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CUIDADO AOS USUÁRIOS DE DROGAS EM UMA ESTRATÉGIA DE SAÚDE DA FAMÍLIA: POTENCIALIDADES E DESAFIOS* * Artigo extraído da tese de doutorado: “AVALIAÇÃO QUALITATIVA DAS AÇÕES DE CUIDADO À PESSOAS USUÁRIAS DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS EM UMA ESTRATÉGIA DE SAÚDE DA FAMÍLIA”, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil, 2023.

RESUMO

Objetivo:

Avaliar as potencialidades e desafios existentes no cuidado a usuários de substâncias psicoativas em uma Estratégia de Saúde da Família através da percepção dos profissionais.

Método:

Estudo de caso qualitativo, realizado por meio da Avaliação de Quarta Geração, desenvolvido em 2023, numa Estratégia de Saúde da Família de um município do Rio Grande do Sul, Brasil, com 19 profissionais. Foram utilizadas técnicas de etnografia prévia, entrevistas com aplicação do círculo hermenêutico-dialético, para análise dos dados utilizou-se o método comparativo constante.

Resultados:

ão potencialidades o comprometimento da equipe e matriciamento. Os desafios são as dificuldades dos vínculos com os usuários, os medos, os estigmas, os despreparos da equipe, a falta de estrutura física e profissionais.

Conclusão:

Este estudo contribuiu para o desvelamento dos desafios encontrados no cuidado à usuários de drogas e pretende fomentar um atendimento voltado para o acolhimento e integralidade do sujeito.

DESCRITORES:
Estratégia de Saúde da Família; Usuários de Drogas; Atenção à Saúde; Saúde Mental; Atenção Primária à Saúde

ABSTRACT

Objective:

To assess the potential and challenges in caring for users of psychoactive substances in a Family Health Strategy through the perception of professionals.

Method:

A qualitative case study was carried out using the Fourth Generation Evaluation, developed in 2023, in a Family Health Strategy in a municipality in Rio Grande do Sul, Brazil, with 19 professionals. Previous ethnographic techniques were used, interviews were conducted using the hermeneutic-dialectic circle, and the constant comparative method was used to analyze the data.

Results:

Team commitment and matrix support are potentialities. The challenges are difficulties establishing bonds with users, fears, and stigmas, the team’s lack of preparation, and the lack of physical structure and professionals.

Conclusion:

This study has helped to uncover the challenges encountered in caring for drug users and aims to promote care that embraces and integrates the individual.

KEYWORDS:
Family Health Program; Drug Users; Health Care; Mental Health; Primary Health Care

RESUMEN

Objetivo:

Evaluar las potencialidades y desafíos en la atención a usuarios de sustancias psicoactivas en una Estrategia de Salud Familiar a través de la percepción de los profesionales.

Método:

Estudio de caso cualitativo, realizado utilizando la Evaluación de Cuarta Generación, desarrollada en 2023, en una Estrategia de Salud Familiar en un municipio de Rio Grande do Sul, Brasil, con 19 profesionales. Se utilizaron técnicas etnográficas previas, así como entrevistas con la aplicación del círculo hermenéutico-dialéctico, y se empleó el método comparativo constante para analizar los datos.

Resultados:

El compromiso del equipo y el apoyo de la matriz son potencialidades. Los retos son las dificultades para establecer vínculos con los usuarios, los miedos, los estigmas, la falta de preparación por parte del equipo, la falta de estructura física y de profesionales.

Conclusión:

Este estudio ha contribuido a desvelar los retos a los que se enfrenta la atención a los consumidores de drogas y pretende promover una atención orientada a acoger e integrar al individuo.

DESCRIPTORES:
Estrategia de Salud Familiar; Consumidores de Drogas; Atención a la Salud; Salud Mental; Atención Primaria de Salud

HIGHLIGHTS

São potencialidades a equipe multiprofissional e o matriciamento.

