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Relações de trabalho no mundo corporativo: possível antecedente do empreendedorismo?

Workingrelations in the corporate setting: a possible antecedent for entrepreneurship?

Resumos

Este estudo teve por objetivo compreender a transição de profissionais qualificados que abriram mão de carreiras corporativas para empreender seus próprios negócios, mantendo-se em suas áreas profissionais. As pesquisadoras buscaram identificar nas narrativas dos entrevistados dilemas, motivações, satisfações e indícios que pudessem demonstrar de que forma suas experiências corporativas impulsionaram e/ou influenciaram as suas experiências empreendedoras.Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de caráter exploratório (DENZIN e LINCOLN, 1994). Oito casos foram analisados à luz da literatura de relações de trabalho, que reconhece a erosão nas relações de longo-prazo entre empregado e empregador (CAPELLI, 1999) e os decorrentes encargos impostos sobre os profissionais (HARVEY, 1992). Os resultados deste estudo reforçam fatores motivadores do empreendedorismo já antecipados pela literatura, como a busca por flexibilidade, autonomia e melhor qualidade de vida. Além disso, revelam antecedentes não considerados pelos modelos explicativos do empreendedorismo, como a busca por uma prática profissional capaz de refletir valores e crenças pessoais não encontrados no mundo corporativo. Este estudo ilustra como, no Brasil, o empreendedorismo está emergindo como uma resposta dos indivíduos às insatisfações, dilemas e questionamentos enfrentados em suas respectivas trajetórias profissionais.

Empreendedorismo; Relações de trabalho; Carreira; Organizações


This study aimed to understand the transition of skilled professionals who give up corporate careers to set up their own businesses in their original professional areas. The researchers sought to identify in the respondents' narratives their dilemmas, motivations, satisfaction and other evidence that might show how their experiences in different organizations boosted or influenced their entrepreneurial initiatives. This is a qualitative study, employing an exploratory approach (DENZIN and LINCOLN, 1994). Eight cases were analyzed in the context of the literature of working relations that recognizes the erosion in long-term relationships between employees and employers (CAPELLI, 1999) and the consequences imposed on professionals (HARVEY, 1992). The conclusion reinforces the findings of previous researchers by identifying the motivating factors for entrepreneurship, such as the drive for flexibility, autonomy and improved quality of life. Moreover, this study reveals some antecedents not previously considered in the literature-for example, individuals wishing to reflect their personal values and beliefs in their own businesses. The paper illustrates how entrepreneurship is emerging in Brazil as a response to dissatisfaction and dilemmas in the workplace.

Entrepreneurship; Workingrelations; Career; Organizations


Relações de trabalho no mundo corporativo: possível antecedente do empreendedorismo?1 1 Uma versão preliminar deste estudo foi apresentada no XXXI Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (Anpad), realizado no Rio de Janeiro - RJ / Brasil, de 22 a 26 de setembro de 2007.

Workingrelations in the corporate setting: a possible antecedent for entrepreneurship?

Tânia Tisser BeydaI; Renata Utchitel CasadoII

IDoutoranda em Administração pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Endereço: Rua Marquês de São Vicente, 225, Gávea, CEP 22451-900, Rio de Janeiro - RJ, Brasil. E-mail: ttbeyda@gmail.com

IIDoutoranda em Administração (Management & Organisations) pela The University of Western Australia Business School. Endereço: M261, 35 Stirling Highway, Nedlands, 6009, WA, Australia. E-mail: renata@casado.eng.br

RESUMO

Este estudo teve por objetivo compreender a transição de profissionais qualificados que abriram mão de carreiras corporativas para empreender seus próprios negócios, mantendo-se em suas áreas profissionais. As pesquisadoras buscaram identificar nas narrativas dos entrevistados dilemas, motivações, satisfações e indícios que pudessem demonstrar de que forma suas experiências corporativas impulsionaram e/ou influenciaram as suas experiências empreendedoras.Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de caráter exploratório (DENZIN e LINCOLN, 1994). Oito casos foram analisados à luz da literatura de relações de trabalho, que reconhece a erosão nas relações de longo-prazo entre empregado e empregador (CAPELLI, 1999) e os decorrentes encargos impostos sobre os profissionais (HARVEY, 1992). Os resultados deste estudo reforçam fatores motivadores do empreendedorismo já antecipados pela literatura, como a busca por flexibilidade, autonomia e melhor qualidade de vida. Além disso, revelam antecedentes não considerados pelos modelos explicativos do empreendedorismo, como a busca por uma prática profissional capaz de refletir valores e crenças pessoais não encontrados no mundo corporativo. Este estudo ilustra como, no Brasil, o empreendedorismo está emergindo como uma resposta dos indivíduos às insatisfações, dilemas e questionamentos enfrentados em suas respectivas trajetórias profissionais.

Palavras-chave: Empreendedorismo. Relações de trabalho. Carreira. Organizações.

ABSTRACT

This study aimed to understand the transition of skilled professionals who give up corporate careers to set up their own businesses in their original professional areas. The researchers sought to identify in the respondents' narratives their dilemmas, motivations, satisfaction and other evidence that might show how their experiences in different organizations boosted or influenced their entrepreneurial initiatives. This is a qualitative study, employing an exploratory approach (DENZIN and LINCOLN, 1994). Eight cases were analyzed in the context of the literature of working relations that recognizes the erosion in long-term relationships between employees and employers (CAPELLI, 1999) and the consequences imposed on professionals (HARVEY, 1992). The conclusion reinforces the findings of previous researchers by identifying the motivating factors for entrepreneurship, such as the drive for flexibility, autonomy and improved quality of life. Moreover, this study reveals some antecedents not previously considered in the literature-for example, individuals wishing to reflect their personal values and beliefs in their own businesses. The paper illustrates how entrepreneurship is emerging in Brazil as a response to dissatisfaction and dilemmas in the workplace.

Keywords: Entrepreneurship. Workingrelations. Career. Organizations.

Introdução

O mundo corporativo tem imposto encargos excessivamente pesados aos seus funcionários. As mudanças na forma como as organizações passaram a operar com o advento da tecnologia de informação, o aumento da competitividade global após a abertura de novos mercados ao redor do mundo, a consequente pressão pela redução dos custos e pelo aumento do valor acionário das empresas, bem como as novas técnicas gerenciais emergentes do compartilhamento de ideias por todo o planeta, erodiram os benefícios do velho "relacionamento de longo-prazo" entre empregado e empregador (CAPELLI, 1999). Não existem mais garantias de emprego, não há investimento na formação e no desenvolvimento dos empregados e predomina a certeza de que não há lugar para todos. Em contrapartida, as exigências impostas aos jovens profissionais - jovens, porque os mais experientes não são valorizados nesse novo ambiente - são muitas: eles precisam estar permanentemente conectados às suas redes, fazendo network, são responsáveis por sua qualificação e precisam fazer um bom trabalho, ao mesmo tempo em que devem olhar para o mercado em busca das oportunidades para o seu crescimento e ascensão profissional.

É nesse cenário - que se torna ainda mais frenético, na medida em que as informações, as necessidades de mercado e as pressões fluem e se modificam com uma rapidez ascendente - que muitos jovens vêm buscando novas alternativas de trabalho. Impulsionados pelo desejo de se tornarem empresários, empreendedores, donos de seus próprios negócios, esses indivíduos, muitas vezes, têm abdicado da possibilidade de traçar as tradicionais carreiras, bem-sucedidas e bem remuneradas, dentro de grandes corporações. Eles parecem querer mais: buscam independência, flexibilidade, qualidade de vida e alta remuneração.

Este estudo tem por objetivo compreender a transição de profissionais que abrem mão de carreiras corporativas para empreender seu próprio negócio. Trata-se de uma pesquisa focada em indivíduos que, apesar da mudança, mantiveram-se em suas áreas profissionais. Dessa forma, não são foco deste estudo pessoas que optaram por alternativas empreendedoras em áreas distintas da de sua formação acadêmica ou profissional. Busca-se identificar em seus discursos as motivações e indícios que possam demonstrar de que forma suas experiências corporativas impulsionaram e/ou influenciaram a experiência empreendedora.

