Open-access As contribuições da interpretação de Clóvis Moura sobre a escravidão no Brasil e seus possíveis diálogos com os Estudos Organizacionais

Los aportes de la interpretación de Clóvis Moura acerca de la esclavitud en Brasil y sus posibles diálogos con los estudios organizacionales

Resumo

O objetivo deste texto é retomar pontos importantes da obra de Clóvis Moura e apontar possíveis diálogos dessas contribuições com a área de Estudos Organizacionais. A partir de uma perspectiva que põe a questão racial no centro de nossa formação social, é possível se distanciar de abordagens que relacionam o “atraso” na periferia do capitalismo a práticas administrativas defeituosas. Para isso, recorre-se à obra de Moura, da qual foram discutidos os seguintes elementos: a ênfase no papel do escravizado rebelde no desgaste do escravismo; a crítica às técnicas contemporâneas de seleção profissional, cultural e política; o papel da práxis social dinâmica; e a relação entre problemática racial e dependência econômica. Com base nessas ideias, foram apontadas pontes com o estudo das organizações, abrindo possibilidades para: i) questionar leituras contemporâneas que colocam o dominante como protagonista de eventuais transformações sociais, por intermédio do reconhecimento do potencial dos dominados de recobrar sua autonomia; ii) analisar como as organizações são espaços decisivos de reprodução das desigualdades, apontando a ideia de promoção da diversidade nas empresas como um componente do mito escamoteador da realidade social; iii) refletir sobre como os movimentos contemporâneos de resistência, inspirados na quilombagem, podem ser pensados com base em sua capacidade de desgastar o sistema vigente a partir de uma articulação de grupos marginalizados; iv) refletir como a superexploração do trabalho, aliada à austeridade econômica do Estado e à violência policial e paraestatal, demonstra que a herança da escravidão se metamorfoseia para continuar se reproduzindo e sustentando o capitalismo dependente diante dos novos artefatos e arranjos organizacionais.

Palavras-chave: Clóvis Moura; Escravidão; Racismo; Práxis; Estudos Organizacionais

Resumen

El objetivo de este texto es retomar puntos importantes de la obra de Clóvis Moura y señalar posibles diálogos entre estas contribuciones y el área de estudios organizacionales. Desde una perspectiva que sitúa la cuestión racial en el centro de nuestra formación social, es posible distanciarse de enfoques que relacionan el “atraso” de la periferia del capitalismo con prácticas administrativas defectuosas. De la obra de Moura se discutieron elementos como: el énfasis en el papel del esclavo rebelde como elemento de desgaste de la esclavitud; crítica de las técnicas contemporáneas de selección profesional, cultural y política; el papel de la praxis social dinámica; y la relación entre cuestiones raciales y dependencia económica. A partir de estas ideas, se identificaron los siguientes puentes con el estudio de las organizaciones, que abren posibilidades para: i) cuestionar las lecturas contemporáneas que sitúan al dominante como protagonista de eventuales transformaciones sociales a partir del reconocimiento de las potencialidades de los dominados para recuperar su autonomía; ii) analizar cómo las organizaciones son espacios decisivos para la reproducción de las desigualdades, apuntando a la idea de promover la diversidad en las empresas como componente del mito que encubre la realidad social; iii) reflexionar sobre cómo los movimientos de resistencia contemporáneos, inspirados en el quilombagem, pueden ser pensados desde su capacidad de erosionar el sistema vigente a partir de una articulación de grupos marginados; iv) reflexionar sobre cómo la superexplotación del trabajo, aliada a la austeridad económica del Estado y la violencia policial y paraestatal, muestra cómo el legado de la esclavitud se metamorfosea para seguir reproduciéndose y soplándole respuestas al capitalismo dependiente frente a nuevos artefactos y arreglos organizacionales.

Palabras clave: Clóvis Moura; Esclavitud; Racismo; Praxis; Estudios organizacionales

Abstract

This study retakes some important points of the oeuvre of Clóvis Moura and delineates ways for its use in organization studies. Based on a perspective that places the racial issue at the center of social formation, it is possible to take some distance from approaches that relate “backwardness” in the periphery of capitalism to faulty administrative practices. The elements selected from Moura’s work were the emphasis on the role of the enslaved rebellion as an element of the slavery system erosion; the criticism of contemporary techniques of professional, cultural, and political selection; the role of dynamic social praxis; and the relationship between racial issues and economic dependence. The study identifies bridges between these ideas and organization studies, making it possible to i) question contemporary readings that place those that dominate as the protagonist of eventual social transformations by recognizing the potential of those who are dominated to recover their autonomy; ii) analyze how organizations are decisive spaces for inequality reproduction, pointing to the idea of promoting diversity in companies as a component of the myth that hides social reality; iii) reflect on how contemporary resistance movements, inspired by quilombagem, can be thought of from their capacity to erode the current system from connecting marginalized groups; iv) reflect on how the super-exploitation of work, allied to state economic austerity and police and parastatal violence, shows how the legacy of slavery adapts to continue reproducing and coordinating the dependent capitalism in the face of new artifacts and organizational arrangements.

Keywords: Clóvis Moura; Slavery; Racism; Praxis; Organization studies

INTRODUÇÃO

O presente trabalho busca refletir a respeito de importantes contribuições oriundas da obra do pensador piauiense Clóvis Moura, procurando apontar como elas podem ser relevantes para a pesquisa na área de Estudos Organizacionais. Desse modo, no presente artigo, não há intenção de dissecar a obra e o pensamento de Moura, tampouco de fornecer um ensaio teórico a respeito dos efeitos nefastos da escravização na morfologia da sociedade brasileira. Do mesmo modo, o texto não se aprofunda em uma discussão acerca da apropriação moureana do marxismo e nem pretende se deter nas imbricações entre raça e classe. O objetivo deste trabalho é retomar alguns pontos importantes da obra de Moura e apontar caminhos para sua utilização no estudo das organizações.

