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DESAFIOS PARA O ESTUDO COMPARADO DO FINANCIAMENTO DA SEGURANÇA PÚBLICA NOS ESTADOS

Desafíos para el estudio comparado del financiamiento de la seguridad pública en los estados

RESUMO

Este artigo busca investigar o financiamento da segurança pública em cinco unidades federativas do Brasil: São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, Pará e Rio Grande do Sul. O objetivo principal é investigar a variação do gasto com segurança pública nesses estados, apresentando sua estrutura orçamentária, buscando responder se é possível, ou não, compará-la. O resultado mostra que os estados organizam suas despesas de segurança pública de maneiras muito distintas, reflexo de estruturas de governança muito diferentes e complexas e que envolvem pesos diferentes nos estados para atores similares, como as polícias militares. As diferenças nos orçamentos estaduais são verificadas não apenas na comparação entre os estados, mas também no mesmo território ao longo dos anos. Esse retrato contábil torna muito difícil a comparação de custos da segurança pública no Brasil, indicando a necessidade de padronização contábil entre os entes e maior transparência para acompanhamento de ações relevantes no combate à violência. Dessa forma, será possível comparar, com mais exatidão, os gastos realizados pelos estados com seus resultados e, consequentemente, sua eficácia e efetividade.

Palavras-chave:
segurança pública; financiamento; governança; comparação; efetividade

RESUMEN

Este artículo busca investigar el financiamiento de la seguridad pública en cinco unidades federativas de Brasil: São Paulo, Río de Janeiro, Ceará, Pará y Rio Grande do Sul. El objetivo principal es investigar la variación del gasto en seguridad pública en estos estados, presentando su estructura presupuestaria, buscando responder si es posible, o no, compararlo. El resultado muestra que los estados organizan sus gastos de seguridad pública de manera muy desigual, reflejando estructuras de gobernanza muy diferentes y complejas que involucran distintos pesos en los estados para actores similares, como la policía militar. Las diferencias en los presupuestos estatales se verifican no solo en la comparación entre los estados, sino también en el mismo territorio a lo largo de los años. Este panorama contable hace que sea muy difícil comparar los costos de la seguridad pública en Brasil, lo que indica la necesidad de estandarización contable entre las entidades y una mayor transparencia para monitorear las acciones relevantes para combatir la violencia. De esta manera, será posible comparar, con mayor precisión, los gastos realizados por los estados con sus resultados y, en consecuencia, su eficiencia y efectividad.

Palabras clave:
seguridad pública; financiamiento; gobernanza; comparación; efectividad

ABSTRACT

This article examines public security funding in five Brazilian states: São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, Pará, and Rio Grande do Sul. The study presents the budget structures of these states and aims to understand variations in public security spending, as well as the feasibility of comparing such information across the states. The results reveal that public security expenditures are structured differently, reflecting unequal and complex governance systems where similar actors, notably the state police forces, hold distinct significance in each state. Furthermore, in addition to the disparities between states, the analyzed budgets vary within a state over the years. Consequently, comparing public security expenditures in Brazil becomes challenging, highlighting the need for standardized accounting practices among states and greater transparency in monitoring relevant actions to combat violence. Lastly, the findings suggest the potential for comparing the correlation between state expenditures and their outcomes, analyzing efficiency and effectiveness.

Keywords:
public security; financing; governance; comparison; effectiveness

SUMÁRIO EXECUTIVO

Para compreender e avaliar o impacto da ação governamental, não basta saber quanto o governo direcionou de despesas ou investimentos para determinada política pública, mas se faz fundamental saber qual o resultado gerado por esse gasto e se ele poderia ser obtido de modo mais eficiente. No caso da política de segurança pública, objeto de análise deste artigo, esse tipo de avaliação é complexa no Brasil, em grande medida em função da ausência de regulamentação em torno do que é despesa em segurança pública ou uma regra geral de vinculação de receitas.

O financiamento da segurança pública em nosso país, até pela arquitetura institucional da área, que reserva aos Executivos estaduais a gestão das polícias civil, militar, técnico científica e corpo de bombeiros, é fortemente concentrado na esfera estadual, responsável por cerca de 80% do total de despesas na área (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2022Fórum Brasileiro de Segurança Pública. (2022). Anuário Brasileiro de Segurança Pública, ano 16.). Esse volume de recursos é bastante representativo quando o comparamos com outras áreas de gasto nos estados: estudo da Rede de Pesquisa Solidária (2022)Rede de Pesquisa Solidária. (2022). Boletim No. 38 de 28 fevereiro de 2022. mostrou que a função segurança é a quinta com maiores gastos desde 2019, perdendo apenas para previdência social, educação, saúde e encargos sociais.

Os desafios para financiamento dessa política multiplicaram-se recentemente, com a aprovação da Lei Complementar n. 194 de 23/6/2022, que limita o teto de 17% para a cobrança de ICMS sobre combustíveis (Peres et al., 2022Peres, U. D., Bueno, S., & Nascimento, T. (2022). Desafios no financiamento da segurança pública: Recursos estagnados e reforma do ICMS. 16º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/07/16-anuario-2022-desafios-no-financiamento-da-seguranca-publicarecursos-estagnados-e-reforma-do-icms.pdf
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). A análise das receitas dos estados demonstra alta dependência de tributação indireta, especialmente o ICMS, bem como a insuficiência redistributiva do Fundo de Participação dos Estados (FPE). Essa heterogeneidade econômica e tributária implica uma desigualdade na oferta de serviços públicos pelos diferentes estados brasileiros. Com essa estrutura, e como boa parte de seus recursos de impostos é vinculada à saúde e à educação, por regra constitucional, qualquer redução tributária, como essa do ICMS, representa importante perda de recursos para as políticas setoriais e em especial as que não tem proteção de fundo constitucional, como a segurança pública.

