REPERCUSSÕES PSICOSSOCIAIS DA PANDEMIA DA COVID-19 PARA MÃES DE CRIANÇAS COM TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA^*

RESUMO

Objetivo:

compreender as repercussões psicossociais da pandemia da COVID-19 para mães de crianças com Transtorno do Espectro Autista.

Método:

estudo qualitativo, com a participação de 22 mães. Os dados foram coletados de maio a julho de 2022, no interior da Paraíba, Brasil, por meio de uma Dinâmica de Criatividade e Sensibilidade. A análise deu-se através do referencial teórico-analítico da análise de discurso francesa.

Resultados:

medo, ansiedade, angústia, preocupações assumiram um lugar central no movimento dialógico das mães. Diante das demandas e reconfigurações na rotina, houve uma sobrecarrega física, emocional e psicológica, com repercussões na vida materna. A solidão pôde ser evidenciada pela frágil ou inexistente rede de apoio durante o período pandêmico.

Conclusão:

o estudo pode subsidiar a reflexão sobre as repercussões da pandemia na vida de mães de crianças com autismo e viabilizar a elaboração de ações que priorizem a saúde mental, auxiliando-as na superação de momentos de adversidades.

DESCRITORES:
Pandemia; COVID-19; Mães; Transtorno do Espectro Autista; Impacto Psicossocial

ABSTRACT

Objective:

to understand the psychosocial repercussions of the COVID-19 pandemic for mothers of children with Autism Spectrum Disorder.

Method:

a qualitative study, with participation of 22 mothers. The data were collected from May to July 2022 in the inland of Paraíba, Brazil, through the Dynamics of Creativity and Sensitivity. The analysis took place through the theoretical-analytical framework of French discourse analysis.

Results:

fear, anxiety, anguish and concerns assumed a central place in the mothers’ dialogical movement. Faced with the demands and reconfigurations in the routine, there was physical, emotional and psychological overload, with repercussions on maternal life. Loneliness can be seen in the weak or non-existent support network during the pandemic.

Conclusion:

the study can support reflection on the repercussions of the pandemic on the lives of mothers of children with autism and enable the development of actions that prioritize mental health, helping them to overcome moments of adversity.

DESCRIPTORS:
Pandemic; COVID-19; Mothers; Autism Spectrum Disorder; Psychosocial Impact

RESUMEN

Objetivo:

comprender las repercusiones psicosociales de la pandemia de COVID-19 en las madres de niños con Trastorno del Espectro Autista.

Método:

estudio cualitativo, con la participación de 22 madres. Los datos fueron recolectados de mayo a julio de 2022, en el interior de Paraíba, Brasil, mediante una Dinámica de Creatividad y Sensibilidad. El análisis se realizó siguiendo el marco teórico-analítico del análisis del discurso francés.

Resultados:

el miedo, la ansiedad, la angustia y las preocupaciones ocuparon un lugar central en el movimiento dialógico de las madres. Ante las exigencias y reconfiguraciones de la rutina, las madres sufrieron una sobrecarga física, emocional y psicológica que afectó su vida. La soledad se puede ver en la débil o nula red de apoyo que tuvieron durante la pandemia.

Conclusión:

el estudio puede contribuir a la reflexión sobre las repercusiones de la pandemia en la vida de las madres de niños con autismo y posibilitar el desarrollo de acciones que prioricen la salud mental que las ayuden a superar momentos de adversidad.

DESCRIPTORES:
Pandemia; COVID-19; Madres; Trastorno del Espectro Autista; Impacto Psicosocial

