Resumo
O estudo descreve a criação e validação da Escala de Percepção da Corrupção (EPC), que se propõe a avaliar como o cidadão percebe a corrupção. Na construção e validação da EPC, em etapa qualitativa, o instrumento foi avaliado por especialistas, seguido de pré-teste. Já na etapa quantitativa, realizou-se análise fatorial exploratória e confirmatória, totalizando amostra de 1075 casos. Por fim, sugere-se uma metodologia para a aplicação da EPC. A estrutura final da medida é composta por cinco dimensões de nível individual (conhecimento, comportamento, reflexos, controle e atitude), que posicionam o cidadão como protagonista da análise do fenômeno.
Palavras-chave:
Corrupção; Cidadão; Métrica
Abstract
The study described the creation and validation of the Corruption Perception Scale (CPS), which assesses how citizens perceive corruption. In a qualitative step, the instrument was evaluated by experts, followed by a pre-test. In the quantitative step, exploratory and confirmatory factor analysis was performed, totaling a sample of 1,075 cases. Finally, a methodology for the application of CPS was suggested. The final structure of the measure was composed of five dimensions at the individual level (knowledge, behavior, reflexes, control, and attitude), which position the citizen as the protagonist in the analysis of the phenomenon.
Keywords:
Corruption; Citizen; Metrics
Resumen
El estudio describe la creación y validación de la Escala de Percepción de la Corrupción (EPC), que tiene como objetivo evaluar cómo los ciudadanos perciben la corrupción. En la construcción y validación de la EPC, en una etapa cualitativa, el instrumento fue evaluado por expertos, seguido de un pretest. En la etapa cuantitativa, se realizó un análisis factorial exploratorio y confirmatorio, totalizando una muestra de 1075 casos. Finalmente, se sugiere una metodología para la aplicación de la EPC. La estructura final de la medida está compuesta por cinco dimensiones a nivel individual (conocimiento, comportamiento, reflejos, control y actitud), que posicionan al ciudadano como protagonista en el análisis del fenómeno.
Palabras clave:
Corrupción; Ciudadano; Métrica
INTRODUÇÃO
A corrupção é um problema generalizado, enfrentado por vários países em épocas diferentes, e que, embora sua extensão possa variar de uma sociedade para outra, ameaça todas as nações (Mousavi & Pourkiani, 2013Mousavi, P., & Pourkiani, M. (2013). Administrative corruption: Ways of tackling the problem. Online Journal of Natural and Social Sciences, 2(3), 178-187.). Definida como o abuso do poder confiado a ganhos pessoais (Brown, 2006Brown, A. J. (2006). What are we trying to measure? Reviewing the basics of corruption definition In A. Shacklock, F. Galtung & C. Sampford (Eds.), Measuring corruption (pp. 57-79). Aldershot, UK: Ashgate.; Transparency International, 2019), a corrupção mina a justiça, a estabilidade econômica e a eficiência de uma sociedade (Shacklock, Sampford, & Connors, 2006Shacklock, A., Sampford, C., & Connors, C. (2006). Introduction. In A. Shacklock, F. Galtung & C. Sampford (Eds.), Measuring corruption(pp. 1-6). Aldershot, UK: Ashgate.), além de colocar em risco seus valores democráticos e morais (Lambsdorff, 1998Lambsdorff, J. G. (1998). Corruption in comparative perception. In A. K. Jain (Ed.), Economics of corruption(pp. 91-109). London, UK: Kluwer Academic Publishers.). Dentre as práticas de corrupção, as mais comuns se referem ao pagamento de suborno, à lavagem de dinheiro, ao tráfico de influência (Controladoria Geral da União [CGU], 2009Controladoria Geral da União. (2009). A responsabilidade social das empresas no combate à corrupção. Retrieved from https://www.gov.br/cgu/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/integridade/arquivos/manualrespsocialempresas_baixa.pdf
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), ao favoritismo, ao nepotismo, ao patrocínio político ilegal, à extorsão, ao roubo e à fraude (Cavalcante, 2018Cavalcante, R. J. (2018). Legalidade: combate à corrupção e compliance na era digital. Revista Brasileira de Estudos da Função Pública, 7(20). Retrieved from https://dspace.almg.gov.br/handle/11037/31605
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).
O indicador do nível de corrupção do setor público mais utilizado e conhecido a nível global é o Índice de Percepção de Corrupção (IPC, em inglês, Corruption Perceptions Index), publicado anualmente, desde 1995, pela organização não governamental Transparência Internacional (TI) (Gorsira, Denkers, & Huisman, 2018Gorsira, M., Denkers, A., & Huisman, W. (2018). Both sides of the coin: motives for corruption among public officials and business employees. Journal of Business Ethics, 151, 179-194.; Transparency International, 2021; Villarino, 2021Villarino, J. M. B. (2021). Measuring corruption: A critical analysis of the existing datasets and their suitability for diachronic transnational research. Social Indicators Research, 157, 709-747.). Conforme a Transparência Internacional (Transparency International, 2021), o IPC avalia 180 países e territórios e os atribui notas em uma escala entre 0 e 100, variando de muito corrupto a muito íntegro, respectivamente. Assim, em 2020, os países mais bem avaliados eram Dinamarca (88 pontos), Nova Zelândia (88), Finlândia (88), Singapura e Suécia (85); enquanto Venezuela (15 pontos), Iêmen (15), Síria (14), Somália (12) e Sudão do Sul (12) destacam-se negativamente no contexto mundial.
Outro importante índice é o World Governance Indicators (WGI), um projeto do World Bank Group, que produz indicadores de governança para mais de 200 países e territórios desde 1996, considerando seis dimensões, dentre elas o “Controle de Corrupção” (CoC). No ranking que varia de 0 a 100, comparando todos os países do mundo, no ano de 2019, países do continente africano como o Sudão do Sul, a Guiné Equatorial e a Somália, encontravam-se como os três piores do ranking no indicador de Controle de Corrupção, com posições menores do que 1,0. Já ao Finlândia, a Nova Zelândia e Singapura possuem escores próximos de 100, indicando aderência ao combate da corrupção, a partir deste indicador. Na visão de Villarino (2021Villarino, J. M. B. (2021). Measuring corruption: A critical analysis of the existing datasets and their suitability for diachronic transnational research. Social Indicators Research, 157, 709-747.), o CoC se destaca na comparação de nações, tendo em vista que proporciona informações sobre as mudanças ao longo do tempo, para um número relevante de países, a partir de refinamento metodológico e apoio de uma instituição renomada como o Banco Mundial.