Em meio a uma profícua produção bibliográfica, Clóvis Moura deslinda como as relações raciais abrangem todos os aspectos da formação brasileira, desde os desdobramentos do mundo escravista à emergência do trabalho livre. Ou seja, esquadrinha como a “[...] materialidade da ‘raça’, ancorada na organização social e na estrutura do processo histórico, é interdependente à forma de acumulação capitalista e às lutas políticas que possibilitaram a emergência da modernidade brasileira” (Queiroz, 2021, p. 257).

Abordagens dominantes da pesquisa em organizações possuem como premissa fundamental a tese de que o “atraso” nos países pobres está largamente relacionado com práticas administrativas domésticas defeituosas - tipicamente tidas como ineficientes, nepotistas e influenciadas por outras lógicas sociais que se distanciam da racionalidade econômica (Alcadipani, Khan, Gantman, & Nkomo, 2012). Ou seja, a concepção de que as nações da periferia são expressões imperfeitas das nações do centro do capitalismo encontrou significativa ressonância nos Estudos Organizacionais (Ibarra-Colado, 2006).

Buscando se afastar dessa perspectiva, recorre-se à obra de Clóvis Moura como abordagem alternativa para analisar questões relevantes nos estudos das organizações. Trata-se de contribuições valiosas para o campo dos Estudos Organizacionais, uma vez que a pesquisa nessa área envolve também as especificidades culturais, econômicas, políticas e sociais desses espaços (Thiollent, 2014), abarcando, para além das empresas e instituições públicas, a vida social organizada e as diversas práticas organizativas (Carrieri & Correia, 2020). Ainda que, após os anos de 1980, os trabalhos de Clóvis Moura tenham recebido maior atenção e alguns estudos tenham se dedicado a analisar a relevância de suas contribuições para a compreensão da realidade brasileira (Mesquita, 2003), o presente artigo busca fazer essa ponte, considerada promissora, com o estudo das organizações.

Na próxima seção, são apresentados, brevemente, alguns aspectos biográficos que podem melhor contextualizar o pensamento de Clóvis Moura. Na sequência, são apresentados importantes destaques da obra moureana para a reflexão sobre a realidade brasileira. Em seguida, tais contribuições são exploradas em maior profundidade de modo a estabelecer possíveis debates com os estudos organizacionais, assim como são tecidas algumas considerações finais.

CLÓVIS MOURA, UM INTELECTUAL AUTÔNOMO

Clóvis Steiger de Assis Moura nasceu em 10 de julho de 1925, na cidade de Amarante, no Piauí (Queiroz, 2021). Faleceu em São Paulo no ano de 2003, deixando uma profícua produção sobre a realidade brasileira, especialmente sobre a população negra e a centralidade da raça para a compreensão da formação do país. Atuou simultaneamente na imprensa e na escrita de livros e artigos, garantindo sua sobrevivência pela inserção profissional na redação de jornais, onde obtinha a chance de criar e fortalecer laços de natureza intelectual e política (Malatian, 2019). Seu pensamento foi a base da elaboração de projetos políticos de diversas entidades do movimento negro (Oliveira, 2020).

Membro de uma família de classe média baixa, Clóvis era filho de pai negro e mãe branca; bisneto do barão prussiano Ferdinando von Steiger e da escrava Carlota (Mesquita, 2003). Até o início dos anos 1950, passou por diversas cidades, como Natal, Salvador e Juazeiro; nesta última, “[...] com poucos recursos financeiros e investigativos, mas num intenso intercâmbio intelectual por meio de cartas com pesquisadores e professores renomados”, Clóvis termina, em 1953, a primeira versão de Rebeliões da Senzala (Queiroz, 2021, p. 258).

Durante essa empreitada, escreve para Caio Prado Júnior contando-lhe seus planos de realizar uma pesquisa sobre a história das revoluções negras no Brasil. O conselho “acadêmico” recebido como resposta, no entanto, sugeria que o jovem se apegasse a descrever a situação do sertão baiano, uma vez que, na região onde vivia, a escravatura não havia tido um grande papel histórico e ele ainda encontraria dificuldade de acesso às fontes necessárias para o seu projeto (Buonicore, 2020). Felizmente, Clóvis resolveu, mesmo assim, empreender a difícil e pouco promissora tarefa, cujo esforço culminou na publicação de Rebeliões da Senzala: Quilombos, Insurreições e Guerrilhas, no ano de 1959.

Apesar do pioneirismo (Mesquita, 2003) e da relevância em sua produção, a escassa literatura sobre Clóvis Moura, com poucas exceções, “[...] não se debruça sobre seu pensamento, suas categorias de análise e sua apropriação do marxismo” (Oliveira, 2011, p. 46). Dentre as razões para que não tenha havido o devido acolhimento da obra de Moura, é possível citar o incômodo que sua leitura da história social brasileira provoca nas classes dominantes e o fato de o autor ser um intelectual autônomo, não preocupado em fazer carreira acadêmica e insatisfeito com o modo como se dava a hegemonia das ciências sociais no país (Mesquita, 2003). Para Assunção e Trapp (2021, p. 242), Moura é colocado “[...] à margem do que se poderia denominar ‘intérprete do Brasil’”, pois a geopolítica do conhecimento “[...] é avessa ao seu estatuto de negro, nordestino (piauiense), comunista e autodidata”.