O contexto particular desse grupo de profissionais, aparentemente, tem sido desconsiderado pela literatura de empreendedorismo. Os modelos e teorias sobre empreendedorismo desenvolvidos até o momento (SHOOK, PRIEM e McGEE, 2003; UCBASARAN, WESTHEAD e WRIGHT, 2001) vêm deixando de abordar aspectos que parecem relevantes para se compreender as motivações que levam tais indivíduos a abandonar seus empregos corporativos e a empreender.

De forma a atingir os objetivos do estudo, os casos são analisados à luz da literatura de relações de trabalho, e, por essa razão, apenas uma breve contextualização do processo empreendedor é apresentada. A relevância do estudo está na sua contribuição para o entendimento do processo empreendedor como uma possível resposta do indivíduo às insatisfações, dilemas e questionamentos que enfrenta ao longo de sua trajetória profissional como empregado.

O artigo começa com uma introdução ao tema do empreendedorismo. Em seguida, faz uma síntese das discussões sobre as mudanças ocorridas nas relações de trabalho, na carreira, na empregabilidade e quanto à motivação para o empreendedorismo. Mais adiante, discute a abordagem metodológica adotada nesta pesquisa e seus resultados para, em seguida, apresentar conclusões e implicações.

Referencial Teórico

O empreendedorismo

O papel do indivíduo empreendedor na economia tornou-se indiscutível. Assim como os grandes negócios e as empresas multinacionais, ele passou a ser tratado como um relevante gerador de emprego e renda, fonte de arrecadação de impostos, corresponsável pela criação de produtos e serviços capazes de gerar desenvolvimento. Acredita-se hoje que o empreendedor seja o "motor da economia", um agente de mudanças (DOLABELA, 1999). Campbell (1992), define o empreendedor como aquele que é self-employed e que começa, organiza, gerencia e assume a responsabilidade de um negócio. Trata-se de um desafio pessoal que muitos indivíduos preferem enfrentar a estar empregado, trabalhando para o negócio de alguém. Os empreendedores aceitam os riscos financeiros inerentes à abertura de um negócio, mas também se beneficiam diretamente do potencial de sucesso de seus empreendimentos (CAMPBELL, 1992).

E por que alguns indivíduos buscam oportunidades empreendedoras, enquanto outros preferem se manter no mercado de trabalho? Diferentes estudos apontam diferentes teorias - e, naturalmente, diferentes perspectivas, orientadas pela psicologia, pela sociologia ou pela economia - para entender as razões e os processos que conduzem o indivíduo à escolha empreendedora. Lee e Venkataraman (2005), em um estudo sobre as aspirações, as ofertas do mercado e as oportunidades empreendedoras, propõem um modelo que consiste na interação do que eles chamam de dois construtos multidimensionais distintos: (1) um vetor aspiracional do indivíduo, composto pela combinação de benefícios sociais, econômicos e psicológicos capazes de motivá-lo; e (2) um vetor de ofertas percebidas no mercado, uma combinação de dimensões sociais, econômicas e psicológicas disponíveis para o indivíduo (implícita ou explicitamente) no mercado de trabalho, num dado momento. Para os autores, a interação desses construtos determinaria as oportunidades abertas ao indivíduo e seu lócus de busca entre as oportunidades econômicas.

Estudos também indicam que são duas as principais razões que levam o indivíduo a empreender: necessidade ou oportunidade. O relatório de pesquisa Sobrevivência e Mortalidade das Média e Pequenas Empresas - Fatores Condicionantes (SEBRAE, 2005), que contou com a participação de cerca de 6.700 empresas ativas e cerca de 450 empresas inativas, traz informações interessantes sobre o perfil e as motivações dos empreendedores no Brasil. Seus resultados indicam que, entre as empresas ativas, em 2005, 51% dos empreendedores eram oriundos de empregos em empresas privadas, enquanto em 2002 apenas 34% tinham esse perfil. Quanto às razões citadas para o empreendedorismo, as principais foram: desejo de ter o próprio negócio (60%), identificação de uma oportunidade (43%) e expectativa de aumento da renda ou melhoria de vida (37%).

Na mesma pesquisa, apenas 6% dos empreendedores, afirmam que estavam desempregados antes de empreender (SEBRAE, 2005). Mesmo assim, o alto índice de desemprego no Brasil é considerado uma das razões para o empreendedorismo, já que, sem alternativas, os funcionários demitidos começam a criar novos negócios (DORNELAS, 2001). Atuando na economia formal ou informal, o fato é que esses indivíduos deixam de ser empregados e tornam-se patrões de si mesmos. Entretanto, não é esse o perfil de empreendedor de que trata este artigo. O foco aqui está naqueles indivíduos que criam seus negócios com o intuito de se tornarem os novos jovens milionários, independentes e donos de suas próprias vidas (DORNELAS, 2001).

No Brasil, o tema do empreendedorismo tem sido investigado de óticas diversas. A perspectiva do gênero tem atraído o interesse dos pesquisadores em relação aos seguintes aspectos: os conflitos decorrentes da multiplicidade de papéis das mulheres empreendedoras (JONATHAN e SILVA, 2007), as inquietações e o bem-estar subjetivo de mulheres empreendedoras (JONATHAN, 2005), o equilíbrio entre a vida pessoal e a profissional (LINDO, CARDOSO, RODRIGUES et al., 2007), além do processo de criação de empresas por mulheres (MACHADO, ST-CYR, MIONE et al., 2003) e a discussão de políticas públicas voltadas ao empreendedorismo feminino (NATIVIDADE, 2009). Outros artigos investigam temas diversos, como por exemplo: as relações entre empreendedorismo étnico e religião em comunidades imigrantes (MARTES e RODRIGUEZ, 2004), o perfil empreendedor e o desempenho da firma (SCHMIDT e BOHNENBERGER, 2009), os efeitos da atividade empreendedora no crescimento econômico e na taxa de desemprego (BARROS e PEREIRA, 2008) e as incubadoras de empresas (RIBEIRO, ANDRADE e ZAMBALDE, 2005; VERSIANI e GUIMARÃES, 2006; ZOUAIN e SILVEIRA, 2006; ZOUAIN e TORRES, 2005).

É importante ressaltar que os empreendedores não constituem uma entidade homogênea; tampouco, o empreendedorismo pode ser encarado como um evento single-action (UCBASARAN, WESTHEAD e WRIGHT, 2001). Os indivíduos empreendedores têm diferentes características, motivações, padrões de comportamento e dilemas. Reagem de forma distinta às diferentes características das novas relações de trabalho, conforme será tratado a seguir.

As relações de trabalho

Para melhor entender a emergência das iniciativas empreendedoras, é relevante compreender as mudanças ocorridas nas relações de trabalho nas últimas décadas, pois estas parecem contribuir de forma determinante para o seu incremento, seja de forma voluntária ou compulsória.

No pós-II Guerra houve uma grande expansão econômica, que se estendeu de 1945 a 1973, refletindo-se num conjunto de práticas de controle do trabalho, tecnologias, hábitos de consumo e configurações de poder político-econômico denominado por Harvey (1992) de fordista-keynesiano. O colapso desse sistema a partir de 1973 deu início, no mundo capitalista, a uma série de rápidas mudanças que caracterizaram um conturbado período de reestruturação econômica, do trabalho e de reajustes sociais e políticos. Harvey (1992) apresenta diversos fatores econômicos que justificam essas mudanças, como, por exemplo, a crise do petróleo e a inflação, que levaram as empresas à busca pela racionalização, reestruturação, automação, pelos nichos de mercado, por novos produtos e a uma dispersão das plantas produtivas, além de fusões e aquisições.

Como decorrência das oscilações e incertezas do momento, uma série de novas experiências ocorreu no âmbito da organização industrial e da vida social e política. Segundo Harvey (1992), teve início então a passagem para um sistema capitalista de acumulação flexível, baseado na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados, dos produtos e dos padrões de consumo. Isso abarcou uma série de iniciativas que começaram a prejudicar o compromisso fordista de relação de trabalho de longo prazo. Surgiram setores de produção inteiramente novos, outros se expandiram significativamente, como o setor de serviços. Foram adotadas novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados foram criados e houve a intensificação de inovações nas áreas comercial, tecnológica e organizacional. O mercado de trabalho passou por uma reestruturação radical decorrente da forte volatilidade do ambiente em geral, do aumento da competição e do estreitamento das margens de lucro.