Estigma e despreparo da equipe são considerados desafios.

Fragmentação torna-se insuficiente no cuidado ao usuário de drogas.

Atendimento acolhedor e integral do sujeito.

INTRODUÇÃO

A Atenção Primária à Saúde (APS) representada pela Estratégia de Saúde da Família (ESF) é responsável por ofertar a população os cuidados necessários para os seus problemas de saúde, incluindo ações de prevenção, promoção e reabilitação, tendo a capacidade de resolver cerca de 80% dos problemas11 Brito GEG de, Mendes A da CG, Santos Neto PM dos. The work in the Family health strategy and the persistence of curative practices. Trab, Educ Saúde. [Internet]. 2018 [cited 2023 Oct. 02]; 16(3):975-95. Available from: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00164
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. Ademais, a ESF tem um papel importante no avanço das políticas de saúde mental, pois utiliza tecnologias leves para o cuidado que levam em conta critérios de riscos e vulnerabilidades, acolhendo as necessidades de saúde e sofrimento das pessoas, incluindo os usuários de substâncias psicoativas (SPA)22 Pereira RMP, Amorim FF, Gondim MFN. Practice and a perception of primary healthcare professionals about mental health. Interface (Botucatu). [Internet]. 2020 [cited 2023 Oct. 02]; 24(Supl. 1):e190664. Available from: https://doi.org/10.1590/Interface.190664
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Porém, as práticas da APS ainda estão voltadas para a clínica tradicional, tais como diagnóstico e tratamento de doenças clínicas, sem instrumentos de cuidado definidos para o atendimento das demandas de saúde mental. Não havendo assim uma continuidade no cuidado, o que é considerado um elemento central para uma APS efetiva.

Desta forma, é necessário estar atento aos cuidados com os usuários de SPA na APS, pois, muitas vezes, estes são pautados na lógica da medicalização e fragmentação dos sujeitos, tornando o método reducionista e médico-centrado. A mudança desta realidade tende a ocorrer com maior facilidade em cenários onde os profissionais da APS estejam dispostos a desenvolver habilidades para acolher, escutar e incluir pessoas e famílias em uso de SPA, promovendo vínculo afetivo e de compromisso entre usuários, profissionais e família3:4. Posto isso, o cuidado a usuários de SPA na APS deve ser realizado por profissionais que acreditam no conceito de saúde integral e centrada na pessoa e não somente em rótulos e diagnósticos.

E dentre as ações que refletem este conceito ampliado de saúde e podem ser realizadas pelos profissionais da ESF estão o acolhimento, o diálogo, a escuta qualificada, as visitas domiciliares, os grupos e as oficinas terapêuticas. No entanto, existem alguns desafios inerentes a APS que dificultam ou prejudicam estas ações como baixos incentivos públicos, condições precárias de infraestrutura, baixa cobertura territorial e escassez de profissionais55 Paulon S, Neves R. Saúde mental na atenção básica: a territorialização do cuidado. Porto Alegre: Sulina, 2013. 151p..

Além disso, a burocratização das Redes de Atenção à Saúde e a tenuidade das ações de educação permanente e continuada, constituem-se em desafios para consolidação do cuidado em saúde mental na ESF. Somado a isto, o estigma, as fragilidades das políticas públicas relacionadas aos usuários de SPA e a baixa abordagem desta temática nos processos de formação dos profissionais também criam barreiras para o cuidado efetivo66 Santos EO. Avaliação de empoderamento da rede de atenção psicossocial no cuidado ao usuário de drogas [Thesis]. Porto Alegre (RS): Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2019..

Nesta perspectiva, acreditamos que a consolidação do cuidado singular e integral dos usuários de SPA na ESF perpassa pela percepção e o conhecimento dos profissionais. Assim, este estudo objetivou avaliar as potencialidades e desafios existentes no cuidado a usuários de substâncias psicoativas em uma estratégia de saúde da família através da percepção dos profissionais.