Esses elementos biográficos nos ajudam a interpretar sua obra. É dessa posição subalternizada que o autor compreende o Brasil e, baseado nela, que ele vislumbra alternativas para o país.

CLÓVIS MOURA E A CENTRALIDADE DA QUESTÃO RACIAL PARA PENSAR O BRASIL

Até a publicação de Rebeliões da Senzala, tendia-se a interpretar a luta dos escravizados como “[...] mero jogo de choque entre padrões, traços e complexos culturais”, ou seja, manifestações de movimentos antiaculturativos que relegavam o problema da luta a segundo plano (Moura, p. 9, 1988). Essa interpretação do conflito social como choque de culturas ocultava a luta de classes no sistema escravista, ou seja, a contradição fundamental que, na visão de Moura, produzia o dinamismo interno desses movimentos.

Sem desconhecer as diferenças culturais das diversas etnias que foram trazidas para cá, Clóvis Moura procurava frisar que o determinante fundamental do comportamento dos indivíduos, de passividade ou de rebeldia1, residia em sua situação prática de escravizado. Da mesma forma, o que determinava o comportamento da classe senhorial era, essencialmente, a sua posição de senhor de escravos. Assim, o eixo da dinâmica social do período consiste no comportamento dos escravos rebeldes e nas medidas dos dominantes para contê-los. O que não significa que todo escravo fosse quilombola. Na visão de Moura, ao invés de se deter na análise de casos de exceção e no julgamento de valor de heróis ou vilões, é necessário observar qual o tipo de comportamento que, na dinâmica social, contribuiu para a estagnação e a conservação das relações de produção escravistas (Moura, 1988).

Assim, no decorrer do século XIX, enquanto as cidades brasileiras se modernizavam, as instituições2 sociais mais relevantes continuavam arcaicas, pois refletiam a ordenação ideológica, jurídica e costumeira da classe dominante, a qual legitimava o tipo fundamental de propriedade da época: a posse sobre outros seres humanos (Moura, 1988). Nesse contexto, não haveria, portanto, possibilidade de mudança radical sem a neutralização das instituições e dos blocos de poder dominantes, de forma que fosse possível favorecer a harmonia entre o caráter das forças produtivas e as relações de produção. Como isso não ocorreu, a contradição permanece desde o início da formação da nação brasileira: “[...] fizemos a Independência conservando a escravidão e fizemos Abolição conservando o latifúndio”. Ou seja, não se desarticulou o que era fundamental, impedindo maior avanço institucional e gerando vácuo social, político, econômico e cultural (Moura, 1988, p. 24).

O processo de decomposição do trabalho escravo no Brasil, com suas particularidades, dá-se quando o capitalismo já iniciava sua fase monopolista, o que determinaria não apenas o modo de condução da Abolição, mas também os reflexos negativos dessa solução compromissada que conservou a estrutura latifundiário-oligárquica. Em uma importante periodização do escravismo no Brasil feita por Moura, o período de decomposição do escravismo é definido como “Escravismo Tardio”, o qual se dá em oposição ao “Escravismo Pleno,” que teria vigorado em um primeiro momento.

No primeiro período histórico, o escravismo foi ascendente, até que, em 1850, a Lei Eusébio de Queirós extingue o tráfico internacional de escravos. Nessa fase, em que o escravismo era uma instituição sólida e reconhecida, a luta é apenas dos escravizados e são eles que, de diversas formas, solapam o sistema opressor. Somente após 1850, no denominado “Escravismo Tardio”, outras entidades e personalidades juntam-se à defesa do fim do trabalho servil. Ou seja, depois da extinção do tráfico, quando o escravismo entra em decomposição, várias vertentes abolicionistas radicais passam a cooperar e operar de maneira conjunta com aqueles que se rebelavam diante de suas próprias condições (Moura, 1988, 2020).

Quilombos, insurreições, guerrilhas, assassinatos, incêndios, roubos, raptos e suicídios constituíam a contrapartida de negação ao modo de produção escravista (Moura, 1988). Assim, essas lutas significaram um elemento de desgaste econômico e institucional na dinâmica da passagem do escravismo para o trabalho livre. De modo geral, Moura (1988) entendia que os escravizados não possuíam as condições para se rebelarem contra a ordem que os subjugava de modo consciente, uma vez que eram insulados do processo dinâmico de aperfeiçoamento técnico à sua época. Desse modo, o papel de suas lutas era “[...] solapar as bases materiais e consequentemente as relações de trabalho existentes entre senhor e escravo”, sem a pretensão de conseguir o poder do Estado (Moura, 1988, p. 33).

Assim, se não era um movimento político no sentido da conscientização do fato histórico por parte do sujeito, o era no sentido de ser o escravo “[...] o elemento material, a massa humana capaz de impulsionar, embora sem autoconsciência, o processo histórico-social no que diz respeito à sua contradição fundamental” (Moura, 1988, p. 34). Ou seja, em Rebeliões da Senzala, o argumento é de que, ainda que suas ações não tivessem caráter político, tinham consequências políticas (Queiroz, 2021).

Desse modo, fica evidente a intenção de Moura de estudar o escravizado como contribuinte ativo no processo histórico de transformação, e não como elemento passivo e conservador do regime. Isto é, ele procurava apreender o escravo como negação de um sistema que, para se afirmar, demandava o estabelecimento de todo um esquema de sujeição.

Essas manifestações, ainda na condição de escravos, e mesmo que culminando em derrota, constituem-se “[...] experiências concretas em que os negros tiveram a oportunidade de negarem-se como coisa possuída, de se perceberem donos de seus próprios corpos e de se tornarem cada vez mais conscientes do caráter desumano do sistema escravista” (Silva, 2021, p. 57).

