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A epistemologia do obstáculo docente no uso da Tecnologia Digital da Informação e Comunicação

The epistemology of teaching obstacle in the use of digital information and communication technology

Resumo

A educação tem desafios que sobrevêm das transformações tecnológicas na sociedade que demandam dos professores a reavaliação acerca da inserção das Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação (TDIC) no processo de ensino e aprendizagem. O objetivo deste estudo é investigar a superação dos obstáculos epistemológicos e didáticos na inserção das TDIC na prática docente. A pesquisa adota a abordagem qualitativa de estudo de caso com professores da Educação Básica. Os instrumentos empregados foram questionário e entrevista, e a análise dos dados está alicerçada nos fundamentos teóricos propostos por Gaston Bachelard. Os resultados indicam que os professores enfrentam obstáculos estruturais, epistemológicos e didáticos diariamente. O conhecimento epistemológico em TDIC, construído a partir do senso comum, sem crítica e reflexão, é propulsor de novos obstáculos epistemológicos e didáticos. Os professores reconhecem a importância da formação continuada no processo de superação, mas relatam a descontinuidade e a limitação de conhecimentos desenvolvidos nesses momentos pedagógicos.

Palavras-chave
Educação básica; Prática docente; Formação continuada do professor; Tecnologia digital da informação e comunicação; Tecnologia e educação

Abstract

Education has challenges that arise from technological transformations in society and require teachers to reassess the insertion of digital information and communication technologies (DICT) in the teaching-learning process. The objective of this study is to investigate the overcoming of epistemological and didactic obstacles to the insertion of DICT into teaching practice. We have adopted a qualitative case study approach with basic education teachers. Questionnaires and interviews were used, and data analysis was based on the theoretical foundations proposed by Gaston Bachelard. Results indicate that teachers face structural, epistemological, and didactic obstacles daily. New epistemological and didactic obstacles can boost epistemological knowledge in DICT, built on conventional wisdom without criticism or reflection. Teachers recognize that knowledge is limited at these instructional moments, but they also recognize the importance of continuous training to overcome them.

Keywords
Basic education; Teaching practice; Continuing teacher education; Information and communication technology; Technology and education

Introdução

Diante das mudanças recentes na educação, é imperativo reavaliar o processo de ensino e aprendizagem nas escolas. A revolução impulsionada pela Tecnologia Digital da Informação e Comunicação (TDIC) permeia a sociedade e adentra o ambiente escolar, formando-se a partir das reciprocidades criativas dos sujeitos com as tecnologias, com a sociedade e a cultura.

A crença inicial de que a tecnologia poderia ter impacto positivo no aprendizado dos alunos levou a um movimento, por meio de políticas públicas, de aceleração para a inclusão de equipamentos, internet, ambientes escolares apropriados para as práticas de inclusão digital, enfim, recursos de hardware e software que viessem a promover o cumprimento de narrativas sobre a integração da escola ao universo tecnológico, vivido hoje pela sociedade em termos globais. No entanto, as TDIC na educação escolar ainda constituem um “[...] fenômeno complexo, envolvendo desde a compreensão dos professores, motivações, percepções e crenças sobre o aprendizado e a própria tecnologia” (Schuhmacher, 2014SCHUHMACHER, V. R. N. Limitações da prática docente no uso das tecnologias da informação e comunicação. 2014. Tese (Doutorado em Educação Científica e Tecnológica) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2014., p. 31).

Em 2020, a utilização das ferramentas tecnológicas em salas remotas ocorreu pautada em uma política de enfrentamento estabelecido pela pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2, ano em que todos os professores passaram a usar recursos das TDIC, de uma maneira ou de outra, para suprir o espaço da sala de aula junto a seus alunos. Alguns professores, pela primeira vez em sua prática, trocaram o espaço conhecido da sala de aula, com carteiras, quadro e diálogo presencial com seus alunos por um espaço pouco conhecido, soluções tecnológicas propostas pelo Estado, cursos de formação acerca do processo de aulas remotas em ferramentas específicas, criação de videoaulas e atividades em aplicativos.

Embora pesquisas em educação indiquem que as TDIC oferecem recursos que podem facilitar a interação entre os indivíduos, as informações e o conhecimento, apoiando o ensino e o aprendizado, seu uso em sala de aula é frequentemente prejudicado por obstáculos que levam o professor a situações de angústia e até rejeição ao seu uso.