Assim, para melhor compreensão das desigualdades em relação à estrutura de gastos e políticas implementadas na área da segurança pública, procedemos à análise de cinco unidades da Federação: São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ), Ceará (CE), Pará (PA) e Rio Grande do Sul (RS), que revelam comportamentos distintos em suas receitas.

A análise dos gastos por grupo de despesa ao longo da última década demonstra que a maior parte do orçamento da segurança pública está comprometida com o custeio das polícias e outras despesas correntes, deixando pouquíssima margem para qualquer tipo de investimento. Assim, quando analisamos especificamente a proporção de despesas empenhadas sob a ótica de quem foi o responsável por sua execução - órgãos, secretarias e unidades orçamentárias vinculadas à função segurança pública -, verificamos que as Polícias Militares ocupam o maior volume de despesas em todos os estados analisados, o que condiz com seu tamanho e estrutura, dado que é a força a quem cabe o policiamento ostensivo. No entanto, esses gastos são muito díspares entre os estados.

Nesse contexto, o debate em torno da governança na área de segurança pública faz-se necessário. Conforme discutido por Costa (2015Costa, A. T. M. (2015). Estado, governança e segurança pública no Brasil: Uma análise das secretarias estaduais de Segurança Pública. Dilemas - Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, 8(4), 607-632. https://www.redalyc.org/pdf/5638/563865503001.pdf
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, 2023Costa, A. T. M. (2023). Das políticas de segurança pública às políticas públicas de segurança. In: A. T. M. Costa (Org.), Segurança pública, redes e governança (pp. 22-28). Editora Universidade de Brasília.), as secretarias de segurança pública no País possuem diferentes capacidades de governança, entendida como a capacidade de essas instituições formularem e coordenarem políticas públicas na área de segurança. Essas diferenças mostram-se, sobretudo, quanto à estrutura organizacional dessas secretarias, seus recursos humanos, a capacitação de seus quadros e sua capacidade de articulação com outros órgãos dentro e fora do estado.

Nos resultados da pesquisa conduzida por Costa (2015)Costa, A. T. M. (2015). Estado, governança e segurança pública no Brasil: Uma análise das secretarias estaduais de Segurança Pública. Dilemas - Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, 8(4), 607-632. https://www.redalyc.org/pdf/5638/563865503001.pdf
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, dois achados estão diretamente relacionados às variações de gasto apontadas neste estudo, quais sejam a estrutura organizacional das pastas e o perfil de seus recursos humanos. Em diferentes estados, as secretarias possuem estruturas organizacionais variadas, relacionadas às atribuições que têm ou não em temas como corpo de bombeiros, sistema penitenciário, defesa civil, defesa social, justiça e perícia, e estruturas associadas, como casas militares e ouvidorias sob sua gestão.

Há casos, por exemplo, em que todas essas estruturas podem estar sob gestão da pasta de segurança pública, enquanto noutros estão distribuídas em outros órgãos ou mesmo não existem em determinada configuração de governos. Quanto ao perfil de recursos humanos, os estados têm autonomia para implementarem modelos de governança que estabelecem variadas formas de contratação e estruturação de carreiras da segurança, o que certamente afetará o montante das despesas.

Além disso, a literatura internacional nos aponta ao menos quatro modelos teóricos (governança nodal, pluralismo ancorado, regulação responsiva e teoria de rede) relacionados à governança no provimento de segurança pública, que nos auxiliam a compreender as dinâmicas entre os atores envolvidos e que serão aprofundadas em seção posterior do presente artigo. Nesse aspecto, vislumbramos que a multiplicidade de atores atuantes interfere diretamente na forma como as políticas de segurança são ofertadas, o que, por sua vez, impacta diretamente a elaboração e execução orçamentária relacionada.

Assim, partimos do entendimento de que diferentes arranjos de governança serão refletidos em diferenças orçamentárias, o que por si só dificulta a mensuração e comparação não só da quantidade gasta, mas também a forma como se gasta em segurança pública nos diferentes territórios. Isso posto, ressalta-se a necessidade de padronização das despesas em segurança pública, que não visa reduzir a autonomia dos Estados, mas traduzir os gastos em uma linguagem comum, passível de comparações, com intuito de calcular sua respectiva efetividade.

O artigo está organizado em cinco partes, além deste sumário executivo. A próxima seção apresenta a situação-problema na qual se insere o financiamento das políticas públicas de segurança pública nos estados brasileiros. A seção três organiza as principais ideias e conceitos teóricos sobre governança em segurança pública. Na seção quatro, está detalhada a construção metodológica desta pesquisa, que é analisada na seção cinco. Por fim, apresentamos as principais conclusões e recomendações na sexta seção.

SITUAÇÃO-PROBLEMA

A análise das receitas das unidades federativas nos últimos anos traz algumas características importantes para compreendermos os desafios do financiamento da segurança pública, uma das áreas mais sensíveis da gestão pública. Isso porque são os estados e o Distrito Federal os entes com maior participação no financiamento dessa área: esse nível federativo, por definição constitucional, é responsável pela administração e manutenção das polícias civil e militar, alocando 80,9% do total das despesas da área, que representam 1,6% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional. Apenas em 2021, cerca de R$ 105 bilhões foram empenhados por União, estados e DF e municípios com essa política pública, volume de recursos bastante representativo quando o comparamos com outras áreas como a saúde, cujo gasto público representa cerca de 3% do PIB.

A disputa dos entes da Federação em torno da carga tributária brasileira tem sido uma constante em nossa história, perpassando diferentes constituições, desde antes da República (Lopreato, 2018Lopreato, F. L. C. (2018). Governos estaduais: O retorno à debilidade financeira (Texto para discussão n. 338). Instituto de Economia, Unicamp. https://www.economia.unicamp.br/noticias/governos-estaduais-o-retorno-a-debilidade-financeira
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). A Constituição Federal (CF) de 1988 foi um novo momento de ajuste federativo, uma vez que, no período de redemocratização, os governadores eleitos foram empoderados e buscaram a descentralização política, tributária e fiscal.