Segundo Moura, a noção de práxis é uma categoria chave na apropriação do marxismo sob a perspectiva do negro. É considerada um elemento para que “[...] o negro saia da condição de objeto da história para reaparecer como agente humano e elemento dinamizador da ordem social” (Queiroz, 2021, p. 261). Num primeiro momento, a práxis se manifestava como ação de rebeldia e resistência violenta ao escravismo, conferindo caráter ao negro e tornando-o sujeito (Oliveira, 2011). A quilombagem era o movimento de rebeldia permanente, organizado e dirigido pelos próprios escravos, cuja dinâmica expressava a contradição fundamental da época e cujo caráter era radical, sem nenhum elemento de mediação entre a sua radicalidade e os interesses senhoriais (Moura, 1992). Esse é o exemplo histórico mais evidente de um processo de elevação de consciência por parte do negro “[...] acerca de sua condição numa sociabilidade racista e, nisso, de organização coletiva, de sobrevivência, de resistência”, que busca dirimir os efeitos da subalternização por meio de formas de defesa contra os mecanismos de barragem (Costa & Mendes, 2022, p. 526). Dialeticamente, quando se encontram subjugados, embarreirados, diferenciados, negam tais movimentos, afirmando-se em e/ou por suas diferenças (Costa & Mendes, 2022).

Ou seja, a quilombagem teria sido uma constelação de movimentos de protesto do escravizado, na qual o quilombo aparece como o módulo mais representativo, como centro organizacional, ainda que outras formas de manifestação também se apresentassem, como guerrilhas e protestos individuais. Portanto, trata-se de um movimento abrangente e radical, no qual não se incluem apenas os negros fugitivos, mas também “[...] índios perseguidos, mulatos, curibocas, pessoas perseguidas pela polícia em geral, bandoleiros, devedores do fisco, fugitivos do serviço militar, mulheres sem profissão, brancos pobres e prostitutas” (Moura, 1992, p. 24). Assim, era na quilombagem que essa população marginalizada, composta por perseguidos pelo sistema colonial, se recompunha socialmente, em uma articulação que atravessa todo o sistema escravista (Moura, 1992).

Essa revalorização do passado histórico do negro no sistema escravista mostra sua participação em movimentos que determinaram as principais mudanças sociais no país, mas demonstra também o seu posterior isolamento político pelos centros deliberantes. O negro ex-escravizado é acionado em movimentos de mudança social e política, mas após sua participação, é alijado por suas lideranças (Moura, 1983). Desse modo, Moura (1983, p. 29) afirma não ser possível julgar, “[...] como certos marxistas de cátedra, o problema do negro brasileiro como simples problema de classe, embora esteja embutido nele e dele faça parte integral”. Assim, Moura se afasta de uma apropriação meramente funcional do marxismo, voltada a apenas e tão somente dissolver o problema de superação do racismo dentro da luta mais geral contra o capitalismo (Oliveira, 2020).

Moura (1977) enxerga que o papel do negro na emancipação da América Latina - um processo sociológico dinâmico, contraditório, complexo e ainda em curso - não será nunca de cúpula, mas sim conforme uma perspectiva de devir, isto é, dinâmico-radical. Inicialmente, vindos de uma posição de escravos, a alternativa para libertação desse status se dava pelo engajamento em movimentos de emancipação ou por meio da realização de suas próprias mobilizações. Embora quase sempre o fizessem para resolver seus problemas específicos de escravo, eram capazes de influenciar, com seu comportamento divergente, diversos níveis da sociedade, especialmente político e econômico. Ontem e hoje, o negro atuou e continua atuando como força social dinâmica na América Latina. Ontem, buscando modificar o sistema colonial escravista. Hoje, procurando destruir os entraves da situação de dependência de seus respectivos países (Moura, 1977).

Nessa linha, Clóvis Moura também nos provê uma interessante contribuição ao demonstrar os efeitos do sistema escravista na conformação desse capitalismo dependente. Ora, é sabido que o trabalho escravo, organizado em diferentes níveis de extração de sobretrabalho, possibilitou o desenvolvimento do sistema colonial. Nesse contexto, Moura (2020, p.70) nota que o nível de subordinação da economia brasileira ao centro explorador-comprador não permitia a possibilidade de “[...] acumulação de excedentes e de capitais internos em proporções suficientes à abertura de uma via independente do desenvolvimento”. Além disso, o estrangulamento não era apenas econômico, mas também fiscal, pois se determinava que “[...] quase nada ficasse na Colônia para reinvestimento técnico e acumulação capitalista” (Moura, 2020, p. 70).

Formava-se um circuito fechado de subordinação das economias coloniais, no qual nem mesmo a classe senhorial mantinha o controle da comercialização do produto tampouco do preço dos escravizados. A despeito da vinda da Corte Portuguesa em 1808, mantém-se preservada a forma fundamental de trabalho que continuava a produzir todo o valor dessa economia. Somente com a Lei Eusébio de Queirós (1850), surgirá o embrião de uma burguesia epidérmica e tardia, a qual não poderia desempenhar as funções dinamizadoras atribuídas a uma burguesia clássica nos moldes europeus. Era uma burguesia condicionada, dependente e colaboradora dos interesses dos compradores, vendedores ou investidores de além-mar (Moura, 2020).

Portanto a vinda da Corte e a posterior Independência não criaram nenhuma crise estrutural no sistema escravista, do ponto de vista da produção; apenas marcaram o fim do sistema colonial e a constituição de uma economia mercantil escravista. Manteve-se a exploração do sobretrabalho do escravizado via formas econômicas e extraeconômicas: jornadas extenuantes, castigos corporais, taxas negativas de natalidade e altíssima mortalidade. Em uma economia dependente do tráfico de escravos para se equilibrar, ficava comprometida a acumulação interna de capitais que poderia promover uma mudança econômica e transformar as relações de produção fundamentais (Moura, 2020).