HIGHLIGHTS

1. A pandemia afetou de forma desproporcional as pessoas com autismo.

2. Emoções e comportamentos dos autistas foram difíceis para as mães.

3. As mães vivenciaram uma sobrecarga física, emocional e psicológica.

4. Sentimentos de desamparo e solidão foram exacerbados com a pandemia.

HIGHLIGHTS

1. A pandemia afetou de forma desproporcional as pessoas com autismo.

2. Emoções e comportamentos dos autistas foram difíceis para as mães.

3. As mães vivenciaram uma sobrecarga física, emocional e psicológica.

4. Sentimentos de desamparo e solidão foram exacerbados com a pandemia.

INTRODUÇÃO

Durante o período crítico da COVID-19, sobretudo nos anos de 2020 e 2021, quase todo o planeta vivenciou uma grave crise sanitária, social, econômica e humanitária, testando a espécie humana em várias dimensões¹. A doença ocasionada pelo Sars-CoV-2 é considerada um fenômeno médico ao se levar em conta sua etiologia e, também, social, com efeito generalizado na saúde e no bem-estar dos indivíduos^2-3. As medidas impostas para contenção da pandemia foram responsáveis por múltiplas mudanças e interrupções de vários aspectos da vida diária, que gerou sentimentos de tensão, medo, estresse e ansiedade^4-5.

Pensar nas particularidades das pessoas com deficiências, em especial aquelas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), suscita reflexões sobre como elas foram e continuam sendo impactadas pela pandemia⁶. Essa população foi afetada de forma desproporcional e repercutiu no bem-estar das mães, uma vez que as possibilidades que favoreceriam o desenvolvimento de seus filhos foram interrompidas abruptamente, provocando prejuízos na vida, no comportamento, na saúde física e mental^6-8.

Fatores psicossociais que permeiam o distanciamento social, como afastamento da família, do meio social e da escola, alterações na rotina, desencadearam alterações emocionais e comportamentais nas pessoas com TEA, difíceis de serem administradas pelas mães^9-10, que já enfrentavam um aumento da pressão psicológica, física e emocional, além da necessidade de conciliar diferentes funções^11-12. A sobrecarga vivida no período pandêmico trouxe repercussões para saúde, para as relações humanas e práticas sociais dessas mulheres.

Ao adentrar o período pandêmico, as mães tiveram que lidar com uma situação desconhecida e angustiante, que fragilizou os planos de futuro e tornou iminente a possibilidade de morte, somada aos desafios diários de cuidar de uma criança atípica, o que não foi uma tarefa fácil.

Embora a pandemia da COVID-19, o isolamento/distanciamento social, sejam temas bastante discutidos em periódicos nacionais e internacionais nos últimos anos, por vezes, a ênfase foi dada aos aspectos clínico-assistenciais, relegando as dimensões socioculturais e psicológicas, e a aproximação do tema com as vivências maternas de crianças/adolescentes com TEA ainda é pouco explorada.

Pensar e discutir como as mães vivenciaram este período pode fornecer elementos para a elaboração de intervenções socioassistenciais que visem à manutenção ou melhoria da qualidade de vida e saúde mental dessa população. Em face do exposto, o objetivo da pesquisa foi compreender as repercussões psicossociais da pandemia da COVID-19 para mães de crianças com Transtorno do Espectro Autista.

MÉTODO

Estudo qualitativo do tipo exploratório-descritivo, embasado nos critérios consolidados para relatar uma pesquisa qualitativa (COREQ)¹³. A pesquisa foi realizada em uma Associação de Pais e Amigos de Autistas, referência pelo pioneirismo e pela relevância no trabalho desenvolvido para pessoas com TEA e suas famílias, localizada no interior da Paraíba, Brasil.

A amostra se deu por conveniência, após um convite individual feito às mães pela presidente da Associação. Após o aceite, os encontros foram agendados de acordo com a disponibilidade das participantes. Destaca-se que nenhuma das convidadas recusou participar da pesquisa.

Para inclusão, foram adotados como critérios: ser mãe de criança/adolescentes com TEA; possuir idade igual ou superior a 18 anos; participar das atividades da Associação por um período superior há dois anos, que corresponde ao tempo de pandemia; estar com esquema vacinal contra COVID-19 completo. Excluíram-se aquelas que por algum motivo não estavam frequentando a associação no período da coleta e as que apresentavam sintomas gripais.

Os dados foram coletados nos meses de maio e julho de 2022, considerando o ponto de saturação dos dados¹⁴, através de uma Dinâmica de Criatividades e Sensibilidade (DCS), por meio da Técnica do Gibi (TG), estratégia lúdica, na qual os sujeitos têm a possibilidade de se expressar sobre uma situação real que vivenciam no cotidiano, por meio de analogias entre figuras de revistas do tipo gibi¹⁵. Foram utilizados os gibis da Turma da Mônica, disponibilizados em PDF, impressos pela pesquisadora.

