Acessibilidade / Reportar erro
Este documento está relacionado com:

A dignidade do trabalho e a Economia Social em Portugal

La dignidad del trabajo y la economía social en Portugal

Resumo

O artigo tem como objetivo analisar sociologicamente como a economia social em Portugal estrutura as relações de trabalho. Definindo-se como centrada nas pessoas, e não no capital, a economia social reivindica um papel ativo na busca pela justiça social e pelo trabalho digno para todos, contribuindo para a democratização da economia. No entanto, a enorme diversidade de formas por meio das quais ela se apresenta exige uma análise mais detalhada das relações de trabalho em cada uma dessas formas, bem como uma atenção especial à diversidade dos contextos em que se desenvolveram. Por motivos pragmáticos, a análise se centra apenas nas organizações da economia social, e não nas da economia social e solidária, uma vez que, em relação às últimas, há muita informação, e elas representam um setor muito relevante na sociedade portuguesa, em razão de sua função, da capacidade de emprego e do dinamismo. A metodologia utilizada combina informações resultantes de estudos qualitativos com resultados de pesquisas com organizações. A conclusão revela um conjunto de dificuldades no reconhecimento de igual dignidade ao trabalho de associados e contratados. Isso se dá, de um lado, graças a um duplo processo de inclusão adversa das organizações na economia de mercado e sua institucionalização por meio de políticas de Estado; de outro, em razão de uma utilização excessiva e pouco dignificadora do trabalho assalariado no desempenho das tarefas das organizações, sem qualquer participação ou incentivo na sua gestão.

Palavras-chave:
Relações de trabalho; Estatutos de trabalho; Participação laboral; Economia social

Resumen

El artículo tiene como objetivo un análisis sociológico de la forma en que la economía social en Portugal estructura las relaciones laborales. Al definirse como una economía centrada en las personas y no en el capital, la economía social reclama un papel activo en la búsqueda de la justicia social y del trabajo digno para todos, contribuyendo a la democratización de la economía. Sin embargo, la enorme diversidad de formas a través de las cuales se presenta requiere un análisis más detallado de las relaciones laborales dentro de cada una de estas formas y también una atención particular a la diversidad de contextos en los que se desarrollaron. Por razones pragmáticas, el análisis se centra solo en las organizaciones de la economía social y no en las de la economía social y solidaria, ya que hay mucha información al respecto, y representan un sector muy relevante en la sociedad portuguesa, debido a su función, capacidad de empleo y dinamismo. La metodología utilizada combina información proveniente de estudios cualitativos con resultados de encuestas realizadas a organizaciones. La conclusión revela la existencia de una serie de dificultades para reconocer la igual dignidad en el trabajo de asociados y contratados: por un lado, debido a un doble proceso de inserción adversa de las organizaciones en la economía de mercado y su institucionalización a través de políticas de Estado; y por otro, por un uso excesivo e indigno del trabajo asalariado en el desempeño de las tareas de las organizaciones, sin participación ni incentivo alguno en su gestión.

Palabras clave:
Relaciones de trabajo; Estatutos de trabajo; Participación laboral; Economía social

Abstract

The article aims to provide a sociological analysis of how the social economy in Portugal structures labor relations. Defining itself as an economy centered on people and not on capital, the social economy claims an active role in the search for social justice and decent work for all and in its contribution to the democratization of the economy. However, the enormous diversity of forms through which it presents itself requires a more detailed analysis of the labor relations within each of these forms and particular attention to the diversity of the contexts in which they developed. For pragmatic reasons, the analysis focuses only on Social Economy organizations and not on those of the social and solidarity economy since there is a lot of information regarding those, and they represent a very relevant sector in Portuguese society due to their function, capacity for employment, and dynamism. The methodology combines information from qualitative studies with results from surveys carried out in organizations. The conclusion reveals the existence of a set of difficulties in recognizing equal dignity to the work of members and wage earners: on the one hand, due to a double process of adverse inclusion of organizations in the market economy and its institutionalization through state policies; on the other hand, due to excessive and unworthy use of salaried work in carrying out the tasks of organizations, without any participation or incentive in their management.

Keywords:
Work relationships; Work statutes; Labor participation; Social economy

INTRODUÇÃO

Ao se definir como uma economia centrada nas pessoas, e não no capital, a Economia Social e Solidária (ESS) reivindica um papel ativo na busca da justiça social e do trabalho decente para todos. De fato, essa condição de assumir-se como uma economia baseada no trabalho associado constitui uma de suas notas distintivas mais salientes, pois contribui para a democratização da economia.

Não sendo um propósito fácil de alcançar, uma vez que vivemos num mundo dominado por um sistema econômico e social baseado no individualismo, na competição e na acumulação de lucros, vale a pena refletir sobre os pontos fortes e fracos da ESS para enfrentar o desafio que ela propõe para fortalecer sua condição como alternativa também nas relações de trabalho, aproveitando as lacunas e as oportunidades que a economia capitalista lhe proporciona.

A esse respeito, é importante ter em mente a própria redefinição desse sistema econômico não só com base na inovação e na criatividade, mas também na geração de novas e cada vez mais complexas formas de trabalho e relações laborais, num suposto equilíbrio entre benefícios para quem inova e entre criação e proteção para todos: trabalhadores, consumidores e empresas. Sob o nome de economia social de mercado, mantêm-se os objetivos de sustentabilidade e competitividade que sempre a marcaram.

À medida que os mercados de trabalho ganham fluidez, com uma percentagem crescente de trabalhadores que não sabem antecipadamente quando ou onde vão trabalhar, crescem também as incompatibilidades com os sistemas nacionais de proteção social, que se baseiam na possibilidade de fazer uma distinção clara entre o estatuto de “empregado” e “desempregado” (Comité Económico e Social Europeu [CESE], 2016Comité Económico e Social Europeu. (2016). Parecer exploratório sobre a mutação das relações laborais e respetivo impacto na manutenção de um salário digno, e repercussões da evolução tecnológica no sistema de segurança social e no direito do trabalho. SOC/533 - EESC-2016-00137-00-00-AC-TRA.).

Num tempo de grande incerteza e precariedade no campo das relações laborais que não escapam às organizações da ESS, a preocupação com a dignidade do trabalho ganha uma enorme centralidade na esfera pública e uma urgência indiscutível quanto às respostas políticas. Na União Europeia, desde 2007, o parlamento lançou o desafio de “promover o trabalho digno para todos” (2006/2240 INI), após a declaração do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, de 5 de julho de 2006. Em Portugal, o governo acaba de assumir uma agenda do trabalho digno, em que se compromete com 4 objetivos principais: combater a precariedade, valorizar o trabalho juvenil no mercado de trabalho, promover o equilíbrio entre a vida profissional e a vida privada e impulsionar a contratação coletiva e a participação dos trabalhadores (Lei nº 13/2023).