A utilização de índices e indicadores para medições de corrupção têm contribuído com os governos a fazerem escolhas políticas, apresentando um cenário de popularidade (Perumal, 2021Perumal, K. (2021, February). Corruption measurements: caught between conceptualizing the phenomenon and promoting new governance agenda? Vision: The Journal of Business Perspective. Retrieved from https://doi.org/10.1177/0972262920983946
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) e, na medida do possível, envergonhando os governos corruptos (Mungiu-Pippidi & Dadašov, 2016Mungiu-Pippidi, A., & Dadašov, R. (2016). Measuring control of corruption by a new index of public integrity. European Journal on Criminal Policy and Research, 22(3), 415-438.). No campo da pesquisa, Malito (2014Malito, D. (2014, February). Measuring Corruption Indicators and Indices. SSRN Eletronic Journal. Retrieved from http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2393335
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) ressalta que há alta aplicação desses índices na produção acadêmica que versa sobre o impacto da corrupção nos países desenvolvidos e em desenvolvimento. Entretanto, há recomendações de que sejam aplicados com cautela e analisando-se bem o propósito da investigação, tendo em vista que tais métricas são amplamente baseadas nas percepções de especialistas, carecendo tanto de especificidade quanto de transparência (Mungiu-Pippidi & Dadašov, 2016).
Considera-se, para além dessa crítica, que ambas as métricas (IPC e CoC) estruturam-se sobre a égide de avaliar a estrutura administrativa do Estado, não depositando esforços para compreender como o cidadão comum percebe a corrupção diante das influências a que está exposto. Esta é a proposta desta investigação, que visa construir e validar uma escala de percepção da corrupção na visão do cidadão comum e não de agentes e especialistas na temática governamental. Ko e Samajdar (2010Ko, K., & Samajdar, A. (2010). Evaluation of international corruption indexes: Should we believe them or not? The Social Science Journal, 47(3), 508-540.) incitam a necessidade de se preencher esta lacuna, explorando as fontes de percepção do ponto de vista teórico, em uma perspectiva de baixo para cima, levando em consideração a percepção dos cidadãos sobre a corrupção. A validação de escalas desta natureza possui mérito ao possibilitar a comparação de fenômenos - neste caso a percepção de corrupção por parte da população - entre países (Overman, Schillemans, & Grimmelikhuijsen, 2020Overman, S., Schillemans, T., & Grimmelikhuijsen, S. (2020). A validated measurement for felt relational accountability in the public sector: gauging the account holder’s legitimacy and expertise. Public Management Review, 23(12), 1748-1767.) e regiões de um mesmo país, como no Brasil, com dimensões continentais.
Estudar a percepção dos cidadãos quanto à corrupção é fundamental, tendo em vista que pode impactar no bem geral e nas ações do governo. Školník (2020Školník, M. (2020). The Effects of Corruption on Various Forms of Political Participation in Colombia. Latin American Policy, 11(1), 88-102.) destaca que a percepção (negativa) de corrupção por parte de um cidadão leva à ausência de todas as suas formas de participação social, como, por exemplo, participação eleitoral, atuação em conselhos e reuniões municipais e de partidos políticos e manifestações. Neshkova e Kalesnikaite (2019Neshkova, M., & Kalesnijaite, V. (2019). Corruption and citizen participation in local government: Evidence from Latin America. Governance, 32(4), 1-17.) corroboram, ressaltando que, se os cidadãos avaliam um governo como corrupto e desonesto, eles se tornam céticos em relação à vida política e, consequentemente, são menos propensos a participar da governança democrática.
Tendo em vista a possibilidade de os cidadãos perderem a motivação para participar politicamente em um ambiente que considerem corrupto, sobressai a relevância desta investigação, que possibilita identificar as formas de compreensão do cidadão acerca da corrupção no país em que reside, sob diferentes perspectivas. Yu, Chen, e Lin (2013Yu, C., Chen, C. M., & Lin, M. W. (2013). Corruption Perception in Taiwan: reflections upon a bottom-up citizen perspective. Journal of Contemporary China, 22(79), 56-76.) destacam que o controle da corrupção requer primeiro um meio de medir o fenômeno, pois, só então, os problemas podem ser corretamente diagnosticados e as soluções devidamente avaliadas. Assim, corroboram os autores, para que um governo democrático possa governar de forma eficaz, devem ser levadas em consideração as pesquisas que avaliem a percepção sobre a corrupção “daqueles que estão nas ruas” (Yu et al., p. 57).
DESENVOLVIMENTO DA ESCALA DE PERCEPÇÃO DA CORRUPÇÃO (EPC)
A proposta de construção da escala torna-se destaque, na medida em que, além do caráter teórico inovador, reflete um esforço para se compreender como o cidadão comum reconhece este fenômeno complexo (Gorsira et al., 2018Gorsira, M., Denkers, A., & Huisman, W. (2018). Both sides of the coin: motives for corruption among public officials and business employees. Journal of Business Ethics, 151, 179-194.). Há mais de 30 anos, Hilgartner e Bosk (1988Hilgartner, S., & Bosk, C. (1988). The rise and fall of social problems: a public arenas model. American Journal of Sociology, 94(1), 53-78.) já destacavam que, do ponto de vista filosófico, o uso da percepção subjetiva para a medição da corrupção é justificável, porque as questões públicas são uma projeção da cognição coletiva da sociedade como um todo e não simplesmente um reflexo da realidade objetiva.
Collins, Uhlenbruck, e Rodriguez (2009Collins, J. D., Uhlenbruck, K., & Rodriguez, P. (2009). Why firms engage in corruption: A top management perspective. Journal of Business Ethics, 87(1), 89-108.) indicam que estudos de perspectiva subjetiva são complexos de serem conduzidos a nível individual, tendo em vista que a corrupção é difícil de definir, de observar e de medir. Para buscar eliminar estas barreiras, o instrumento desenvolvido para esta pesquisa é abrangente na análise da corrupção, elaborado a partir de extensiva revisão de literatura, incorporando cinco dimensões de nível individual (conhecimento, comportamento, reflexos, controle e atitude) e posicionando o cidadão como protagonista da análise do fenômeno.