Passados três anos, a vida escolar que conhecíamos não é mais a mesma, o cenário global mudou drasticamente a vida de todos, exigindo mudanças, e nas instituições de ensino não foi diferente.

Após a superação da severa pandemia e com o retorno das aulas presenciais, o cenário TDIC na Educação, que inicialmente foi apoiado pelas políticas públicas, tendo em seu arcabouço um histórico de duas décadas de trabalho com tecnologias e contando com o apoio que a opinião pública que confere às ações de inclusão das TDIC na escola, sua confiança como um elemento que qualifica a prática docente com ares de inovação, surge a reflexão estabelecida nas questões orientadoras da pesquisa: as dificuldades no uso das TDIC na prática didática pedagógica do professor foram superadas?

É importante considerar que os obstáculos epistemológicos que levam o professor a situações de angústia e até rejeição no uso das TDIC em sua prática não são inerentes a sua prática, mas construções que ocorreram durante os processos de ensino e aprendizagem ao longo de sua formação e prática.

Neste manuscrito, relatam-se resultados de uma pesquisa que teve como objetivo analisar as possibilidades de superação dos obstáculos epistemológicos, didáticos e estruturais no uso das TDIC na prática docente. Os professores envolvidos na pesquisa são da Escola de Educação Básica São Ludgero, pertencente à rede pública de ensino do Estado de Santa Catarina.

Frequentemente, pesquisas científicas relatam a limitada capacidade dos professores para integrar tecnologias digitais em seu ensino de uma maneira que ultrapasse o uso ocasional de ferramentas digitais, uma postura às vezes ansiosa e/ou resistente em relação à integração tecnológica (Schuhmacher; Alves Filho; Schuhmacher, 2017SCHUHMACHER, V. R. N.; ALVES FILHO, J. P.; SCHUHMACHER, E. As barreiras da prática docente no uso das tecnologias da informação e comunicação. Ciência e Educação, Bauru, v. 23, n. 3, p. 563-576, 2017. DOI: https://doi.org/10.1590/1516-731320170030002.
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; Skantz-Åberg et al., 2022SKANTZ-ÅBERG, E.; LANTZ-ANDERSSON, A.; LUNDIN, M.; WILLIAMS, P. Teachers’ professional digital competence: an overview of conceptualisations in the literature. Cogent Education, UK, v. 9, n. 1, p. 1-23, 2022. DOI: https://doi.org/10.1080/2331186X.2022.2063224.
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). No entanto, em um mundo de constantes mudanças, é necessário que o professor esteja preparado para novas reflexões e questionamentos, desconstruindo conhecimentos mal formulados, possibilitando a superação dos obstáculos e abrindo caminho para a construção e reconstrução de novos conhecimentos.

O professor e as Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação

Desde os tempos mais antigos, a educação tem sido um componente essencial da vida humana, seja na transmissão de habilidades de sobrevivência ou na partilha de conhecimentos de uma geração para a próxima. No século XX, a profissão docente ganhou destaque e estrutura, estabelecendo um caminho para a escolarização e a disseminação do conhecimento (Nóvoa, 1992NÓVOA, A. Formação de professores e profissão docente. Lisboa: Dom Quixote, 1992.).

Hoje, a identidade de um educador é formada por uma variedade de fatores, incluindo sua cultura, formação acadêmica, carreira, estilo de vida, experiência profissional, conhecimento teórico e epistemológico, entre outros. Tardif (2014TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. 17. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014., p. 11) enfatiza que “[...] o conhecimento dos professores está intrinsecamente ligado à sua identidade pessoal e profissional, suas experiências de vida, suas interações com os alunos na sala de aula e com outros atores na escola”.

Esse conhecimento se constrói ao longo da vida, em uma profissão que implica “[...] um reforço das dimensões coletivas e colaborativas, do trabalho em equipe, da intervenção conjunta nos projetos educativos da escola” (Nóvoa, 2009NÓVOA, A. Professores: imagens do futuro presente. Lisboa: Educa, 2009., p. 31).