Faz todo o sentido analisar em que medida as organizações da ESS, em sua enorme diversidade, conseguem escapar a esse flagelo e ser portadoras de modelos de relações laborais que dignifiquem o trabalho e coloquem o bem-estar das pessoas em primeiro lugar. No entanto, num país como Portugal, onde apenas a “velha” economia social tem uma longa tradição de reconhecimento público e institucional e a “nova” economia solidária, que surgiu mais recentemente, é pouco reconhecida, quer institucionalmente, no âmbito do sistema jurídico e das políticas públicas, quer no âmbito da opinião pública, o uso da expressão ESS não é inteiramente pacífico.

O reconhecimento de um setor social e cooperativo na Constituição democrática de 1976 não só conferiu à economia social uma base jurídica explícita, sólida e autônoma, como também um princípio de proteção e um incentivo ao seu desenvolvimento. Mais recentemente, em 2013, a economia social foi definida pela Lei nº 30/2013, como o conjunto de atividades econômico-sociais, livremente levadas a cabo por cooperativas, associações mutualistas, misericórdias, fundações, instituições particulares de solidariedade social, associações com fins altruístas que atuem no âmbito cultural, recreativo, do desporto e do desenvolvimento local, bem como por entidades abrangidas pelos subsetores comunitário e autogestionário, integrados nos termos da Constituição no setor cooperativo e social, além de outras entidades dotadas de personalidade jurídica, que respeitem os princípios orientadores da economia social e constem na base de dados da economia social.

As duas últimas restrições - ter personalidade jurídica e estar incluído na base de dados da economia social - encobrem inúmeras atividades informais realizadas por grupos que se organizam para, espontaneamente ou de forma mais organizada, responder a necessidades que nem o Estado nem o mercado oferecem.

As iniciativas mais espontâneas, inovadoras e democráticas, difíceis de enquadrar institucionalmente, ficaram de fora, e a economia solidária passou a ser a designação comum dessas formas tradicionais ou emergentes que não podiam ser enquadradas pela economia social. Em Portugal, a economia solidária combina iniciativas em que a motivação predominante é a criação de trabalho e renda para a população pobre com outras em que a motivação é enfrentar a crise do Estado social, a desvalorização do trabalho e a degradação da qualidade de vida.

Muitas dessas formas têm fortes raízes no passado - por exemplo, o trabalho comunitário ou a ajuda mútua camponesa, as iniciativas populares de solidariedade, o mutualismo rural ou operário, o trabalho associado em suas diferentes formas ou a produção autogestionária -, ao passo que outras são mais recentes e surgem, mais ou menos espontaneamente, de situações críticas vivenciadas pelas camadas mais vulneráveis da população, em que procuram organizar as respostas que o mercado e o Estado não dão. Há ainda aquelas que funcionam como soluções alternativas à economia capitalista, pensadas e inventadas no interior de organizações e movimentos sociais contra-hegemônicos, inspiradas no pensamento crítico sobre a economia e a sociedade capitalistas, vindo ou manifestando-se por meio de movimentos ambientalistas, anarquistas ou socialistas.

Ciente das diferenças que separam a economia solidária da social, hoje é fundamental identificar suas complementaridades. Procurando uma e outra reforçar a solidariedade democrática - não só aquela baseada em direitos e redistribuição pública, mas também aquela fundada em laços sociais igualitários -, faz todo o sentido explorar as sinergias entre as economias social e solidária, precisamente para reforçar a posição de ambas face ao Estado e ao mercado, aumentando sua legitimidade social e política.

Voltando ao tema do trabalho decente na ESS, buscaremos nas seções seguintes caracterizar as relações de trabalho dentro das diversas modalidades nas quais essas organizações se dividem, distinguindo, na medida do possível e de acordo com o universo associativo de cada uma delas, as relações de trabalho associado - incluindo as de trabalho diretivo -, as relações de trabalho assalariado, as relações de trabalho voluntário e as relações com os beneficiários. Por questões estritamente pragmáticas, referentes à escassez de fontes de informação, à enorme heterogeneidade das iniciativas e à relativa invisibilidade prática da economia solidária (Hespanha, 2019Hespanha, P. (2019). Why is solidarity-type social enterprise invisible in Portugal? In P. Eynaud, J.-L. Laville, L. Santos, S. Banerjee, F. Avelino, & L. Hulgård (Orgs.), Theory of social enterprise and pluralism. Social movements, solidarity economy, and the global south. Routledge.), a análise se centrará somente nas organizações da economia social, sobretudo naquelas que contam com muita informação e que representam um setor amplamente reconhecido na sociedade portuguesa em razão de sua função, de sua capacidade de emprego e de seu dinamismo.

RELAÇÕES LABORAIS NAS ORGANIZAÇÕES DA ECONOMIA SOCIAL

No universo das relações de trabalho nas organizações, consideradas em geral, sem atender às especificidades que podem existir em cada categoria, há 3 componentes bem distintos: trabalho associativo, diretivo e assalariado. Há ainda um quarto componente fora deles, mas vinculado a eles por relações de solidariedade e participação cidadã, que é constituído pelos trabalhadores voluntários e pelos cidadãos beneficiários ou usuários da organização.

O trabalho associativo deve ser o coração da organização e o propulsor de sua atividade, no sentido de que é por meio da ação coletiva dos associados que se realiza a própria associação. Mas isso nem sempre acontece nas organizações da economia social. Cada vez mais, bens e serviços produzidos pela organização são orientados para terceiros e o trabalho na organização é prestado por terceiros, de forma assalariada ou voluntária.

O trabalho diretivo e gerencial, que deveria desempenhar um papel meramente instrumental para o melhor funcionamento da organização, assume cada vez mais um papel essencial e autônomo, fundado ora na autoridade reivindicada pelos dirigentes eleitos, ora na competência técnica invocada pelos gestores. Por seu poder estratégico de influenciar as decisões dos associados e sua capacidade de controlar as informações, eles podem contribuir para empobrecer a vida democrática da organização. Como manda a velha lei da oligarquia, “a democracia não se concebe sem organização, mas a organização pode contribuir para o enfraquecimento da democracia” (Laville, 2018Laville, J.-L. (2018). Economia social e solidária: práticas, teorias e debates. Almedina., p. 223).

O trabalho assalariado é, de certa forma, um elemento dissonante em relação à filosofia das organizações da economia social e tem sido objeto de um velho debate nas cooperativas. Para muitos trabalhadores, sua condição é precária e em nada beneficia o regime cooperativo; para outros, é uma solução para o problema do desemprego. Essa questão do trabalho assalariado nas cooperativas não consta nos princípios da aliança cooperativa internacional, apesar de ter havido um século de debate sobre o assunto. Por sua vez, a tradição da democracia econômica considera inaceitável a própria relação de emprego, defendendo a autogestão dos trabalhadores, como acontece nas cooperativas de trabalhadores e no associativismo autogestionário.

Em algumas modalidades da economia social, também podem aparecer formas de trabalho voluntário e não remunerado, ao lado do remunerado, bem como beneficiários ou usuários dos serviços prestados pelas organizações que ainda pertencem ao universo das relações humanas dessas organizações e devem ser levadas em conta nessa avaliação.

