RESUMO
Objetivo: analisar o acompanhamento das pessoas afetadas pela hanseníase nos serviços de saúde durante a pandemia COVID-19.
Método: estudo exploratório, descritivo com abordagem qualitativa, desenvolvido em Unidades Básicas de Saúde e no Serviço de Referência de Hanseníase de Campina Grande-Paraíba - Brasil. Coleta de dados entre os meses de outubro de 2021 e fevereiro de 2022. A população do estudo foi composta por usuários em tratamento e em acompanhamento de reações hansênicas. Os dados foram analisados através da Análise de Conteúdo de Bardin.
Resultados: emergiram três categorias, sendo o déficit de conhecimento dos usuários sobre a hanseníase e seu controle, os sentimentos desses frente a doença e ao tratamento, e o controle da hanseníase fragilizado na Atenção Primária à Saúde.
Conclusão: observou-se fragilidade no acompanhamento dos usuários afetados pela hanseníase, relacionado a falta de medicação e de profissionais, assim como na própria percepção do usuário com relação à doença.
DESCRITORES: Hanseníase; COVID-19; Serviços de Saúde; Pandemia; Paciente
ABSTRACT
Objective: To analyze the follow-up of people affected by leprosy in health services during the COVID-19 pandemic.
Method: This is an exploratory, descriptive study with a qualitative approach, carried out in Basic Health Units and the Leprosy Reference Service in Campina Grande-Paraíba - Brazil. Data collection between October 2021 and February 2022. The study population consisted of users undergoing treatment and being monitored for leprosy reactions. The data was analyzed using Bardin’s Content Analysis.
Results: Three categories emerged: users’ lack of knowledge about leprosy and its control, their feelings about the disease and treatment, and weakened leprosy control in Primary Health Care.
Conclusion: We observed fragility in the follow-up of users affected by leprosy, related to the lack of medication and professionals, as well as the user’s perception of the disease.
KEYWORDS: Leprosy; COVID-19; Health Services; Pandemics; Patient
RESUMEN
Objetivo: Analizar el seguimiento de las personas afectadas de lepra en los servicios sanitarios durante la pandemia de COVID-19.
Material y método: estudio exploratorio, descriptivo, con abordaje cualitativo, realizado en Unidades Básicas de Salud y en el Servicio de Referencia en Lepra de Campina Grande-Paraíba - Brasil. Recogida de datos entre octubre de 2021 y febrero de 2022. La población del estudio estaba formada por usuarios que seguían un tratamiento y eran controlados para detectar reacciones leprosas. Los datos se analizaron mediante el análisis de contenido de Bardin.
Resultado: surgieron tres categorías, a saber, la falta de conocimientos de los usuarios sobre la lepra y su control, sus sentimientos sobre la enfermedad y el tratamiento, y el debilitamiento del control de la lepra en la Atención Primaria de Salud.
Conclusión: Observamos fragilidad en el seguimiento de los usuarios afectados por la lepra, relacionada con la falta de medicación y de profesionales, así como con la propia percepción de la enfermedad por parte del usuario.
DESCRIPTORES: Lepra; COVID-19; Servicios sanitarios; Pandemia; Paciente
HIGHLIGHTS
A COVID-19 gerou dificuldades no acompanhamento dos pacientes com hanseníase.
Os pacientes não compreendem bem as repercussões da hanseníase.
Os pacientes encontram-se apreensivos frente as repercussões da hanseníase.
INTRODUÇÃO
Diante do processo histórico da hanseníase, o acesso das pessoas afetadas pela doença no sistema de saúde brasileiro ainda é considerado difícil, devido ao longo percurso para confirmação diagnóstica e tratamento oportuno1. A situação pandêmica advinda do coronavírus, SARS-CoV-2 (Severe Acute Syndrome Coronavírus-2), no Brasil, ocasionou barreiras para o controle de inúmeros problemas de saúde que precisam de acompanhamento contínuo e atenção integral nos serviços de saúde.