Com a introdução das TDIC, os professores, que já possuem suas competências, são incentivados a buscar novas metodologias para ensinar e, consequentemente, também aprender. Nesse sentido, Skantz-Åberg et al. (2022)SKANTZ-ÅBERG, E.; LANTZ-ANDERSSON, A.; LUNDIN, M.; WILLIAMS, P. Teachers’ professional digital competence: an overview of conceptualisations in the literature. Cogent Education, UK, v. 9, n. 1, p. 1-23, 2022. DOI: https://doi.org/10.1080/2331186X.2022.2063224.
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destacam o conceito de competência digital e profissional docente, que envolve a capacidade do professor de refletir e utilizar tecnologias na pedagogia para a aprendizagem dos estudantes; ou seja, “[...] a ideia pedagógica de usar a tecnologia digital para aprender” (Johannesen; Øgrim; Giæver, 2014JOHANNESEN, M.; ØGRIM, L.; GIÆVER, T. H. Notion in motion: teachers' digital competence. Nordic Journal of Digital Literacy, Oslo, v. 9, n. 4, p. 300-3012, 2014. DOI: https://doi.org/10.18261/ISSN1891-943X-2014-04-05.
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, p. 309, tradução nossa).

Assim, a competência digital profissional do professor é a mobilização de conhecimentos em TDIC (elementares) aliada à mobilização de conhecimentos pedagógicos, com o uso da tecnologia digital, aplicadas ao conteúdo disciplinar didático.

Outro aspecto a destacar é a importância da mobilização de conhecimentos em TDIC na formação inicial, sua legitimação na prática do futuro docente é fundamental, pois entende-se que professores capacitados e habilitados no uso da TDIC buscarão formas de aprimorar suas práticas educativas, refletindo sobre o papel destas, em constante formação para o exercício da profissão (Pereira; Pinheiro, 2020PEREIRA, B. D.; PINHEIRO, P. C. Desenvolvimento de prática formativa para o letramento digital crítico e investigação de seus efeitos em um grupo de licenciandos em química. Ciência & Educação, Bauru, v. 26, e20031, 2020. DOI: https://doi.org/10.1590/1516-731320200031.
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; Riedner; Pischetola, 2016RIEDNER, D. D. T.; PISCHETOLA, M. Tecnologias digitais no ensino superior: uma possibilidade de inovação das práticas? EFT: educação, formação & tecnologias, Caparica, Portugal, v. 9, n. 2, p. 37-55, 2016.; Schuhmacher, 2014SCHUHMACHER, V. R. N. Limitações da prática docente no uso das tecnologias da informação e comunicação. 2014. Tese (Doutorado em Educação Científica e Tecnológica) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2014.).

Ao perceber o avanço da TDIC nas diferentes esferas da sociedade e sua incursão na Educação, ressalta-se a importância da ressignificação de seu uso no espaço escolar pois “[...] o progresso científico e tecnológico que não responde fundamentalmente aos interesses humanos, às necessidades de nossa existência, perde seu significado” (Freire, 1996FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996., p. 82).

O obstáculo epistemológico de Bachelard

Bachelard (1996)BACHELARD, G. A formação do espírito científico. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. propõe uma nova abordagem para as pesquisas, identificando obstáculos epistemológicos que impedem a construção do conhecimento. Segundo Bachelard (1996BACHELARD, G. A formação do espírito científico. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996., p. 19), “[...] um obstáculo epistemológico se incrusta no conhecimento não questionado. Hábitos intelectuais que foram úteis e sadios podem, com o tempo, entravar a pesquisa”. Esses obstáculos precisam ser superados para que o pensamento científico seja alcançado, e sugere que o conhecimento da realidade sempre lança algumas sombras, indicando que nem tudo está explicitamente claro e que sempre há mais a ser descoberto.

O autor destaca o desafio de desconstruir conceitos tradicionais e primitivos, e enfatizar sua aplicabilidade em seus próprios termos. Assim, quando o educador retorna à experiência, ele está mais bem preparado para fazer as distinções necessárias no fenômeno. Se o concreto não for abstraído, o conhecimento será esvaziado. Todo conhecimento surge de estudo, questionamentos, processos de pesquisa e verificação. O obstáculo epistemológico, conforme Bachelard (1996)BACHELARD, G. A formação do espírito científico. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996., é um conhecimento mal adaptado, um saber que não foi questionado, sem reflexões, baseado em opiniões. O espírito acaba por gostar mais daquilo que confirma o seu saber, “[...] não é, pois, de admirar que o primeiro conhecimento objetivo seja um primeiro erro” (Bachelard, 1996BACHELARD, G. A formação do espírito científico. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996., p. 68). Refutar e superar essas ideias estabelecidas, com questionamentos plausíveis, é evoluir para o conhecimento científico.