A dimensão conhecimento reflete “aquilo/o que o cidadão conhece/sabe sobre corrupção”. Cidadãos politicamente conscientes compreendem as informações políticas de maneira diferente daqueles que não dão igual relevância ao tema (Weitz-Shapiro & Winters, 2016Weitz-Shapiro, R., & Winters, M. S. (2016). Can Citizens Discern? Information Credibility, Political Sophistication, and the Punishment of Corruption in Brazil. The Journal of Politics, 79(1), 60-74.). Assim, é fundamental que o cidadão tenha conhecimento sobre o significado da corrupção (Lin & Yu, 2014Lin, M. W., & Yu, C. (2014). Can Corruption Be Measured? Comparing Global Versus Local Perceptions of Corruption in East and Southeast Asia. Journal of Comparative Policy Analysis: Research and Practice, 16(2), 140-157.), as práticas corruptas (Sadek, 2019Sadek, M. T. A. (2019). Combate à corrupção: novos tempos. Revista CGU, 11(20), 1276-1283.), a legislação de combate (Abreu & Gomes, 2021Abreu, W. M, & Gomes, R. C. (2021, February). Shackling the Leviathan: balancing state and society powers against corruption. Public Management Review. Retrieved fromhttps://doi.org/10.1080/14719037.2021.1893802
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) e que busque informações para se atualizar sobre o tema (Bai, Liu, & Kou, 2014Bai, B., Liu, X., & Kou, Y. (2014). Belief in a just world lowers perceived intention of corruption: the mediating role of perceived punishment. PLoS ONE, 9(5), e97075.; Yu, Chen, & Lin, 2013Yu, C., Chen, C. M., & Lin, M. W. (2013). Corruption Perception in Taiwan: reflections upon a bottom-up citizen perspective. Journal of Contemporary China, 22(79), 56-76.), bem como o leve ao cerne da discussão social (Weitz-Shapiro & Winters, 2016Weitz-Shapiro, R., & Winters, M. S. (2016). Can Citizens Discern? Information Credibility, Political Sophistication, and the Punishment of Corruption in Brazil. The Journal of Politics, 79(1), 60-74.). O Quadro 1 lista os itens da dimensão conhecimento da EPC, definidos a partir da literatura atual.
A dimensão do conhecimento também se justifica, dado que a compreensão da corrupção é refletida em um fenômeno cultural, no entanto, os indivíduos não devem ser pré-julgados em relação ao seu país de origem (Barr & Serra, 2010Barr, A., & Serra, D. (2010, December). Corruption and culture: An experimental analysis. Journal of Public Economics, 94(11-12), 862-869.). De forma prática, esta dimensão analisa a relação entre as diferentes formas de obtenção de conhecimento sobre corrupção e a relevância que tal conhecimento tem sob esta percepção. Assim, implica que um cidadão que desconhece as práticas e atos de corrupção pode ter a sua percepção deste fenómeno prejudicada.
A dimensão comportamento representa “como o cidadão se comporta diante de atos corruptos”. Marquette e Peiffer (2018Marquette, H., & Peiffer, C. (2018). Grappling with the real politics of systemic corruption: Theoretical debates versus real-world functions. Governance, 31(3), 499-514.), ao compararem a teoria da ação coletiva e a teoria do agente-principal, concluem que ambas apresentam indicações muito próximas quanto à decisão de se envolver em corrupção, podendo ser motivada pela concepção do cidadão de que não perderá seu status de beneficiário de algo e nem será responsabilizado por tal ato. A relevância de se conhecer a percepção do cidadão comum quanto às suas ações frente aos atos corruptos é reforçada pela análise comportamental.
Tendo por base a literatura recente, o Quadro 2 lista os itens da EPC para a dimensão comportamento.
A literatura indica características específicas a serem compreendidas no nível do comportamento individual, segmentando-se aqueles que já presenciaram (Gorsira et al., 2018Gorsira, M., Denkers, A., & Huisman, W. (2018). Both sides of the coin: motives for corruption among public officials and business employees. Journal of Business Ethics, 151, 179-194.), denunciaram ou investigaram atos corruptos (M. Bugarin & T. Bugarin, 2017Bugarin, M., & Bugarin, T. (2017). Ética & incentivos: devemos recompensar quem denuncia corrupção? Revista Direito GV, 13(2), 390-427.; Independent Commission Against Corruption [ICAC], 2018), conviveram com acusados pelo crime de corrupção (Asian Barometer Survey, ABS W4, 2016Asian Barometer Survey. (2016). Asian barometer survey of democracy, governance and development. Retrieved from http://www.asianbarometer.org/pdf/core_questionnaire_wave4.pdf
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), ou já foram convidados a praticar pequenos atos de corrupção para conseguir algum benefício no setor público ou privado (Gorsira et al., 2018Gorsira, M., Denkers, A., & Huisman, W. (2018). Both sides of the coin: motives for corruption among public officials and business employees. Journal of Business Ethics, 151, 179-194.).
Na prática, os itens de dimensão comportamental medem a percepção de corrupção entre os respondentes que já tiveram contato e testemunharam práticas corruptivas e aqueles que nunca as experimentaram. Algumas perguntas avaliam o posicionamento ativo e passivo dos respondentes face às práticas corruptas, tanto no sector privado como no público, permitindo uma análise ainda mais interessante para compreender as percepções dos diferentes perfis de respondentes.
Na dimensão reflexo, mensura-se como o cidadão percebe as “consequências da corrupção para a sua vida e o seu país”. Neshkova e Kalesnikaite (2019Neshkova, M., & Kalesnijaite, V. (2019). Corruption and citizen participation in local government: Evidence from Latin America. Governance, 32(4), 1-17.) indicam que os reflexos da percepção da corrupção podem ser sentidos na participação política do cidadão; assim, se avaliam seu governo como corrupto e desonesto, tem menos probabilidade de participar de um governo democrático. Em âmbito individual, é salutar compreender o quanto o cidadão se sente afetado pelos efeitos da corrupção (Neshkova & Kalesnikaite, 2019Neshkova, M., & Kalesnijaite, V. (2019). Corruption and citizen participation in local government: Evidence from Latin America. Governance, 32(4), 1-17.), os reflexos das ações corruptas para a sua qualidade de vida (Warren, 2004Warren, M. (2004). What Does Corruption Mean in a Democracy? American Journal of Political Science, 48(2), 328-343.) e sua consequente sensação de privação ao acesso a bens ou serviços públicos (Amundsen, 1999Amundsen, I. (1999). Political corruption: an introduction to the issues. Bergen Norway: Chr. Michelsen Institute. Retrieved from https://www.cmi.no/publications/file/1040-political-coiTuption.pdf
https://www.cmi.no/publications/file/104...