Entre os principais problemas de saúde pública, destaca-se a hanseníase, cujo agente etiológico é o Mycobacterium leprae, que atinge principalmente a pele e os nervos periféricos, com capacidade de ocasionar lesões neurais e dermatológicas, o que lhe confere um alto poder incapacitante, responsável pelo estigma e discriminação em relação às pessoas afetadas pela doença2.
Em 2020, foram reportados à Organização Mundial da Saúde (OMS) 127.396 casos novos da doença no mundo. Desses, 19.195 (15,1%) ocorreram na região das Américas e 17.979 foram notificados no Brasil, o que corresponde a 93,6% do número de casos novos das Américas. Brasil, Índia e Indonésia reportaram mais de 10.000 casos novos, correspondendo a 74% dos casos novos detectados no ano de 2020. Nesse contexto, o Brasil ocupa o segundo lugar entre os países com maior número de casos no mundo, atrás apenas da Índia³.
Com base nos indicadores epidemiológicos e no reflexo social da doença, a gestão de saúde pública brasileira, seguindo as recomendações da OMS para eliminação da doença, ao longo dos anos tem intensificado a criação de propostas e estratégias para o fortalecimento e a integração das Ações de Controle da Hanseníase (ACHs) nos serviços de saúde.
Ressalta-se que mesmo diante de recomendações da OMS e de esforços na produção de planos estratégicos elaborados, estados e municípios brasileiros ainda apresentam indicadores epidemiológicos e operacionais preocupantes. Faz-se necessário avançar no diagnóstico precoce e tratamento oportuno, principalmente na Atenção Primária à Saúde (APS), considerada a principal porta de entrada do Sistema Único de Saúde (SUS)4.
Estudos realizados no Brasil evidenciam que as ACHs precisam avançar no âmbito da APS5-7, tendo em vista problemas, como: diagnóstico tardio, aumento de diagnóstico nos menores de 15 anos de idade, diagnósticos iniciais com grau de incapacidade afetado, interrupção, abandono do tratamento e acompanhamento da hanseníase em unidades de Atenção Secundária.
Considerando a hanseníase uma doença que requer diagnóstico precoce, que a atenção às pessoas em tratamento deve ser contínua, além de considerar que a pandemia COVID-19 trouxe mudanças na vida das pessoas, dos profissionais e dos serviços de saúde, torna-se essencial conhecer como se deu o acompanhamento dos usuários, uma vez que a partir dos avanços e das fragilidades identificadas, novas propostas de cuidado podem ser discutidas entre os usuários, profissionais e gestores de saúde, com intuito de garantir a integralidade da assistência e o controle da doença na população.
Em vista disso, e com a intenção de nortear a construção deste estudo, surgiu a necessidade de entender como ocorreu o acompanhamento das pessoas afetadas pela hanseníase durante a pandemia COVID-19. Com o intuito de contemplar esse entendimento, delineou-se para este estudo o objetivo de analisar o acompanhamento das pessoas afetadas pela hanseníase nos serviços de saúde durante a pandemia COVID-19.
MÉTODO
Trata-se de um estudo exploratório-descritivo com abordagem qualitativa, tendo como base referencial a política de promoção da saúde e vigilância em saúde, relacionada às ações de controle da hanseníase e a pandemia COVID-19, desenvolvido em Unidades Básicas de Saúde (UBS) e no Serviço de Referência de Hanseníase de Campina Grande/PB, entre os meses de dezembro de 2021 a fevereiro de 2022.
A rede de assistência da cidade de Campina Grande está estruturada em conformidade com a Portaria 4.279 de 30 de dezembro de 2010, composta pelos níveis de atenção à Saúde: Atenção Primária à Saúde, Atenção Secundária e Atenção Terciária (Brasil, 2010), disposta em sete Distritos Sanitários (DS).