A Associação destinou um espaço na própria instituição para o desenvolvimento do trabalho grupal e os momentos foram executados exclusivamente por uma única pesquisadora, a fim de minimizar vieses. O ambiente foi organizado de forma que as participantes ficassem confortáveis, com espaço suficiente para transitar e compartilhar experiências numa perspectiva dialógica; além disso, foi instalado um sistema de gravação e filmagem para os encontros.

As participantes foram divididas em quatro grupos em dias distintos, sendo dois grupos com cinco e dois com seis mães, totalizando 22 participantes. Para realização da técnica, as mães foram orientadas sobre as etapas da DCS. Em seguida, os gibis foram disponibilizados mediante solicitação de que fossem representados, por meio de uma ou mais figuras das revistas, aspectos acerca da seguinte frase norteadora: “A pandemia da COVID-19 representou para mim...”. Posteriormente, as participantes discorreram sobre o período pandêmico, fazendo a relação com a figura escolhida. A aplicação deste método permitiu o diálogo entre as mães com duração média de 58min.

Foi aplicado um teste-piloto com a presidente da Associação para adequação do instrumento, sendo descartado posteriormente. Os dados que emergiram da realização das DCS foram gravados, transcritos na íntegra e disponibilizados às participantes, para avaliarem a consistência dos discursos, aumentando a fidedignidade do material.

A análise do material empírico foi realizada conforme o referencial teórico-analítico da Análise de Discurso (AD) de linha francesa. Partiu-se da superfície linguística para o discurso, construindo-se o corpus discursivo - recortes discursivos provenientes das narrativas apresentadas pelas mães e sua associação com a figura de gibi escolhida. Após o primeiro lance de análise, constituiu-se o objeto discursivo. Realizaram-se repetidas leituras do corpus, em um constante ir-e-vir entre teoria e análise, em busca de compreender os processos de produção de sentidos. A leitura analítica do objeto discursivo apontou as pistas indicadoras dos dispositivos analíticos constituintes do discurso dos sujeitos¹⁶. Por meio da identificação de processos parafrásticos, polissêmicos e metafóricos, as formações discursivas foram relacionadas, analisando-se os enunciados que caracterizavam os discursos dos sujeitos quanto: à posição ideológica, sua relação com outros discursos, redes de filiações históricas e interdiscurso.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com o parecer n.º 5.248.572. O anonimato e o sigilo das informações foram preservados com a utilização da identificação da letra M, seguida do numeral ordinal (M1, M2, ..., M22).

RESULTADOS

O dispositivo analítico foi construído mediante as narrativas maternas acerca das repercussões da pandemia da COVID-19 em suas vidas, a interpretação dos pesquisadores, o referencial teórico e as condições de produção do discurso. Organizaram-se duas formações discursivas: Realidade de mães de crianças com TEA durante a pandemia da COVID-19 e O desamparo materno: a ausência de uma rede de apoio.

É importante para a AD a relação do texto com a história, as marcas das transformações sociais e humanas que vão construindo sentidos ao longo do tempo. Nessa direção, a presente análise considera o lugar discursivo de 22 mulheres que falaram a partir de uma posição específica, a de mãe de uma criança com TEA e, com isso, seus ditos apresentam-se repletos de regularidades ou pistas linguísticas, características desse lugar social de onde é enunciada.

A faixa etária das participantes variou de 22 a 72 anos com uma média de 39 anos. Pouco mais da metade (63%) são casadas ou possuem união estável. Quanto à escolaridade, 59% possuem o ensino médio completo; 82% possuem renda familiar de no máximo dois salários-mínimos; e 59% não têm vínculo empregatício, com dedicação exclusiva aos cuidados dos (as) filhos (as) e do lar.

Realidade de mães de crianças com TEA durante a pandemia da COVID-19

No trabalho de análise escutamos os ditos maternos sobre as vivências do encontro com a realidade de um período pandêmico, o drama vivido e o significado dessa experiência.