O novo texto constitucional, embora tenha propiciado essa mudança ao longo dos anos de 1990, em paralelo às medidas de estabilização monetária e enfrentamento da crise econômica pela qual passava o País, possibilitou que o Governo Federal, usando as prerrogativas constitucionais, iniciasse o movimento ad hoc de redesenho das relações intergovernamentais, em um momento em que os estados perderam espaço na correlação de forças políticas, em parte devido ao quadro de fragilidade financeira em que se encontravam (Almeida, 2005Almeida, M. H. T. (2005). Recentralizando a federação? Revista de Sociologia e Política [online], 24, 29-40. https://doi.org/10.1590/S0104-44782005000100004
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; Arretche, 2005Arretche, M. (2005). Quem taxa e quem gasta: A barganha federativa na federação brasileira. Revista de Sociologia e Política [online], 24, 69-85. https://doi.org/10.1590/S010444782005000100006
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; Peres & Santos, 2020Peres, U. D., & Santos, F. P. (2020). Gasto público e desigualdade social: O orçamento do governo federal brasileiro entre 1995 e 2016. Revista Brasileira de Ciências Sociais [online], 35(103), 1-23. https://doi.org/10.1590/3510307/2020
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). Esse movimento permitiu, por meio da elevação da carga tributária federal com contribuições sociais não partilhadas com estados e municípios, uma diminuição do ritmo da descentralização financeira, penalizando principalmente os entes estaduais.

Assim, para além da disputa entre os entes da Federação, observa-se uma expressiva desigualdade tributária vertical entre União, estados e municípios. É certo que o Brasil tem, historicamente, um quadro de desigualdade horizontal, com concentração de desenvolvimento econômico em alguns estados do Sul e Sudeste e maior dependência de transferências federais nos estados do Norte e Nordeste, apontando que, embora a Região Sudeste tenha concentrado, por décadas, a arrecadação de ICMS, esse processo se altera a partir dos anos de 1970 e 1980, com redução dessa proporção junto ao aumento nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.

Não é possível dizer que houve uma convergência da arrecadação desse imposto entre as regiões, mas se faz necessário reconhecer que essa mudança alterou a disputa federativa e a guerra fiscal entre estados. Ainda que seja forçoso reconhecer uma importante mudança na arrecadação do ICMS do Nordeste, Centro-Oeste e Norte na última década, também é necessário destacar a grande diferença no valor absoluto da arrecadação do Sudeste em relação às demais regiões, fato que não é compensado pelas transferências do FPE (Afonso, 2009Afonso, J. R. R. (2009). FPE: Rateio sem custeio. Observatório da Jurisdição Constitucional, 1(3), 1-9. https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/observatorio/article/view/386
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, 2016Afonso, J. R. R. (2016). Federalismo fiscal brasileiro: Uma visão atualizada. Caderno Virtual, 1(34), 1-24. https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/cadernovirtual/article/view/2727
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; Lopreato, 2020Lopreato, F. L. C. (2020). Federalismo brasileiro: Origem, evolução e desafios. Economia e Sociedade [online], 31(1), 1-41. https://doi.org/10.1590/1982-3533.2022v31n1art01
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; Rezende, 2010Rezende, F. (2010). Federalismo fiscal: Em busca de um novo modelo. In R. P. Oliveira & W. Santana (Org.), Educação e federalismo no Brasil: Combater as desigualdades, garantir a diversidade (Cap. 1, pp. 71-88). Unesco.).

Como analisado por Peres e Santos (2021)Peres, U. D., & Santos, F. P. dos. (2021). Descoordenação e desigualdades federativas no Brasil com a Covid-19: Análise da situação fiscal dos estados em 2020. Cadernos Gestão Pública e Cidadania, 26(85), 1-23. https://doi.org/10.12660/cgpc.v26n85.83742
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, esse crescimento relativo das demais regiões em comparação ao Sudeste permitiu uma desconcentração de receitas no território nacional, em boa parte causada pelas mudanças regulatórias pelas quais passou o ICMS, segundo Afonso (2016)Afonso, J. R. R. (2016). Federalismo fiscal brasileiro: Uma visão atualizada. Caderno Virtual, 1(34), 1-24. https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/cadernovirtual/article/view/2727
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, propiciando um aumento de arrecadação pelos fiscos desses estados ao mesmo tempo que houve uma redução, tanto de produção quanto de arrecadação, no Sudeste. Essas mudanças regulatórias não foram suficientes, no entanto, para garantir equalização de receitas entre os estados.

Assim, apesar de termos mecanismos de federalismo fiscal que buscam equilibrar essas diferenças de potencial econômico, como o FPE, sua forma de cálculo nunca permitiu uma equalização fiscal de fato (Rezende, 2010Rezende, F. (2010). Federalismo fiscal: Em busca de um novo modelo. In R. P. Oliveira & W. Santana (Org.), Educação e federalismo no Brasil: Combater as desigualdades, garantir a diversidade (Cap. 1, pp. 71-88). Unesco.).

Embora traga certa compensação aos estados de menor arrecadação tributária, o FPE não consegue equalizar as receitas entre eles, mantendo o cenário de potenciais econômicos muito distintos para a oferta de políticas públicas. Além disso, outra questão a ressaltar sobre as receitas dos estados é a de que boa parte desse volume arrecadado é prioritariamente reservado às áreas de educação e saúde, isso porque a Constituição de 1988 obriga a vinculação de 25% dos impostos para a manutenção e desenvolvimento do ensino e 12% destes, no âmbito estadual, para a saúde.

Dessa forma, quando analisamos a área de segurança pública, é importante perceber que, embora essa área não tenha fonte específica de recursos regulamentada pela Carta Magna, os estados realizam um importante esforço fiscal para custeá-la: alguns chegam a executar mais de 10% de suas receitas correntes com as despesas de segurança pública, como apontam os resultados deste artigo.