Harvey (1992) destaca que o aumento das massas desempregadas e o enfraquecimento do poder sindical permitiram que as empresas impusessem regimes e contratos de trabalho mais flexíveis. Houve uma redução do emprego regular em troca do uso crescente de trabalhadores em regime de tempo parcial, temporário ou subcontratado, através de terceirizações.

Harvey (1992) descreve um novo modelo que passou a ser uma configuração comum nas organizações, o qual se caracteriza por um grupo central de empregados (ou core) e dois grupos periféricos. Nesse modelo, os empregados do grupo central trabalham em tempo integral, têm maior segurança, perspectivas de promoção, carreira em longo prazo e, muitas vezes, capacitação oferecida pela empresa. Por sua vez, eles devem ser multifuncionais, adaptáveis, flexíveis e geograficamente móveis quando interessar à empresa. Já os trabalhadores do primeiro grupo periférico são também empregados em tempo integral, mas com habilidades facilmente disponíveis no mercado, cujas atividades se caracterizam como rotineiras e relacionadas à execução de trabalho manual menos especializado. Esse grupo tem menos acesso a oportunidades de carreira e tende a ter uma alta taxa de rotatividade. O segundo grupo periférico proposto por Harvey (1992) inclui empregados em tempo parcial, eventuais, temporários e subcontratados. Esse grupo se caracteriza por ser aquele com menor segurança no emprego e por possibilitar flexibilidade numérica para a organização. Segundo o autor, há evidências de que esta seja a categoria de empregados com maior crescimento nos últimos anos.

Outra transformação relevante no âmbito trabalhista foi o fato das empresas terem quebrado os compromissos de longo prazo das relações de trabalho estabelecidas anteriormente, no old deal, e não mais deterem controle sobre as novas relações neste new deal (CAPPELLI, 1999). A perda do controle sobre as novas relações de trabalho decorre das flutuações nas demandas do mercado - que passa a ser determinante do comportamento e das atitudes dos empregados. À medida que se modifica no mercado a demanda por determinadas competências, os que as possuem sentem diretamente o efeito dessa mudança nas suas relações de trabalho.

As mudanças nas relações de trabalho anteriormente descritas são denominadas de formas diversas por vários autores: old deal e new deal, por Cappelli (1999); industrialismo e pós-industrialismo, pós-fordismo e flexibilidade, por Ransome (1999); pós-empresarial, por Kanter (1997); fordismo e acumulação flexível, por Harvey (1992); segundo e terceiro espíritos do capitalismo, por Boltanski e Chiapello (2005); e fases burocrática e adhocrática, por Rousseau (1995). A seguir, este artigo apresenta os principais conceitos tratados por esses autores quando lançam o olhar sobre as novas relações de trabalho existentes no momento socioeconômico atual. É importante ressaltar que, por vezes, a denominação e o aprofundamento se diferenciam, embora, em essência, características similares das novas relações de trabalho permeiem os estudos de todos eles.

Carreira nas organizações e empregabilidade

Boltanski e Chiapello (2005) apontam que, no discurso gerencial das novas práticas de gestão, existe um processo de seleção/exclusão pelo qual os menos qualificados, menos competentes ou com pouca flexibilidade vão sendo gradativamente expulsos do emprego estável. A oferta do emprego de longo prazo está se reduzindo, mas mesmo para estes poucos que permanecem em uma única organização, a lógica de suas carreiras não parece mais seguir um padrão burocrático de uma progressão ordenada de cargos cada vez mais altos na hierarquia e remunerações cada vez melhores (KANTER, 1997). Os trabalhadores são organizados em pequenas equipes pluridisciplinares, que devem ser mais competentes, flexíveis, criativas e autônomas, tendo como verdadeiro "patrão" o cliente (BOLTANSKI e CHIAPELLO, 2005). Ao mesmo tempo, as pessoas vão passando de projeto para projeto, como profissionais recompensados por cada realização ou como empresários, criando suas próprias oportunidades. A vida passa a ser uma sucessão de projetos que quanto mais diversos forem mais contribuirão para a valorização do indivíduo (BOLTANSKI e CHIAPELLO, 2005). A carreira pós-empresarial passa a ser uma mistura de princípios profissionais e empresariais, baseada em cargos mais contingenciais, temporários e com poucos benefícios e promessas (KANTER, 1997).

No mundo pós-empresarial, a melhor fonte de segurança para as pessoas não é a garantia de um emprego específico, mas de sua empregabilidade. O discurso insere certo nível de segurança na relação de trabalho, ao sugerir que o empregado desenvolverá competências, que garantirão sua recolocação no mercado. Entretanto as empresas reduzem drasticamente os investimentos em treinamento e na capacitação dos empregados (CAPPELLI, 1999). Boltanski e Chiapello (2005) apontam, inclusive, o surgimento de uma dimensão sedutora da nova gestão empresarial: a proposta dirigida a cada indivíduo, convidando-o ao seu desenvolvimento pessoal. O novo modelo propõe autonomia, baseada no conhecimento de si mesmo para esse desenvolvimento. Assim, a segurança das novas carreiras advém do ser empregável, da chance de acumular capital humano através de novas habilidades e reputação.

Por outro lado, a sobrecarga no local de trabalho é um problema significativo que afeta a vida pessoal e familiar: as pessoas passaram a trabalhar mais horas, pois as organizações estão mais enxutas e pressionam os remanescentes a trabalhar mais. Também se multiplicam as pressões para que as pessoas provem que estão contribuindo para a empresa (KANTER, 1977). Essa sobrecarga tem consequências humanas importantes: a invasão da vida pessoal ameaça relacionamentos que não se acomodam às exigências do local de trabalho. Historicamente, homens casados e mulheres solteiras eram aqueles de quem se esperava o sucesso nos cargos corporativos mais poderosos e melhor remunerados. Os homens casados eram considerados mais estáveis e tinham um sistema de apoio gratuito que cuidava de sua vida doméstica, de modo que não existiam exigências conflitantes com atividades relacionadas aos negócios (KANTER, 1997).

Entretanto, a clássica "esposa corporativa" está desaparecendo e toma lugar um casal de "carreiras duplas" (KANTER, 1997). Em outras palavras, as mulheres casadas juntaram-se aos homens como força de trabalho. Apesar da emergente consciência sobre a carreira das mulheres empregadas, ainda existe conflito entre as exigências do trabalho e da família - esta última normalmente reconhecida como de responsabilidade feminina.

As empresas, apesar de adotarem políticas de oportunidades iguais de carreira para homens e mulheres, não aceitam menos que pessoas totalmente comprometidas e que concordem com a sobrecarga de trabalho. Assim, as mesmas práticas que deram às mulheres a esperança de conquistarem posições mais altas, impuseram mais obstáculos a essa conquista (KANTER, 1997), ao tornar as relações de trabalho mais vulneráveis para elas (BOLTANSKI e CHIAPELLO, 2005). Entretanto a capacidade das mulheres conciliarem profissão e família já foi apontada como um fator de diferenciação diante dos homens, os quais tendem a priorizar o lado profissional, deixando a vida familiar em segundo plano e, assim, dando origem a conflitos entre as prioridades do trabalho e da família (LINDO, CARDOSO, RODRIGUES et al., 2007).

Boltanski e Chiapello (2005) observam também que a transformação da carreira hierárquica em carreira por projetos acabou criando novos mecanismos de seleção e exclusão, como a capacidade de flexibilidade e de adaptabilidade. Nesse cenário, as pessoas devem ter maior capacidade de se engajar e desengajar facilmente de diversos projetos, tarefas, funções e relações interpessoais. Nesse sentido, Sennett (1999) levanta outro aspecto que é relevante para a compreensão dos dilemas relativos à mobilidade e à flexibilidade: o "flexitempo". A flexibilidade passa a ser encarada como a grande recompensa do empregado, embora, ao mesmo tempo, o coloque sob maior domínio da instituição. O trabalhador em flexitempo, graças às novas tecnologias, determina o local onde irá trabalhar, mas não adquire maior controle sobre o processo de trabalho em si. Além disso, passa a se dedicar ao trabalho em tempo integral.