O convívio direto com a possibilidade da morte, a presença do sofrimento, a surpresa com as circunstâncias, a angústia e impotência para mudar o novo quadro e seus limites diante do que estava por vir, tudo foi conformando um dito que se apresenta complexo e instaura uma ruptura com o cotidiano existencial vivido até então.

As narrativas indicam que sentimentos de medo, ansiedade, angústia e preocupações assumiram um lugar central no movimento dialógico das mães, com consequências negativas para a saúde física, emocional e mental. Isto pode ser evidenciado nos recortes discursivos que seguem:

Eu tive tanto medo... // medo do vírus, da doença, um medo que me apavora. (...) Teve o falecimento de uma tia com COVID, olhe foi um baque muito grande pra nossa família. (M5)

O pior foi o medo, né? O medo de me infectar e trazer pra meus filhos e meus pais. Tanta perda pra gente neste período (...) teve meu sogro e minha tia que faleceram de COVID e ainda teve a professora dele [referindo-se ao filho com TEA]. Foi pau! Foi um período difícil e eu chorei demais. (M15)

Os sentimentos experimentados por essas mulheres durante a pandemia foram representados pela Figura 01 escolhida por uma das participantes.

Figura 1
Sentimentos maternos relacionados à pandemia da COVID-19. Fortaleza, CE, Brasil, 2022

Mulher, vou escolher esta figurinha, porque sou eu toda. Eu tinha medo de tudo // Tive medo de morrer, dos meninos morrerem [refere-se aos filhos com TEA], meu psicológico ficou destruído! Eu morro de medo de deixar esses meninos... minhas crises de ansiedade é só com medo da morte, tu acha que tem quem queira [refere-se aos filhos com TEA]??? Só eu, mulher! (M11)

A sobrecarga dessas mulheres durante a pandemia trouxe repercussões para diversos aspectos de suas vidas, como expressam os enunciados:

Sempre fui sozinha pra cuidar de um monte de coisa e ainda dar conta dos meninos [refere-se aos filhos] // fico é desesperada pra dar conta de tudo. E na pandemia foi ainda pior // Foi um período de muita tribulação // por pouco não fiquei foi doida! (M8)

Eu fiquei muito estressada, ter que fazer tudo sozinha. É peso, viu? Eu vivo uma vida assim [choro] // sobrecarregada (...) porque sou só eu pra tudo! Toda carga fica em cima de mim. (M13)

O excesso de demandas e responsabilidades, além do sentimento de solidão, pode trazer consequências à saúde mental dessas mulheres. A Figura 2 escolhida por uma das participantes retrata o impacto da pandemia na saúde mental.

Figura 2
Sobrecarga materna durante a pandemia da COVID-19 e as consequências na saúde mental. Fortaleza, CE, Brasil, 2022

Eu fiquei tão estressada, que tinha vontade de matar um [risos]. Essa figurinha sou eu querendo matar o povo // Na verdade, eu acho que fiquei foi doida. [Nome do filho] direto dentro de casa, entrava em crise, chorava, e eu não sabia o que fazer. Dividir a luta de casa, com [nome do filho], com as atividades do trabalho ... // teve uma hora que eu não consegui mais, passei mal. Foi sofrido! (M1)

O impacto na saúde mental das mulheres estava relacionado à necessidade de equilibrar a vida profissional e pessoal, acrescentado aos afazeres domésticos, o cuidado com as demandas dos filhos, a higienização rigorosa de tudo e o constante medo da contaminação.

Três participantes não escolheram figuras e afirmaram que o período pandêmico em nada alterou a suas vidas, entretanto, a circunstância indicou um maior sofrimento e uma drástica mudança nas rotinas, como exemplifica uma das falas:

Mulher, eu não tenho vida. Nunca fui de sair, de ter amigos, então o período da pandemia não mudou nada // eu já vivia isolada de tudo e de todos. Então pela vida que eu tenho, não achei tão difícil (...) agora medo da doença, é claro que eu tinha. (M19)

Desamparo materno: a ausência de uma rede de apoio.