Atualmente o município conta com 119 Equipes de Saúde da Família (ESF), o que representa 77,23% de cobertura populacional. No tocante aos níveis de saúde Secundário e Terciário, referem-se à atenção especializada ambulatorial e hospitalar, e fazem a retaguarda à APS, dando suporte no diagnóstico, tratamento de doenças e condições específicas de certos grupos populacionais8.
Inicialmente, realizou-se contato com a coordenação do Programa de Controle da Hanseníase (PCH), com intuito de identificar as UBS que apresentavam usuários em tratamento de hanseníase. Após identificação das UBS, realizou-se uma amostragem aleatória simples sendo definidas as Unidades de Saúde por DS que apresentavam casos de hanseníase em tratamento. Dos sete DS, apenas o DS IV não apresentava usuários no registro ativo, ou seja, em tratamento. Desse modo, a pesquisa foi realizada apenas em seis DS. Em cada DS foi sorteada uma UBS. Dessas, cinco eram compostas por uma equipe de saúde da família, sendo que uma UBS contemplava três equipes, na qual obtivemos a participação de duas.
Além das UBS, foi selecionado o único Centro de Referência do município que atende as complicações da hanseníase. Ressalta-se que não foram incluídas as UBS da Zona Rural, tendo em vista não apresentar registros de casos de hanseníase.
A população foi composta por usuários em tratamento ativo da doença e que concluíram o tratamento, além dos casos que se encontravam em acompanhamento de reações hansênicas. Diante do número total de equipes que atuam na APS e considerando os critérios de inclusão e exclusão, a amostra foi constituída por 11 usuários, sendo sete da APS e quatro da Atenção Secundária.
Com relação aos critérios de inclusão, considerou-se os usuários com diagnóstico de hanseníase classificados como Paucibacilar (PB) e Multibacilar (MB), e os que concluíram o tratamento e que se encontram em acompanhamento dos episódios reacionais. Foram excluídos os menores de 18 anos, os usuários que apresentavam algum agravo de saúde, impossibilitado de realizar a entrevista e os usuários acompanhados no Serviço de Referência de Hanseníase, mas que residiam em outro município.
Para viabilizar a coleta de dados foram elaborados dois instrumentos, sendo um questionário para caracterizar os participantes do estudo e um roteiro de entrevista para conhecer os desafios enfrentados pelos usuários no acompanhamento da hanseníase durante a pandemia COVID-19.
Para tanto, utilizou-se um roteiro semiestruturado para realização das entrevistas, com base nas recomendações operacionais propostas pelas Portaria nº 2.446, de 11 de novembro de 2014 que redefine a política nacional de promoção da saúde (PNPS) e da Política Nacional de Vigilância em Saúde (PNVS), por meio da Resolução n. 588/2018 do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Contudo, o referido instrumento não passou pelo processo de validação.
O instrumento de pesquisa foi aplicado nas UBS e no Centro de Referência, em local reservado, conforme disponibilidade e interesse do participante do estudo, com o uso de um aparelho gravador digital dupla entrada.
Os dados relacionados à caracterização dos participantes do estudo foram analisados de forma descritiva. Quanto aos dados das entrevistas, foram analisados através da Análise de Conteúdo (AC) proposta por Bardin9, cuja técnica de análise apresenta três etapas: Pré-análise; exploração do material e tratamento dos resultados obtidos; e inferência e interpretação.
No tocante à transcrição das entrevistas, utilizou-se como método a transcrição naturalista que corresponde à transcrição minuciosa do que é dito e preconiza a preservação dos diferentes elementos da entrevista para além do conteúdo verbal10 .
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Alcides Carneiro da Universidade Federal de Campina Grande, com parecer: 4.629.355. Para preservar a identidade de cada participante foi utilizado a letra U (Usuário), seguido do número correspondente a ordem das entrevistas.
RESULTADOS
Do total de participantes da pesquisa, seis (54,6%) são do sexo feminino, quanto à faixa etária, verifica-se que o maior número de casos das pessoas afetadas pela hanseníase encontra-se na faixa etária de 60 anos ou mais, cinco (45,5%), seguida pelas faixas etárias de 30 a 39 anos e menores de 29 anos, ambos com dois (18,2%).