Motivação para a carreira empreendedora

Algumas pessoas saem por opção da escada corporativa para as carreiras pós-empresariais, mas outras são empurradas sem uma "rede de segurança" e sem apoio para ajudá-las. Além das vítimas das reestruturações, que não têm escolha porque seus cargos desapareceram, existem dois outros grupos que vêm rumando para carreiras independentes: os que escapam das corporações - pois não veem chance de progresso e espaço para promoção a níveis hierárquicos mais altos - e os que querem mais autonomia e a chance de obter mais diretamente o retorno sobre seu trabalho (KANTER, 1997).

Começar o próprio negócio é uma forma de se libertar, é uma versão de sonho empresarial que gira mais em torno da autonomia do que da riqueza. É uma resposta às tensões de subordinação (KANTER, 1997), mas é uma decisão que envolve risco. Para Sennett (1999), a disposição para arriscar não é mais domínio apenas de capitalistas de risco ou indivíduos extremamente aventureiros: o risco vai se tornar uma necessidade diária enfrentada pelas massas. Esse risco é um aspecto que permeia todo o processo de tomada de decisão referente à migração para carreiras independentes. É inerente à iniciativa empreendedora. Em complemento, Boltanski e Chiapello (2005) observam o discurso da emergência do "homem conexionista" que não se deixa aprisionar pelas instituições, preferindo renunciar ao poder viabilizado pela carreira de longo prazo em prol de se libertar das restrições impostas pela supervisão, pelo enquadramento, pelo gerenciamento e pelas regras estabelecidas. Esse tipo de homem prefere autonomia à segurança e aceita que sua autoridade passe a depender exclusivamente de sua competência.

Os empresários dependem dos resultados de seus esforços. Entretanto, alcançam muito mais que apenas retorno financeiro quando têm sucesso. A liberdade, a independência e o controle, não apenas das próprias tarefas, mas também sobre o ambiente organizacional, são benefícios clássicos, apesar de pairar sempre uma grande incerteza sobre o futuro. Segundo Kanter (1997), quem está em carreiras empreendedoras identifica o progresso à medida que o "território abaixo de si" aumenta e têm início os retornos esperados desse crescimento. Ainda segundo a autora, em geral, o padrão da carreira empreendedora oferece diversos elementos encontrados em associação com a motivação para alta produtividade: o controle sobre seu próprio trabalho, a capacidade de estabelecer o próprio ritmo, a alegria de ver as coisas acontecerem e as recompensas monetárias vinculadas diretamente às suas realizações.

Por outro lado, Sennett (1999) contrapõe que a realidade acaba por demonstrar que o sonho de independência através da abertura da própria empresa pode ser uma ilusão. Ao iniciar seu percurso, muitas vezes, o indivíduo se vê mergulhado em tarefas subalternas - como tirar fotocópias e enviar mensagens de fax - e na necessidade de subserviência a pessoas e horários. O empresário não tem papéis fixos que delimitem suas responsabilidades, pois deve, a todo o tempo, preocupar-se não só com a satisfação de seus clientes, mas também com sua reputação (SENNETT, 1999).

Os sinais visíveis de status costumam desaparecer, assim como o "escritório" e o "nome da empresa" que até então atribuíam identidade aos profissionais, independente da magnitude de seu talento. Quando deixam as empresas, os profissionais passam a depender de suas realizações pessoais, o que para alguns, é um choque (KANTER, 1997). Na nova lógica de carreira, as pessoas contam menos com os adereços externos da corporação, que lhes imputavam importância, e cada vez dependem mais do seu principal ativo: seu nome (KANTER, 1997). A reputação passa a ser a chave do sucesso. Cada projeto, ao ser terminado com sucesso, aumenta o valor da reputação.

Independente da natureza das relações de trabalho - sejam elas estáveis, temporárias ou empreendedoras - Boltanski e Chiapello (2005) argumentam que estamos vivendo em uma dimensão, mundo ou cidade de projetos. Eles descrevem o ambiente atual como um "mundo reticular" onde a vida social é composta de uma proliferação de encontros e conexões, temporárias, mas reativáveis, com vários grupos formados eventualmente em dimensões sociais, profissionais, geográficas ou culturais. Assim, quando o indivíduo se torna empresário, seu trabalho passa a ser feito de acordo com uma nova lógica, pois é necessário cultivar redes de contato para vender o próximo projeto.

Nas carreiras pós-empresariais, aqui chamadas empreendedoras, o acesso ao próximo trabalho está muito mais diretamente vinculado à excelência do último (KANTER, 1997), o que demanda maior dedicação, produtividade e qualidade do esforço, além de gerar maior ansiedade no indivíduo. Apesar de poderem oferecer retorno financeiro muito maior, as carreiras empreendedoras alimentam o risco, a incerteza e a insegurança. Assim, um resultado inevitável do abandono de carreiras corporativas é a maior flutuação nos ganhos, além da necessidade de um planejamento que considere que o progresso financeiro automático não mais existe (KANTER, 1997).

Aspectos Metodológicos

Esta é uma pesquisa de caráter fenomenológico que tem interesse pela compreensão da construção social que os indivíduos desenvolvem de sua trajetória profissional. Para se alcançar o objetivo estabelecido, optou-se por uma pesquisa qualitativa de caráter exploratório (DENZIN e LINCOLN, 1994) envolvendo estudo múltiplo de casos (YIN, 2009). A busca de evidências foi realizada através de entrevistas semiestruturadas, a partir de um roteiro composto por perguntas abertas e abrangentes que davam espaço para que o entrevistado voluntariamente discorresse sobre temas relevantes à sua experiência individual. Todos os depoimentos foram gravados, posteriormente, transcritos e analisados através de categorização, utilizando-se o software Atlas TI.

Através de uma amostra de conveniência, o que se buscou foram indivíduos que tivessem percebido o empreendedorismo como a continuidade de sua carreira profissional. Foram entrevistados oito profissionais:

a) indivíduo do sexo masculino, 36 anos, formado em administração de empresas, casado, tinha sua empresa de consultoria de gestão de projetos há dois anos;

b) indivíduo do sexo masculino, 32 anos, formado em administração de empresas, casado, tinha sua empresa de consultoria de gestão de projetos há dois anos;

c) indivíduo do sexo feminino, 33 anos, formada em comunicação social, casada, estava no processo de abertura formal de sua empresa de consultoria de comunicação, já existente há dois anos;

d) indivíduo do sexo feminino, 38 anos, formada em comunicação visual, casada, tinha sua empresa de design há cinco anos;

e) indivíduo do sexo masculino, 40 anos, formado em engenharia elétrica, casado, dois filhos, tinha sua empresa de consultoria em tecnologia da informação há cerca de 10 anos;

f) indivíduo do sexo masculino, 45 anos, formado em ciências contábeis, casado, dois filhos, tinha sua empresa de auditoria e consultoria contábil há cerca de nove anos;

g) indivíduo do sexo feminino, 42 anos, formada em tecnologia da informação, casada, dois filhos, tinha sua empresa de consultoria em RH há cerca de dois meses;

h) indivíduo do sexo masculino, 34 anos, formado em engenharia de produção, casado, um filho, teve sua empresa de consultoria por dois anos, retornando ao mundo corporativo.

Resultados e Discussão

Esta seção apresenta os resultados da pesquisa organizados por meio das principais categorias emergentes nas narrativas dos entrevistados, quais sejam: carreira na organização, motivação para carreira empreendedora, carreira empreendedora e dilemas da ruptura com o mundo corporativo. Posteriormente, os resultados são discutidos à luz de outros estudos sobre empreendedorismo no Brasil.

Carreira na organização

Apesar do aparente enfraquecimento do poder da hierarquia e do afrouxamento dos vínculos entre a corporação e o indivíduo (BOLTANSKI e CHIAPELLO, 2005; KANTER, 1997) percebidos nas novas relações trabalhistas, os entrevistados assumem terem ido buscar em suas carreiras corporativas as contrapartidas e os valores inerentes aos contratos do old deal (CAPPELLI, 1999), especialmente, aqueles relacionados às possibilidades de carreira:

Trabalhando na área de consultoria empresarial, o objetivo de vida era virar sócio.

Entrei como estagiária, cresci muito lá dentro, tive muitas oportunidades, trabalhei muito, me dediquei demais, vesti a camisa sempre, o tempo todo. [...] E fui promovida muitas vezes.