Uma rede de apoio unida e fortalecida é um dos pilares importantes para as mães que têm filhos com autismo. A pandemia aumentou essa necessidade, pela diversidade de papéis desempenhados pelas mulheres. Diante de tantas demandas e reconfiguração na rotina, as mães sentiram-se sobrecarregadas, necessitando de ajuda concreta nas atividades diárias e nos cuidados com os filhos.

A maioria das participantes não contavam com rede de apoio, e aquelas que dispunham a consideravam pequena e frágil. As mães discorreram sobre a solidão e desamparo no cuidado aos seus filhos (as) e as consequências emocionais e mentais desse abandono. A ausência da rede de apoio é uma realidade vivida pelas mães desde a descoberta do transtorno do (a) filho (a), conforme se observa:

Eu nunca tive rede de apoio, não foi só por causa da pandemia. Tem horas que chega dá um desespero! Eu nunca tive apoio familiar de nada, então ficou tudo do mesmo jeito. (M10)

Não tenho ninguém que me ajude // Minha família é muito incompreensível, só falam que é birra, falta de pêa, que antigamente não tinha isso, que se [nome da filha] apanhasse ela criava jeito de gente // Só recebo muito é julgamento (...). (M22)

Foi possível perceber as marcas da solidão também na escolha das figuras, já que ilustram mulheres que se encontram sós e/ou acompanhadas unicamente pela criança. Isso provoca um vazio emocional de grandes dimensões, leva ao isolamento, à depressão e propicia a desestruturação emocional dessas mães, como se observa na Figura 3.

Figura 3
O desamparo materno durante a pandemia da COVID-19. Fortaleza, CE, Brasil, 2022

Minha rede de apoio é [cita o próprio nome quatro vezes] [risos]. Tudo é só comigo, sempre foi e com certeza sempre será (...). Enquanto eu tiver em pé, vai ser assim (...).(M2)

A presença marcante de pausas nas narrativas, de silêncios e choros deixa claro a dificuldade de definir o vazio sentimental e administrar as cicatrizes que o abandono provoca.

A ausência paterna no cuidado e na vida de mãe/filho se configurou como outra margem do abandono e determina fortemente a evolução emocional das mães como identificado nos discursos:

O meu esposo não fica um minuto por dia com [nome da filha] ... você sabe o que é um repelente? Pois é como se ela tivesse um repelente e ele não conseguisse ou quisesse chegar perto dela. (...) Já sofri muito com isso, hoje não sofro mais! (M2)

O pai deles [refere-se aos filhos] não faz conta da gente pra nada. Ele [ex-marido] foi embora, casou novamente, e não liga pra saber nem se a gente tá vivo. // Olhe, eu tento ser forte, mas meu emocional é acabado (...) O meu dia a dia é pesado, eu não tenho vida, me sinto frustrada [choro]. (M12)

Quando se coloca em palavras os tons do abandono paterno são crus, dolorosos e se transformam em um lastro que deteriora a existência materna.

A similaridade entre as trajetórias descritas está na solidão e no isolamento das mães ao enfrentar a realidade da condição das crianças com TEA sozinha ou, por vezes, somente com o auxílio da família materna, que se mostra disponível a ajudar com as demandas da criança, como se observa:

Ai de mim se não fosse minha família. Desde o diagnóstico, sempre estiveram comigo [choro]. A família paterna nunca fez nada pela gente. A maior contribuição que deram foi questionar o diagnóstico ao neuropediatra, porque achava que era invenção da minha cabeça. (M15)

A Figura 4 escolhida por uma das participantes sinaliza a importância da família como suporte não apenas para o período pandêmico, mas durante toda a vida.

Figura 4
A família materna como importante rede de apoio. Fortaleza, CE, Brasil, 2022

Minha família ajuda demais, é um fortalecimento ter eles por perto. Se eu não tivesse tanto apoio, eu já teria enlouquecido. Eu não me vejo sem minha família, meu suporte, minha rede de apoio. Se é difícil pra mim tendo eles, imagine se não tivesse? Porque sei que sou privilegiada, conheço várias mães que não tem apoio de nada. Viver o autismo não é fácil com o apoio da família, imagine sem. (M20)

DISCUSSÃO

A população mundial inserida no cenário pandêmico sofreu impactos psicossociais em diferentes níveis de intensidade e gravidade, mas acredita-se que a presença de um filho com TEA tenha agravado mais a situação, pelas dificuldades que apresentam em se ajustar às mudanças e alterações na rotina que foram necessárias em razão da pandemia.