Diante desse cenário de complexidade tributária para o financiamento da segurança pública pelos estados, o presente artigo tem como objetivo apresentar a importância do gasto em segurança pública nos estados ao demonstrar o percentual gasto com segurança em relação ao total dos orçamentos, buscando compreender como esses gastos são realizados. As perguntas norteadoras da pesquisa são: i) Como variam os gastos de segurança pública entre os estados?; ii) É possível comparar o volume gasto na função segurança entre as diferentes unidades federativas brasileiras ou existem elementos de grande distinção entre essas unidades?; e iii) Como comparar ações distintas e sua eficácia e efetividade no combate à violência se não conseguirmos distinguir esses padrões de gasto?

Antes, porém, de responder a essas questões, é fundamental apresentarmos os conceitos teóricos de governança utilizados no âmbito da segurança pública e os elementos relevantes em diferentes padrões de governança.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA: O DEBATE SOBRE GOVERNANÇA EM SEGURANÇA PÚBLICA

O debate em torno da governança no provimento dos serviços de segurança pública tem estado na ordem do dia a partir das mudanças que o mundo vem sofrendo desde os anos de 1990, em especial com o fim da Guerra Fria. Democracias têm cada vez mais diversificado a provisão de policiamento por meio de uma infinidade de agências e agentes, o que por muito tempo foi visto como tarefa exclusiva do Estado soberano (Loader, 2000Loader, I. (2000). Plural policing and democratic governance. Social & Legal Studies, 9(3), 323-345. https://doi.org/10.1177/096466390000900301
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).

Nesse cenário, o conceito de governança pode ser definido como a coordenação de atores políticos que não necessariamente possuem relações hierárquicas entre si, mas que são interdependentes, cujo desafio é estabelecer práticas e consensos capazes de planejar, articular e implementar ações públicas (Costa, 2023Costa, A. T. M. (2023). Das políticas de segurança pública às políticas públicas de segurança. In: A. T. M. Costa (Org.), Segurança pública, redes e governança (pp. 22-28). Editora Universidade de Brasília.). No campo da segurança pública, o Estado ainda se mantém como estrutura fundamental e de coordenação e supervisão do policiamento das instituições públicas, mas cada vez mais o policiamento privado, arranjos policiais transnacionais, empresas de tecnologia em segurança e até mesmo o crime organizado colocam-se como parte de uma rede que é cada vez mais plural e influencia a forma como as políticas públicas são implementadas.

Esse novo momento parece tornar cada vez mais distante a ideia weberiana de monopólio estatal da violência legítima, por meio da qual as polícias seriam a força capaz de garantir e reforçar a soberania do Estado sobre um determinado território. Hoje a regulação da vida social dá-se de maneira muito mais complexa e a partir de uma enorme diversidade de arranjos e atores, o que implica que a responsabilização e a coordenação do sistema precisam se modernizar.

Até por isso, muitos autores têm discutido que a complexidade do contexto atual demanda novas formas de responsabilização e coordenação do sistema, já que os arranjos intraorganizacionais clássicos do Estado já não respondem adequadamente ao novo arranjo institucional (Loader, 2000Loader, I. (2000). Plural policing and democratic governance. Social & Legal Studies, 9(3), 323-345. https://doi.org/10.1177/096466390000900301
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). Ao menos quatro modelos teóricos sobre governança em segurança têm sido objeto de discussão na literatura internacional: governança nodal, pluralismo ancorado, regulação responsiva e teoria de rede. Em todos os casos, a premissa é a de uma rede de relações de diferentes atores no provimento dos serviços de segurança, mas cada um dos modelos difere sensivelmente em relação à hierarquia das relações entre os atores, assim como em relação ao papel do Estado.

O modelo de governança nodal, difundido especialmente a partir de Shearing (2005)Shearing, C. D. (2005). Nodal security. Police Quarterly, 8(1), 57-63. https://doi.org/10.1177/1098611104267327
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, traz a perspectiva de segurança como um serviço provido a partir de redes policêntricas, sem grande protagonismo do Estado no processo de coordenação ou regulação. Johnston e Shearing (2003)Johnston, L., & Shearing, C. (2003). Governing security: Explorations in policing and justice. Routledge. afirmam que a governança em segurança precisa de uma nova morfologia, contrariando a visão mais tradicional de que caberia ao Estado esse protagonismo. A justificativa normativa para tal não é o esvaziamento do Estado enquanto instância de coordenação, mas o fortalecimento de suas capacidades para fornecer uma prestação eficiente dos serviços públicos a partir da perspectiva neoliberal (Boutellier & Steden, 2011Boutellier, H., & Steden, R. (2011). Governing nodal governance: The “anchoring” of local security networks. In A. Crawford (Ed.), International and Comparative Criminal Justice and Urban Governance: Convergence and Divergence in Global, National and Local Settings (pp. 461-482). Cambridge: Cambridge University Press. https://doi.org/10.1017/CBO9780511974953.018
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).

Essa rede envolvida no provimento da segurança pública seria formada por uma série de nós, que representam instituições com um conjunto de tecnologias, mentalidades e recursos que mobilizam conhecimento e capacidade de seus membros para influenciar determinado cenário. Sob essa perspectiva, relações menos hierárquicas facilitariam a interação entre diversos atores, permitindo que estes possam desenvolver soluções para cada problema que enfrentam, aumentando seu potencial criativo.

A crítica a esse modelo enfatiza que cada um desses atores possui propósitos e mentalidades próprios que não necessariamente estão dentro da conduta legal, podendo eles mesmos ser nós desviantes. Como garantir, por exemplo, que o lucro não suplantaria os interesses do Estado de Direito no que diz respeito às ações dos atores privados? Nessa perspectiva não fica claro quem está formulando e quem está implementando a política, tampouco quais as ferramentas legais e simbólicas de que cada um dos atores da rede dispõe, de modo que não é possível garantir que ela opere a partir da mediação de conflitos e com a construção de consensos, ou seja, de maneira democrática (Stenning, 2000Stenning, P. C. (2000). Powers and accountability of private police. European Journal on Criminal Policy and Research, 8(3), 325-352. https://doi.org/10.1023/A:1008729129953
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).