MÉTODO

Trata-se de um estudo de caso com abordagem qualitativa, descritiva e exploratória, com caráter avaliativo fundamentado na Avaliação de Quarta Geração e sustentado na Hermenêutica-Dialética77 Guba E, Lincoln Y. Effective evalution. San Francisco: Jossey Bass Publishers, 1988.. Os dados foram coletados de janeiro a junho de 2023, por meio de etnografia prévia e entrevista, com 19 trabalhadores de uma ESF de um município de médio porte da fronteira oeste do Estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Foram considerados como critérios de inclusão para os trabalhadores atuar na condição de trabalhador da ESF há pelo menos seis meses, não havendo interrompido o exercício funcional durante a coleta de dados da pesquisa; e, como critérios de exclusão estar afastado do exercício laboral por licença médica ou férias.

O serviço investigado atende uma população de aproximadamente 9.000 habitantes e conta com duas equipes de Saúde da Família. É uma unidade piloto para o PLANIFICA SUS, que é um projeto voltado para a organização e integração da Atenção Primária à Saúde (APS) e da Atenção Especializada (AE), que atendem os usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), e iniciava o processo de ampliação do cuidado à usuários de substâncias psicoativas através do matriciamento.

As equipes foram compostas pelos seguintes profissionais: um professor de educação física, dois médicos, duas enfermeiras, cinco técnicos em enfermagem, sete agentes comunitários de saúde, uma psicóloga, uma nutricionista, uma dentista e uma auxiliar de saúde bucal. O atendimento ocorreu em três turnos, estruturando-se de forma híbrida, a partir do acolhimento de demanda espontânea e agendamento de consultas. Além destes profissionais, contava com residentes em saúde mental coletiva e acadêmicos de diferentes cursos de graduação da área da saúde.

A coleta de dados foi dividida em aspectos operacionais do processo avaliativo, sendo eles: contato com o campo, organização do processo avaliativo (etnografia prévia), identificação dos grupos de interesse, desenvolvimento das construções conjuntas, ampliação das construções conjuntas, preparação para a agenda de negociação, realização da negociação e organização do relatório de resultados. O foco central foi avaliar o cuidado à usuários de substâncias psicoativas em uma estratégia de saúde da família, reconhecendo o cuidado, as potencialidades e o que pode ser melhorado no atendimento à essa população. Foi realizada por meio da Avaliação de Quarta Geração. Na condução das entrevistas foi utilizado o Círculo Hermenêutico Dialético.

A metodologia utilizada neste estudo exigiu que a análise dos dados fosse realizada de forma concomitante à coleta, um direcionando o outro, baseado no Método Comparativo Constante88 Barbosa A de S, Teixeira BRF, Oliveira AM, Pessoa TRRF, Vaz EMC, Forte FDS. Interprofessionality, training, and collaborative work in the context of family health: action-research. Saúde debate. [Internet]. 2022 [cited 2023 Oct. 02]; 46(spe5):67-79. Available from: https://doi.org/10.1590/0103-11042022E506
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. Este método permite que a entrevista seja previamente analisada, o que constituiu um desdobramento analítico e, posteriormente, levada para validação nos grupos de interesse, identificando assim as construções de cada respondente e apresentando o conteúdo das entrevistas precedentes nas entrevistas posteriores, a fim de realizar novas formulações acerca das questões apontadas nos depoimentos.

A primeira etapa da análise de dados foi a identificação das unidades de informação que serviram como base para a definição das categorias. As unidades foram encontradas no material coletado, através da leitura horizontal das entrevistas e observações. Após localizar uma unidade, teve-se o cuidado de registrar a informação de forma compreensível, tornando-a mais clara. Foi realizada a codificação mediante a fonte e o tipo de respondente, acompanhada do trecho da entrevista que a originou. Após obter todas as unidades de informação, foi realizada a aproximação entre elas, com o objetivo de tornar possível a análise sob o ponto de vista do grupo de interesse.