Inicia-se, assim, o processo de “modernização sem mudança” em diversos aspectos da sociedade escravista. Isto é, houve progresso econômico, tecnológico, cultural e em outros níveis da estrutura, sem uma modificação correspondente nas relações de produção, ou seja, na infraestrutura. Assim, são criadas contradições que começam a produzir choques, assimetrias e conflitos decorrentes dessa diferença. Em um cruzamento acentuado de relações capitalistas sobre uma base escravista, “[...] o moderno passa a servir o arcaico” (Moura, 2020, p. 82).

Os senhores de escravos aproveitaram o processo de modernização e dependência para manter os seus privilégios de classe e sobreviver à transição do escravismo tardio ao trabalho livre. Ainda que dependentes das forças econômicas modernizadoras, conseguiram estabelecer táticas de manipulação política para que se apoiassem no processo modernizador-subalternizador e conservassem os interesses baseados nas relações arcaicas do campo. Ao perder os escravizados, muitos deles já onerosos, continuaram com a posse da terra e apelaram para a solução alternativa da vinda dos imigrantes (Moura, 2020).

Observa-se que a relevância numérica, o tempo de duração e a forma como se deu a Abolição são elementos da escravização brasileira que forjaram o modelo de capitalismo dependente no país. Além de esses aspectos terem impossibilitado a formação de uma burguesia nacional nos moldes clássicos, permitiram a penetração do capital monopolista nos setores estratégicos da economia e “[...] reelaboraram uma ideologia reflexiva das relações de produção escravistas: o racismo” (Moura, 1988).

Percebe-se que o escravismo é tido como uma fase decisória da formação do ethos brasileiro. Ela atua como elemento de entrave ao desenvolvimento interno da sociedade, tendo sido a instituição que permitiu à economia de tipo colonial chegar aos níveis de exploração observados, descapitalizando permanentemente os setores que poderiam compor uma economia de consumo interno, em favor de uma de exportação colonial (Moura, 1983).

Nesse processo, as instituições fundamentais do capitalismo dependente coexistiram com o escravismo tardio que havia sido substituído. Os problemas não resolvidos com o 13 de maio deixaram aderências e canalizaram forças negativas que até hoje influenciam nossa história social (Moura, 1988). Em O negro: de bom escravo a mau cidadão?, Clóvis Moura (1977) aponta que as classes dominantes, as quais determinaram as etapas seguintes do desenvolvimento socioeconômico do país e também a sua composição humana, atuaram no sentido de dificultar a emersão do negro de forma igualitária no novo mercado de trabalho que se criava, peneirando suas oportunidades de integração nessa sociedade capitalista emergente (Moura, 1977).

Ao discutir o que está por trás da expressão “de bom escravo a mau cidadão”, Moura (1977) revela como ruindade e bondade são conceitos criados por uma classe social que detém condições de estabelecer o sentido de bom e mau de acordo com os valores e ideias dominantes. No caso do negro, os valores etnocêntricos das classes dominantes representariam uma redoma ideológica cuja função é impedir a mobilidade vertical massiva dos estratos inferiores. O radical e o marginal seriam apresentados como modelos do mau cidadão negro, aos quais se contraporia a imagem do bom escravo do passado.

Clóvis Moura (1977) inicia sua explicação argumentando que a escravidão como sistema de produção engendrava limitações estruturais que impediam o negro de ter interesse relevante pela mercadoria que produzia, o que o separava radicalmente do bem-produzido e o excluía do processo de trocas (uma vez que ele próprio era uma mercadoria). Além dessa alienação, o trabalho escravo era extremamente rotineiro e os próprios senhores não procuravam o aperfeiçoamento e investimento do ponto de vista técnico, o que impediu os ex-escravizados de alcançar um grau de engajamento efetivo no mercado de trabalho. Por fim, a Abolição como solução compromissada, que conservava o latifúndio e favorecia o imigrante estrangeiro, não apresentou política de readaptação e integração dessa massa de ex-escravizados ao sistema que se forjava (Moura, 1977).

Com o afluxo de imigrantes, para os quais havia política dirigida e planos integrativos, deslocava-se o ex-escravizado do centro do sistema de produção para a periferia deste, bem como se criavam as premissas econômicas de sua marginalização. Na indústria nascente e na lavoura de café, houve um trabalho racional de fixação do imigrante, enquanto a população negra flutuava como exército industrial de reserva, exercendo o papel de ameaça latente contra reivindicações mais fortes dos estrangeiros. Apesar das diferenças regionais existentes no país, Moura aponta “[...] uma constante nesse processo histórico-social: o negro foi atirado compulsoriamente aos últimos estratos da sociedade, quer onde foi marginalizado, quer onde foi integrado em uma economia de miséria” (Moura, 1977, p. 35).

Moura (1983) entende que o capitalismo dependente necessita, paradoxalmente, de grandes camadas marginalizadas para poder equilibrar economicamente sua estrutura. Essa massa é considerada como sendo incapaz para o trabalho, a fim de que, no processo seletivo, seja descartada permanentemente. Ao mesmo tempo, é conservada à margem para estabelecer o equilíbrio do modelo. Como corolário disso, “[...] há a necessidade de um aparelho de Estado altamente autoritário e repressivo a fim de manter esse equilíbrio social” (Moura, 1983, p. 10).