Entende-se que a experiência primeira no uso das TDIC na escola, pelo professor que se orienta pelo senso comum, sem questionamento, crítica ou reflexão, ocorre no espaço ideal para a edificação do obstáculo epistemológico. O senso comum é o primeiro obstáculo a ser superado. Bachelard (1996)BACHELARD, G. A formação do espírito científico. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. argumenta ser necessário romper com essa forma de conhecimento e investigar os fatos sob métodos científicos e à luz da razão. A noção do obstáculo epistemológico permite tratar do caráter insistente e, por vezes, generalizado de certas resistências ao conhecimento científico. “O obstáculo epistemológico pode ser definido como qualquer conceito ou método que impede a ruptura epistemológica” (Schuhmacher, 2014SCHUHMACHER, V. R. N. Limitações da prática docente no uso das tecnologias da informação e comunicação. 2014. Tese (Doutorado em Educação Científica e Tecnológica) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2014., p. 101).

O obstáculo didático de origem epistemológica opera como uma barreira que trava o fazer pedagógico do professor no processo de ensino e aprendizagem. Para Schuhmacher, Alves Filho e Schuhmacher (2017SCHUHMACHER, V. R. N.; ALVES FILHO, J. P.; SCHUHMACHER, E. As barreiras da prática docente no uso das tecnologias da informação e comunicação. Ciência e Educação, Bauru, v. 23, n. 3, p. 563-576, 2017. DOI: https://doi.org/10.1590/1516-731320170030002.
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, p. 566) “[...] o obstáculo didático acontece quando o professor não consegue conduzir uma situação de ensino coerente de forma a contribuir para a aprendizagem do aluno”. Os obstáculos didáticos de origem epistemológica são identificados por Brousseau (1976)BROUSSEAU, G. P. Les obstacles épistémologiques et les problèmes en mathématiques. In: VANHAMME, J.; VANHAMME, W. (ed.). La problématique et l'enseignement de la mathématique: comptes rendus de la XXVIIIe rencontre. Louvain la Neuve: Commission Internationale pour l'Etude et l'Amélioration de l'Enseignement des Mathématiques, 1976. p. 101-117. como aqueles que não podem e nem devem escapar ao próprio fato de seu papel constitutivo do conhecimento. Os obstáculos didáticos são conhecimentos que se encontram relativamente estabilizados no plano intelectual e que podem dificultar a evolução da aprendizagem do saber escolar (Brousseau, 2008BROUSSEAU, G. P. Introdução ao estudo da teoria das situações didáticas: conteúdos e métodos de ensino. São Paulo: Ática, 2008.; Pais, 2002PAIS, L. C. Didática da matemática: uma análise da influência francesa. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.).

Ao enfrentar o obstáculo estrutural durante uma estratégia didática de inclusão das TDIC, o professor, em muitas situações, gesta o obstáculo didático. Não ser possível conduzir o planejamento realizado, por questões técnicas, relacionadas ao mau funcionamento, insuficiência do recurso utilizado (computadores), instabilidades (internet) e inexistência de apoio pedagógico são exemplos de obstáculos estruturais que trazem ao professor o desencanto com o uso das TDIC em sua proposta didática (Schuhmacher; Alves Filho; Schuhmacher, 2017SCHUHMACHER, V. R. N.; ALVES FILHO, J. P.; SCHUHMACHER, E. As barreiras da prática docente no uso das tecnologias da informação e comunicação. Ciência e Educação, Bauru, v. 23, n. 3, p. 563-576, 2017. DOI: https://doi.org/10.1590/1516-731320170030002.
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).

Os obstáculos epistemológicos na prática docente subjugam o professor, que acuado por não ter a construção correta desse conhecimento, não consegue levar a termo sua estratégia didática, seu planejamento, pondera sua falha na aprendizagem do aluno e passa a enfrentar o obstáculo didático, em que retoma sua antiga estratégia, e excluir o recurso das tecnologias digitais passa a ser sua escolha.

A superação do obstáculo epistemológico e epistemológico didático também é um processo de abandono do conhecimento simples, pessoal e do senso comum para o patamar do conhecimento científico. Para tanto, é imperativo que o educador reconstrua seu próprio saber. A superação dos obstáculos exige o uso de atos epistemológicos, isto significa, rupturas com os conhecimentos existentes seguidos por reestruturação (Bachelard, 1996BACHELARD, G. A formação do espírito científico. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.).