As questões foram reagrupadas na análise dos dados, o que permitiu a construção de marcadores de avaliação. Foram delimitados os seguintes marcadores: o cuidado realizado aos usuários de SPA na ESF, potencialidades e desafios encontrados no cuidado, a rede de atenção em saúde mental a partir da ESF, matriciamento como ferramenta potencializadora do cuidado e o que pode ser melhorado no cuidado ao usuário na ESF. Nesse artigo, discutiremos as potencialidades e os desafios do cuidado realizado aos usuários de SPA na ESF na perspectiva dos profissionais.

Este estudo teve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob parecer o número 5.788.530/ 2022.

RESULTADOS

Participaram desta pesquisa 19 profissionais da ESF, sendo três enfermeiros, um fisioterapeuta, dois psicólogos, um nutricionista, um professor de educação física, um médico, sete agentes comunitários de saúde, dois técnicos em enfermagem e um técnico administrativo.

Potencialidades do cuidado aos usuários de substâncias psicoativas na ESF.

Alguns profissionais da ESF acreditam que a equipe seja uma das potências da unidade, mesmo possuindo pouco conhecimento em saúde mental. A equipe considera-se disposta a aprender e reconhece que o vínculo com o usuário gera uma grande oportunidade de aproximá-lo do serviço de saúde. Ademais, as falas também apontam a Residência em Saúde Mental Coletiva e o matriciamento como potencialidades, posto que, ambos possibilitam ampliação e o compartilhamento do cuidado.

O matriciamento é uma potencialidade, é onde é feito todo um planejamento, estudando cada caso...Isso é essencial pra resolutividade. (P4)

A proximidade que o serviço tem com o território, o fato de ter, especialmente os agentes de saúde que fazem essa ponte, entre serviço e as pessoas, eu acho que possibilita um olhar um pouco mais próximo...uma equipe que consegue identificar e buscar os seus pacientes e pode ir articulando estratégias pra pensar no cuidado. (P10)

A residência (em saúde mental) colabora bastante, sabem conversar com a pessoas, chegar no ponto da pessoa falar...e o acolhimento que tem na ESF é muito bom. (P11)

A equipe multi...a gente tem uma equipe aqui que nenhuma outra unidade tem,que pode dar um suporte clínico pro usuário em tratamento na especializada. (P12)

É um lugar estratégico de muitos usuários, a gente tem muito pessoal aqui em vulnerabilidade social e uso de substâncias mesmo...segundo temos alguns profissionais que tem essa sensibilidade em relação a essa temática, que gostam de acolher esses usuários...o matriciamento e a residência em saúde mental que depois que saiu da unidade, nos deixou bem fragilizados em relação a isso. (P19)

Desafios relatados pela equipe em relação ao cuidado com os usuários de substâncias psicoativas

Além dos desafios inerentes ao saber profissional, existem desafios que dizem respeito ao usuário, como por exemplo, eles se sentirem à vontade para falar sobre o uso de drogas. Porém, quando isso acontece, a equipe refere sentir medo e ter preconceito, o que reflete diretamente no atendimento realizado ao usuário.

A equipe, ainda tem bastante preconceito quando se usa da questão do uso de álcool e droga [...] Ah..tu vai ajudar primeiro o usuário de drogas, tendo outras demandas pra atender?.. Acho que isso é um grande desafio de mudar mesmo o pensamento do profissional, sabe? (P2)

Um desafio é as pessoas entenderem que é um problema mais complexo do que parece e que o paciente não tá na situação só porque ele quer, porque ele gosta e realmente é um desafio entender que isso é uma coisa tão, é uma doença tão importante de ser notada, de ser tratada como um câncer, como diabetes e hipertensão, e geralmente, ainda de uma forma geral, mesmo na área da saúde muitas pessoas acabam tratando como se fosse, como se fosse, eles usam o nome, né “dar o piti”, que o paciente tá querendo chamar atenção, acho que isso é o principal desafio, entender que não é isso. (P17)

Acho que o maior é fazer elas virem até aqui, que é bem difícil. É mais fácil a gente ir até lá, levar um profissional até lá, do que eles virem por conta própria. (P16)

A equipe identificou diversos desafios relacionados às fragilidades no atendimento aos usuários de SPA, como a falta de capacitação profissional para atender essa demanda.