Como nota Queiroz (2021, p. 275), “Clóvis buscava enfatizar que as práticas discriminatórias não eram excepcionais ou disfuncionais à lógica do mercado livre e do Estado republicano, mas sim estruturantes”. Essa perspectiva divergente surge contra o paradigma interpretativo presente nas narrativas nacionais que alegam não ter havido uma agência direcionada e objetiva à exclusão do negro do projeto de país (Queiroz, 2021).

Apesar da “igualdade perante a lei” após o 13 de maio, esse princípio não passou de um mito protetor para esconder desigualdades étnicas, sociais e econômicas. Assim, Moura (2020, p. 215) afirma:

O Negro foi obrigado a disputar a sua sobrevivência social, cultural e mesmo biológica em uma sociedade secularmente racista, na qual as técnicas de seleção profissional, cultural, política e étnica são feitas para que ele permaneça imobilizado nas camadas mais oprimidas, exploradas e subalternizadas. Podemos dizer que os problemas de raça e classe se imbricam nesse processo de competição do Negro pois o interesse das classes dominantes é vê-lo marginalizado para baixar os salários dos trabalhadores no seu conjunto.

Com isso, ele conclui que o racismo brasileiro é, “na sua estratégia e nas suas táticas”, algo “ambíguo, meloso, pegajoso, mas altamente eficiente nos seus objetivos” (Moura, 2020, p. 215). Para ele, não poderia haver democracia racial em um país sem completa democracia econômica, política, social e cultural; um país com uma das maiores concentrações fundiárias do mundo, governado por oligarquias retrógradas e broncas e com milhões de menores abandonados, carentes ou criminalizados. A democracia racial só seria atingida com a democratização das relações de produção, com a descentralização dos polos de poder via desconcentração fundiária e, finalmente, com o fim de uma sociedade selvagem de competição e conflito para o surgimento de uma sociedade de planejamento e cooperação (Moura, 2020).

Em síntese, foram aqui retomadas, da obra de Clóvis Moura, algumas proposições que podem ser reunidas em torno de quatro ideias principais interconectadas: i) a compreensão do papel ativo do negro em sua emancipação; ii) a ideia de modernização sem mudança no pós-Abolição, que manteve a população negra nas camadas mais oprimidas; iii) a ideia de práxis social dinâmica como única forma de reversão da situação de opressão; iv) a relação entre escravidão e capitalismo dependente. Na próxima seção, são delineados alguns contornos de como essas ideias podem ser relacionadas com debates relevantes no campo de Estudos Organizacionais.

DISCUSSÕES E CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os Estudos Organizacionais oferecem textos que podem ser considerados multitudinários e variados, não apenas em relação a conteúdo, mas também quanto às instâncias teóricas e metodológicas adotadas (Westwood & Clegg, 2003). Ainda que décadas recentes tenham mostrado uma retração do engajamento da área com suas disciplinas constituintes, a pressão de eventos externos demanda uma retomada da interdisciplinaridade, entendendo que problemas sociais complexos são mais bem endereçados quando se integram múltiplos métodos e abordagens (Vidal, Adler, & Delbridge, 2015).

Nesse contexto, olhares marxistas podem desempenhar um papel importante, tanto por oferecer uma visão da história humana e da dinâmica do desenvolvimento capitalista, como também por disponibilizar uma poderosa abordagem interdisciplinar, desdobrando o núcleo social das relações econômicas (Vidal et al., 2015). As diferentes versões do marxismo, além de porta de entrada para demandas da classe trabalhadora nos Estudos Organizacionais, são veículos de sustentação da emancipação humana como horizonte autêntico (Cunha & Ferraz, 2015). Nesse sentido, quando Clóvis Moura “enegrece o marxismo” valendo-se da perspectiva da práxis radical, oferece uma solução não apenas subjetiva para o “dilema negro”, mas também objetiva, pois o significado político da práxis negra é a emancipação humana que ocorreria com a superação da sociedade burguesa (Oliveira, 2011, p. 62).

Dessa perspectiva, quatro contribuições interrelacionadas foram discutidas na seção anterior, identificadas como capazes de subsidiar estudos contemporâneos em organizações. A primeira delas diz respeito a retomar o papel do escravizado rebelde na abolição brasileira, alçando a imbricação entre raça e classe como mecanismo explicativo fundamental de nossa realidade presente e futura. Essa explicação materialista para a sociedade e, por conseguinte, para o atual contexto da organização das práticas coletivas, implicaria reconhecer o potencial dos dominados de recobrar sua autonomia, servindo como contraponto a leituras que colocam o dominante como protagonista da mudança. No caso em particular, sem deixar de demandar uma postura antirracista generalizada, significaria questionar o papel do “branco salvador” que, implícita ou explicitamente, acaba sendo reproduzido no interior das organizações.

A segunda contribuição selecionada - o processo de modernização conservadora analisado por Moura - contém possibilidades adicionais para refletir como demais traços desse fenômeno continuam a direcionar o funcionamento das organizações e das práticas organizativas. Entende-se que, com base no ponto de vista moureano, seja possível expandir análises a respeito de como as organizações constituem espaços decisivos de produção e reprodução de desigualdades raciais. Observa-se que, na esfera do trabalho, questões relacionadas a raça costumam ser tratadas sob o guarda-chuva da diversidade (Machado, Bazanini, & Mantovani, 2018). Moura pode nos ajudar a refletir como os instrumentos discutidos no interior desse “paradigma” são insuficientes - quando não impeditivos - para uma ascensão vertical em massa das camadas oprimidas.