Quanto ao nível de instrução e escolaridade dos participantes do estudo, dois concluíram o Ensino Médio (18,2%) enquanto quatro o Ensino Fundamental (36,4%), três não concluíram o Ensino Fundamental (27,2%) e dois não possuem alfabetização (18,2%).
Considerando as formas de hanseníase, seis (54,6%) dos sujeitos participantes do estudo foram diagnosticados na forma dimorfa, um (9%) na forma indeterminada e quatro (36,4%) encontram-se em tratamento reacional.
Na análise das entrevistas verificou-se um número maior e mais significativo de Unidades de Registros (URs) dentro de alguns contextos e temas, e foi precisamente o que determinou as unidades de significação, e que foram definidas 3 (três) categorias, sendo: Déficit de conhecimento dos usuários acerca da hanseníase e suas ações de controle; Sentimentos dos usuários frente a doença e ao tratamento da hanseníase; e Controle da hanseníase fragilizado na Atenção Primária à Saúde.
Categoria 1 - Déficit de conhecimento dos usuários acerca da hanseníase e suas ações de controle
A Categoria 1 reúne falas acerca do déficit de conhecimento das pessoas afetadas pela hanseníase com relação aos aspectos clínicos, ao tratamento correto, as complicações da doença, e a cura, como podemos observar nas falas abaixo:
[...] tem hora que não entendo nada, uns diz que cura, outros diz que não cura nunca. (U3).
[...] eles dizem que a gente fica bom da hanseníase, mas não fica, sempre a gente fica com sequela (U9)
[...] tomava a metade de um, porque estava faltando, né? Aí eu pegava, invés de tomar um comprimido eu dividia, partia do meio e tomava uma banda e no outro dia tomava outra para não faltar, aí foi assim (U4).
Categoria 2 - Sentimentos dos usuários frente a doença e ao tratamento da hanseníase
Esta categoria foi construída a partir de falas dos participantes a respeito dos sentimentos emergidos após do diagnóstico de hanseníase, seja em relação ao preconceito, estigma e medo ocasionado pelo contexto histórico da doença e o próprio tratamento da doença:
[...] querendo ou não, essas manchas quando as pessoas olham pra pessoa já olham com aquele olhar: o que é que ele tem? Será que eu vou pegar? Vou me contagiar com aquilo? Ai foi bastante dificultoso por conta disso, mas eu levantei a cabeça e eu sei que tem tratamento e que eu vou estar curado. (U7).
Categoria 3: Controle da hanseníase fragilizado na Atenção Primária à Saúde durante a pandemia COVID-19
A categoria 3 aborda situações que dificultaram a continuidade do tratamento da hanseníase na APS durante a pandemia COVID-19, como demonstra os relatos abaixo:
[...] aqui no posto não faz o tratamento, passo só para pegar o prontuário e todo mês vou para a outra doutora.
[...] parei dois meses porque faltou a medicação e depois voltou normal, quando fui no posto disseram que o tratamento ia começar do zero. (U5)
DISCUSSÃO
A análise dos resultados do presente estudo culminou na criação de três categorias distintas para discussão dos dados qualitativos, de forma que fosse possível a distinção entre as diferentes problemáticas encontradas nas entrevistas.
A categoria 1, “Déficit de conhecimento dos usuários acerca da hanseníase e suas ações de controle”, demonstra que existe um déficit de conhecimento das pessoas afetadas pela doença relacionado aos aspectos clínicos, tratamento correto, complicações da doença e cura.
Corroborando com os resultados do presente artigo, um estudo12 realizado em 2021 destacou que o baixo nível de instrução e escolaridade estão diretamente ligados às ACHs, uma vez que está problemática conduz a ótica de condições de vida fragilizadas, dificuldade de locação e transporte, déficit no autocuidado e falta de conhecimento para entender o processo saúde/doença, este que resultaria na diminuição das chances de um tratamento tardio.