Já o modelo teórico do pluralismo ancorado constrói-se em oposição ao modelo de governança nodal, que retira do Estado o papel de instância principal e reguladora das relações estabelecidas no arranjo organizacional da segurança. Muito preocupado com a perspectiva democrática, a pergunta de fundo do pluralismo ancorado é: Quem, na ausência de um Estado regulador, terá a responsabilidade de monitorar as redes de segurança e proteger os direitos das comunidades mais vulneráveis? Que instância ou ator serviria como último recurso na defesa da ordem pública?

Essa perspectiva foi criada por Loader e Walker (2006)Loader, I., & Walker, N. (2006). Necessary virtues: The legitimate place of the state in the production of security. In J. Wood & B. Dupont (Eds.), Democracy, society and the governance of security (pp. 165-195). Cambridge University Press. para defender a necessidade da presença do Estado na governança da segurança e se utiliza da perspectiva de rede. Embora inicialmente proponham esse conceito em um sentido normativo, Loader e Walker também apresentam pistas analíticas relevantes para identificar e avaliar os pontos de ancoragem distintivos que os estados têm na direção de redes organizacionais plurais (Boutellier & Steden, 2011Boutellier, H., & Steden, R. (2011). Governing nodal governance: The “anchoring” of local security networks. In A. Crawford (Ed.), International and Comparative Criminal Justice and Urban Governance: Convergence and Divergence in Global, National and Local Settings (pp. 461-482). Cambridge: Cambridge University Press. https://doi.org/10.1017/CBO9780511974953.018
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).

Segundo os autores, o Estado permanece como ator fundamental na formação de identidades sociais, assim como único capaz de alocar de maneira precisa os recursos coletivos, sendo um ator legítimo para a regulação das redes de segurança e para criar canais de deliberação para que as polícias sejam moldadas com base na participação democrática. Isso, por sua vez, aumenta a percepção da população em relação à legitimidade do Estado como esfera regulatória. Nesse sentido, o Estado tem uma posição crucial nessa rede relacional entre agências estatais, mercado e sociedade civil.

O modelo de regulamentação responsiva defendida por John Braithwaite (2002)Braithwaite, J. (2002). Rewards and regulation. Journal of Law and Society, 29(1), 12-26. https://doi.org/10.1111/1467-6478.00209
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destaca os limites de uma transação entre o Estado e as empresas privadas argumentando que, a menos que haja um ou mais atores que sirvam como um terceiro no jogo regulatório, a regulamentação será corrompida pelo dinheiro.

A regulação responsiva envolve ouvir vários interessados e fazer uma escolha deliberativa e flexível (responsiva) a partir de estratégias regulatórias que podem ser conceitualmente organizadas em uma pirâmide. Na base da pirâmide, são utilizadas com mais frequência estratégias menos coercitivas, menos intervencionistas e mais baratas. A premissa é que se deve tentar as estratégias mais baixas na pirâmide até que elas falhem. Então, as debilidades dessas estratégias podem ser cobertas pelos pontos fortes das estratégias mais acima na pirâmide, com efeito coercitivo, o que motivaria a cooperação.

Isso implica que a eficácia do ordenamento no campo da segurança depende da capacidade credível de escalada em direção a medidas punitivas e coercitivas. Somente quando as políticas de segurança locais são estabelecidas sistematicamente e apoiadas pela presença de um Estado sólido em segundo plano, os arranjos nodais são capazes de funcionar em sua capacidade total (Braithwaite, 2002Braithwaite, J. (2002). Rewards and regulation. Journal of Law and Society, 29(1), 12-26. https://doi.org/10.1111/1467-6478.00209
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).

Nessa perspectiva teórica, os arranjos de governança funcionam como uma espécie de “pirâmide regulatória” incremental com inúmeros corpos preventivos (serviço social, assistência a jovens, assistência médica) e menos instituições repressivas e punitivas (polícia e justiça criminal). Essa pirâmide consiste em uma hierarquia de ferramentas reguladoras para induzir a conformidade - variando por meio de persuasão, estímulos ou incentivos e sanções (Boutellier & Steden, 2011Boutellier, H., & Steden, R. (2011). Governing nodal governance: The “anchoring” of local security networks. In A. Crawford (Ed.), International and Comparative Criminal Justice and Urban Governance: Convergence and Divergence in Global, National and Local Settings (pp. 461-482). Cambridge: Cambridge University Press. https://doi.org/10.1017/CBO9780511974953.018
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).

Em forte diálogo com a teoria de pluralismo ancorado, a teoria de governança em rede (network theory) defende que o Estado é a única instância capaz de estabelecer diretrizes vinculativas para que a governança democrática possa ser garantida no nível local. A governança em rede destaca em especial o aspecto democrático que a governança deve garantir e alerta para os riscos de violações de direitos quando não se tem uma instância garantidora dos direitos da minoria (Bogason & Musso, 2006Bogason, P., & Musso, J. A. (2006). The democratic prospects of network governance. American Review of Public Administration, 36(1), 3-18. https://doi.org/10.1177/0275074005282581
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; Stenning, 2009Stenning, P. C. (2009). Governance and accountability in a plural policing environment: The story so far. Policing, 3(1), 22-33. https://doi.org/10.1093/police/pan080
https://doi.org/10.1093/police/pan080...
). O surgimento de redes locais de segurança pode representar promessas, mas também ameaças aos mecanismos de responsabilização. Assim, se o modelo menos hierárquico pode parecer positivo, a autoridade constitucional manifesta na hierarquia continua a ser a estrutura frutífera para que redes relacionais funcionem de maneira democrática.

No contexto brasileiro, independentemente do conceito que se defenda como ideal, o fato é que uma multiplicidade de atores atua e interfere diretamente na forma como as políticas de segurança são ofertadas. Longe de ser um monopólio do Estado, ainda que se reconheça sua centralidade no modelo, não é possível descartar a importância da emergência de novos atores e expectativas como o crescimento da influência de empresas privadas, da sociedade civil e até mesmo do crime organizado, representado por facções e milícias.