Os profissionais não são capacitados pro manejo com esses usuários então, a capacitação dos profissionais é um desafio muito, muito importante até porque tu não tem uma equipe, tu não sabe pra quem pedir ajuda que possa vim trazer essa capacitação, né? (P1)

É mais a questão do treinamento assim pra nós às vezes que a gente vem aqui e acaba, é, eu fui aprendendo na prática, mas de como lidar com isso, com o pessoal, sabe? Como ter uma atenção, um olhar diferente, mais especial, enfim, às vezes a gente sente falta desse treinamento, mas acaba indo na prática. (P18)

A gente não tem uma informação concreta ou, pelo menos, eu não tenho uma informação do que, de como proceder se ele vem aqui e passa por uma triagem e aí daqui mandam o encaminhamento pra lá, eu não sei o que fazer. (P6)

Outros pontos identificados pela equipe são a falta de profissionais e a falta de estrutura física na ESF para atender essa demanda, além da dificuldade da RAPS em se comunicar e se articular, sendo uma barreira importante para a continuidade e resolutividade do cuidado.

Mas talvez faltaria mais profissional dessa área, quem sabe aí? Pra uma maior resolutividade, porque demanda sempre tem, né ...Tem um grande problema que é a vinda desses usuários até o atendimento de saúde e eles aceitarem também esse atendimento de saúde, essa ajuda aí dos profissionais de saúde, existem alguns pacientes que eles são bem resistentes. E por isso a dificuldade de nós, como equipe de saúde, chegar neles. (P4)

O que eu noto que falta é estrutura física, porque por exemplo, eles em formação de saúde mental numa, é, residência, né? Podem fazer N situações, estrear vários grupos, é, investir em outras atividades que o que nos falta aqui é estrutura. Quando não tem estrutura, não adianta querer fazer grupo disso, grupo daquilo, tem que te, porque, outra coisa, os pacientes, muitos têm a referência da unidade, eles não vão querer ir pra um outro lugar, né? (P14)

Um desafio? Nesse momento, eu diria a falta de profissional...querendo ou não isso acaba sobrecarregando os profissionais que aqui estão e a gente não consegue dar uma atenção merecida. Atendendo, atendendo bastante, a gente tá sobrecarregado. (P19)

Dessa comunicação de rede que as vezes a gente vê uma tentativa da ESF de articular, mas uma resistência de outros serviços de compartilhar e trocar, por entender, às vezes, que como se o paciente fosse separado, assim, né? Tipo, ah, é paciente do Caps, tu não tem que saber o que tá se passando aqui. Sendo que é o que eu falei antes, né? É o mesmo paciente que tá circulando, então, todo mundo pode saber, não são, não é exclusivo de um serviço, e às vezes eu vejo que os serviços de saúde mental, no caso, ele, to me remetendo a outros serviços, né? Como um desafio. Mas eu acho que mais ou menos seria a comunicação. (P10)