Diante do déficit de conhecimento identificado nos depoimentos nesta categoria, destaca-se que o acesso à informação se constitui como primordial para a promoção do cuidado integral à saúde. Para conseguir proporcioná-lo de forma adequada, torna-se importante o empoderamento do usuário, para fortalecer o seu protagonismo no cuidado e tê-lo como um aliado no processo de cuidar13.
No contexto do SUS, a informação relacionada ao processo de saúde e doença pode acontecer de forma individual e coletiva através da prática da educação em saúde, de forma a proporcionar conhecimento e reflexões entre profissionais e usuários para a adoção de novos hábitos e condutas de saúde14.
Estudo realizado em 2020 destaca que a educação em saúde contribui para a formação de senso crítico no que tange os próprios problemas de saúde e na forma de enfrentamento a esses, fazendo com que as pessoas reflitam sobre sua situação de saúde e doença, e, a partir disso, busque soluções junto aos profissionais, família e comunidade15.
Apesar das inúmeras estratégias implantadas e implementadas acerca da promoção da saúde, pesquisas realizadas no Brasil enfatizam a educação em saúde como uma ferramenta básica e prioritária para promover a saúde e prevenir doenças das pessoas, famílias e comunidade16-17.
Estudo realizado em 2021, a partir de uma ação de educação em saúde promovida em UBS da periferia de Fortaleza, Ceará, em um município da Paraíba, acerca do conhecimento da população constatou um déficit de conhecimento acerca da transmissibilidade, sinais e sintomas da hanseníase, e salientou a necessidade da educação em saúde para o diagnóstico e tratamento preoces18.
Um estudo desenvolvido a partir de um relato de experiência do projeto “Roda Hans/Carreta da Saúde -Hanseníase”, em Paulo Afonso, Bahia, mostrou que ainda é grande a desinformação acerca dos sinais e sintomas da hanseníase, bem como é grande a estigmatização acerca da doença, tanto por parte de profissionais de saúde quanto por parte da população. O mesmo projeto verificou que, instituídas ações de educação em saúde, obteve-se satisfatório acréscimo de conhecimento, favorecendo a prevenção, diagnóstico precoce e tratamento correto por parte de usuários e de profissionais de saúde19.
Um estudo realizado em uma cidade hiperendêmica do noroeste paulista evidenciou que entre 234 prontuários de pacientes com hanseníase avaliados entre 2013 a 2017, 35 (15%) dos usuários interromperam e abandonaram o tratamento. Diante das consequências da interrupção e abandono de tratamento, faz-se necessário que os serviços de saúde implantem medidas para atuar na mitigação dos motivos de interrupção ou abandono contribuindo assim para adesão ao tratamento e quebra da cadeia epidemiológica de transmissão da doença20.
O abandono e o tratamento ineficaz da hanseníase ocasionam consequências coletivas e individuais, como a continuidade da transmissão da doença, sequelas e incapacidades físicas, e risco de desenvolver formas bacilíferas com resistência aos fármacos utilizados no tratamento20.
Tendo em vista que a hanseníase deixa marcas física, mental e social e requer um cuidado prolongado, cabe aos profissionais de saúde valorizar a educação em saúde e esclarecer de forma específica o controle da doença, levando em consideração as condições socioculturais das pessoas, famílias e população, para que todos compreendam o que é a doença e a importância do tratamento correto21.
Levando em consideração as adequações do Ministério da Saúde e da Sociedade Brasileira de Hansenologia no território brasileiro perante a contenção da disseminação do COVID-19, algumas estratégias foram estabelecidas para o controle da hanseníase nos serviços de saúde. Entre as orientações destaca-se a manutenção da poliquimioterapia (PQT), cujo atendimento e entrega dos blisters na APS seguiu de acordo com planejamento realizado pela equipe de saúde, respeitando as normas de segurança e situação de vulnerabilidade de cada usuário em tratamento. Quanto aos serviços de referência, estes asseguraram o acompanhamento dos usuários agendados mesmo durante a emergência de saúde pública3,26.