; Leal, 2013Leal, R. G. (2013). Patologias corruptivas nas relações ente Estado, administração pública e sociedade: causas, consequências e tratamentos. Santa Cruz do Sul, SC: EDUNISC.; World Bank, 1997World Bank. (1997, September). Corruption and Economic Development. In World Bank (Ed.), Helping Countries Combat Corruption: The Role of the World Bank (pp. 8-23). Washington, DC: Author. Retrieved from http://www1.worldbank.org/publicsector/anticorrupt/corruptn/cor02.htm
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). No contexto social, esta dimensão visa o entendimento do quanto a corrupção pode ser danosa ao desenvolvimento do país (Abreu & Gomes, 2021Abreu, W. M, & Gomes, R. C. (2021, February). Shackling the Leviathan: balancing state and society powers against corruption. Public Management Review. Retrieved fromhttps://doi.org/10.1080/14719037.2021.1893802
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), impulsionar o desperdício do dinheiro público (Amundsen, 1999), bem como estar institucionalizada na sua cultura (ABS, 2016Asian Barometer Survey. (2016). Asian barometer survey of democracy, governance and development. Retrieved from http://www.asianbarometer.org/pdf/core_questionnaire_wave4.pdf
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; Lin & Yu, 2014Lin, M. W., & Yu, C. (2014). Can Corruption Be Measured? Comparing Global Versus Local Perceptions of Corruption in East and Southeast Asia. Journal of Comparative Policy Analysis: Research and Practice, 16(2), 140-157.). O Quadro 3 lista os itens da EPC para a dimensão reflexos.
Os itens de dimensão reflexo avaliam se os respondentes são particularmente afetados pela corrupção e as suas consequências para os cidadãos e para o país. Assim, a ideia desta dimensão é medir se os respondentes se sentem diretamente afetados pela corrupção. E, tendo o conhecimento e sabendo como a corrupção se manifesta, se os cidadãos podem identificar as consequências trazidas pela corrupção. A análise desta dimensão é justificada, pois entendemos que os reflexos da corrupção são sentidos de forma diferente entre aqueles que conhecem a corrupção, tanto no campo teórico como prático, ou que já foram afetados por ela, e aqueles que não experimentaram o fenômeno. Assim, esta dimensão torna-se ainda mais relevante quando analisada em conjunto com as dimensões do conhecimento e do comportamento, por exemplo.
O controle da corrupção compõe outra dimensão analisada, indicando “como o cidadão percebe o combate à corrupção no país realizado pelo Estado”. A ideia é mensurar a forma como a corrupção se torna visível ao cidadão e o quão evidentes são as estratégias para combatê-la. Acredita-se que, quanto mais evidentes essas estratégias, sejam elas mediadas legalmente, pelos órgãos reguladores do estado ou pela mídia, mais fácil de o cidadão identificar ações e atos corruptos. Nesse sentido, o estudo de Weitz-Shapiro e Winters (2016Weitz-Shapiro, R., & Winters, M. S. (2016). Can Citizens Discern? Information Credibility, Political Sophistication, and the Punishment of Corruption in Brazil. The Journal of Politics, 79(1), 60-74.) indica que indivíduos mais educados sejam mais propensos a discernir informações confiáveis e não confiáveis, tomando decisões mais acertadas e com menor desvio de conduta, além de cobrar uma postura mais ética das autoridades.
Esses resultados devem ser animadores para governos, como o Brasil, que têm investido na criação de unidades de auditoria e controle independentes e idôneas. Contanto que essas agências sejam capazes de manter sua reputação de alta qualidade, deve-se esperar que sua influência cresça à medida que a população se torne cada vez mais educada (Weitz-Shapiro & Winters, 2016Weitz-Shapiro, R., & Winters, M. S. (2016). Can Citizens Discern? Information Credibility, Political Sophistication, and the Punishment of Corruption in Brazil. The Journal of Politics, 79(1), 60-74., p. 71).
Abreu e Gomes (2021Abreu, W. M, & Gomes, R. C. (2021, February). Shackling the Leviathan: balancing state and society powers against corruption. Public Management Review. Retrieved fromhttps://doi.org/10.1080/14719037.2021.1893802
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) destacam que os níveis democráticos relacionados ao funcionamento do governo e à participação política impactam significativamente os resultados da percepção da corrupção. Assim, como mostrado nos itens do Quadro 4, as premissas investigadas neste estudo vão ao encontro da avaliação do cidadão quanto à eficiência dos órgãos reguladores do Estado e da legislação na identificação dos atos corruptos (Abreu & Gomes, 2021Abreu, W. M, & Gomes, R. C. (2021, February). Shackling the Leviathan: balancing state and society powers against corruption. Public Management Review. Retrieved fromhttps://doi.org/10.1080/14719037.2021.1893802
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), na transparência da divulgação desses atos (Kaufmann, 2003Kaufmann, D. (2003, March). Rethinking Governance: Empirical Lessons Challenge Orthodoxy. SSRN Eletronic Journal. Retrieved from http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.386904
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) e dos esforços realizados para punir e combater a corrupção (ABS, 2016Asian Barometer Survey. (2016). Asian barometer survey of democracy, governance and development. Retrieved from http://www.asianbarometer.org/pdf/core_questionnaire_wave4.pdf
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).
Os itens da dimensão controle buscam mensurar a percepção dos respondentes sobre as práticas realizadas para prevenir e combater a corrupção, algumas delas inspiradas e questionadas pela IPC. A análise da dimensão se enquadra na percepção de eficiência e suficiência dos esforços de combate à corrupção, se as punições são corretas e proporcionais e se há transparência nas ações de combate às práticas corruptas. Acredita-se que os cidadãos mais céticos quanto à capacidade de punir os corruptos teriam uma percepção diferente daqueles mais confiantes.