DISCUSSÃO

Os profissionais reconhecem que, em meio às potencialidades existentes, ter uma equipe multiprofissional e estar inserida no território dos sujeitos faz diferença para o cuidado aos usuários de substâncias. Visto que, os profissionais têm a oportunidade de aprender e compartilhar o conhecimento com outros membros da ESF. É importante que no interior da equipe multiprofissional haja colaboração entre os membros, que os diversos profissionais trabalhem de forma integrada, com diálogo, respeito e reforço positivo de todos os integrantes88 Barbosa A de S, Teixeira BRF, Oliveira AM, Pessoa TRRF, Vaz EMC, Forte FDS. Interprofessionality, training, and collaborative work in the context of family health: action-research. Saúde debate. [Internet]. 2022 [cited 2023 Oct. 02]; 46(spe5):67-79. Available from: https://doi.org/10.1590/0103-11042022E506
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É evidente que na perspectiva de colaboração, na troca de conhecimentos, na disponibilidade em adquirir novos aprendizados, novos saberes são construídos. Uma equipe colaborativa, além de superar a lógica de apenas ocupar o mesmo espaço, subsidia a atenção corresponsável às necessidades de saúde de uma população, e o agir coletivo no território dá mais intensidade ao pertencimento da equipe88 Barbosa A de S, Teixeira BRF, Oliveira AM, Pessoa TRRF, Vaz EMC, Forte FDS. Interprofessionality, training, and collaborative work in the context of family health: action-research. Saúde debate. [Internet]. 2022 [cited 2023 Oct. 02]; 46(spe5):67-79. Available from: https://doi.org/10.1590/0103-11042022E506
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-99 Vendruscolo C, Trindade LL, Prado ML, Kleba ME. Rethinking the health care model through the reorientation of training. Rev. bras. enferm. [Internet]. 2018 [cited 2023 Oct. 02]; 71(supl4):1580-1588. Available from: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0055
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Pensando em um agir coletivo, surge a experiência do matriciamento como um dispositivo reconhecido pela equipe como potencializador do cuidado aos usuários de SPA no território. Nos encontros de matriciamento acontece o estudo de cada caso e planejamento das ações de cuidado. O matriciamento em saúde mental depende do empenho, disponibilidade e mudanças por parte de todos os envolvidos. É uma negociação entre os diversos saberes presentes, buscando estratégias de cuidado para um indivíduo ou população, que propõe um novo modo de produzir saúde, qualificando o cuidado na ESF e diminuindo os encaminhamentos desnecessários1010 Iglesias A, Avellar LZ. Matrix support in mental health: practices and concepts brought by reference teams, matrix teams and managers. Cienc Saúde Coletiva. [Internet]. 2019 [cited 2023 Oct. 03]; 24(4);1247-54. Available from: https://doi.org/10.1590/1413-81232018244.05362017
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-1111 Fagundes GS, Campos MR, Fortes SLCL. Matrix support in mental health: analysis of care provided to people in psychic distress in primary care. Cien Saude Colet. [Internet]. 2021 [cited 2023 Oct. 03]; 26(6):2311-22. Available from: https://doi.org/10.1590/1413-81232021266.20032019.
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A partir das entrevistas e do acompanhamento realizado na etnografia prévia, é possível perceber que, para esta equipe, ainda falta um entendimento maior sobre o que de fato é o apoio matricial e matriciamento; considerando este dispositivo além de uma simples discussão de casos, mas um compartilhamento respeitoso de saberes que fortalece e instrumentaliza tanto os profissionais quanto os usuários. Apesar da equipe identificar-se como uma potencialidade, nas entrevistas foram citados alguns desafios no cuidado com os usuários de SPA, tais como preconceito por parte dos profissionais, medo dos usuários de drogas, falta de conhecimento técnico para manejar o usuário, falta de profissionais e falta de estrutura física para prestar um melhor atendimento.