Algumas experiências exitosas foram realizadas em municípios brasileiros após o período crítico da pandemia COVID-19, com intuito de diminuir a prevalência oculta da hanseníase, entendida como o número de casos circulantes na comunidade, mas não detectados pelos serviços de saúde.
A categoria 2, “Sentimentos dos usuários frente a doença e ao tratamento da hanseníase”, torna-se perceptível os sentimentos emergidos pelas pessoas afetadas pela hanseníase, seja em relação ao preconceito, estigma e medo ocasionado pelo contexto histórico da doença e o próprio tratamento da doença.
Verifica-se ao longo dos anos que o preconceito, a discriminação e a falta de informação, encontram-se arraigados no processo de construção social da hanseníase e, tais fatores dificultam de forma extrema o enfrentamento da doença. Sobre esses aspectos, estudo desenvolvido em 2020, demonstrou uma análise histórica sobre a prevenção de incapacidade física por hanseníase no Brasil, e destaca que a referida doença causa grande impacto em diversas áreas da vida das pessoas, seja nas relações sociais, no ambiente de trabalho, e inclusive no âmbito familiar. Os impactos negativos na vida das pessoas são ocasionados pelo contexto histórico da doença, que permanece presente no imaginário social como uma doença mutilante que não tem cura, tendo como consequências a rejeição, discriminação e exclusão social21.
Percebe-se na análise das falas, que a hanseníase ocasiona sentimentos de tristeza, medo e exclusão, uma vez que os usuários enfatizam que serem afetadas pela doença faz com que se sintam diferentes e negligenciados. Assim a percepção deles sobre estar doente é rodeada de sentimentos negativos, presença de emoções como tristeza e medo, que podem contribuir para uma baixa estima e processos depressivos.
Corroborando com os resultados do estudo, uma pesquisa realizada no ano de 2021, a partir de uma revisão da literatura, constatou-se sentimentos de medo, inferioridade e tristeza que coexistem com a discriminação e a falta de informação sobre a hanseníase. Estes sentimentos vivenciados cotidianamente tornam as pessoas retraídas, tímidas, desmotivadas e, por vezes, os afastam de familiares, de amigos próximos e do trabalho, reforçando o sofrimento e o adoecimento psíquico22.
Destaca-se que em função das marcas físicas, emocionais e psíquicas, usuários e famílias afetadas pela doença, buscam amparo em diversas formas, inclusive em sua crença espiritual. Estudo realizado em 2023 buscou observar como era a qualidade de vida de pessoas com hanseníase no Hospital Colônia de Carpina, em Piauí, e verificou que a religiosidade e a espiritualidade dos pacientes serviam como ferramentas para superar e resistir às adversidades vivenciadas. Dessa forma, pode-se observar os efeitos significativos que as crenças podem exercer na saúde das pessoas23.
Durante a pandemia COVID-19, pesquisadores do Brasil e do mundo evidenciam em seus estudos os impactos negativos que emergiram na vida de milhares de pessoas e famílias mediante o enfrentamento da pandemia. Tem-se observado o aumento da depressão, da ansiedade devido ao medo de adoecer diante da infecção pelo novo coronavírus, e medo de apresentar complicações por ter doenças preexistentes, o que requer ainda mais cuidado e atenção dos profissionais de saúde24.
Diante da complexidade que envolve a hanseníase, é preciso um olhar crítico e reflexivo, visto que o tratamento vai além de um esquema terapêutico para obter a cura. Destaca-se que o preconceito e a exclusão social continuam cravados na sociedade, o que traz consequências devastadoras para a saúde física e mental das pessoas afetadas pela hanseníase.