Sem ignorar essa realidade, neste artigo o foco de nossa análise está centrado na capacidade de governança dos atores estatais na área de segurança, de modo a compreender como os diferentes atores da esfera estadual, que corresponde à maior parte do contingente das forças de segurança pública, isto é, secretarias de segurança, polícias civis, militares, técnico-científica, bombeiros e sistema prisional, se relacionam e disputam os recursos orçamentários.

METODOLOGIA DE PESQUISA

A presente pesquisa contou com a coleta de dados de receitas e despesas dos estados em fontes distintas. Para uma primeira camada analítica, contemplando os 26 estados e o DF, fizemos o levantamento das informações por meio das bases de dados do Sistema de Informações Contábeis e Fiscais do Setor Público Brasileiro (Siconfi), do Ministério da Fazenda. Extraímos os dados de 2013 a 2020 (compilados em bases únicas em arquivos do programa Microsoft Excel com os respectivos ajustes de valores por meio do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplos [IPCA]), para janeiro de 2021.

Iniciamos com a realização de uma análise global das receitas orçamentárias, o que nos permitiu compreender o comportamento macroeconômico das unidades federativas considerando impostos como o ICMS e outras receitas transferidas pela União. Também coletamos os dados das despesas, neste caso as despesas por função, com foco no detalhamento da função segurança pública, isto é, suas subfunções, buscando entender os padrões e opções alocativas de cada estado brasileiro nessa política setorial. Para este caso, duas questões devem ser destacadas: 1) por questões de padronização do Siconfi, apenas quatro subfunções (administração geral; policiamento; defesa civil; e informação e inteligência) da segurança pública são identificadas, de modo que qualquer outra subfunção é agrupada na categoria “Demais subfunções”; 2) os dados não contemplam as despesas intraorçamentárias (despesas que ocorrem quando entes integrantes do orçamento efetuam aquisições de materiais, bens e serviços, pagam em impostos, taxas e contribuições etc., sendo o recebedor dos recursos também um ente integrante desse mesmo orçamento dessa mesma esfera de governo).

Após a coleta de dados a partir do Siconfi, que é nacional, prosseguimos com o levantamento das informações específicas, referentes às receitas e despesas dos estados focalizados neste estudo: CE, PA, RJ, RS e SP. Aqui, agrupamos e padronizamos os códigos orçamentários; adicionamos, também, um novo campo à base de dados já existente, que trouxe uma classificação detalhada da receita ao nos permitir visualizar os códigos dos seguintes impostos: ICMS, IPVA e ITCD. De igual sorte, foi possível visualizar os códigos da cota-parte do FPE e os códigos referentes às transferências, contribuições e quotas-parte das áreas de assistência social, educação e saúde, respectivamente.

Para o detalhamento das despesas, foi necessário acessarmos os portais de transparência dos estados selecionados. Extraímos os dados para o período de 2012 a 2020, em uma base única em arquivos do programa Microsoft Excel com os respectivos ajustes de valores por meio do IPCA, fazendo com que todos os montantes representem os valores de janeiro de 2021. Com o intuito de padronizar e resumir termos e classificações, possibilitando a comparação temporal entre as unidades da Federação selecionadas, procedemos com a criação de três novos campos na base: i) resumo de categoria econômica e grupo de natureza da despesa; ii) resumo de função e subfunção; iii) resumo de secretarias, órgãos e unidades orçamentárias.

A partir da compilação dessas informações, padronizamos a nomenclatura dos órgãos, secretarias e unidades orçamentárias, conforme o escopo e as atividades de cada um deles, com a seguinte classificação: “administração penitenciária”; “corpo de bombeiros e defesa civil”; “Detran/DER”; “polícia civil”; “polícia militar”; “polícia técnica forense”; “secretaria de segurança pública”; “outros órgãos em seg. púb. e/ou adm. pen.”.

RESULTADOS E ANÁLISE

A análise das receitas dos estados foco deste estudo, isto é, CE, PA, RJ, SP e RS, traz informações interessantes relativas ao comportamento tanto da sua arrecadação de impostos quanto das receitas de fundos específicos. É essencial destacar três pontos sobre as receitas desses cinco estados analisados: i) a importância do ICMS como fonte de receita; ii) a relevância do FPE, mas sua não garantia de equidade de receitas entre estados; iii) a importância dos fundos setoriais de educação e saúde, para os quais há regras de vinculação constitucionais.

A Figura 1, a seguir, apresenta uma comparação dessas receitas. Percebem-se comportamentos distintos entre os estados. Enquanto em SP e RS o ICMS corresponde a, respectivamente, 65,6% e 57,3% da receita arrecadada, CE, PA e RJ têm uma arrecadação de ICMS inferior a 45% das receitas totais. Já o FPE apresenta volume expressivo apenas nos estados do CE e PA, correspondendo a cerca de 20% das receitas. No RJ, a rubrica “outras receitas e transferências correntes’’ é responsável por 48,3% de toda a receita, categoria na qual estão contabilizados os royalties de petróleo.

Figura 1
Comparação dos principais itens das receitas correntes dos estados selecionados (2020)

Figura 2
Percentual das despesas empenhadas na função segurança pública em relação às receitas totais arrecadadas

Figura 3
Percentual das despesas empenhadas nas cinco maiores funções em relação ao total das despesas empenhadas em 2019

Figura 4
Composição das despesas com segurança pública em 2020, por subfunção

Os estados têm grande dependência de impostos indiretos, em especial o ICMS, imposto sobre consumo, com o acréscimo de que o FPE é bastante relevante para o CE e o PA. Com essa estrutura, boa parte de seus recursos de impostos é vinculada à saúde e à educação e, além dessa vinculação, ainda há outros recursos da União que são destinados a fundos específicos para essa área, como o Fundeb e os repasses do Ministério da Saúde para o SUS. Dessa maneira, temos que boa parte das receitas correntes dos estados é previamente destinada à educação e saúde. Mesmo assim, o espaço garantido para a segurança pública tem sido bastante relevante, como mostra o gráfico a seguir. O RJ é o estado que, ao longo do tempo, mais destina verbas de seu orçamento à área, o que reflete em grande medida a permanente crise que o estado vivencia na segurança pública. Chama a atenção ainda o crescimento expressivo das despesas que o CE destina à função segurança pública.