Os diferentes tipos de medo vivenciados pelas mães neste período foi algo mantido no dizível, na memória, caracterizando a paráfrase¹⁶. O medo vivido pelas participantes não surgiu do nada, ele foi construído socialmente, desencadeado por uma situação de permanente tensão pela possibilidade de exposição ao vírus, ameaça constante do adoecimento e pela proximidade da morte.

O elevado número de casos e de mortes, as informações divulgadas pela mídia e propagadas pelas redes sociais, a inexistência de tratamento antiviral específico para a doença e as falsas informações quanto à eficácia das vacinas corroborou para generalização do medo em relação à COVID-19²⁰.

O medo significativo da morte expresso por M11 relacionado à percepção da vulnerabilidade dos filhos ao longo da vida sinaliza a existência de um enunciado ligado ao efeito de repetibilidade, pois formulações já enunciadas pairam no interdiscurso²¹.

A AD faz uso da combinação de circunstâncias sociais, históricas e culturais que exercem influência na produção de um dado discurso¹⁶. Nesse sentido, é importante salientar que todas as participantes vivenciaram de forma direta a contaminação pelo coronavírus, seja pelo próprio adoecimento ou de pessoas próximas, pelo agravamento do quadro de saúde e/ou pela perda de algum familiar ou pessoas conhecidas.

A pandemia se associou a perdas em massa, tanto de vidas humanas quanto de rotinas, conexões sociais face a face e instabilidade financeira. As rápidas mudanças no dia a dia da população, a necessidade de lidar com um futuro extremamente imprevisível, além de tantas infecções e mortes, levam às pessoas a experimentarem sensações de extremo sofrimento²².

As narrativas relacionadas à sobrecarga de trabalho, à ansiedade e ao estresse sinalizam o interdiscurso, definido como aquilo que se fala antes, em outro lugar. O acúmulo de tarefas e as múltiplas funções, além do reajuste emocional sofrido pelas mães de pessoas com TEA durante a pandemia foram intensos e trouxeram sobrecarga física, psicológica e emocional, elevando os níveis de estresse^23-24.

Criar uma criança com algum tipo de deficiência está associado a uma tensão parental elevada em circunstâncias normais, e as drásticas mudanças nas rotinas das famílias durante a pandemia de COVID-19 pode ter aumentado o risco de os pais experimentarem níveis mais elevados de sofrimento psicológico²⁵.

Os discursos acerca da solidão e do isolamento materno já foram ditos e reditos em outros contextos sócio-históricos, em virtude das características próprias do transtorno do filho, ou seja, estão na ordem do interdiscurso que trabalha com o repetível; mas esses sentimentos foram exacerbados pelo período pandêmico.

A polissemia que se caracteriza pelo processo de deslocamento, o corte nos processos de significação, o equívoco no discurso²¹, pôde ser observada na narrativa que afirma que a pandemia em nada alterou sua vida. Esse depoimento remete uma posição de submissão e nulidade da vida dessa mulher, em que a prioridade é sempre o outro. Levando em consideração a historicidade dessas mães e valorizando os sentidos na interação com o outro, muitas vezes, na ordem do interdiscurso, elas já se viram anuladas pela sociedade, pela sobrecarga de cuidados e pelo patriarcado.

O interdiscurso também foi observado nas narrativas que sinalizam a memória discursiva acerca da inexistência da rede de apoio e solidão no cuidado ao filho(a) que precede, sustenta e determina os enunciados que produz. A realidade é que olhando profundamente, na maioria das vezes, a mãe é o entorno, o universo onde a vida da criança acontece.

Tendo por base uma construção sociocultural, as mulheres se veem como principais responsáveis pelo cuidado da família. Mesmo diante da intensa demanda de atividades, assumem o papel de cuidadoras, porque acreditam que a sobrevivência dos filhos é resultado de sua dedicação, buscando condições para o desenvolvimento desse cuidado solitário e solidário. Por ser solitária, essa busca se constitui em fonte de sofrimento e estresse²⁶.