Quando se consideram as diferentes categorias pelas quais se dividem as organizações da economia social - cooperativas, mutualidades, associações e fundações -, encontramos combinações bastante distintas desses universos. Busca-se, então, analisar esses universos nas principais modalidades, dando especial ênfase às cooperativas cuja longevidade quase bissecular mostra uma particular capacidade de ajustamento aos contextos econômicos em que atuam.

Cooperativas

Entendendo o trabalho como atividade humana para resolver problemas, e não como trabalho assalariado ou emprego, toda cooperação envolve um trabalho de ajuda mútua para alcançar objetivos comuns, que podemos designar como ato de cooperação ou cooperativo (Namorado, 2013Namorado, R. (2013). O mistério do cooperativismo: da cooperação ao movimento cooperativo. Almedina., p. 16). Para a aliança cooperativa internacional, trata-se de uma ajuda mútua de pessoas que se unem voluntariamente para satisfazer às suas necessidades nas áreas econômica, social e cultural.

As cooperativas de trabalhadores, conhecidas em Portugal como cooperativas de produção, são as que melhor concretizam o ideal de democratização da economia e de emancipação do trabalhador assalariado. Inspirados nos princípios da Rochedale, são definidas pelos objetivos de gerar emprego e renda para melhorar a qualidade de vida dos cooperados, dignificar seu trabalho, possibilitar a autogestão democrática e promover o desenvolvimento.

A relação desses trabalhadores com sua cooperativa é diferente tanto da do assalariado convencional quanto da do trabalhador autônomo. O pacto fundador da cooperativa de trabalho inclui um acordo de trabalho cooperativo, que autoriza os trabalhadores a receber, antecipadamente, uma parcela da renda anual da cooperativa com base em sua contribuição para os fins acordados coletivamente. Não é mais a maximização do lucro que prevalece, e sim outros objetivos, como a livre escolha do trabalho e a autonomia de decidir, o investimento em educação e treinamento ou o desenvolvimento das comunidades de origem dos cooperados. Por sua vez, uma gestão mais participativa e uma ideologia mais igualitária dão aos trabalhadores maior liberdade para resolver problemas no local de trabalho.

Mesmo quando a figura patronal e a condição proletária são suprimidas, porém, ainda há o risco de que as cooperativas de trabalho sofram pressões do sistema capitalista, via mercado, seja pelo preço de compra dos fatores de produção, seja pelo preço de venda dos produtos. Isso sem esquecer as inúmeras cooperativas de trabalho cuja criação foi induzida e controlada por empresas capitalistas, criadas por ex-patrões ou por ex-empregados com cargos de liderança, que visam apenas reduzir os custos da força de trabalho, mascarando um fenômeno de terceirização por meio da cooperativa (Piccinini, 2005Piccinini, V. (2005). Cooperativas de trabalho de Porto Alegre e flexibilização do trabalho (Socius Working Papers, nº 8). Universidade Técnica de Lisboa. https://www.repository.utl.pt/bitstream/10400.5/2023/1/wp200508.pdf
https://www.repository.utl.pt/bitstream/...
).

Nas cooperativas de consumo, comercialização, habitação, crédito e serviços, o emprego não é essencialmente diferente daquele numa empresa capitalista. Pagam-se salários competitivos e fabricam-se os produtos ao menor custo possível de mão de obra, não dando aos trabalhadores a possibilidade de participação nos lucros. Segundo Paul Singer, para ser um empreendimento solidário, não deve haver separação entre trabalho e capital. Portanto, muitas cooperativas de consumo que empregam mão de obra assalariada não fazem parte da economia solidária, a menos que seus trabalhadores se tornem membros efetivos (Singer, 2002Singer, P. (2002). A recente ressurreição da economia solidária no Brasil. In B. S. Santos (Org.), Produzir para viver: os caminhos da produção capitalista. Civilização Brasileira., p. 84).

Buscando sair dessa dissensão entre cooperativas de consumo e de trabalho, Georges Fauquet (1979Fauquet, G. (1979). O setor cooperativo. Livros Horizonte.) fundamenta a unidade do setor cooperativista na combinação entre as 2 faces de uma cooperativa: a que atua como empresa e a que atua como associação de pessoas, sendo que o componente empresarial - destinado a criar excedentes que os associados compartilham - depende, em grande medida, das condições de mercado em que participam.

O simples fato de as cooperativas - ou as outras formas da economia social - se relacionarem com o mercado, quer na aquisição de fatores de produção (insumos, trabalho assalariado ou crédito), quer na venda de produtos (bens e serviços), implica necessariamente uma relativa adaptação às regras/lógicas do mercado, em especial a subordinação aos preços de mercado.

Aqui, entramos numa questão que costuma ser chamada de isomorfismo empresarial e que consiste no fato de que, para muitos fins burocráticos ou institucionais - exigência de status jurídico formal, situação fiscal, sistema contábil, regras de gestão, condições de financiamento e até modelo tecnológico -, as cooperativas e outras organizações da economia social são obrigadas a seguir os padrões que se aplicam às empresas de mercado sempre que quiserem acessar determinadas vantagens ou ter sua situação regularizada perante regras ou padrões desenhados para as empresas.

É preciso levar em conta que a viabilidade dessas organizações não se reduz à sua viabilidade financeira, pois os propósitos e o contexto social, em sentido amplo, de suas iniciativas vão além do marco estritamente mercadológico (França & Eynaud, 2020França, G. Filho, & Eynaud, P. H. (2020). Solidariedade e organizações: pensar uma outra gestão. EDUFBA.). Para além das finalidades particulares de seus membros, existem finalidades sociais identificadas com a solidariedade social e ambiental, que implica a abertura da organização a todos os interessados, sobretudo os que trabalham nas organizações e os que se beneficiam de sua ação. Chamamos essa dimensão de gestão inclusiva e democrática da ESS. Do ponto de vista das relações de trabalho, correspondem-lhe também os princípios da autogestão, da gestão social dos bens comuns, do cooperativismo e do associativismo democrático, que estão no cerne da democracia econômica.

Associações mutualistas

As associações mutualistas, de ajuda mútua, ou simplesmente mutualidades, são instituições cujo objetivo é conceder prestações de segurança social e de saúde aos membros e às suas famílias mediante contribuições regulares. Elas estão na origem dos sistemas de seguridade social que conhecemos hoje e dos movimentos operários pela conquista de direitos e por justiça nas relações de trabalho praticamente desde o início da Revolução Industrial. Quando esses sistemas ainda não existiam, os trabalhadores se associavam para garantir, por meio de fundos de poupança para os quais cada um contribuía, a cobertura a certos riscos, como doença, incapacidade para o trabalho, morte etc. Em Portugal, as mutualidades tiveram o período áureo no último quarto do século XIX, tendo sido praticamente desmanteladas durante a longa ditadura salazarista, que, desde a primeira hora, tratou o movimento mutualista com manifesta hostilidade.