O planejamento da pesquisa

A pesquisa aqui relatada teve como objetivo gerar um conhecimento que vai além das aparências superficiais, focando nos obstáculos e na idealização de respostas para problemas ainda não percebidos. Os resultados descritos são fundamentados nas concepções da pesquisa qualitativa, que “[...] envolve a coleta de dados descritivos, obtidos através do contato direto do pesquisador com a situação estudada, enfatizando mais o processo do que o produto e se preocupando em retratar a perspectiva dos participantes” (Lüdke; André, 2018LÜDKE, M.; ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. 2. ed. São Paulo: E.P.U., 2018., p. 14). O estudo de caso, por sua vez delimita o volume dos dados pesquisados observando a singularidade: “[...] é o estudo de um caso sempre bem delimitado, devendo ter seus contornos claramente definidos no desenrolar do estudo” (Lüdke; André, 2018LÜDKE, M.; ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. 2. ed. São Paulo: E.P.U., 2018., p. 20). A pesquisa é classificada como um estudo de caso, pois envolve uma pesquisa aprofundada sobre a inserção da TDIC na prática docente de professores da Escola de Educação Básica São Ludgero.

A pesquisa permitiu explorar o problema usando técnicas que visam à objetividade e à precisão, reunindo ideias e soluções potenciais para perguntas e problemas sobre a inserção da TDIC na prática docente. Como afirmam Lüdke e André (2018LÜDKE, M.; ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. 2. ed. São Paulo: E.P.U., 2018., p. 2), "[...] esses conhecimentos são, portanto, o resultado da curiosidade, da inquietação, da inteligência e da atividade investigativa dos indivíduos, a partir e em continuação do que já foi elaborado e sistematizado pelos que trabalharam no assunto anteriormente".

A Escola de Educação Básica São Ludgero conta com 73 professores, atendendo o Ensino Fundamental Anos Iniciais, Ensino Fundamental Anos Finais e Ensino Médio na cidade de São Ludgero, no estado de Santa Catarina. A seleção dos participantes foi fortemente influenciada pela relação entre os professores e a pesquisadora, bem como pelo interesse e disposição em contribuir para a melhoria do ensino por meio do uso da TDIC.

Instrumentos da Pesquisa

No processo de coleta de dados primários foram utilizados dois instrumentos, o questionário e a entrevista.

O questionário, realizado por meio do Google Forms, conforme sugerido por Silva e Menezes (2005)SILVA, E. L.; MENEZES, E. M. Metodologia da pesquisa e elaboração de dissertação. 4. ed. Florianópolis: UFSC, 2005., teve uma série de perguntas, abertas e fechadas, ordenadas a serem respondidas. A construção da matriz questionário foi conduzida por três seções: perfil do professor, conhecimento em TDIC e o uso da TDIC na prática docente.

O quadro 1 apresenta a matriz de construção do questionário para os professores da Educação Básica, mostrando as seções, objetivos e número de questões.

Quadro 1
Matriz questionário - professores da Educação Básica

O questionário passou por um processo de validação para garantir não apenas a compreensão, mas também a correção gramatical, concisão e clareza das perguntas propostas, conforme indicado por Pasquali (2004)PASQUALI, L. Psicometria: teoria dos testes na psicologia e na educação. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.. A validação foi realizada com dois professores da escola e a pesquisadora, que não participariam da coleta de dados. Sugestões e críticas consideradas relevantes foram incorporadas. A coleta de dados foi realizada por envio de e-mail para os professores da escola.

O segundo instrumento empregado foi a entrevista não estruturada, conduzida remotamente via ambiente de comunicação remota Zoom. A entrevista é um instrumento eficaz e flexível, pois permite ao entrevistador dialogar com o entrevistado, coletar informações precisas e fazer as adaptações e ajustes necessários (Lüdke; André, 2018LÜDKE, M.; ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. 2. ed. São Paulo: E.P.U., 2018.). O tempo médio de cada entrevista foi de 30 a 40 minutos. Foram realizadas sete entrevistas, considerando os docentes que se indicaram disponíveis no preenchimento do questionário. O instrumento foi desenvolvido com base nas respostas fornecidas no questionário, composto por questões destinadas a complementar lacunas que se entenderam necessárias. O quadro 2 apresenta a matriz de construção da entrevista em três seções.

Quadro 2
Matriz entrevista: professores da Educação Básica

Para examinar os dados, foi proposta a análise de conteúdo, definida por Bardin (2016, p. 48)BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2016. como

[...] um conjunto de técnicas para analisar comunicações que visam obter, por meio de procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relacionados às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) dessas mensagens.

