientada pela abordagem habermasiana.

O desafio da ESS é, também, um desafio epistemológico, na medida em que se vai evidenciando uma racionalidade cooperativa autossuficiente e um diálogo entre pesquisadores e atores sociais que se opõem ao que Laville (2023Laville, J.-L. (2023). Uma economia para a sociedade: terceiro setor, economia social e economia solidária. Ateliê de Humanidades., p. 376) chama de “análises prisioneiras de preconceitos” e “reduzidas a uma leitura organizacional ou militante”. Desse modo, Laville (2023, p. 379) propõe que a economia social e solidária seja abordada em uma perspectiva de transformação social e de transição ecológica.

De grande relevância aos leitores brasileiros pelo contexto histórico apresentado e pelas análises críticas de conteúdo teórico que trazem as relações entre democracia e associativismo, esta obra evidencia as correlações de fragilidades e de potencialidades e aponta a necessidade de uma gestão da economia social e solidária, a qual entendo ser mais apropriada à gestão social.

REFERÊNCIAS

  • Boltanski, L., & Chiapello, É. (2009). O novo espírito do capitalismo Editora WMF Martins Fontes.
  • Campos, M. de S., & Pereira, J. R. (2023). Gestão social sob o crivo da linguagem do direito na mediação entre mundo-da-vida e sistema. Cadernos EBAPE.BR, 21(4), e2022-0143. https://doi.org/10.1590/1679-395120220143
  • Cançado, A. C., Pereira, J. R., & Tenório, G. (2015). Gestão social: epistemologia de um paradigma Editora CRV.
  • Habermas, J. (2003a). Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa Tempo Brasileiro.
  • Habermas, J. (2003b). Direito e democracia: entre facticidade e validade (Vol. 2). Tempo Brasileiro.
  • Habermas, J. (2012). Teoria do agir comunicativo (Vol. 2). Editora WMF Martins Fontes.
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  • Machado, J. de C. (2024). Esferas públicas sobre economia solidária no Brasil (Tese de doutorado). Universidade Federal de Lavras, Lavras, MG, Brasil. http://repositorio.ufla.br/jspui/handle/1/58834
    » http://repositorio.ufla.br/jspui/handle/1/58834
  • Pereira, J. R. (2017). Diagnóstico participativo: o método DRPE Editora Perito.
  • Pereira, J. R., Cançado, A. C., & Tenório, F. G. (2023). Gestão social como contraposição à gestão estratégica. Desenvolvimento Em Questão, 21(59), e13015. https://doi.org/10.21527/ 2237-6453.2023.59.13015
    » https://doi.org/10.21527/ 2237-6453.2023.59.13015
  • 1
    Ver as publicações de Cançado et al. (2015)Cançado, A. C., Pereira, J. R., & Tenório, G. (2015). Gestão social: epistemologia de um paradigma. Editora CRV. e Campos e Pereira (2023)Campos, M. de S., & Pereira, J. R. (2023). Gestão social sob o crivo da linguagem do direito na mediação entre mundo-da-vida e sistema. Cadernos EBAPE.BR, 21(4), e2022-0143. https://doi.org/10.1590/1679-395120220143.
  • 2
    Em relação a diagnóstico participativo, ver Pereira (2017)Pereira, J. R. (2017). Diagnóstico participativo: o método DRPE. Editora Perito.
  • 3
    Ver a esse respeito o artigo de Pereira et al. (2023Pereira, J. R., Cançado, A. C., & Tenório, F. G. (2023). Gestão social como contraposição à gestão estratégica. Desenvolvimento Em Questão, 21(59), e13015. https://doi.org/10.21527/ 2237-6453.2023.59.13015
    https://doi.org/10.21527/ 2237-6453.2023...
    ).
  • DISPONIBILIDADE DE DADOS

    Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo está disponível mediante solicitação ao autor correspondente.

Editado por

Hélio Arthur Reis Irigaray (Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro / RJ - Brasil). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9580-7859
Fabricio Stocker (Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro / RJ - Brasil). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6340-9127

Disponibilidade de dados

Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo está disponível mediante solicitação ao autor correspondente.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    22 Dez 2023
  • Aceito
    08 Jan 2024
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