De modo geral, o gráfico permite perceber que há oscilação do peso dessas despesas ante as receitas ao longo do tempo, mas em cada estado há um patamar médio de gasto que varia de 5,5% no RS até cerca de 13% no RJ e CE. Esse patamar é bastante alto se considerarmos que, além das obrigações constitucionais com saúde e educação, os estados têm despesas obrigatórias e significativas com encargos da dívida, previdência e manutenção da máquina pública, por exemplo. Dessa forma, o gráfico a seguir elucida a importância das despesas de segurança pública nessas unidades federativas ao compará-las com as demais áreas prioritárias de gasto.

No CE e no PA, por exemplo, as áreas de educação, saúde e segurança pública têm quase o mesmo peso. No RJ, o peso da segurança pública é maior que o de saúde e educação. Em SP, o peso da segurança pública é pouco inferior à saúde. Apenas no RS essa despesa tem proporção menor, mas ainda assim bastante relevante.

Outra forma de estudar as despesas com segurança pública é entender quem são os responsáveis pela execução do gasto. Foi realizada uma análise preliminar da base de despesas estaduais para identificarmos os principais órgãos, em proporção de despesas empenhadas, secretarias e unidades orçamentárias vinculadas à função segurança pública. Adicionalmente, fizemos análise preliminar da estrutura organizacional (organograma) de cada estado, de modo a compreender quais eram os principais órgãos, secretarias e unidades orçamentárias vinculadas à função segurança pública.

Para as cinco unidades federativas analisadas, a maior parcela do gasto com a função segurança pública é realizada pelas estruturas organizacionais das polícias militares. No entanto, esses gastos são muito díspares entre os estados, variando de 34,9% do total das despesas com segurança pública no RS até 62,9% em SP. A mesma análise pode ser feita em relação ao montante destinado às polícias civis. Enquanto no PA 22,9% das despesas empenhadas foram destinadas à polícia judiciária, em SP esse percentual foi de apenas 13,8%.

Essa classificação por órgão evidencia as diferenças entre as estruturas organizacionais da segurança pública em cada estado analisado, bem como na estruturação das despesas. As diferenças de governança, conforme discutido anteriormente, refletem-se em diferenças orçamentárias, o que dificulta saber quanto se gasta e como se gasta em segurança pública em cada território. O que parece evidente, considerando a Tabela 1, é que, ainda que reconheçamos que a implementação da política de segurança pública e sua governança envolve diferentes atores públicos - civil, militar, técnico-científica, corpo de bombeiros, Detran, administração penitenciária e secretarias de segurança pública -, são as polícias militares que demonstram maior força e capacidade de governança do ponto de vista orçamentário.

Tabela 1
Proporção das despesas empenhadas com segurança pública, por órgão - 2020

Por um lado, pode-se argumentar que isso decorre do fato de que as polícias militares são, em média, três vezes maiores que as polícias civis considerando o tamanho do efetivo, o que naturalmente reservaria a elas a maior fatia do orçamento. No entanto, essa proeminência das polícias militares ocorre justamente por conta de sua forte influência junto ao mundo político, de modo que as soluções relacionadas a quais políticas devem ser priorizadas passam quase naturalmente pelo reforço do policiamento ostensivo. Em três dos cinco estados analisados (CE, RJ e SP), o valor reservado às polícias militares é superior a 50% de todo o orçamento.

O baixo valor direcionado à atividade de polícia judiciária na maioria dos estados é outro elemento que chama atenção. Em SP, por exemplo, apenas 13,8% do orçamento é direcionado à polícia civil, o que parece explicar o encolhimento da instituição em 50% na última década (FBSP, 2022). No PA, por outro lado, o orçamento da polícia investigativa chega a 22% do total das despesas, o que parece indicar certa prioridade dada ao órgão.

Outro elemento importante a ser destacado do ponto de vista da governança é a existência de secretaria de segurança pública estadual ou similar, que geralmente assume posição hierárquica em relação às polícias, ou seja, o modelo mais comum no Brasil é a existência de um secretário que funciona como chefe das duas polícias e atua como instância intermediária entre as polícias estaduais e o governador do estado. No RJ, no entanto, desde 2019 a secretaria foi extinta, de modo que os chefes das forças policiais possuem status de secretário, despachando direto com o governador. Esse modelo oferece ainda mais autonomia às forças policiais, visto que é o trabalho da secretaria de segurança pública que normalmente exige algum tipo de coordenação entre elas. Na ausência dessa instância, e considerando o modelo fragmentado do policiamento brasileiro, parece pouco provável que exista um trabalho coordenado entre os atores estaduais de segurança pública no dia a dia.

Os estados tomam decisões alocativas diferenciadas - e têm autonomia para tal - quando realizam a execução de suas despesas, optando pela utilização de variadas subfunções e órgãos. A implicação direta desse achado é que há limitações claras na realização de comparações de montante gasto com a função segurança pública, uma vez que gastos muito diversos entre os entes podem estar agregados nessa função. Além das diferentes instituições agregadas nessa função apresentadas anteriormente, o gráfico por subfunções a seguir também qualifica a variação das escolhas estaduais de gastos e opções alocativas dos estados.

Essa visão detalhada permite perceber como gastos com finalidades muito diversas são classificados na mesma grande área chamada segurança pública. Em 2020, por exemplo, o Estado do RJ classificou gastos com transporte aéreo e transporte rodoviário como gastos com segurança pública, o que não ocorreu em nenhum outro estado na série analisada. Os Estados do RJ, RS e SP realizam gastos com assistência hospitalar e ambulatorial (muito provavelmente das polícias, dado que possuem hospitais próprios) e entendem como despesa com segurança pública, enquanto no CE e PA não há registros de gastos nessa subárea.