Com a recuperação da democracia, em 1974, e, sobretudo, depois de a Constituição da República ter reconhecido os direitos dos cidadãos portugueses à saúde e à segurança social, atribuindo ao Estado um papel decisivo na satisfação desses direitos, o campo das mutualidades parecia ter sido bastante reduzido, embora a mesma Constituição reconhecesse as mutualidades como tendo um papel relevante no campo da solidariedade social. No entanto, na década de 1990 e após a publicação do novo Código das Associações Mutualistas (Decreto-Lei nº 72/1990), começaram a surgir projetos mutualistas na área dos novos riscos sociais, de modo que as funções sociais do Estado no campo da proteção social deixaram o campo aberto à sua iniciativa (Quelhas, 2001Quelhas, A. (2001). A refundação do papel do Estado nas políticas sociais. Almedina., p. 147). Atualmente, existem 102 associações mutualistas registadas, representando cerca de 0,1% do total das organizações da economia social e 8,1% do valor acrescentado bruto VAB total dessas organizações. Segundo a União das Mutualidades Portuguesas, elas agrupam mais de 1 milhão de associados, e seus serviços e atividades beneficiam cerca de 2,5 milhões de pessoas (União das Mutualidades Portuguesas [UMP], 2023União das Mutualidades Portuguesas. (2023). As mutualidades portuguesas 2023. https://mutualismo.pt/portal/anexos/noticias/docs/3475/brochura_anual_ump.pdf
https://mutualismo.pt/portal/anexos/noti...
). Em termos de emprego, as associações mutualistas representam 2,1% do emprego total da economia social (Instituto Nacional de Estatística, & Cooperativa António Sérgio para a Economia Social [INE] & Cooperativa António Sérgio para a Economia Social [CASES], 2016Instituto Nacional de Estatística, & Cooperativa António Sérgio para a Economia Social. (2016). Conta Satélite da Economia Social 2016 / Inquérito ao Trabalho Voluntário 2018 (Coleção de Estudos de Economia Social, 10). https://base.socioeco.org/docs/livro-conta-satelite-voluntariado.pdf
https://base.socioeco.org/docs/livro-con...
).1 1 Está em curso (2023) a aplicação, pelo INE, de um inquérito às associações de socorros mútuos, com vista a obter informações desagregadas sobre indicadores financeiros e físicos relacionados com a atividade dessas instituições.

No passado, o mutualismo funcionava em circuito fechado e largamente tributário de uma tradição de entreajuda oriunda da época pré-capitalista (Namorado, 2013Namorado, R. (2013). O mistério do cooperativismo: da cooperação ao movimento cooperativo. Almedina., p. 44), constituindo autênticas escolas de democracia e solidariedade. Hoje, há grandes associações mutualistas em que essa forte interação de associados se perdeu e em que a preocupação dominante é se defender da concorrência acirrada de instituições privadas, em especial na área de saúde e seguros (E. Santos, 2020Santos, E. (2020). Os desafios à organização e gestão das mutualidades durante a vigência do I Código das Associações Mutualistas (1990-2018). Instituto Politécnico de Santarém.). O peso dos trabalhadores assalariados aumentou muito, e as mutualidades também se tornaram criadoras de emprego.

Na nova versão do Código das Associações Mútuas, reconhece-se que o elevado crescimento do número de associações e associados gerou alguma disfunção entre a dimensão das organizações e sua forma de governo, em detrimento de seu funcionamento democrático, em termos da participação dos membros e do controle efetivo de sua ação (Decreto-Lei nº 59/2018). Por isso, o código introduz algumas medidas para resolver a situação, como a imposição de limites às sucessivas renovações de mandatos dos titulares dos órgãos associativos, a introdução de regras que permitam ou imponham uma participação mais ampla dos membros e um controle mais eficaz de sua ação, além do estabelecimento de requisitos de elegibilidade mais exigentes para os titulares dos órgãos associativos. Por sua vez, as associações mutualistas de grande dimensão econômica, em função do volume anual de cotas para prestações de segurança social e do valor dos fundos associados à sua atividade financeira e seguradora, estão sujeitas a um regime especial de supervisão financeira.

Do ponto de vista das relações de filiação e laborais, as associações mutualistas fazem distinção entre associados, beneficiários, pessoal de direção, pessoal vinculado por um contrato de trabalho - que recebe uma remuneração -, outros trabalhadores voluntários - que não recebem salários -, usuários de equipamentos e serviços sociais da associação que não sejam associados. Em relação ao pessoal dirigente, um estudo publicado recentemente (Carvalho, 2022Carvalho, T. (2022). As organizações mutualistas na sociedade portuguesa no século XXI. União das Mutualidades Portuguesas.) recomendou a capacitação dos líderes das organizações e a profissionalização da gestão para que decisões estratégicas mais eficientes e democráticas pudessem ser tomadas, pois, entre outros motivos, 74,7% dos membros da alta administração tinham mais de 64 anos, 79,3% eram do sexo masculino e 61% não tinham graduação ou grau superior (Capucha, 2021Capucha, L. (2021). Estudo de caracterização do movimento mutualista em Portugal. União das Mutualidades Portuguesas., p. 35). A maioria dos dirigentes exercia as funções de forma voluntária (81%) e sem regime de exclusividade (83%), com 32% acumulando funções noutras entidades da economia social.

No plano da comunicação interna com os associados, o mesmo estudo recomendou a criação de um fórum de compartilhamento de experiências, recursos, habilidades e outras formas de colaboração coletiva (Carvalho, 2022Carvalho, T. (2022). As organizações mutualistas na sociedade portuguesa no século XXI. União das Mutualidades Portuguesas., p. 61). Em relação ao trabalho remunerado, o Inquérito ao Setor da Economia Social (ISES) de 2019 mostrou que as associações mutualistas empregavam 5.327 pessoas, das quais 61% eram mulheres, com contrato de trabalho predominantemente sem termo (83,8%), e poucos casos de pessoas trabalhando apenas com o salário-mínimo nacional (14,8%). Sobre o trabalho voluntário, a mesma fonte relatava que cerca de 70% das associações mutualistas reportaram que os voluntários não estavam cobertos por seguro de acidentes pessoais e responsabilidade civil, apesar de isso ser legalmente exigido pela Lei de Bases do Voluntariado. De igual modo, 69,2% das associações mutualistas admitiram não ter tomado medidas para conciliar a vida profissional e pessoal dos trabalhadores, 24,6% adotaram a flexibilidade de horários e 15,4% concederam a possibilidade de os trabalhadores dedicarem parte da jornada de trabalho à resolução de questões pessoais (Carvalho, 2022, p. 34).

Instituições particulares de solidariedade social

A designação Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) é atribuída a pessoas coletivas sem fins lucrativos, confessionais ou não, criadas por iniciativa de particulares e destinadas a prestar apoio aos grupos populacionais mais vulneráveis, como crianças e jovens, idosos ou pessoas com deficiência e famílias em dificuldade que sejam reconhecidas pelo Estado. O que caracteriza a IPSS não é a forma jurídica, e sim o fato de a ação ser regulada por acordos de cooperação com o Estado para a prestação de serviços no âmbito das políticas sociais a que este está vinculado, mas prefere delegar sua aplicação nas instituições. O setor reúne um conjunto de organizações que inclui as misericórdias, as mutualidades, as fundações e muitas outras organizações não governamentais que, desde 1996, se autodenominam setor social e solidário, apesar de serem entidades autônomas com estatuto jurídico próprio.