Por fim, a dimensão atitude é definida como “aquilo que o cidadão pensa/vivencia no que tange aos atos corruptos”. Sadek (2019Sadek, M. T. A. (2019). Combate à corrupção: novos tempos. Revista CGU, 11(20), 1276-1283.) salienta que as percepções estão vinculadas ao grau de escolaridade do indivíduo e da sua exposição às informações e divulgação dos atos corruptos. Julgamentos de nível pessoal quanto à (anti)ética de denunciar, praticar ou tolerar atos corruptos podem se configurar como elementos importantes para medir a confiança do cidadão na democracia. Manzetti e Wilson (2007Manzetti, L., & Wilson, C. J. (2007). Why do corrupt governments maintain public support? Comparative Political Studies, 49(8), 949-970.) argumentam que governos corruptos podem reter o apoio ao distribuir benefícios aos cidadãos, indicando que a corrupção pode ser vista como justificável por uma parcela da população. Assim, reforçam esses autores, em países onde as instituições políticas são subdesenvolvidas e fracas, a corrupção pode aumentar a participação dos cidadãos, que buscam lucrar com esses regimes corrompidos. Neshkova e Kalesnikaite (2019Neshkova, M., & Kalesnijaite, V. (2019). Corruption and citizen participation in local government: Evidence from Latin America. Governance, 32(4), 1-17.) destacam que, a nível local, onde os laços entre a comunidade e os funcionários públicos são presumivelmente mais fortes, a corrupção tem um efeito de mobilização, havendo uma maior tolerância para os atos corruptos. O Quadro 5 lista os itens da EPC de acordo com a dimensão atitude.
Os itens apresentados no Quadro 5 visam avaliar o nível de tolerância dos respondentes a práticas corruptas, bem como se eles são capazes de conceber realidades em que a corrupção seria aceitável, endossando tais práticas, como votar em candidatos investigados por tais práticas. Ao responder os itens desta dimensão, o cidadão reflete sobre como percebe, tolera e se sente ao ter contato ou conhecimento de um ato ou ação corrupta.
Nesta pesquisa, a percepção é definida como um processo pelo qual o mundo é representado pelo cidadão e cujo produto constitui sua experiência consciente disponível para relato (Milner & Goodale, 1995Milner, A. D., & Goodale, M. A. (1995). The visual brain in action. Oxford, UK: Oxford University Press.). Assim, a EPC avalia como o cidadão comum percebe a corrupção no seu país, considerando-se as cinco dimensões da Figura 1. A proposta desta Escala se diferencia dos índices internacionalmente conhecidos, como o IPC e o CoC, pois não tem interesse em medir a corrupção no país, mas sim avaliar como este fenômeno é reconhecido na sociedade. Entende-se que este instrumento se faz necessário e complementar as análises de corrupção já existentes, tendo em vista que pode elucidar situações até então não compreendidas com as métricas conhecidas.
Exemplificando, países em que a corrupção não é perseguida pelos órgãos públicos e agências reguladoras, nem amplamente divulgada na mídia, dificilmente terão um reconhecimento, por parte do cidadão, do quão prejudicial o fenômeno pode ser à sociedade. Acredita-se que, sem estratégias de combate e divulgação, as possibilidades de reconhecimento dos impactos da corrupção sejam mitigadas, o que poderia ser comprovado a partir da aplicação da EPC.
PROCEDIMENTOS DE CONSTRUÇÃO E VALIDAÇÃO DA EPC
O processo de desenvolvimento da EPC iniciou com uma revisão de literatura sobre o tema, a qual forneceu os subsídios teóricos para a definição dos seus construtos e do conjunto inicial de itens que a compõem. A revisão da literatura foi seguida por uma abordagem qualitativa para validação e refinamento dos itens. Na sequência, partiu-se para a etapa quantitativa, a qual envolveu mais duas análises. A primeira, de caráter exploratório, teve por objetivo uma validação inicial dos itens e das dimensões propostas e, a segunda, de caráter confirmatório, avançar na validação e na construção do modelo teórico da escala. Para cada uma das etapas foram obtidas diferentes amostras conforme o Quadro 6.
Na etapa qualitativa, o instrumento foi avaliado por quatro especialistas. Seguindo a recomendação de DeVellis (2016DeVellis, R. F. (2016). Scale development: theory and applications (Vol. 26). London, UK: Sage publications.), foram selecionados especialistas de diferentes áreas de conhecimento. Para avaliar o nível de concordância entre os juízes, aplicou-se o coeficiente de validade de conteúdo (CVC) e o Kappa de Fleiss (Fleiss, 1971Fleiss, J. L. (1971). Measuring nominal scale agreement among many raters. Psychological bulletin, 76(5), 378-382.). Posteriormente, procedeu-se a um pré-teste, para avaliar a adequabilidade do instrumento para aplicação junto a população de interesse.
Para a etapa quantitativa considerou-se a população brasileira que segundo o IBGE (2020)Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (2020). Projeções e estimativas da população do Brasil e das Unidades da Federação. Retrieved from https://www.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/index.html
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é de 211.439.266 pessoas, com um nível de confiança de 95% e um erro amostral de 3%, obtendo-se uma amostra mínima de 1075 indivíduos. A amostra foi dividida em 420 casos para fase exploratória e 655 casos para a confirmatória. O instrumento foi aplicado de modo online, entre janeiro e fevereiro de 2021.
Na primeira fase da etapa quantitativa, visando validar a dimensionalidade da escala foi realizada a análise fatorial exploratória com o programa Factor, versão 10.10.01 (Ferrando & Lorenzo-Seva, 2017Ferrando, P. J., & Lorenzo-Seva, U. (2017). Program FACTOR at 10: origins, development and future directions. Psicothema, 29(2), 236-241.). Foi utilizada matriz de correlação policórica, com o método de extração de fatores Robust Diagonally Weighted Least Squares (RDWLS) e rotação robusta Promin (Lorenzo-Seva & Ferrando, 2019Lorenzo-Seva, U., & Ferrando, P. J. (2019). Robust Promin: a method for diagonally weighted factor rotation. Liberabit: Revista Peruana De Psicología, 25(1), 99-106.). A estimação do número de fatores utilizou a implementação ótima da análise paralela (Timmerman & Lorenzo-Seva, 2011Timmerman, M. E., & Lorenzo-Seva, U. (2011). Dimensionality assessment of ordered polytomous items with parallel analysis. Psychological methods, 16(2), 209-220.). Para aumentar a acurácia do método, considerou-se o intervalo de confiança de 95% para os valores aleatórios (Crawford et al., 2010Crawford, A. V. D. B., Levy, R., Lo, W. J., Scott, L., Svetina, D., & Thompson, M. S. (2010). Evaluation of parallel analysis methods for determining the number of factors Educational and Psychological Measurement, 70(6), 885-901.). Para a retirada de itens, foram considerados dois parâmetros: 1) cargas fatoriais menores do que 0,30; e 2) itens com cargas cruzadas (diferença entre as cargas fatoriais em dois fatores menor ou igual a 0,10). Assim, todos os itens que atendessem a, pelo menos, um desses critérios foram retirados.