Outra questão que merece destaque é que, apesar de fazerem parte de um grupo core altamente qualificado, os entrevistados percebem que podem ser facilmente excluídos (BOLTANSKI e CHIAPELLO, 2005) - assim como os menos qualificados, de funções periféricas - se as suas funções não mais tiverem importância estratégica para a organização na qual trabalham:

A gente desenvolveu um sistema que foi um sucesso [...] só que aí eu caí na real, porque [...] esse não era o fim da empresa. A empresa vendia gás. E esse trabalho, apesar de ter sido fantástico, não serviu de nada.

Portanto, apesar da carreira na organização se desenvolver em busca de uma relação de longo prazo, de desenvolvimento e realização profissional, há sempre a ameaça de ser "descartável". O sucesso e as recompensas alcançadas por muitos dos entrevistados através de avanços de carreira não parecem ser suficientemente fortes para demonstrar-lhes que se estabeleceu uma relação segura e recompensadora, que possa retê-los nas empresas. As motivações e razões comumente articuladas para justificar a busca pelo empreendedorismo são discutidas a seguir.

Motivação para a carreira empreendedora

Os entrevistados neste estudo não foram vítimas de reestruturações, nem foram demitidos. Todos seguiram para as carreiras empreendedoras por opção própria, renunciando ao que tinham nas grandes corporações. Estavam em busca de qualidade de vida, de maior autonomia e da chance de obter retorno direto sobre o seu trabalho (KANTER, 1997).

O que me fez dar o primeiro passo pra abrir uma empresa foi ter um espírito empreendedor [pois] eu tinha uma vontade de participar de todos os processos. [...] Você não está lá fazendo só a função para a qual foi contratada, você está pensando o negócio de uma forma mais global.

A ideia não era nem abrir uma empresa, mas trabalhar como consultor, porque eu ia ter oportunidade de ganhar muito mais do que eu ganhava.

Perseguir suas crenças pessoais e a possibilidade de praticar seus valores no ambiente de trabalho também surge como uma das razões para empreender.

Você coloca na frente seus interesses pessoais e não os interesses daquela organização.

Diferenças na maneira de ser, de atuar, de agir, e isso no começo dava para levar, porque os resultados eram brilhantes, mas chegou num ponto que se tornou insustentável, tanto para eles quanto para mim, porque eu não vou me transformar numa pessoa que eu não sou, e eles queriam uma pessoa diferente. [...] Eles queriam alguém que não era eu.

Outra convergência relevante, observada em seis dos depoimentos, é que esses empreendedores responderam às oportunidades que o ambiente lhes oferecia: em três casos, os indivíduos receberam convites tentadores de profissionais que admiravam; nos outros três casos, clientes bateram à porta.

Foi uma decisão que surgiu a partir de uma oportunidade de outras pessoas com que eu trabalhava e gostava de trabalhar e que iriam montar a própria consultoria.

Por questões de relacionamento ele [o cliente] não quis continuar [...] então, me pediram para montar uma pessoa jurídica e continuar com eles.

No grupo estudado percebem-se diversas motivações para o empreendimento: busca por qualidade de vida, maior autonomia, melhor retorno financeiro e a liberdade de praticar suas crenças pessoais. Para muitos dos entrevistados, o grande incentivo surgiu através de convites para empreender.

Carreira empreendedora

Após a concretização do empreendimento, os entrevistados se depararam com diversas questões que não esperavam encontrar ou não se sentiam preparados para enfrentar. Algumas das quais não faziam parte da sua experiência profissional ou que haviam vivenciado como empregados e não como "patrões".

A primeira delas diz respeito aos seus funcionários. Cinco dos entrevistados possuem um corpo de funcionários técnicos e administrativos. Entretanto, não observamos nesses empreendedores um discurso claramente articulado sobre investimentos e valorização de seus funcionários, tema citado por muitos como relevante quando eram empregados. Apenas um dos entrevistados comenta sobre o benefício oferecido através de treinamento e patrocínio de certificações (necessárias aos técnicos de TI), que acredita conferir empregabilidade aos seus funcionários.

O que podemos oferecer é um bom ambiente de trabalho. Fizemos uma reforma para darmos melhores condições aos funcionários, demos notebooks aos técnicos, treinamento, incentivos para que eles estejam sempre estudando, obtendo certificados de especializações, e é dessa forma que tentamos manter a equipe motivada.

Por outro lado, o receio do empresário investir no desenvolvimento de seu empregado, como descrito na literatura, faz parte da sua realidade, apesar desse investimento ser muitas vezes a forma de conseguir contratar e retê-lo na empresa:

[...] eu preciso de um profissional qualificado. E isso eu não pego fácil no mercado. Eu tenho que formá-lo, e isso leva tempo. Então, quando ele sai da empresa, o tempo de reposição dessa pessoa é muito demorado. E esse é nosso grande problema, a reposição do pessoal, trabalhando num mercado altamente especializado e tendo como concorrentes grandes empresas.

Outra questão abordada pela maioria dos entrevistados se refere à sobrecarga de trabalho. Esta parece ser inerente às situações de trabalho desses indivíduos também na situação de empreendedores. Da mesma forma que as pessoas trabalham mais nas organizações porque as estruturas estão menores e as pressões são mais frequentes, os empresários parecem dedicar mais tempo aos seus negócios do que gostariam:

Minha expectativa não é trabalhar sempre assim [...] em algum momento a empresa vai conseguir andar em velocidade de cruzeiro.

Eu tava num momento em que queria parar pra estudar [...]. Com a minha rotina na minha empresa não dava, eu trabalhava demais, não tinha tempo pra nada [...] eu era sobrecarregado com tarefas técnicas de todos os projetos e mais todas as outras tarefas administrativas que eu não conseguia [dar conta].

É no discurso dos entrevistados do sexo feminino que se reflete a incidência dos dilemas domésticos e familiares sobre a responsabilidade do trabalho. Conforme observado por Kanter (1997), apesar dos casais atualmente se dividirem como força de trabalho, a maior parte das tarefas domésticas continua sob responsabilidade das mulheres, o que parece ter forte impacto em suas decisões profissionais - sejam elas no ambiente organizacional ou na carreira empreendedora:

Talvez, pro homem seja mais fácil, mas pra mulher é complicado. Porque, eu não tenho filhos, tudo bem, mas eu tenho que saber o que o marido vai comer à noite.

Outro dilema que estou vivendo é a questão de quanto eu vou me dedicar ao trabalho e à família. [...] Hoje eu coloco toda a minha energia no meu trabalho, e, às vezes, eu penso em ter um filho.

Quanto à flexibilidade do horário de trabalho, ela parece ser um benefício para o empreendedor apenas quando sua empresa já está estabilizada. Para o indivíduo que está iniciando seu negócio, a dedicação é em tempo integral. O flexitempo (SENNET, 1999) para o empresário é, nessa perspectiva, a grande recompensa e, ao mesmo tempo, sua forma de dominar mais completamente a sua instituição:

No início era uma desgraça! Tinha que trabalhar muito! Ganhava pouco. Mas ao longo desses 11 anos, houve uma evolução. Hoje, chego às 10 horas [...]. Aqui, eu tenho flexibilidade. [Eu tenho] mais autonomia!

Outra questão que preocupa os entrevistados é a sua reputação (KANTER, 1997). Para tal, eles buscam adotar valores e práticas que lhes confiram essa reputação e minimizem o risco de perda de credibilidade. A desvinculação do nome da grande empresa e do status que ela lhe conferia aparece como uma barreira a ser vencida pelos novos empreendedores (KANTER, 1997), para que possam ter sucesso dependendo apenas de suas próprias realizações. Estes, então, buscam oportunidades de desenvolvimento da reputação como o caminho que vai lhes trazer mais estabilidade e segurança no mundo reticular.

Teve uma mudança muito importante que foi o seguinte: [...] antes, o meu sobrenome [nome da empresa] era mais importante do que o meu nome. Agora não; agora é diferente. Isso pra mim eu acho que foi um negócio fundamental, porque hoje eu não tenho a menor preocupação da minha empresa não dar certo.

A gente construiu uma reputação em dois anos, [...] a gente tem grandes clientes, todo mundo chama a gente pra participar [de concorrências].