De acordo com a Conta Satélite da Economia Social (CSES) de 2016, existiam 3 mil instituições que empregam 63 mil trabalhadores. Bem espalhadas por todo o território nacional, trata-se organizações pequenas, tendo em conta o número de pessoas que nelas trabalham - cerca de 20, em média. O pessoal dessas instituições é composto por membros dos órgãos sociais, em geral a título voluntário e sem remuneração, por técnicos da instituição com profissões adequadas à sua finalidade social e por trabalhadores pouco qualificados com a categoria de auxiliares.

O corpo diretivo não apresenta qualquer qualificação especializada para a gestão das organizações, permanece no cargo por muito tempo e, muitas vezes, compartilha uma visão do trabalho da instituição como solidariedade com os mais vulneráveis, cuja consequência prática é relativizar os direitos dos trabalhadores (Monteiro, 2020Monteiro, A. (2020). Sindicalismo e economia social. In J. Pitacas, & L. Reto(Org.), A economia social numa visão plural. CEEPS., p. 124). Isso acontece, por exemplo, quando é necessário fazer horas extras e se considera que o desempenho do trabalhador foi voluntário, mas também quando cargas horárias muito pesadas são impostas, os tempos de descanso e os dias de folga são desrespeitados, o trabalho noturno e por turnos é banalizado, os pagamentos são atrasados ou os níveis salariais devidos não são atualizados, como aconteceu durante a pandemia. Assim, a importância social e coletiva, bem como o trabalho de primeira linha realizado por esses trabalhadores, não é devidamente reconhecida nem respeitada como deveriam ser os direitos dos trabalhadores que realizam trabalhos inestimáveis e especializados com crianças, deficientes e idosos (Santo & Faria, 2022Santo, J. E., & Faria, P. (2022, janeiro 09). Os trabalhadores e as trabalhadoras das IPSS. Esquerda. https://www.esquerda.net/dossier/os-trabalhadores-e-trabalhadoras-das-ipss/78748
https://www.esquerda.net/dossier/os-trab...
).

O fato de, em todas as valências das IPSS, existir uma diversidade muito grande de profissões - correspondendo a um elevado número de níveis na escala salarial -, uma presença francamente majoritária de mulheres e uma elevada procura de emprego por parte de trabalhadores pouco qualificados pode explicar não só o baixo nível salarial praticado nas instituições, mas também os baixos índices de sindicalização e a reduzida força reivindicativa dos trabalhadores e, principalmente, das trabalhadoras.

Organizações autogestionárias

A autogestão é a forma mais avançada de democratização direta da economia. Entendida como um modo de desenvolver uma atividade econômica baseada no trabalho associado, em que decisões fundamentais devem ser tomadas pelo coletivo, a autogestão estabelece um novo tipo de relações sociais baseadas na solidariedade, no igualitarismo e no coletivismo.

No contexto das economias capitalistas de mercado, a autogestão tende a aparecer em situações de crise econômica aguda, em que as empresas encerram as atividades ou são ameaçadas de desalojamentos, descapitalizam-se ou sofrem desinvestimentos significativos e injustificados ou são abandonadas pelos patrões. Muito forte na América Latina, sobretudo em Argentina, Brasil, Uruguai e Venezuela, o setor de empresas recuperadas pelos trabalhadores também existe em vários países europeus, como a Espanha, onde os trabalhadores conseguiram legalizar em seu nome a propriedade das empresas que gerem sob autogestão, muitas vezes com o apoio de políticas públicas que reconheceram e apoiaram essa recuperação.

Foi o que aconteceu em Portugal na segunda metade da década de 1970, na sequência da Revolução dos Cravos, em que se multiplicaram formas de ação coletiva para responder a necessidades básicas nos mais diversos domínios da vida social desencadeadas por uma crise aguda da economia capitalista conjugada com as aspirações dos trabalhadores a um modelo de gestão mais democrático e participativo. A legislação criada para resolver a situação das empresas em crise previa a intervenção do Estado e a nomeação de comissões administrativas em “situações de conduta dolosa ou gravemente negligente na condução da atividade empresarial” por parte dos patrões (art. 1º do Decreto-Lei nº 660/1974). Estima-se que, entre 1974 e 1978, havia mais de 900 empresas administradas pelos trabalhadores, em sua maioria privadas, nas quais os órgãos representativos dos trabalhadores, as comissões, assumiram o poder após a saída dos patrões, muitos dos quais fugiram do país (Barreto, 1977Barreto, J. (1977). Empresas industriais geridas pelos trabalhadores. Análise Social, 13(51), 681-717. http://www.jstor.org/stable/ 41008244
http://www.jstor.org/stable/ 41008244...
, p. 692; Varela & Rajado, 2018Varela, R., & Rajado, A. (2018). Prólogo II: quem precisa de patrões?In L. Tiriba, M. Faria, & H. Novaes (Orgs.), Cenários da autogestão em Portugal: o processo revolucionário em curso (1974-1975). Navegando Publicações., p. 12).

Se essa riquíssima experiência deu origem a muitas das associações e empresas recuperadas, é preciso reconhecer que boa parte se perdeu nas décadas seguintes graças à sua estranheza em relação ao modelo econômico capitalista, que veio a ser reforçado pela adesão de Portugal à Comunidade Econômica Europeia ou pela pressão do poder político para converter a autogestão numa forma de capitalismo de Estado, por meio da nacionalização dessas empresas (M. Santos et al., 1976Santos, M., Lima, M., & Ferreira, V. (1976). O 25 de abril e as lutas sociais nas empresas. Afrontamento., p. 59).

A Constituição da República mantém hoje a norma que reconhece os meios de produção como objetos de exploração coletiva dos trabalhadores uma modalidade do setor cooperativo e social de propriedade dos meios de produção (Constituição da República Portuguesa, 1976, art. 82º, 3), apesar de ser residual (apenas algumas dezenas) o número de casos de autogestão atualmente existentes.

A literatura sobre o modelo autogestionário atual tende a sublinhar, na prática, as dificuldades e os limites da autogestão e a autonomia dos trabalhadores em contexto econômico e político adverso. De fato, aponta-se um conjunto de limitações à democracia direta que têm a ver com vários aspectos das relações de trabalho e da pressão do mercado, como o tamanho e a heterogeneidade dos coletivos, a disponibilidade de tempo necessário para a participação em debates e deliberações, as compensações pelo trabalho realizado, a compressão individualista sobre a racionalidade igualitária (Mothé, 2009Mothé, D. (2009). Autogestão. In A. D. Cattani, J.-L. Laville, L. I. Gaiger, & P. Hespanha (Orgs.), Dicionário internacional da outra economia. Almedina., p. 26), a compressão mercantilizante sobre bens e serviços autoproduzidos, a dependência da empresa do mercado mundial que impedia a venda direta dos produtos ou seu descarte por meio dos mercados populares ou da solidariedade de outros trabalhadores (Faria, 2018, p. 80) e a compressão dos saberes próprios do trabalho associado pelas exigências técnicas e mercadológicas impostas pelo mercado (Tiriba, 2009Tiriba, L. (2009). Saberes do trabalho associado: a autogestão no contexto do movimento popular de 25 de abril, em Portugal. In Anais do 27º Congreso de la Asociación Latinoamericana de Sociología, Buenos Aires, Argentina.).