Assim, foram consideradas as seguintes categorias:

  • - obstáculo epistemológico: tudo que impede a construção do conhecimento, sem críticas ou reflexões (Bachelard, 1996BACHELARD, G. A formação do espírito científico. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.);

  • - obstáculo didático: barreira que impede a prática pedagógica do professor e, portanto, dificulta a condução de uma situação de ensino (Brousseau, 2008BROUSSEAU, G. P. Introdução ao estudo da teoria das situações didáticas: conteúdos e métodos de ensino. São Paulo: Ática, 2008.);

  • - obstáculo estrutural: composto por questões de infraestrutura física, gestão, software e equipes de apoio pedagógico e técnico para manutenção de recursos de software e hardware (Schuhmacher, 2014SCHUHMACHER, V. R. N. Limitações da prática docente no uso das tecnologias da informação e comunicação. 2014. Tese (Doutorado em Educação Científica e Tecnológica) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2014.);

  • - motivação dos professores: quando o profissional percebe a importância/significado do uso das TDIC em sua prática pedagógica para a aprendizagem do aluno;

  • - conhecimento em TDIC: conhecimentos e fragilidades que o professor tem no uso de TDIC em sua estratégia didática; e

  • - formação continuada: sobre conhecimentos elementares e pedagógicos de TDIC e sua inserção na prática docente.

Na próxima seção são tratadas as discussões dos resultados a partir da análise dos dados.

Discussão

Ao finalizar a coleta de dados com o Questionário Docente, verificada a completude dos formulários e aceite do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, o percentual alcançado foi de 52% dos professores da escola, sendo uma representação significativa do perfil docente. O questionário revelou que 49% estão com menos de 40 anos; 26,8% dos participantes têm entre 40 e 45 anos; e 24%, mais de 45 anos. Todos os respondentes possuem licenciatura e, além disso, 70,7% concluíram cursos de pós-graduação lato sensu após a obtenção de sua licenciatura, e 4,8% concluíram cursos stricto sensu. Esses dados permeiam o propósito docente, “[...] como sujeitos competentes que detêm saberes específicos ao seu trabalho” (Tardif, 2014TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. 17. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014., p. 230).

Questionados sobre o nível de ensino e as séries em que atuam, 30 professores ensinam no Ensino Médio e 22 no Ensino Fundamental, Séries Finais, especificamente nas turmas de 8º e 9º anos. São 20 professores atuantes em turmas de 6º e 7º anos e 5 professores nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental.

Em seguida, buscou-se identificar como os professores construíram seu conhecimento em TDIC. Observa-se, aqui, a importância da troca de experiências, apontada por 58,5% dos professores; 56,1% deles atribuíram ser a formação continuada sua fonte de construção de conhecimentos; 41,5% consideram-se autodidatas. Para este último caso, entendem-se as oportunidades oferecidas pela internet e seus mecanismos de busca na web. A figura 1 apresenta a representação desses dados.

Figura 1
Construção do conhecimento

Ao serem questionados sobre a participação em cursos de formação continuada que abordam a TDIC na prática docente, 65,9% dos entrevistados afirmaram ter participado. De maneira geral, os cursos de formação continuada têm por objeto contribuir de forma significativa na construção do conhecimento profissional docente, em um propósito importante de desenvolver a reflexão acerca de suas práticas de forma a elevá-la a uma consciência coletiva.

O ciclo do desenvolvimento profissional completa-se com a formação continuada. Face à dimensão dos problemas e aos desafios atuais da educação precisamos, mais do que nunca, reforçar as dimensões coletivas do professorado. [...] Esta nova construção pedagógica precisa de professores empenhados num trabalho em equipa e numa reflexão conjunta. É aqui que entra a formação continuada, um dos espaços mais importantes para promover esta realidade partilhada (Nóvoa, 2019NÓVOA, A. Os professores e a sua formação num tempo de metamorfose da escola. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 44, n. 3, p. 1-15, 2019. DOI: https://doi.org/10.1590/2175-623684910.
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, p. 10).

Àqueles que afirmaram positivamente sua participação em cursos de formação continuada, foi solicitada uma valoração, por meio de nota, acerca da pertinência do curso no apoio à inclusão de TDIC em sua prática, em uma escala de 1 a 5, em que 1 é Muito ruim; 2 é Ruim; 3 é Regular; 4 é Bom; e 5 é Ótimo. Nessa questão, 28 professores indicaram sua percepção (figura 2).