Mesmo no ambiente pós-empresarial, os sinais visíveis de status ainda são valorizados; quando não aparecem, podem ser objeto de ressentimento ou preconceito. Nos discursos fica claro o papel de símbolos - como a sede, o cargo e as mordomias - como representações de status e importância:

Eu fechei com um cliente agora e o presidente tem 80 anos. Ele perguntou onde era a minha sede, quantos funcionários eu tinha. Óbvio que ele perguntou, ele vem de outra geração de relação trabalhista, né? É muito difícil, tem muito preconceito, as pessoas não aceitam.

A gente até faz uma brincadeira e chama o pessoal que trabalha em empresa grande de "pessoal do pão de queijo", "pessoal do croissant", que têm secretária e toda a mordomia. E nossa empresa não tem isso.

Ainda relacionada à questão do status está a (nova) necessidade de realização das tarefas subalternas (SENNETT, 1999), já que muitas vezes o empreendedor se vê executando atividades que não se dispunha ou não precisava fazer em sua vida corporativa e que conotam a perda de uma posição hierárquica ou social.

No início eu tinha que fazer de tudo. Uma vez, fui carregar uma caixa de computador para entregar pro cliente e ele achou que eu era o boy: me deu gorjeta!. Uma narrativa que claramente demonstra como o entrevistado se viu marcado pela imediata deformação do status ocupado por ele em sua própria empresa.

Estas são, portanto, algumas das questões não previstas ou não consideradas pelos entrevistados na tomada de decisão de empreender e descobertas por eles na rotina do empreendimento: as dificuldades de retenção de funcionários, a sobrecarga de trabalho, os conflitos com a vida pessoal, a perda do status anterior, a necessidade de construção de uma sólida reputação e o imperativo de investimentos na empresa e de atualização profissional.

Dilemas da ruptura com o mundo corporativo

Observa-se nos entrevistados uma forte motivação para desenharem sua organização de acordo com os valores que consideram relevantes, através do controle de seu próprio trabalho e da capacidade de estabelecer o próprio ritmo (KANTER, 1997). Também é possível extrair das narrativas, sentimentos de conquista quando veem surgir frutos de seus esforços:

Queremos que o ambiente da empresa seja bom para todos. E isso só é possível com respeito e franqueza com as pessoas. [Nós] sabemos que não somos uma empresa grande, mas queremos trabalhar como uma empresa grande.

[Fomos] direcionando a empresa para o lado que achávamos correto. É isso que é legal no empreendedorismo, você decidir o caminho da sua empresa.

Entretanto, os entrevistados foram unânimes em explicar que a decisão de empreender os direcionou para um caminho árduo, de difícil aprendizado, também cercado de instabilidade e insegurança, da mesma forma que no mundo corporativo. Segundo os relatos, a realidade acaba por demonstrar que o sonho da independência através da própria empresa pode ser uma mera ilusão (SENNETT, 1999). Os empreendedores demonstram enfrentar dilemas similares aos do mundo corporativo, até porque passam a fazer parte dele em outra posição. Passam a enfrentar dilemas que contrapõem seu desejo de fazer as coisas de forma diferente, mais justa ou mais respeitosa, e acabam tendo que optar por uma administração que traga resultados benéficos para a empresa. Os empreendedores enfrentam dilemas e dificuldades da pequena empresa que lhes impõe ações que não haviam sido previstas ou antecipadas. O processo de transição de empregado para empresário é um exercício doloroso, para o qual os entrevistados não pareciam estar preparados:

Essa transição de empregado para empreendedor, empresário é extremamente difícil. [...] Hoje, às vezes, a gente toma determinadas ações que, quando a gente era empregado, a gente ia "meter o malho" [...] Mas hoje a gente olha e fala assim: "Caramba! Faz sentido; não tem jeito". Às vezes, você tem que ser um pouco mais duro. Às vezes, tem que tomar uma ação que as pessoas podem não compreender [...]. A transparência total não existe; essa é a minha conclusão.

Esse foi um ponto [em] que nos frustramos, porque tínhamos a ideia de que os sócios seriam responsáveis por 90% da venda e 10% da entrega. Isso é viável se você tem uma equipe que tem o consultor sênior com qualificação, um consultor pleno que dá conta do trabalho e um consultor mais novo que faz a coisa acontecer. Tentamos montar uma pirâmide, tentamos por três vezes e não deu certo.

Como já relatado anteriormente, a gestão dos empregados aparece como um tema de difícil trato para os novos empreendedores. Ao lidar com as expectativas dos empregados, eles parecem reproduzir alguns modelos apreendidos no mundo corporativo, mas com algumas desvantagens por serem empresas de pequeno porte. Diversos entrevistados relatam dificuldades para oferecer aos seus funcionários salários que sejam competitivos com os do mercado. Praticam um discurso que busca valorizar benefícios intangíveis por aqueles percebidos:

Acho que todos aqui acreditam que essa empresa tem um enorme potencial. [...] Acho que o salário não é o que está mantendo as pessoas aqui. Acho que é o sonho.

[...] temos que ter em mente que somos uma empresa pequena, e não vamos conseguir ter o melhor salário do mercado. Então, para nós, salário não é tudo.

Naturalmente, essa responsabilidade de pagar as contas da empresa e o salário de seus empregados (e ainda manter todos satisfeitos) substitui a velha tranquilidade de receber um salário no final do mês. Um dos entrevistados relata com muita sinceridade esse cenário em uma empresa pequena:

Se eu der um benefício de mil reais, significa mil reais a menos no meu bolso!

Apesar de também evidente nas grandes organizações, o "mundo reticular" proposto por Boltanski e Chiapello (2005), com sua proliferação de encontros e conexões, reflete-se como uma condição necessária nos discursos dos empreendedores entrevistados. Apesar de trabalharem basicamente pela lógica de projetos, os entrevistados não parecem ter dificuldades com as conexões operacionais necessárias à execução dos trabalhos a que se propõem. Quando discorrem sobre o tema, apontam a importância de suas redes - clientes, parceiros, amigos e até alunos - para o bom andamento de seus negócios. O cultivo das redes de contatos parece ser permanente, porque eles entendem que o acesso ao próximo trabalho está muito mais diretamente vinculado a excelência do último (KANTER, 1997).

Eu já tive mais de três mil alunos ao longo dos últimos seis anos, e 80% dos nossos clientes são pessoas que já tiveram aula comigo, uma palestra ou alguma coisa. Na verdade, as aulas acabam criando uma relação de confiança com a venda, que não é uma venda de geladeira, é uma venda de ideias.

[os contatos para os projetos] sempre acontecem na base da indicação. Porque um projeto puxa o outro. [...] Uma coisa chama a outra. É um trabalho de network, basicamente. As pessoas conhecem seu trabalho, gostam e acabam te chamando.

As redes são relevantes, ainda, para o processo de mitigação do risco. Alguns entrevistados parecem preocupados em manter as redes, de forma a garantir a recolocação no mercado de trabalho no caso de seu empreendimento fracassar:

A minha vantagem é que, se eu quiser voltar, eu continuo no mesmo mercado em que eu estava. Eu continuo em contato com as pessoas.

No momento em que são questionados sobre a possibilidade de retomarem suas carreiras corporativas, os discursos dos empreendedores entrevistados indicam uma preocupação com os preconceitos contra a meia-idade e seu afastamento do ambiente empresarial (SENNETT, 1999):

Se eu bater 40 anos e a empresa não decolar, eu vou ter que voltar para o mercado, porque depois vai ficando mais difícil.

Eu não projeto isso [voltar para o mundo corporativo como empregado] para o meu futuro, porque a gente vai ficando mais velha, começa a sair do perfil de um funcionário tradicional.

Porém, a questão da idade também surge relacionada ao risco de empreender. No processo de tomada de decisão entre ficar no emprego ou abrir o próprio negócio, parece ser feita uma ponderação sobre a adequação do momento, articulado pelo fato de ainda não se ter filhos e encontrar-se na faixa etária abaixo de 40 anos: "E pelo fato de ainda não ter filhos, não ter dependentes, estou numa idade em que ainda posso arriscar." O risco de empreender parece também minimizado pela existência de um cônjuge que trabalhe vinculado a uma empresa: "Já tinha filho, mas conversei com minha esposa. Ela tinha um trabalho fixo, e decidi que aquela era a hora de arriscar. Não queria arriscar aos quarenta, cinquenta anos."