Esse quadro, todavia, deve ser complementado pela insuficiência dos apoios prometidos pelo Estado, essenciais para a viabilidade econômica das empresas menos eficientes, e pela prolongada incerteza quanto aos direitos de propriedade sobre as empresas recuperados pelos trabalhadores (Spognardi, 2019Spognardi, A. (2019). The rise and fall of industrial self-management in Portugal: a historical institutionalist perspective. Journal of Labor and Society, 22(3), 589-605. https://doi.org/10.1111/wusa.12400
https://doi.org/10.1111/wusa.12400...
, p. 595).

Organizações de base comunitária

A Constituição da República Portuguesa integra, no setor cooperativo e social, a propriedade de meios de produção comunitários, possuídos e geridos por comunidades locais. É o reconhecimento da propriedade comum da terra e dos meios de produção que, tradicionalmente, certas comunidades territoriais - lugares, aldeias ou povos - administravam para garantir a subsistência. Designados em Portugal como terrenos baldios, os terrenos comunitários costumam ser impróprios para o cultivo - ou onde o cultivo seria muito aleatório -, localizados em zonas de montanha e utilizados para a criação de gado, colheita de mato e lenha, ou outros usos vitais para a sobrevivência dos moradores. Além da terra, moinhos, fornos, eiras, represas e levadas, colmeias, rebanhos, animais reprodutores e outros meios de produção também são propriedade coletiva.

Essa instituição de propriedade comunitária era comum em toda a Europa. Mas, na era moderna e sob pressão das ideologias liberais, foi sendo apropriada individualmente ou integrada ao patrimônio público, sendo hoje o Norte e o Centro de Portugal, assim como a Galiza, seus últimos redutos.2 2 Ainda assim, a área ocupada pelos baldios em Portugal abrange hoje cerca de 6% da superfície do Portugal continental.

O uso e a gestão dos baldios pelas comunidades de compartes são, desde 1976, regulados pela lei que decretou a devolução dos terrenos baldios a essas comunidades e definiu um conjunto de regras básicas de funcionamento sem interferir nos modos de uso e gestão dos terrenos baldios por essas comunidades. Trata-se de um sistema de gestão democrático, participativo e igualitário, e, de fato, em muitas partes, as comunidades de compartes garantem um bom uso dos terrenos baldios com benefícios para todos.

As condições de vida dos compartes e das comunidades, entretanto, sofreram grandes mudanças, com impacto em sua relação com os baldios. Hoje, a economia das compartes mudou muito, e a sobrevivência das comunidades não depende mais, como no passado, do uso dos baldios.

As terras comunais se tornaram atrativas para novos usos que as tecnologias passaram a valorizar e alvos de grandes empresas nacionais e até multinacionais que investem em novas tecnologias e demandam essas terras para diversas atividades industriais, como a geração de energia elétrica por exposição solar ou captação de vento, a transmissão de um sinal Hertziano para comunicações a distância por meio da instalação de antenas, a obtenção de material lenhoso para a produção de celulose ou fibra têxtil e a extração de minério, como lítio, para usos industriais.

Esses novos usos nem sempre estão isentos de riscos ou efeitos nocivos sobre as populações ou os territórios ocupados. Em muitos casos, são atividades perigosas que a opinião pública aceita por se situarem em zonas montanhosas escassamente povoadas, sem refletir nos danos irreversíveis que provocam na paisagem e na vida das populações que vivem nas proximidades, como é o caso da nova geração de parques eólicos de potência máxima, extração de lítio, monocultura de eucalipto, eventos esportivos de carros de tração 4x4, caça e muitos outros.

Embora a alienação de parcelas dos terrenos baldios seja proibida, a pressão das grandes empresas é muito forte para que consigam ocupar as terras de que precisam, por isso as situações abusivas se multiplicam, principalmente quando os recursos buscados existem em abundância nos terrenos baldios.

Uma opção comunitária para o uso e a gestão dos baldios face a essa nova procura passa hoje pela cedência do uso dos terrenos mediante uma retribuição que permita criar riqueza, emprego e bem-estar para toda a comunidade, tornando-se um suporte do desenvolvimento local e solidário dos povos serranos.

Para os compartes, uma boa gestão dos terrenos baldios é aquela que, além de proteger o património comunitário, permite fazer melhorias na própria comunidade das quais todos podem beneficiar: abertura ou manutenção/reabilitação de estradas, pontes e chafarizes, igrejas e outros; centros cívicos para atividades recreativas ou culturais; equipamentos sociais voltados especialmente a crianças e idosos; equipamentos esportivos e de lazer; prêmios e incentivos para estudantes da comunidade; distribuição de lenha pela população. A experiência tem demonstrado que, onde os aldeões têm poucas vantagens diretas com a utilização dos terrenos baldios, o papel redistributivo da gestão pelos conselhos diretivos permite manter as pessoas interessadas na manutenção desses terrenos e assegurar um nível relativamente elevado de coesão social nas comunidades.

Feita essa digressão pelas categorias mais importantes da economia social, é importante dar conta de alguns problemas nas relações de trabalho ao comparar essas categorias.

No caso português, a CSES de 2016 e o ISES de 2018, ambos organizados pelo INE e pela CASES,3 3 A Cases é uma régie cooperativa, ou cooperativa de interesse público, apoiada pelo Estado e por organizações representativas do setor da economia social, com o objetivo de promover o fortalecimento desse setor, aprofundando a cooperação entre o Estado e as organizações que o integram. permitem conhecer com algum detalhe a condição das relações laborais na economia social, desagregadas por cada um de seus componentes: cooperativas, associações mutualistas, misericórdias, fundações, Subsetores Comunitário e Autogestionário (SCA), Associações Com Fins Altruísticos (ACFA).

Com base nessas informações, é possível caracterizar melhor as relações laborais nas organizações da economia social em Portugal e avaliar como o princípio do primado das pessoas se concretiza na prática. Alguns dos achados que podem ser alcançados dessa forma são resumidos a seguir.

Um elevadíssimo peso do trabalho assalariado

Em 2016, o trabalho assalariado representava 99,4% do pessoal ocupado pelas entidades da economia social, um pouco menos apenas nas cooperativas: 97,8%. Por sua vez, as misericórdias e as ACFA concentraram dois terços da força de trabalho assalariada no setor da economia social (Tabela 1).