Dependendo das circunstâncias que rodeiam o abandono, as mães se veem obrigadas a assumir tarefas, obrigações ou papéis que não precisariam e/ou deveriam fazer sozinhas. Esses fatos foram magnificados durante a pandemia, aumentando a sobrecarga feminina e potencializando adoecimentos físicos e mentais.

Diferentes formas de abandono paterno foram observadas através das narrativas. O pai ausente físico e psicologicamente, que deixou a mãe sozinha na criação do (a) filho (a), se desligou das contribuições financeiras, das tarefas domésticas, e não lhe interessa o que acontece com a criança/mãe; aqueles que mesmo estando “presentes”, abandonaram emocionalmente as mulheres e os filhos, limitam-se apenas a pagar contas.

A presença da deficiência favorece o abandono pelo genitor, fazendo com que a figura de cuidado passe a ser a feminina - mãe, avó, tia - onde estas começam a ter o único lugar de cuidar, preservar e garantir que a criança consiga um desenvolvimento o mais próximo possível do esperado²⁷.

O apoio do cônjuge e a qualidade do relacionamento conjugal são de grande importância para as mães no processo de lidar com o estresse. Um bom relacionamento conjugal e a relação entre o pai e a criança com TEA reduzem o estresse na pandemia e diminui o risco de depressão materna, atuando como um amortecedor contra fatores de estresse relacionados ao cuidado de uma criança com TEA²⁸.

O apoio familiar é essencial para o processo de adaptação e desenvolvimento tanto das crianças com TEA como de suas mães, pois se compreende que a influência positiva dos familiares sobre as mães e as crianças permite que as mesmas se sintam aceitas, acolhidas e seguras²⁷.

A presença marcante da família materna como suporte para essas mulheres e com as experiências vividas no transtorno autista permite maior resiliência às mães, mesmo frente a contextos culturais e familiares adversos e não esperados, como um diagnóstico da deficiência.

Destaca-se que o contexto socioeconômico no qual as participantes do estudo estão inseridas pode influenciar nas percepções, impossibilitando que os resultados apresentados sejam generalizados para outros cenários, aspecto que constitui a limitação desta pesquisa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O momento da COVID-19 acarretou forte impacto na vida de mães de crianças com TEA. Identificou-se que sentimentos de medo, estresse, ansiedade, sobrecarga, solidão e desamparo foram marcantes nas narrativas maternas, mas que não surgiram apenas no período de pandemia. Trata-se de uma realidade vivenciada durante toda a vida dessas mulheres, desde o diagnóstico do filho e exacerbado no período citado.

Um aspecto importante que deve ser considerado é uma forma de prevenir/diminuir a sensação de “falta de apoio” e “desamparo” para mitigar a sobrecarga das mães. A disponibilidade dessas informações ajudará a atender melhor às necessidades das mães de indivíduos com TEA durante futuras emergências de saúde pública.

Os resultados apresentados nesse estudo podem trazer contribuições à área de saúde mental, viabilizando ações dentro de programas de atenção à saúde e suporte social para mães de crianças com TEA, impactando na qualidade de vida desta população.

Sugere-se a realização de estudos em outros espaços, com diferentes contextos socioeconômicos e culturais, para suscitar novas discussões e investigações sobre a temática. Contudo, a utilização da DCS e a técnica do Gibi, como estratégia para coleta de dados em pesquisas qualitativas, permitiu aos participantes refletirem e expressarem de maneira grupal e espontânea a realidade vivenciada na pandemia através do diálogo e a interação, configurando uma potencialidade do estudo.

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  Artigo extraído projeto de tese de doutorado “Narrativas de mães de crianças com Transtorno do Espectro Autista sobre a pandemia da COVID-19”, Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, CE, Brasil, 2023.

Editado por

Editora associada:

Dra. Claudia Palombo

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  19 Fev 2024
• Data do Fascículo
  2024

Histórico

• Recebido
  14 Ago 2023
• Aceito
  25 Set 2023