Conforme pontuado na literatura, as carreiras empreendedoras podem oferecer oportunidades financeiras muito maiores para alguns, além de uma grande chance de aumento de renda: "Eu assinei um contrato com um cliente, muito aquém do mercado, mas [depois]... não teve um mês [em] que eu tenha ganhado menos do que eu ganhava empregada." Um entrevistado declara já ter alcançado um patamar de estabilidade e sucesso financeiro: "Eu acho que nestes 10 anos resolvi minha vida financeira. Hoje, tenho uma situação que posso parar de trabalhar e viver dos rendimentos."

Contudo, essa não é uma vantagem percebida no discurso de todos os empreendedores entrevistados. Muito pelo contrário: "Depois, passamos quatro meses sem vender. [...] quatro meses sem faturar." A flutuação nos ganhos realmente aparece como um resultado inevitável do abandono de carreiras corporativas (KANTER, 1997), o que acaba por levar alguns ao questionamento, à incerteza e à reavaliação: "Financeiramente foi um péssimo negócio. Espero que um dia deixe de ser [...]. Mas a perspectiva de crescimento [...] faz com que a gente tenha uma visão de médio prazo."

Para muitos dos entrevistados, principalmente nos primeiros anos do empreendimento, a insegurança e a instabilidade financeira se tornam uma preocupação constante:

Embora a minha network tivesse um fluxo de trabalho relativamente constante, tinha mudado aquela relação de se ter dinheiro fixo. Deixou de ser aquela grana certa que você ganha no fim do mês. Você tem que correr atrás do dinheiro, batalhar o trabalho para ele acontecer, e nem sempre ele acontece.

Surgem, portanto, vários dilemas nessa nova etapa da vida dos empreendedores. Muitas das dificuldades e dos questionamentos que precisam ser encarados até foram vividos anteriormente pelos entrevistados, ainda em suas carreiras corporativas. Porém, a perspectiva a partir da ocupação de uma posição completamente antagônica às vivenciadas até então, ou seja, como empregador e não mais como empregado, parece dar uma nova dimensão a todos os dilemas. Nesse sentido, é importante ressaltar que as narrativas percorrem simultaneamente caminhos descritivos de sucesso e realização, assim como de reconhecimento das dificuldades, frustrações e riscos envolvidos na decisão tomada. A sombra da dúvida parece rondar vários dos entrevistados, tanto em relação aos caminhos trilhados quanto ao futuro do empreendimento, mas seus discursos ainda assim vêm marcados pelo sentimento (ou pela esperança) de conquista.

Em síntese, encontra-se nos relatos dos entrevistados vários dos dilemas já apontados por Peel e Inkson (2004) no jogo estrutura versus agência. Apesar dos empreendedores passarem a ter maior controle sobre seu trabalho e maior flexibilidade, as exigências dos clientes oferecem apenas uma autonomia ilusória, ao mesmo tempo em que as demandas pela sobrevivência no mercado impõem novas restrições. A busca do caminho para maiores rendimentos através de resultados individuais é contraposta pela insegurança dos contratos, pela variabilidade dos ganhos e pelo tempo gasto em atividades administrativas não remuneradas que podem limitar essa realidade. O indivíduo se torna o guardião do seu próprio desenvolvimento pessoal. Entretanto, muitas limitações - especialmente, de recursos e de tempo - acabam por restringir também seu desenvolvimento.

A busca por desafios e pela variedade de trabalhos executados - que permitiria aos empreendedores o desenvolvimento de novas habilidades profissionais, o prazer de novas experiências -, também acaba por não tornar-se realidade. Os novos empresários acabam sendo contratados por seus clientes para continuar realizando o mesmo tipo de trabalho que faziam como empregados em suas antigas corporações, e que precisam aceitar porque minimiza a instabilidade financeira de suas novas empresas (PEEL e INKSON, 2004). De fato, a independência do empreendimento liberta o indivíduo de constrangimentos, como o gerado por políticas organizacionais, oferecendo a oportunidade de fazer escolhas e de praticar seus valores pessoais. Entretanto, o preço dessa troca pode ser o da perda da tração de carreira que os empregados têm e, ainda segundo Peel e Inkson (2004), o risco de isolamento social.

Discussão dos Resultados

Os resultados deste estudo indicam que a decisão de empreender, para o grupo de indivíduos estudado, foi uma alternativa à carreira profissional em grandes empresas. As iniciativas empreendedoras desdobradas e reveladas ao longo deste estudo parecem resultar de um contexto marcado: (1) pela insegurança resultante da percepção de que carreiras profissionais já não existem e de que profissionais atualmente são "descartáveis" em muitas organizações; (2) pelas peculiaridades das relações de trabalhos, que acabam por ocasionar um generalizado sentimento de insatisfação; e (3) por um ideal de vida profissional capaz de proporcionar, ao mesmo tempo, uma boa renda e uma aceitável qualidade de vida. Alguns desses fatores foram previamente investigados - embora, de forma isolada - pela literatura de empreendedorismo no Brasil.

Em seus depoimentos, os entrevistados fazem frequentes referências a excesso de trabalho, remuneração inadequada e pressão para aderirem a um comportamento dissonante dos seus próprios valores e crenças, deixando claro que a insatisfação pessoal com as relações de trabalho, muitas vezes, acaba levando à decisão de empreender. Resultados similares foram encontrados por Silva (2008), ao estudar a trajetória de consultores autoempregados, e por Machado, St-Cyr, Mione et al. (2003), ao estudarem mulheres empreendedoras no Canadá, na França e no Brasil. A insatisfação com algumas das condições de trabalho (SILVA, 2008) e a falta de perspectivas no trabalho anterior (MACHADO, ST-CYR, MIONE et al., 2003) são fatores apontados previamente pela literatura como motivadores para o empreendedorismo.

A busca por desafios e pela liberdade, que permitiria aos empreendedores o desenvolvimento de novas habilidades profissionais e o prazer de novas experiências, são algumas das questões que já haviam sido previamente abordadas por Zouain e Torres (2005). Ao sintetizarem a literatura empírica sobre incubadoras de empresas no Brasil, as autoras propõem que os projetos de empreendedorismo incubados proporcionam aos indivíduos a oportunidade de passar à condição de empreendedores e conquistar maior autonomia e poder de decisão, deixando de submeter-se "às opressivas relações de trabalho da organização fordista" (ZOUAIN e TORRES, 2005, p.6).

Os indivíduos entrevistados seguiram a carreira empreendedora mantendo-se no mesmo segmento de negócio em que já atuavam como empregados. Isto é, empreenderam, tornando-se concorrentes de seus antigos empregadores. Algumas oportunidades empreendedoras surgiram a partir de solicitações de clientes da empresa anterior, indicando que os relacionamentos desenvolvidos como empregados ajudaram a viabilizar a decisão de empreender. A pesquisa de Machado, St-Cyr, Mione et al. (2003) mostra que 30% das empreendedoras que entrevistaram tinham experiência prévia como empregadas no mesmo segmento de atuação. De forma similar, a pesquisa de Silva (2008) explicita que a formação e a bagagem de conhecimentos adquiridos nas experiências anteriores como empregados colaboraram para que os indivíduos se sentissem preparados para atuar como autoempregados. Percebe-se, portanto, que a relação de trabalho como empregado não funciona apenas como antecedente do empreendedorismo, pela insatisfação que desperta. Ela também pode ser um facilitador, seja pelas oportunidades oferecidas para a capacitação profissional, seja pela experiência que permite se adquirir no negócio, seja pela possibilidade de desenvolvimento de uma rede de relacionamentos no segmento de atuação.

Indissociável do discurso sobre a decisão de empreender, segue a exposição dos entrevistados sobre as dificuldades e os dilemas enfrentados na condução de seus empreendimentos. Frequentemente são citadas:

• a impossibilidade de remunerar seus funcionários como desejariam;

• o desperdício com investimentos em capacitação de funcionários que logo deixam a empresa;

• a sobrecarga de trabalho resultante da inexistência de estruturas administrativas que lhes deem sustentação;

• a dificuldade (ou impossibilidade) de reconstrução do status anterior através de símbolos corporativos;

• a instabilidade financeira; e

• a pressão decorrente da responsabilidade de cumprir com as obrigações financeiras do empreendimento.