Tabela 1
Emprego e remuneração, por categorias da economia social (2016)

Uma remuneração média do trabalho inferior à da economia nacional

A remuneração média das organizações da economia social corresponde a 86,3% da média nacional e apresenta uma dispersão significativa por grupos de entidades. As associações mutualistas, em que se concentram as atividades de serviços e crédito, constituíram o grupo da economia social com a remuneração média mais elevada, seguidas pelas cooperativas e pelas fundações, ambas com remuneração superior à da economia nacional. No extremo oposto, encontravam-se as misericórdias e IPSS, com a remuneração média mais baixa (Tabela 2).

Tabela 2
Nível das remunerações médias, por categorias da economia social (remuneração média nacional = 100)

A opinião dos trabalhadores com contratos de trabalho e dos cidadãos que recorrem às organizações da economia social pouco conta para a melhoria dessas organizações

De acordo com o ISES 2018, a inspiração mais frequente para as organizações da economia social repensarem suas práticas de gestão consiste na participação em eventos acadêmicos ou profissionais - entre 29,8% na ACFA e 66,8% nas misericórdias. Só no caso das cooperativas, essa inspiração vem dos próprios cooperados. Mas as opiniões de usuários ou beneficiários contam pouco (entre 9,8 e 13,8%), enquanto a dos trabalhadores assalariados conta menos ainda (entre 3,5 e 8,5%).

Tabela 3
Fontes de inspiração para as práticas de gestão, por categoria da economia social (em % do total das organizações de cada categoria)

Os prêmios por desempenho e a promoção dos trabalhadores com contratos de trabalho são pouco frequentes

Os valores mais elevados de atribuição de prêmios por desempenho se encontram nas cooperativas (22,9%) e nas misericórdias (21,9%), ao passo que os das promoções estão nas cooperativas (63,1%) e nas fundações (37,1%).

Tabela 4
Organizações e trabalhadores com prêmios ou promoções, por categoria da economia social (em % do total das organizações de cada categoria)

As organizações da economia social como agentes da implementação das políticas ativas de emprego

Pelo menos desde a criação da Estratégia Europeia de Emprego, em 1997, muitas instituições de solidariedade social, em especial as IPSS e as misericórdias, assim como as instituições públicas, têm sido atraídas para implementar políticas ativas de emprego, para melhorar a empregabilidade dos trabalhadores, por meio de incentivos que favorecem uma abordagem centrada nas capacidades dos trabalhadores, e não tanto nas causas do desemprego, como é o caso dos Programas de Atividade Ocupacional (POC) e, posteriormente, dos Contratos de Emprego-Inserção (Antunes, 2019, p. 105). No último caso, os Contratos de Emprego-Inserção (CEI+) se destinavam prioritariamente aos desempregados que se enquadravam em pelo menos 1 dessas situações: ter desemprego de longa duração, ser portador de deficiência ou incapacidade, ter idade igual ou superior a 45 anos, ser ex-detento ou vítima de violência doméstica. As instituições promotoras recebiam uma coparticipação financeira mensal do Estado para acolher esses desempregados, por um período de até 1 ano, num valor que variava entre 432,39 e 648,81 euros, suprindo apenas os custos do seguro.

A avaliação que hoje se faz desses programas, baseada no baixo índice de empregabilidade direta, no viés discriminatório em relação aos demais trabalhadores regulares da instituição e na falta de investimento na capacitação e no acompanhamento dos desempregados que seguem esses programas, é muito negativa.

CONCLUSÃO

A análise das relações de trabalho dentro das diversas categorias da economia social mostrou um conjunto de dificuldades na construção de uma nova economia centrada nas pessoas, e não no capital, como é o propósito da economia social. Em resumo, essas dificuldades têm a ver com 2 tipos principais de fatores. Em primeiro lugar, a existência de diversos processos que levam à inclusão adversa das organizações da economia social no mercado capitalista que elas próprias pretendem superar ou à sua institucionalização pelo Estado, tanto por meio de acordos diretos quanto por meio de políticas públicas.

A condição hegemônica do mercado se manifesta de várias formas. Por exemplo, pela troca desigual de bens e serviços em mercados não regulados - como desvalorização de bens e serviços intensivos em mão de obra ou produto de trabalho recíproco e não remunerado -, que pode acontecer mais em certos ramos de cooperativas, no setor social e solidário de IPSS, misericórdias e mutualidades; pela mercantilização de valores de uso - artesanato, cultura popular, entreajuda e cuidado -, o que pode acontecer em certas formas de associativismo local ou nas valências de cuidados em IPSS e misericórdias; pela invisibilização de outras economias, como no caso das comunidades de compartes dos baldios; ou pelo isomorfismo empresarial, que universaliza o uso dos instrumentos analíticos próprios da economia de mercado capitalista, bem presentes em quase todas as modalidades da economia social.

Por outro lado, o processo de institucionalização das organizações da economia social pelo Estado, apesar dos esforços para manter sua autonomia, vem se intensificando à medida que o Estado decide se desvincular da implementação das políticas sociais, na saúde, na educação e na habitação a que está vinculado, sem abdicar de regular estritamente a ação das organizações às quais delega suas obrigações. Institucionalizar significa, nesses casos, atrelar as organizações a um esquema rígido de gestão que não dá espaço para experimentar outros procedimentos ou ajustar procedimentos às mudanças nos contextos em que atuam.

Em segundo lugar, a presença de práticas dissonantes em relação ao princípio da prioridade das pessoas que a economia social e solidária reivindica e que todas as categorias da economia social prosseguem (art. 5º, alínea a, da Lei de Bases da Economia Social). Essas práticas se traduzem, como vimos antes, numa proporção muito elevada de trabalhadores em relação ao número de membros (associados) das organizações; num nível médio de salários relativamente baixo, em algumas categorias inferior até aos valores médios de mercado; numa utilização reduzida de estímulos como bônus e promoções para compensar o baixo nível dos salários ou para reconhecer a qualidade do trabalho; e numa reduzida participação dos trabalhadores assalariados na melhoria da gestão da organização. As situações mais graves ocorrem em organizações do setor solidário, em que o trabalho não só é mal remunerado, como também não tem garantia de estabilidade e é majoritariamente feminino. Não é aceitável justificar tal situação com o argumento de que essas organizações, por serem solidárias e prestarem serviços de utilidade social, não podem estar sujeitas às regras de uma empresa lucrativa, como não é aceitável considerar entender o trabalho extraordinário como uma obrigação que os trabalhadores voluntários devem cumprir.

Por fim, é incompreensível que essas organizações do setor social e solidário, cuja missão é prestar cuidados ou outro apoio a grupos populacionais vulneráveis, não disponham de dispositivos nos estatutos que permitam que as pessoas sejam regularmente ouvidas ou participem da gestão das organizações, à luz do respeito que lhes é devido precisamente pela sua dignidade. O mesmo vale para comunidades locais, em relação às quais essas organizações não desenvolvem mecanismos de consulta para saber sobre as necessidades mais urgentes ou discutir prioridades. Como foi apontado em outra ocasião, o processo de institucionalização dessas organizações pelo Estado as distancia cada vez mais das comunidades onde estão localizadas e as aproxima dos serviços estatais com os quais cooperam (Hespanha, 2000Hespanha, P. (2000). Entre o Estado e o mercado: as fragilidades das instituições de proteção social em Portugal. Quarteto.). A queixa, por vezes ouvida, de que as comunidades já não apoiam as organizações sociais existentes no seu seio decorre precisamente da desatenção dessas organizações em relação às necessidades sociais existentes nas comunidades que é suposto servirem.