A percepção sobre o consumo de drogas em determinar como os “profissionais” veem a pessoa pode dificultar a percepção do usuário como um sujeito social inserido em um mundo comum, constituindo uma barreira à construção de vínculo entre profissional e usuário, principalmente quando o profissional tem atitudes preconceituosas e estigmatizantes, antecipando o julgamento de alguém por fazer uso de drogas1212 Queiroz L. Care for the drug user: perception of nurses from the family health strategy. saúde e sociedade. [Internet]. 2018 [cited 2023 Oct. 03]; 27(3):834-44. Available from: https://doi.org/10.1590/S0104-12902018180079
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. Essa antecipação pode ameaçar o cuidado em saúde mental, pois fortalece estigmas e supostas “verdades” sociais, tais como a intervenção ao consumidor de drogas sem retorno positivo, ou o questionamento “de por que atender um usuário que teve atitudes para adoecer e não os outros pacientes?”1313 Merleau-Ponty M. O homem e a comunicação - a prosa do mundo [Internet]. Rio de Janeiro: Bloch; 1974 [cited 2023 Dec. 12]. 159 p. Available from: https://www.docdroid.net/ARJ2SGP/merleau-ponty-a-prosa-do-mundo-pdf
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Essa segregação e estigmatização relacionadas ao consumo de drogas, que ainda perpetuam em nossa sociedade, são os fomentadores do descuido no campo da atenção à saúde. Os profissionais vivenciam experiências que levam a sentimentos imprecisos, e classificam o sujeito como “vítima” ou “culpado”, refletindo diretamente no cuidado ao usuário dos serviços, neste caso, aos usuários de substâncias psicoativas, tais sentimentos podem dificultar o ir e vir do cuidado nas relações entre profissional e usuário1212 Queiroz L. Care for the drug user: perception of nurses from the family health strategy. saúde e sociedade. [Internet]. 2018 [cited 2023 Oct. 03]; 27(3):834-44. Available from: https://doi.org/10.1590/S0104-12902018180079
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O discurso de que o usuário de drogas é uma pessoa problemática e de difícil adesão ao tratamento, constitui-se como uma barreira na produção de cuidado. Desta forma, segundo Merleau-Ponty 1313 Merleau-Ponty M. O homem e a comunicação - a prosa do mundo [Internet]. Rio de Janeiro: Bloch; 1974 [cited 2023 Dec. 12]. 159 p. Available from: https://www.docdroid.net/ARJ2SGP/merleau-ponty-a-prosa-do-mundo-pdf
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, os profissionais só conseguem perceber o que se mostra (figura) sem levar em consideração todo o contexto (fundo) vivenciado pelo consumidor.

O cuidado baseado no moralismo, faz com que os profissionais esperem a abstinência do usuário e tratem o sujeito como o único responsável por seus problemas sociais, pelo desenvolvimento da dependência e pelo seu comportamento que por vezes pode ser violento. Ao persistir no discurso moral, esses profissionais terão muita dificuldade em estabelecer um vínculo com o usuário, justamente por não perceber seu mundo igual ao daquele usuário que vivencia o consumo habitual de drogas1212 Queiroz L. Care for the drug user: perception of nurses from the family health strategy. saúde e sociedade. [Internet]. 2018 [cited 2023 Oct. 03]; 27(3):834-44. Available from: https://doi.org/10.1590/S0104-12902018180079
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De acordo com os dados deste estudo, o imaginário popular tem muita influência sobre a conduta dos profissionais, pois existe uma grande carga de preconceito e ajuizamento de valor por parte da comunidade, revelando a estigmatização dos usuários de drogas. Estas questões podem dificultar o acesso e acolhimento dessa demanda nas ESF, os discursos corroboram com a dificuldade que os profissionais têm de se aproximar muitas vezes desses usuários, em virtude do medo causado pelo estranhamento diante de alguns comportamentos1313 Merleau-Ponty M. O homem e a comunicação - a prosa do mundo [Internet]. Rio de Janeiro: Bloch; 1974 [cited 2023 Dec. 12]. 159 p. Available from: https://www.docdroid.net/ARJ2SGP/merleau-ponty-a-prosa-do-mundo-pdf
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Sendo assim, mesmo reconhecendo a necessidade de cuidados aos usuários de drogas, a ausência de cuidado também é revelada, quando aparece nas falas que não existe um cuidado específico e nem capacitação para cuidar de quem usa drogas.