O termo em questão remonta a meados dos anos 1980 e ressignificou o entendimento das diferenças nas organizações, ao retratá-las como ativos estratégicos capazes de gerar vantagem competitiva (Zanoni, Janssens, Benschop, & Nkomo, 2010). A lógica de negócios orientou grande parte da pesquisa acadêmica sobre diversidade, um termo abrangente sob o qual qualquer característica individual poderia ser subsumida, diminuindo o risco de conflito intergrupal entre a maioria e as minorias (Zanoni et al., 2010).

A partir do pensamento moureano, seria possível adicionar contribuições à literatura crítica sobre diversidade nos Estudos Organizacionais, por meio de uma perspectiva do materialismo-histórico-dialético. Nesse sentido, nosso autor pode fornecer elementos para analisar como discursos e práticas ligadas à ideia de promoção da diversidade nas empresas compõem o mito escamoteador da realidade social, ou seja, não endereçam as suas contradições fundamentais.

Para Arciniega (2021), os “profissionais da diversidade”, afirmando não ser possível promover diversidade sem fazer negócio, acabam por performar a racionalidade econômica e a lógica de mercado ao institucionalizar práticas de “gestão da diversidade”. De acordo com a autora, a separação entre economia e moralidade reproduz uma visão de capitalismo (racial) como “economia branca”, a qual reforça a lógica financeira e neoliberal. Assim, tais instrumentos, mais voltados para o mercado do que para as demandas da sociedade (Saraiva & Irigaray, 2009), permitiriam a seleção de pontuais representantes das camadas oprimidas, mas, na prática, poderiam atuar como impeditivos de uma ascensão vertical em massa.

Ou seja, as organizações, com suas técnicas de seleção profissional, são atores importantes na reprodução das assimetrias raciais. As desigualdades sociais, em grande medida decorrentes da estrutura e dinâmica do mercado de trabalho, são produzidas e reproduzidas nas organizações, locais onde esses “[...] padrões de desigualdade são percebidos a partir de seus elementos simbólicos e subjetivos que, por vezes, cristalizam e justificam a própria estrutura de desigualdade social” (Helal, 2015, p. 264).

Para Clóvis Moura, a solução para essa situação só poderá surgir por meio de uma práxis social dinâmica que transcenda a crença da integração na sociedade competitiva e promova a emancipação humana (Silva, 2021). Portanto a “[...] superação da negação da funcionalidade do racismo para o capitalismo” (Silva, 2021, p. 56) seria uma importante reflexão, com base no pensamento moureano, a ser apontada para os Estudos Organizacionais. Como notado por Prasad (2021), há uma predisposição de parte significativa dos estudiosos da área a considerar o racismo nas organizações como um problema de mentalidade, individual ou de grupo, que poderia ser remediado com medidas como treinamentos, mentorias e representação identitária de grupos não brancos. Mesmo quando se reconhece uma dimensão estrutural do racismo, suas íntimas conexões com o capitalismo raramente são analisadas (Prasad, 2021).

Como apontado ao longo da obra de Moura, a liberdade negra e o enfrentamento ao racismo são condições necessárias para a democracia no Brasil. Tendo como referência a quilombagem descrita por ele, os movimentos contemporâneos de resistência podem ser pensados com base em sua capacidade de desgastar o sistema vigente por meio de uma articulação que conjugue grupos de marginalizados em suas diversas condições. Seja no ambiente das empresas ou em outros espaços sociais, permanece o desafio para que os movimentos de resistência se coloquem como um centro organizacional do qual partam ou convirjam diferentes formas de rebeldia em uma perspectiva interseccional.

Como exemplo, no caso da guerra às drogas no Brasil, o negro constitui objeto de tal conflito. Assim, uma práxis militante e revolucionária nesse âmbito teria de ser antiproibicionista, tornando-o “[...] a sujeito político de sua crítica e superação, vinculando a luta antiproibicionista à luta de classes, orientada a um horizonte antirracista e anticapitalista” (Costa & Mendes, 2022, p. 511). Outra questão possível de ser pensada por essa perspectiva é a segurança alimentar, considerando que, entrelaçada em diversos tipos de desigualdade, a fome tem incidência racial no Brasil (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar [Rede PENSSAN], 2022). Além da questão mais flagrante do acesso a trabalho e renda, seria possível citar as barreiras à educação e ao ensino formal, assim como entraves ao exercício do direito ao lazer. Todas essas mazelas sociais seriam passíveis de serem abordadas por um viés de resistência antirracista e anticapitalista que se manifesta em formas e frentes de lutas coletivas diversas.

Também procuramos demonstrar como a obra moureana oferece interessantes contribuições para o estudo do capitalismo dependente brasileiro. Desse modo, há aportes que podem se somar aos debates que procuram o diálogo entre os estudos da dependência e os estudos das organizações (Wanderley, 2015). Da mesma forma, há apontamentos sobre a superexploração do trabalho - o núcleo duro da dependência - que apresentam potencial de investigação nos Estudos Organizacionais (Misoczky, Abdala, & Camara, 2015).

Nas palavras de Marini (2000, p. 126), a característica essencial da superexploração “[...] está dada pelo fato de que são negadas aos trabalhadores as condições necessárias para repor o desgaste de sua força de trabalho”. Na condição de dependência, os mecanismos de transferência entre as economias levam parte do mais-valor produzido na periferia a ser apropriada e acumulada no centro; os países dependentes buscam, então, recuperá-la com a superexploração do trabalho, em lugar do incremento da capacidade produtiva (Marini, 2000).