REFERÊNCIAS

  • Barreto, J. (1977). Empresas industriais geridas pelos trabalhadores. Análise Social, 13(51), 681-717. http://www.jstor.org/stable/ 41008244
    » http://www.jstor.org/stable/ 41008244
  • Capucha, L. (2021). Estudo de caracterização do movimento mutualista em Portugal União das Mutualidades Portuguesas.
  • Carvalho, T. (2022). As organizações mutualistas na sociedade portuguesa no século XXI. União das Mutualidades Portuguesas.
  • Comité Económico e Social Europeu. (2016). Parecer exploratório sobre a mutação das relações laborais e respetivo impacto na manutenção de um salário digno, e repercussões da evolução tecnológica no sistema de segurança social e no direito do trabalho SOC/533 - EESC-2016-00137-00-00-AC-TRA.
  • Fauquet, G. (1979). O setor cooperativo Livros Horizonte.
  • França, G. Filho, & Eynaud, P. H. (2020). Solidariedade e organizações: pensar uma outra gestão EDUFBA.
  • Hespanha, P. (2000). Entre o Estado e o mercado: as fragilidades das instituições de proteção social em Portugal Quarteto.
  • Hespanha, P. (2019). Why is solidarity-type social enterprise invisible in Portugal? In P. Eynaud, J.-L. Laville, L. Santos, S. Banerjee, F. Avelino, & L. Hulgård (Orgs.), Theory of social enterprise and pluralism. Social movements, solidarity economy, and the global south Routledge.
  • Instituto Nacional de Estatística, & Cooperativa António Sérgio para a Economia Social. (2016). Conta Satélite da Economia Social 2016 / Inquérito ao Trabalho Voluntário 2018 (Coleção de Estudos de Economia Social, 10). https://base.socioeco.org/docs/livro-conta-satelite-voluntariado.pdf
    » https://base.socioeco.org/docs/livro-conta-satelite-voluntariado.pdf
  • Instituto Nacional de Estatística, & Cooperativa António Sérgio para a Economia Social. (2020). Inquérito ao setor da economia Social 2018 https://www.ine.pt/xurl/pub/450307417
    » https://www.ine.pt/xurl/pub/450307417
  • Laville, J.-L. (2018). Economia social e solidária: práticas, teorias e debates Almedina.
  • Monteiro, A. (2020). Sindicalismo e economia social. In J. Pitacas, & L. Reto(Org.), A economia social numa visão plural CEEPS.
  • Mothé, D. (2009). Autogestão. In A. D. Cattani, J.-L. Laville, L. I. Gaiger, & P. Hespanha (Orgs.), Dicionário internacional da outra economia Almedina.
  • Namorado, R. (2013). O mistério do cooperativismo: da cooperação ao movimento cooperativo Almedina.
  • Piccinini, V. (2005). Cooperativas de trabalho de Porto Alegre e flexibilização do trabalho (Socius Working Papers, nº 8). Universidade Técnica de Lisboa. https://www.repository.utl.pt/bitstream/10400.5/2023/1/wp200508.pdf
    » https://www.repository.utl.pt/bitstream/10400.5/2023/1/wp200508.pdf
  • Quelhas, A. (2001). A refundação do papel do Estado nas políticas sociais Almedina.
  • Santo, J. E., & Faria, P. (2022, janeiro 09). Os trabalhadores e as trabalhadoras das IPSS. Esquerda https://www.esquerda.net/dossier/os-trabalhadores-e-trabalhadoras-das-ipss/78748
    » https://www.esquerda.net/dossier/os-trabalhadores-e-trabalhadoras-das-ipss/78748
  • Santos, E. (2020). Os desafios à organização e gestão das mutualidades durante a vigência do I Código das Associações Mutualistas (1990-2018) Instituto Politécnico de Santarém.
  • Santos, M., Lima, M., & Ferreira, V. (1976). O 25 de abril e as lutas sociais nas empresas Afrontamento.
  • Singer, P. (2002). A recente ressurreição da economia solidária no Brasil. In B. S. Santos (Org.), Produzir para viver: os caminhos da produção capitalista Civilização Brasileira.
  • Spognardi, A. (2019). The rise and fall of industrial self-management in Portugal: a historical institutionalist perspective. Journal of Labor and Society, 22(3), 589-605. https://doi.org/10.1111/wusa.12400
    » https://doi.org/10.1111/wusa.12400
  • Tiriba, L. (2009). Saberes do trabalho associado: a autogestão no contexto do movimento popular de 25 de abril, em Portugal. In Anais do 27º Congreso de la Asociación Latinoamericana de Sociología, Buenos Aires, Argentina.
  • União das Mutualidades Portuguesas. (2023). As mutualidades portuguesas 2023 https://mutualismo.pt/portal/anexos/noticias/docs/3475/brochura_anual_ump.pdf
    » https://mutualismo.pt/portal/anexos/noticias/docs/3475/brochura_anual_ump.pdf
  • Varela, R., & Rajado, A. (2018). Prólogo II: quem precisa de patrões?In L. Tiriba, M. Faria, & H. Novaes (Orgs.), Cenários da autogestão em Portugal: o processo revolucionário em curso (1974-1975) Navegando Publicações.
  • 1
    Está em curso (2023) a aplicação, pelo INE, de um inquérito às associações de socorros mútuos, com vista a obter informações desagregadas sobre indicadores financeiros e físicos relacionados com a atividade dessas instituições.
  • 2
    Ainda assim, a área ocupada pelos baldios em Portugal abrange hoje cerca de 6% da superfície do Portugal continental.
  • 3
    A Cases é uma régie cooperativa, ou cooperativa de interesse público, apoiada pelo Estado e por organizações representativas do setor da economia social, com o objetivo de promover o fortalecimento desse setor, aprofundando a cooperação entre o Estado e as organizações que o integram.
  • DISPONIBILIDADE DE DADOS

    Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

PARECERISTAS

  • 7
    Os dois revisores não autorizaram a divulgação de suas identidades.
  • RELATÓRIO DE REVISÃO POR PARES

    O relatório de revisão por pares está disponível neste link: https://periodicos.fgv.br/cadernosebape/article/view/91212/85730
Hélio Arthur Reis Irigaray (Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro / RJ - Brasil). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9580-7859
Fabricio Stocker (Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro / RJ - Brasil). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6340-9127

Disponibilidade de dados

Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2023
  • Aceito
    05 Jul 2023
Fundação Getulio Vargas, Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas Rua Jornalista Orlando Dantas, 30 - sala 107, 22231-010 Rio de Janeiro/RJ Brasil, Tel.: (21) 3083-2731 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernosebape@fgv.br