De forma similar, os entrevistados por Silva (2008) relatam os obstáculos que enfrentaram para mudar seus modelos mentais, construídos para serem empregados em grandes empresas, e apontam as mesmas dificuldades em relação à falta de infraestrutura para lidar com questões administrativas e burocráticas.

Finalmente, os resultados obtidos por Lindo, Cardoso, Rodrigues et al. (2007), ao estudarem empreendedoras no segmento de creches e bufês, revelam a carga horária de trabalho (que acaba sendo ainda maior) como uma das dificuldades enfrentadas no empreendedorismo. A qualidade de vida também é apontada como uma questão difícil de ser conduzida - já que fazer crescer o negócio implica menos tempo dedicado à família e à vida pessoal (LINDO, CARDOSO, RODRIGUES et al., 2007). As mulheres empreendedoras entrevistadas por Jonathan e Silva (2007) também apontam o tempo dedicado ao trabalho como um dos principais aspectos geradores de conflitos na busca de equilíbrio entre trabalho e vida pessoal. No mesmo estudo, o discurso dos entrevistados do sexo feminino refletiu a incidência dos dilemas domésticos e familiares sobre a responsabilidade do trabalho.

Ao investigar a decisão de empreender na perspectiva das relações de trabalho, explorando e relacionando as diferentes motivações que norteiam empreendedores qualificados e as consequências de suas experiências anteriores no novo negócio, este estudo contribui para desenvolver o conhecimento sobre empreendedorismo no Brasil. Acredita-se, sobretudo, que contribua para uma melhor compreensão sobre o que leva a esse fenômeno no país - o qual já foi largamente atribuído ao desemprego (DORNELAS, 2001) -, sobre aspiração individual, percepção de oportunidade ou desejo de aumento de renda (SEBRAE, 2005). Nesta pesquisa, o processo empreendedor é observado de uma nova perspectiva, sendo reconhecido como uma possível resposta do indivíduo às insatisfações, dilemas e questionamentos que enfrenta ao longo de sua trajetória profissional como empregado.

Conclusões, Proposições e Implicações

Este estudo se propôs a explorar a transição de profissionais que abriram mão de carreiras corporativas para empreender seus próprios negócios, mantendo a especialização profissional. Esse objetivo foi alcançado através da análise da trajetória de oito indivíduos. Buscou-se identificar em seus discursos os seus dilemas, motivações, satisfações e indícios que pudessem demonstrar de que forma suas experiências corporativas impulsionaram e/ou influenciaram a experiência empreendedora. Cabe lembrar que aqui se trata de um estudo exploratório, que não busca razões e explicações generalizáveis, passíveis de serem encontradas em estudos mais amplos.

Os resultados deste estudo apontam fatores motivadores (antecedentes) do empreendedorismo já antecipados pela literatura, tais como busca de maior independência, flexibilidade, autonomia, maior rendimento e melhor qualidade de vida. Ao mesmo tempo, no discurso dos entrevistados surgem novos fatores ainda não considerados pelos modelos explicativos do empreendedorismo, como a busca por uma prática de relações de trabalho que reflita os seus valores e crenças pessoais, que os indivíduos não conseguiram encontrar no mundo corporativo. Surgem, portanto, aspectos da carreira corporativa que atuam como antecedentes do empreendedorismo. Este passa a se destacar como uma resposta dos indivíduos às insatisfações, dilemas e questionamentos enfrentados em sua trajetória profissional. Ao mesmo tempo, a relação de trabalho como empregado parece atuar como facilitador do empreendedorismo por meio da capacitação profissional, da experiência do negócio e do desenvolvimento de uma rede de relacionamentos. A busca empreendedora pode ser uma ilusão para alguns, como antecipado por Sennett (1999), ou tratar-se de um conflito de estrutura versus agência.

Segundo Peel e Inkson (2004), os indivíduos que optam pelo autoemprego perseguem um ideal de agência, mas estão sempre lutando contra as restrições da estrutura. Os indivíduos parecem apenas mudar de lado nos dilemas ainda inerentes às relações de trabalho e ao empreendedorismo. Têm independência de chefia, mas passam a ter responsabilidade e compromisso com os provimentos de seus colaboradores. Têm flexibilidade de horário, mas precisam se dedicar aos negócios integralmente, normalmente, com ainda mais dedicação. Têm autonomia, mas precisam tomar todas as decisões do negócio, independente do que gostam de fazer ou do que têm mais competência para executar. Têm maior rendimento, mas também maior instabilidade e risco. Chegam, ou têm a expectativa de chegar, à melhor qualidade de vida, quando suas empresas atingem certo patamar em que possam seguir sozinhas. Apesar dos dilemas, a maioria dos entrevistados considera a possibilidade de retornar ao mundo corporativo como remota e a ser considerada apenas no caso de um fracasso no futuro.

Os resultados deste estudo sugerem a necessidade de uma investigação mais ampla sobre os impactos causados pela insatisfação com as relações de trabalho tradicionais no empreendedorismo. Entre as implicações práticas que emergem de tais impactos está a competitividade entre novos empreendedores e antigos empregadores, que passam a competir no mesmo mercado. Esse também é um tema que merece pesquisas adicionais, pois se percebe haver a possibilidade de que as insatisfações geradas pelas relações de trabalho resultem em maior competição para determinados segmentos de serviços, a partir do surgimento de novos empreendimentos, cujo ativo inicial é o relacionamento com os clientes, desenvolvido pelo empreendedor durante suas experiências profissionais anteriores.

Os modelos e teorias sobre empreendedorismo que lidam com o perfil empreendedor e a percepção da oportunidade empreendedora (SHOOK, PRIEM e MCGEE, 2003; UCBASARAN, WESTHEAD e WRIGHT, 2001) parecem passar ao largo de aspectos relevantes ao ambiente e à situação pessoal que levam à decisão de empreender. Da mesma forma, a academia brasileira raramente tem focado seu interesse nos fatores motivadores do empreendedorismo. Propõe-se, portanto, de uma forma mais abrangente, a inserção do estudo do empreendedorismo no Brasil no contexto das relações de trabalho contemporâneas. Nessa perspectiva, seriam consideradas não apenas as novas exigências do mundo do emprego, mas também as novas configurações de relações surgidas a partir da década de 1990, como a terceirização e a quarteirização das funções corporativas (BOLTANSKI e CHIAPELLO, 2005; CAPPELLI, 1999; HARVEY, 1992; KANTER, 1997; ROUSSEAU, 1995; SENNET, 1999).

A partir da pesquisa aqui apresentada surgem outras questões, que também intrigam as pesquisadoras e que mereceriam investigação. Este estudo deteve-se na decisão empreendedora de profissionais altamente qualificados. A questão que se coloca é saber se a insatisfação com as relações de trabalho tradicionais afetam a motivação para o empreendedorismo de profissionais e trabalhadores com menor nível de qualificação técnica. Outra questão está relacionada à natureza e ao porte da empresa. No grupo aqui estudado, o empreendedorismo foi considerado uma alternativa de trabalho óbvia à situação em se encontravam. Eram empregados de empresas onde havia a possibilidade de crescimento profissional e carreira. Esse fato suscita a necessidade de investigação da possibilidade de comportamentos diferentes em relação à motivação para o empreendedorismo, tratando-se de relações de trabalho em empresas de diferentes portes ou natureza: por exemplo, a empresa familiar. O empreendedorismo seria uma alternativa natural ou a insatisfação com a relação de trabalho levaria os indivíduos à busca por uma experiência em grandes empresas? Finalmente, levando em conta a possibilidade de que a relação de trabalho anterior influencie o modo de gestão do empreendimento, como estabelecer uma comparação com a gestão em que o empreendedor não tenha experiência prévia como empregado?

Artigo submetido em 28 de maio de 2009

Aceito para publicação em 18 de agosto de 2010.

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  • 1
    Uma versão preliminar deste estudo foi apresentada no XXXI Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (Anpad), realizado no Rio de Janeiro - RJ / Brasil, de 22 a 26 de setembro de 2007.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Jan 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2011

    Histórico

    • Recebido
      28 Maio 2009
    • Aceito
      18 Ago 2010
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