Como complemento, realizou-se a análise da replicabilidade dos fatores, a partir do índice H (Ferrando & Lorenzo-Seva, 2018Ferrando, P. J., & Lorenzo-Seva, U. (2018). Assessing the quality and appropriateness of factor solutions and factor score estimates in exploratory item factor analysis. Educational and Psychological Measurement, 78(5), 762-780.), o qual avalia quão bem os itens representam os fatores latentes encontrados, sendo que valores acima de 0,80 indicam que a estrutura fatorial tende a ser replicável entre estudos. A consistência interna foi avaliada a partir do cálculo do Alpha de Cronbach (Cronbach, 1951Cronbach, L. J. (1951). Coefficient alpha and the internal structure of tests. Psychometrika, 16(3), 297-334.) e do Ômega de McDonalds (ω) (Mcdonalds, 1999Mcdonalds, R. P. (1999). Test theory: a unified treatment. Mahwah, NJ: Lawrence Erlbaum), para os quais valores iguais ou superiores a 0,7 foram considerados adequados (Hair et al., 2014Hair, J. F., Black, W. C., Babin, B. J., & Anderson, R. E. (2014). Multivariate data analysis: pearson new international edition. Essex, UK: Pearson Education Limited.).
Na segunda fase, utilizou-se a análise fatorial confirmatória para verificação da validade convergente, unidimensionalidade e validade discriminante dos construtos. Os modelos são estimados com a matriz de variância-covariância, estimação por máxima verossimilhança via procedimento direto. A validade convergente foi analisada pela observação da magnitude e da significância estatística dos coeficientes padronizados, pelos seguintes índices de ajustes absolutos: estatística qui-quadrado (χ²), Root Mean Square Residual (RMR), Root Mean Square Error of Approximation (RMSEA), Goodness-of-Fit Index (GFI); e pelos índices de ajuste comparativos: Comparative Fit Index (CFI), Tucker-Lewis Index (TLI).
Para a razão do qui-quadrado/graus de liberdade as recomendações são de valores menores que três; para CFI, GFI, NFI e TLI, sugerem-se valores maiores que 0,950 e o RMR e o RMSEA, devem ficar abaixo de 0,080 e 0,060, respectivamente (Byrne, 2016; Hair et al., 2014Hair, J. F., Black, W. C., Babin, B. J., & Anderson, R. E. (2014). Multivariate data analysis: pearson new international edition. Essex, UK: Pearson Education Limited.; Hooper et al., 2008Hooper, D., Coughlan, J., & Mullen, M. R. (2008). Structural equation modelling: Guidelines for determining model fit. Electronic Journal of Business Research Methods, 6(1), 53-60.; Kline, 2015Kline, R. B. (2015). Principles and practice of structural equation modeling. New York, NY: Guilford publications.). Já a unidimensionalidade é avaliada a partir dos resíduos padronizados relativos aos indicadores de cada variável latente. São considerados unidimensionais os construtos que apresentaram, para um nível de significância de 5%, resíduos padronizados inferiores a 2,58 (Hair et al., 2014Hair, J. F., Black, W. C., Babin, B. J., & Anderson, R. E. (2014). Multivariate data analysis: pearson new international edition. Essex, UK: Pearson Education Limited.). Para a validade discriminante foi utilizado o teste de diferenças de qui-quadrado, para o qual diferenças entre o modelo restrito e o modelo livre superiores a 3,84 indicam validade discriminante (Bagozzi, Yi, & Phillips, 1991Bagozzi, R. P., Y. I., Y., & Phillips, L. W. (1991). Assessing construct validity in organizational research. Administrative Science Quarterly, 36(3), 421-458.).
Por fim, desenvolveu-se uma metodologia para a normatização da aplicação da EPC. Nessa etapa, a percepção de corrupção é construída a partir da média ponderada das respostas dos entrevistados em cada uma das dimensões. A EPC varia de um a cinco, sendo que quanto mais próximo de cinco maior a percepção de corrupção do cidadão.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Santa Maria (CAAE: 37890820.8.0000.5346), os entrevistados completaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) concordando em participar. Os instrumentos foram completados de forma anônima e a privacidade dos dados garantida pelo termo de confidencialidade. A base de dados da pesquisa está à disposição dos leitores através do envio de uma solicitação por e-mail aos autores.
CONSTRUÇÃO DOS ITENS DA EPC
A partir das dimensões e suas definições, desenvolvidas no modelo teórico, e considerando-se a literatura sobre corrupção, buscou-se construir os itens relativos a cada dimensão para a operacionalização da escala. Nessa etapa foram consideradas as técnicas de construção recomendadas pela literatura psicométrica, como a objetividade, a simplicidade, a clareza, a relevância, a variedade e a credibilidade dos itens e os critérios de amplitude e equilíbrio do instrumento (Pasquali, 2009Pasquali, L. (2009). Instrumentação psicológica: fundamentos e práticas. Porto Alegre, RS: Artmed Editora).
Os Quadros 1, 2, 3, 4, 5 a apresentam os itens da EPC segundo as dimensões. Todos os itens da EPC foram construídos considerando como categorias de resposta a escala tipo Likert de cinco pontos (1 - discordo totalmente, 2- discordo, 3-indiferente, 4- concordo, 5 - concordo totalmente).
O caráter inovador da EPC, ao propor a construção de uma escala de avaliação da percepção sob o ponto de vista do cidadão, exigiu a criação de todos os itens, dada a inobservância na literatura de instrumentos prévios com essa característica. Entretanto, seis questões foram inspiradas nos questionamentos dos indicadores do Corruption Perceptions Index (Transparência Internacional, 2020Corruption Perceptions Index. (2014). The 2014 corruption perceptions index measures the perceived levels of public sector corruption in 175 countries and territories. Retrieved from https://www.transparency.org/en/cpi/2014/index/bdi
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): O item 16 foi inspirado na questão “How do you grade the problem of corruption in the country in which you are working?” Os itens 25 e 26 foram pensados a partir do questionamento “Has the government implemented effective anti-corruption initiatives?”. Os itens 27 e 30 basearam-se na questão “Are allegations of corruption given wide and extensive airing in the media?” Por fim, o item 28 foi construído a partir “To what extent are public officeholders who abuse their positions prosecuted or penalized?”.