No Brasil recente, a dinâmica capitalista baseada na superexploração, a qual gerou altas taxas de acumulação durante o chamado “milagre econômico”, passou por um processo de reestruturação produtiva com a vitória do neoliberalismo a partir dos anos de 1990 (Antunes, 2014). Elementos como flexibilização, desregulamentação, novas formas de gestão do capital, terceirizações, novas modalidades de exploração e um relativo avanço tecnológico trouxeram mudanças no âmbito do trabalho contemporâneo sem alterar o quadro de superexploração (Antunes, 2014).

Moura (1983) entende que o capitalismo dependente, paradoxalmente, necessita de grandes camadas marginalizadas de indivíduos para serem descartadas, ao mesmo tempo que são mantidas à margem da sociedade. Essa compreensão pode ser útil à reflexão sobre o cenário atual de intensificação da precarização do trabalho, de ameaça de direitos sociais de modo geral, de aumento da violência policial e paraestatal, de avanço de pautas conservadoras e do fundamentalismo religioso, elementos que se misturam e incidem sobre toda uma camada da população.

Nesse cenário, a classe trabalhadora pode ser pensada como a totalidade daqueles que, cada vez mais integrados a cadeias produtivas globais, vendem sua força de trabalho como mercadoria em troca de salário, independentemente de realizarem atividades predominantemente materiais ou imateriais, em um capitalismo financeirizado e informacional, marcado por uma simbiose entre o produtivo e o improdutivo (Antunes, 2014). Assim, a condição desses indivíduos oscila entre a heterogeneidade em sua forma de ser (gênero, etnia, geração, espaço, qualificação, nacionalidade etc.) e a homogeneização resultante da condição precarizada em distintas modalidades de trabalho (Antunes, 2014).

Podemos, então, refletir a respeito da forma como a heterogeneidade racial atua sobre a homogeneização precarizante, marginalizando a população negra para intensificar a exploração dos trabalhadores em seu conjunto - baixando os salários, exigindo o cumprimento de jornadas mais longas, submetendo a ritmos de trabalhos mais intensos etc. Além disso, observam-se artifícios cada vez mais sofisticados do sistema financeiro, que atrelam a classe trabalhadora a diferentes esquemas de endividamento e sujeição.

Diante dessas novas formas de organização do trabalho, vale refletir como os algoritmos, alimentados por conjuntos de dados racistas (O’Neil, 2017), podem intensificar a máquina da superexploração. O que esperar dos instrumentos de seleção, progressão nas empresas e gerenciamento do trabalho quando eles replicam as desigualdades de seus data sets (Köchling, Riazy, Wehner, & Simbeck, 2021)? São questionamentos pertinentes sobre como a herança da escravidão se metamorfoseia para continuar se reproduzindo e mantendo o capitalismo dependente diante dos novos artefatos e arranjos organizacionais.

Por fim,a posição contestadora do nosso autor a respeito das teorias importadas acriticamente do centro do conhecimento pode servir de importante fonte de inspiração, bem como seus embates contra o hermetismo acadêmico que nos desvia de problemas urgentes. Tal perspectiva alinha-se com a leitura de Milton Santos (2000), para quem a tirania do dinheiro e da informação, oriunda da concentração do capital e do poder, gerou uma convergência de normas sem precedentes, acarretando a construção de um espaço unipolar de dominação. Porém, como alternativa ao “Ocidente globalizado”, inacessível a muitos em sua forma pura, as periferias mobilizariam a unicidade das técnicas para pensar uma “outra globalização” (Santos, 2000).

De maneira similar, nos Estudos Organizacionais, vem se observando uma ascendente mobilização de perspectivas que se preocupam em questionar a geopolítica do conhecimento, procurando pensar a periferia de seu contexto e para o seu contexto (Louredo & Oliveira, 2022). Ao desnaturalizar a persistência de modelos anglo-saxões de construção do conhecimento (Mignolo, 2020), emergem novas possibilidades de historicizar os Estudos Organizacionais e de também dar a eles ancoragem geográfica (Wanderley & Barros, 2018).

À guisa de conclusão, recorda-se que, no campo dos Estudos Organizacionais, ainda que posicionamentos a favor de transformações radicais sejam minoria, eles não deixam de produzir suas críticas (Faria, 2009). O intuito em trazer aportes da obra de Clóvis Moura para esse espaço consiste em reforçar esse tipo de perspectiva. Negar-se a esvaziar o papel da escravidão na formação do país e se recusar a diminuir sua devida influência na realidade presente nos aproximam de uma melhor compreensão do passado e, por conseguinte, de projetos de futuro mais transformadores.

AGRADECIMENTOS

Pesquisa financiada com recursos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES DS 001).

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  • 1
    Moura (1988) aponta que em sociedades divididas em classes, a consciência dos antagonismos não alcança todos os indivíduos. O autor argumenta que, na sociedade escravista, a dinâmica social passa pela oposição entre escravos e senhores, o que significa dizer que toda a máquina ideológica, administrativa e militar estava montada para manter o equilíbrio social, que somente seria possível se houvesse uma estrutura de contenção capaz de fazê-lo. Assim, havia colaboração social do escravo e também “compreensão” de alguns senhores. No entanto essas relações não tipificavam aquelas que dão conteúdo à dinâmica social. Se assim o fosse, tal inércia social indicaria uma interrupção no curso da história.
  • 2
    Vale a pena recordar a ressalva do autor a respeito de que o aparecimento de escravos de ganho não significaria o surgimento de aspectos modernos em modo embrionário, como uma suposta condição de quase homem livre em direção ao assalariamento. Essencialmente, mesmo no caso dos escravos de ganho, a relação entre os grupos não havia se modificado e o escravizado continuava sendo, simultaneamente, força produtiva e mercadoria, cuja liberdade ia até onde e quando o senhor a concedia.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    24 Fev 2022
  • Aceito
    11 Abr 2023
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