O despreparo e a falta de capacitação para cuidar desses indivíduos faz parte dos relatos dos profissionais deste estudo. Diante disto, acredita-se que os preparo dos profissionais, na AB ou em outros dispositivos da rede de atenção, é considerado uma estratégia para o cuidado e para a atuação da equipe de saúde. Os profissionais devem receber formação continuada, envolvendo preparação para manejar as crises, criando assim um contexto de cuidado1414 Stoppa RG, Wanderbroocke ACNS, Azevêdo AVS. Health professionals in the care of users with suicidal behavior in Brazil: a systematic review.Rev. Psicol. Saúde [Internet]. 2020 Dez [cited 2023 Oct. 04] ; 12( 4 ): 65-80. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2177-093X2020000400007
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As ações de saúde mental na APS dependem muito da mobilização individual dos profissionais. A melhor estratégia observada para conseguir êxito na assistência ao usuário de SPA na ESF foi o investimento na qualificação dos profissionais por meio de educação e capacitação permanente nesta área. Diante deste cenário surge a limitação do estudo, pois sabe-se que ainda temos um modelo de atenção básica centrado em programas ou em áreas da saúde, o que diverge da proposta da APS. A APS deve funcionar como principal porta de entrada do sistema e não “escolher” ou classificar os usuários de acordo com os programas e recursos que dispõe, mas oferecer respostas de integralidade e coordenação de cuidado independente de qual seja o problema do usuário33 Wenceslau LD, Ortega F. Mental health within primary health care and global mental health: international perspectives and Brazilian context. Interface (Botucatu). [Internet]. 2015 [cited 2023 Oct. 02]; 19(55):1121-32. Available from: https://www.scielosp.org/pdf/icse/2015.v19n55/1121-1132/en
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Ressalta-se a importância de realizar encaminhamentos para a atenção especializada quando necessário, não tornando essa uma prática que aconteça sem, ao menos, a avaliação das condições e necessidades do usuário de drogas.

Como limitação de estudo, estima-se que o alcance desta pesquisa possibilita respostas parciais ao que foi avaliado, pois apenas uma realidade foi detalhada e estudada.

CONCLUSÃO

Os dados desta pesquisa permitiram avaliar as potencialidades e desafios encontrados pelos profissionais no cuidado ao usuário de substâncias psicoativas na ESF. Constatou-se que a busca por acolhimento e tratamento da população usuária de SPA ainda enfrenta barreiras, mesmo que a equipe esteja disposta e aberta a novos conhecimentos. A equipe reconhece que estar próximo ao território dos sujeitos é uma oportunidade de aproximar eles dos serviços de saúde.

Porém, existe um imaginário social que influencia o comportamento dos profissionais, fazendo com que o cuidado seja baseado no moralismo. Este discurso moralista afasta o usuário dos serviços de saúde e distancia a criação de vínculo entre profissional-usuário. Os profissionais relatam que o matriciamento surgiu como uma ferramenta para potencializar o acompanhamento destes casos no território.

São muitos os desafios que perpassam o cuidado ao usuário de substância psicoativa, contudo, este estudo contribuiu para o desvelamento desse contexto e, desta forma, poderá fomentar um atendimento voltado para o acolhimento e integralidade do sujeito, pois ações fragmentadas não são suficientes para atender a demanda dos usuários de substâncias psicoativas.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Brito GEG de, Mendes A da CG, Santos Neto PM dos. The work in the Family health strategy and the persistence of curative practices. Trab, Educ Saúde. [Internet]. 2018 [cited 2023 Oct. 02]; 16(3):975-95. Available from: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00164
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Editado por

Editora associada:

Dra. Maria Helena Barbosa

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    12 Nov 2023
  • Aceito
    14 Abr 2024
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