VALIDAÇÃO QUALITATIVA DA EPC
A etapa qualitativa da validação iniciou-se com a consulta a quatro especialistas. Foi elaborado um instrumento específico para essa etapa, o qual continha as instruções aos especialistas e, para cada item do instrumento, foram apresentadas questões quanto grau de pertinência do item (1-Deve ser retirado, 2-Deve ser mantido após reformulação; 3-Deve ser mantido como está), ao grau de relevância (1-Pouco Relevante. 2-Relevante, 3-Muito Relevante), e a dimensão representada (Knowledge, Behavior, Attitude, Control, Reflex). A Tabela 1 apresenta os resultados dessa etapa para o coeficiente de validade de conteúdo (CVC) e o Kappa de Fleiss.
O coeficiente de validade de conteúdo médio para a relevância foi de 0,906 tendo os valores dos itens variado entre 0,829 e 0,996. Já para a pertinência, o CVC médio foi de 0,919 tendo os valores dos itens ficado no intervalo entre 0,746 e 0,996. O Kappa de Fleiss apresentou valor de 0,768 (z=22,5; sig<0,001) com os valores nas dimensões variando de 0,625 a 0,954. Portanto, a avaliação dos especialistas apontou para a validade de conteúdo da escala (CVC >0,70; Pasquali, 2009Pasquali, L. (2009). Instrumentação psicológica: fundamentos e práticas. Porto Alegre, RS: Artmed Editora) e concordância substancial (Kappa>0,6; Landis & Koch, 1977Landis, J. R., & Koch, G. G. (1977). The measurement of observer agreement for categorical data. Biometrics, 33(1), 159-174.) entre os especialistas.
Na segunda fase da etapa qualitativa foi realizado um pré-teste, visando garantir que os itens sejam significativos para a população alvo (Boateng et al., 2018Boateng, G. O., Neilands, T. B., Frongillo, E. A., Melgar-Quiñonez, H. R., & Young, S L.. (2018, June). Best practices for developing and validating scales for health, social, and behavioral research: a primer. Frontiers in Public Health, 6, 1-18.). A amostra de dez cidadãos foi selecionada por conveniência, visando garantir a representatividade de diferentes perfis socioeconômicos e demográficos. Os instrumentos foram aplicados através de entrevistas, a fim de avaliar a validade de face dos itens. Nessa fase, os entrevistados relataram uma compreensão adequada dos itens, não sendo identificada nenhuma necessidade de mudança.
VALIDAÇÃO QUANTITATIVA DA EPC
Na sequência, procedeu-se a etapa da validação quantitativa, realizando-se a análise fatorial exploratória. O teste de Bartlett (4.687,7; sig<0.001) e o KMO (0.885) indicaram a fatorabilidade dos dados. Foram excluídos os itens 3 e 27 por apresentarem cargas fatoriais inferiores a 0.30 e o item 29 devido à carga cruzada, sendo os resultados finais da análise fatorial apresentados na Tabela 2.
A implementação ótima da análise paralela indicou que a escala teria cinco dimensões, confirmando a dimensionalidade prevista no modelo teórico. Em conjunto, as cinco dimensões explicam 58,21% da variância, com destaque para a dimensão conhecimento com 22,93%. Todos os índices H são superiores a 0.80 indicando que a estrutura fatorial tende a ser replicável em diferentes estudos. E, as cinco dimensões apresentam consistência interna, uma vez que os Alpha de Cronbach e o Ômega de Macdonalds são superiores a 0.70.
Sendo as cinco dimensões consideradas adequadas na fase exploratória, na segunda etapa da fase quantitativa buscou-se analisar os construtos sob o ponto de vista confirmatório. A Tabela 3 apresenta os resultados dos índices de ajuste dos modelos iniciais e finais. Para os construtos em que os modelos iniciais não se mostraram adequados, adotou-se a estratégia de aprimoramento do modelo, especialmente com a retirada de variáveis com baixas cargas fatoriais.
No processo de aprimoramento do modelo foram retirados os seguintes itens, todos com cargas fatoriais inferiores a 0.5: Conhecimento- itens 1, 4, 5, e 6; Comportamento -itens 11, 14 e 15; Reflexos - itens 16, 21 e 22; Controle - itens 24 e 26; e Atitude- itens 32, 35 e 36. Após essas exclusões, os modelos finais das cinco dimensões atenderam a todos os critérios de ajuste, podendo-se concluir pelas suas validades convergentes. Todos os resíduos padronizados foram inferiores a 2,58, confirmando também a unidimensionalidade.
Em seguida, para testar a validade discriminante dos construtos, utilizou-se o teste de diferença de qui-quadrados. A Tabela 4 apresenta os valores de qui-quadrado e graus de liberdade para o modelo restrito e para o modelo livre, bem como a diferença de qui-quadrados.
Observa-se, na Tabela 4, que para todos os conjuntos de construtos, a diferença de qui-quadrados entre os modelos restrito e livre é superior a 3.84, confirmando a validade discriminante entre cada par de construtos. Portanto, todos os construtos são discriminantes entre si, indicando que os mesmos representam dimensões distintas da EPC. Assim, após a etapa de validação confirmatória do modelo de mensuração, a escala manteve as cinco dimensões propostas no modelo teórico, as quais são mensuradas por um conjunto final de 18 itens.
METODOLOGIA PARA APLICAÇÃO DA ESCALA DE PERCEPÇÃO DA CORRUPÇÃO
A partir das cinco dimensões propostas para o EPC, validadas nas etapas anteriores, foi estabelecida a metodologia de aplicação da escala, a qual é definida a partir de cinco passos.
Passo 1: De posse das respostas dos pesquisados, conforme os itens da EPC, codifique as respostas conforme o Quadro 7.
Passo 2: Obtenha as percepções de cada entrevistado para cada uma das cinco dimensões, a partir da média das respostas dos itens pertencentes à cada dimensão:
Passo 3: Obtenha as percepções médias para toda a amostra. A percepção média em cada dimensão representa a percepção dos entrevistados na dimensão. Assim, por exemplo, para a Percepção de Conhecimento tem-se a seguinte expressão:
onde CHp é a Percepção de Conhecimento para o país p; CHj é a percepção de conhecimento da corrupção para o entrevistado j e n é o número de respondentes. Procedimento semelhante deve ser adotado para o cômputo da percepção para o país nas demais dimensões.