Chama a atenção a utilização de duas subfunções, a de administração geral e a de policiamento. Embora apareçam em todos os estados analisados, o peso em cada uma é bastante diferente. Nos Estados do CE e RJ, por exemplo, a subfunção administração geral ocupa a quase totalidade do gasto em segurança pública, ao passo que em SP representa apenas 4%. O policiamento representa, por outro lado, 53% das despesas com segurança no RS e 38% das despesas em SP, ao passo que no CE, PA e RJ representa apenas 4%, 6% e 9%, respectivamente. Isso não significa que esses últimos entes quase não realizam gastos com policiamento, o que é muito improvável, mas sim que interpretam de modo diferente como deve ser realizada a classificação de tal gasto - entendimento que se mostra divergente no RS e SP, onde essas subfunções são mais expressivas.

Essas diferentes interpretações ocorrem uma vez que, embora a classificação funcional seja obrigatória para todos os entes, com categorias padronizadas, a legislação não define de maneira detalhada o que exatamente deve ser classificado em uma e outra subfunção e função, decisão que é tomada por quem realiza a gestão orçamentária no nível local. Essa constatação é importante para destacar que, mesmo havendo informações de bases consolidadas nacionalmente, com padronização mínima, o exercício de comparação não é trivial, pois a compreensão sobre a classificação do gasto não é uniforme para todos os entes, ou seja, todos esses aspectos, principalmente os dados e informações da Tabela 1 e do Gráfico 4, corroboram a discussão acerca de como as diferentes governanças, com multiplicidade de atores, implicam políticas públicas distintas, que, por sua vez, utilizam diferentes estratégias orçamentárias e, assim, trazem dificuldades na análise e comparação entre os entes da Federação. Nesse aspecto, ressaltamos que o Estado ainda se mantém como estrutura-chave na governança dos atores da área de segurança, mas fica nítido como os diferentes atores estatais se relacionam na disputa por recursos orçamentários, conforme podemos observar pelo empenho de despesas pelos órgãos da Tabela 1, e na oferta de políticas públicas de segurança pública, conforme podemos observar na diferença de classificação orçamentária funcional do Gráfico 4.

CONSIDERAÇÕES E RECOMENDAÇÕES DE POLÍTICAS PÚBLICAS

A análise do orçamento público é fundamental para a compreensão das decisões alocativas dos governos. A implementação das políticas públicas e da própria política depende de decisões tributárias e orçamentárias, e este artigo buscou demonstrar que a segurança pública é uma função política prioritária nos estados brasileiros, com um gasto que supera R$ 100 bilhões, conforme dados do último Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2022), sendo que os estados financiam 80% do total gasto nessa esfera.

No entanto, esse gasto é muito distinto entre as unidades da Federação. Em primeiro lugar, a potencialidade econômica refletida no nível de arrecadação e tipos de tributos é muito divergente entre nossas regiões, o que revela a desigualdade territorial. Além disso, a forma de organização do gasto também é muito diferente entre os estados e entre um mesmo estado ao longo do tempo.

Assim, com base em um estudo amostral de cinco unidades da Federação (SP, RJ, PA, CE e RS), analisamos as despesas com segurança pública de maneira detalhada, com cruzamentos de diferentes classificações orçamentárias. Como resultado, percebemos que desde a organização institucional da segurança pública, que implica, entre outras coisas, um arranjo de comando sobre as polícias militar e civil, até a estruturação da despesa de custeio há enormes distinções na forma de gastar entre os estados. As diferenças de governança apontadas em Costa (2015Costa, A. T. M. (2015). Estado, governança e segurança pública no Brasil: Uma análise das secretarias estaduais de Segurança Pública. Dilemas - Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, 8(4), 607-632. https://www.redalyc.org/pdf/5638/563865503001.pdf
https://www.redalyc.org/pdf/5638/5638655...
, 2023Costa, A. T. M. (2023). Das políticas de segurança pública às políticas públicas de segurança. In: A. T. M. Costa (Org.), Segurança pública, redes e governança (pp. 22-28). Editora Universidade de Brasília.), e também discutidas a partir dos modelos teóricos, refletem-se em diferenças orçamentárias, o que nos dificulta saber quanto se gasta e como se gasta em segurança nessas unidades federativas, tornando complicada a comparação dos gastos, bem como avaliar sua eficiência ou efetividade.

Essa análise só foi possível, contudo, a partir de um detalhamento das bases de despesas da amostra de cinco estados. Os bancos de dados nacionais não permitem essa compreensão específica, apesar de facilitarem a consolidação global das despesas. Dessa maneira, acreditamos que, para melhor compreensão do que se passa em todo o território nacional em termos de despesas com segurança pública, é fundamental a consolidação de dados mais detalhados.

Sem isso, a dificuldade não se dá somente em coordenar a ação dos entes subnacionais na execução da sua política de segurança pública, mas até mesmo em um nível informacional de produção e publicação de dados orçamentários. Enquanto vimos avançar a padronização de relato e consistência dos dados consolidados de receitas dos entes subnacionais, nota-se que ainda é frágil o controle sobre as despesas. Assim, (re)formular estratégias de indução da padronização contábil entre os entes é a possibilidade que se mostra relevante e necessária se quisermos realizar comparações que nos permitam conhecer com propriedade os gastos realizados pelos diferentes estados e avaliá-los quanto a seus resultados.

NOTA

Agradecimento ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Instituto Lafer pelo apoio e financiamento da pesquisa.

  • Avaliado pelo sistema double-anonymized peer review.
  • O relatório de revisão por pares está disponível neste link.

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Editado por

Editor responsável: Fernando de Souza Coelho

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    07 Out 2022
  • Aceito
    20 Out 2023
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