A categoria 3, “Controle da hanseníase fragilizado na Atenção Primária à Saúde durante a pandemia COVID-19”, aborda situações que dificultaram a continuidade do tratamento da hanseníase na APS durante a pandemia COVID-19.
Observa-se, nas falas dos participantes do estudo, algumas dificuldades enfrentadas pelas pessoas afetadas pela hanseníase para dar continuidade ao tratamento na APS durante a pandemia COVID-19. Tais dificuldades incluem a falta de medicamentos temporariamente e a ausência do profissional de saúde.
No sistema de saúde brasileiro, a APS é o primeiro nível de atenção em saúde cujo objetivo é desenvolver uma atenção integral que impacte positivamente na situação de saúde das coletividades. É considerada o centro de comunicação com toda a Rede de Atenção à Saúde3.
Considerando que a APS deve cumprir com suas funções de resolutividade dos problemas de saúde da população, organização dos fluxos e contrafluxos dos usuários na Rede de Atenção à Saúde (RAS), e tem a responsabilidade pela saúde dos usuários e da população, durante a pandemia COVID-19, o MS e a Sociedade Brasileira de Hansenologia3,25, no início da pandemia emitiram notas técnicas orientando e recomendando como as equipes de saúde deveriam realizar as ações de controle de hanseníase. Entre as principais recomendações destaca-se o cuidado com a dose supervisionada e o tratamento das reações hansênicas.
Em relação à falta do médico na APS, revisão realizada em 2022 buscou analisar a longitudinalidade do cuidado diante da rotatividade de profissionais na Estratégia de Saúde da Família, e evidenciou que existe uma rotatividade deste profissional nas unidades de saúde em todas as regiões do território brasileiro. Tal situação compromete as relações das equipes com a população, obstando o alcance dos resultados esperados na APS, uma vez que, neste nível de atenção, o foco do cuidado deve estar na pessoa, na família e na comunidade, em que se valoriza um elo estreito entre elas e os profissionais de saúde26.
O tratamento adequado do usuário com diagnóstico da hanseníase, é considerado fundamental para interromper a cadeia de transmissão da doença, sendo, portanto, estratégico no controle da endemia e na eliminação da hanseníase enquanto problema de saúde pública. Por ter caráter longo, a adesão ao tratamento correto torna-se essencial para o alcance da cura em hanseníase27.
Mesmo reconhecendo as diversas fragilidades enfrentadas pela APS frente a Pandemia COVID-19, faz-se necessário reforçar que as equipes que atuam neste nível de atenção, têm papel fundamental para garantir que as ações de controle da hanseníase aconteçam de forma efetiva.
Destacam-se como limitações deste estudo o pequeno número de usuários entrevistados e a dificuldade em colher informações à época em que foi realizado, devido ao quadro pandêmico.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir deste estudo observou-se que a pandemia de COVID-19 acarretou algumas dificuldades para o atendimento e tratamento das pessoas afetadas pela hanseníase. As dificuldades vivenciadas pelas pessoas ocasionaram a interrupção no tratamento por falta de medicação, tratamento realizado de forma inadequada por falta de orientação e dificuldades para realizar avaliação médica na APS, devido à ausência desse profissional. Tal situação, contribui para o retrocesso no controle da doença, o aumento na transmissão, e o impacto negativo da APS.
Foi possível perceber que as pessoas acometidas pela hanseníase apresentam déficit de conhecimento acerca da própria doença, e devido ao contexto histórico da doença, sentem-se discriminadas pela sociedade.
Com a implantação de regimes de isolamento social como forma de se evitar o contágio pelo novo Coronavírus, além de outras estratégias, como a reorganização de unidades de saúde para melhor acolhimento dos afetados pela pandemia, observou-se uma menor aderência por parte da população aos cuidados com outras afecções, especialmente doenças crônicas tal qual a doença de Hansen.
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COMO REFERENCIAR ESTE ARTIGO:
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
20 Set 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
23 Ago 2023 -
Aceito
11 Abr 2024