Passo 4: De posse dos valores médios para cada dimensão é possível calcular o Nível de Percepção da Corrupção, o qual é construído pela média das percepções nas cinco dimensões, matematicamente:
onde:
NPCp é o Nível de Percepção da Corrupção do país p;
CHp é a Percepção de Conhecimento da Corrupção no país p;
COp é a Percepção de Comportamento em relação à Corrupção do país p;
REp é a Percepção dos Reflexos da Corrupção no país p;
CTp é a Percepção do Controle da Corrupção no país p;
ATp é a Percepção da Atitude em relação à Corrupção no país p.
Passo 5: Classificação do Nível de Percepção da Corrupção. A partir dos valores obtidos no passo 4 é possível classificar o Nível de Percepção da Corrupção do país, conforme a Figura 2.
Além desses passos é importante que o usuário da escala esteja ciente de que a EPC foi desenvolvida para ser autoadministrada e em formulários online. A aplicação na forma de entrevistas, exigirá a adaptação do instrumento. Indica-se, ainda, que o termo “country” presente em alguns itens seja substituído pelo nome do país na qual a escala estará sendo aplicada, proporcionando maior identificação para o respondente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A corrupção tem crescido em escala, magnitude e sofisticação das operações enquanto governos de todo o mundo buscam novas abordagens e ferramentas para ajudar a identificar as atividades corruptas (Bajpay & Myers, 2020Bajpay, R., & Myers, C. B. (2020). Enhancing government effectiveness and transparency: the fight against corruption. Washington, DC: World Bank Group. Retrieved from http://documents.worldbank.org/curated/en/235541600116631094/Enhancing-Government-Effectiveness-and-Transparency-The-Fight-Against-Corruption
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). O aumento da corrupção amplia a necessidade de obtenção de modelos de mensuração para a sua identificação e entendimento, a partir de diferentes formatos e pontos de vista (agentes públicos, gestores, instituições e cidadãos). Quanto às medidas objetivas, ao longo dos últimos anos, muito se avançou na construção de índices de corrupção capazes, inclusive, de permitir a comparação entre diversos países e setores. Entretanto, do ponto de vista subjetivo e com foco no cidadão ainda não há um instrumento consolidado. Assim, este estudo teve por objetivo a criação e validação da Escala de Percepção da Corrupção (EPC), que se propõe a avaliar como o cidadão de um determinado país percebe a corrupção.
Entende-se que, medidas de corrupção objetivas e subjetivas são necessárias e complementares. Enquanto a medida objetiva visa apresentar um retrato das práticas de corrupção em um país, a medida de percepção avalia o quanto os cidadãos que residem naquele país são capazes de avaliar a existência da corrupção. Neste contexto, países altamente corruptos, mas com baixa percepção da corrupção pela população, poderão ser campos férteis para a proliferação da corrupção, uma vez que a população não assumirá seu papel como agente social, que participa e cobra ações éticas na gestão. Por outro lado, em países onde a percepção da corrupção é alta, os próprios cidadãos, mais conscientes da existência e dos reflexos da corrupção, podem se tornar agentes ativos contra os atos corruptos e atuar com controle social. Nesse sentido, a principal contribuição prática do estudo é a construção de uma ferramenta que permita a todos os pesquisadores e governos interessados avaliar a corrupção do ponto de vista do cidadão.
Na construção e validação da EPC foram adotas uma série de técnicas exploratórias e confirmatórias que mostraram que a escala é capaz de ser considerada válida sob diferentes critérios. A estrutura final da medida é composta por cinco dimensões, as quais buscam avaliar a percepção de corrupção de uma maneira abrangente.
A metodologia de aplicação proposta apresenta uma maneira simples de avaliação da Percepção da Corrupção, permitindo tanto a avaliação geral (nível de percepção da corrupção), quanto em cada uma das suas dimensões. Para as instituições e agentes públicos, o EPC pode ser útil para analisar os avanços e desafios da agenda de redução da corrupção, considerada ferramenta importante para o alcance dos objetivos de desenvolvimento sustentável, estabelecidos pela Organização das Nações Unidas (AGENDA 2030, 2014). Também pode ser interessante para análise de diferenças de percepção em perfis socioeconômicos diversos, permitindo, por exemplo, identificar grupos com maiores déficits de conhecimento sobre a corrupção que devem ser focos prioritários de políticas públicas.
Para os pesquisadores, a EPC é uma medida útil para aplicação em pesquisas ou estudos longitudinais para avaliar a percepção de uma população em geral ou em um grupo específico, isoladamente ou em associação com outras medidas. Por exemplo, como um antecedente da percepção de cidadania financeira ou da qualidade de vida, ou ainda, como uma consequência da melhoria dos níveis de transparência de um país.
Nós podemos sugerir uma ampla agenda de pesquisa na qual a EPC pode ser utilizada: 1) estudos que busquem a incorporação de novas dimensões, como, por exemplo, uma dimensão de percepção da transparência da corrupção; 2) validação cross-cultural, para validação e adaptação da escala para diferentes culturas; 3) estudos longitudinais, para identificação de mudanças na percepção da corrupção ao longo dos anos; 4) estudos correlacionais, avaliando a associação entre percepção de corrupção e participação social ativa na identificação e denúncia de atos ilícitos; 5) estudos comparativos, relacionando a EPC a outros índices de corrupção; 6) modelagem de equações estruturais, tendo o EPC como antecedente de outros fatores como controle social, cidadania financeira e escolhas em processos eleitorais; 7) testes de diferenças e análises de cluster, para identificar grupos socioeconômicos e demográficos com diferentes percepções de corrupção; 8) avaliação das diferenças na percepção da corrupção para diferentes regimes administrativos, políticos e jurídicos. Finalmente, 9) estudos de impacto, como a avaliação da mudança de percepção a partir da adoção de estratégias de divulgação de corrupção e punição de atos de corrupção.
AGRADECIMENTOS
Os autores agradecem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo suporte financeiro (CNPq-processo 303731/2018-4).
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[Versão traduzida]
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
16 Set 2022 -
Data do Fascículo
Jul-Aug 2022
Histórico
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Recebido
30 Ago 2021 -
Aceito
07 Jan 2022