Figura 2
Valoração dos cursos de formação continuada

O apontamento feito pelo grupo de professores indica que, para 7,1% desses participantes da pesquisa, os cursos de formação continuada pouco contribuíram para a construção de conhecimentos pertinentes na inclusão de TDIC em sua prática; 10,7% consideraram ter(em) sido ótima(s) a(s) formação(ões). Observa-se que 53,6% dos professores consideraram a formação continuada regular.

Entendendo a importância dos cursos de formação e a percepção dos professores sobre os referidos cursos, solicitou-se que informassem suas expectativas docentes ao se inscreverem em curso de formação continuada. Na transcrição, os professores destacam a necessidade de aprimorar o conteúdo, a profundidade e a consistência dos cursos.

É crucial que os cursos de formação em tecnologia digital atendam às demandas contemporâneas, como o uso de aplicativos/programas que ampliem o potencial de significado e comunicação nas diversas formas de linguagem [Professor 15].

Cursos mais frequentes [Professor 8].

Compreende-se que a formação específica dos professores requer uma abordagem de cursos mais abrangente e consistente em diversas áreas de conhecimento que pertencem a Educação Básica. Nóvoa (2009NÓVOA, A. Professores: imagens do futuro presente. Lisboa: Educa, 2009., p. 35) registra que a necessidade de mudança deve ser constante, e que “a inovação é um elemento central do próprio processo de formação”. Nesse sentido, cursos genéricos, em que não trabalhadas as especificidades de cada área disciplinar, geralmente não são interessantes, pois exemplos de uma área específica normalmente não são adaptáveis para todas as áreas.

Nesse ponto da discussão, adentramos o uso de TDIC na prática docente, na inserção de TDIC em sala de aula. Os professores afirmam, em sua maioria, que são raras as vezes que usam os recursos de TDIC na organização das aulas. Em relação aos aplicativos e programas que empregam, foram mencionados diversos, como o Diário on-line, o processador de texto Word, o editor de apresentações PowerPoint ou o Canva para educação, além do uso de gravadores de vídeo e áudio. Alguns professores também incorporam o Excel e ferramentas de desenho, como Paint brush ou Coreldraw, enquanto poucos mencionaram o uso da Lousa Digital.

Sobre a utilização de ambientes de aprendizagem em contextos de ensino-aprendizagem usados na mediação didática, 42,5% dos respondentes afirmaram que os utilizam, 40% informaram que os usam esporadicamente, e 2,4% que não os utilizam. Entende-se que, o uso da TDIC na prática docente, envolve o aluno e propicia o desenvolvimento de habilidades necessárias a sua formação e sua inserção na cultura digital.

Os novos processos de interação e comunicação no ensino mediado pelas tecnologias visam ir além da relação entre ensinar e aprender. Orientam-se para a formação de um novo homem, autônomo, crítico, consciente da sua responsabilidade individual e social, enfim, um novo cidadão para uma nova sociedade (Kenski, 2003KENSKI, V. M. Tecnologias e ensino presencial e a distância. São Paulo: Papirus, 2003., p. 139).

Em relação aos aplicativos digitais empregados na prática pedagógica, o Quiz, que permite a criação de questões teóricas, é usado na avaliação do conhecimento do aluno, é o mais utilizado (42,8%), seguido pela ferramenta de localização Google Earth. Ao retomar o questionamento acerca da percepção docente sobre o uso de TDIC em sua prática docente, concordamos com Franco (2016)FRANCO, M. A. R. S. Prática pedagógica e docência: um olhar a partir da epistemologia do conceito. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 97, n. 247, p. 534-551, 2016. DOI: https://doi.org/10.1590/S2176-6681/288236353.
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, que afirma:

A prática docente configura-se como prática pedagógica quando está se insere na intencionalidade prevista para sua ação. Assim, um professor que sabe qual é o sentido de sua aula em face da formação do aluno, que sabe como sua aula integra e expande a formação desse aluno, que tem a consciência do significado de sua ação, tem uma atuação pedagógica diferenciada: ele dialoga com a necessidade do aluno, insiste em sua aprendizagem, acompanha seu interesse, faz questão de produzir o aprendizado, acredita que este será importante para o aluno. (FRANCO, 2016FRANCO, M. A. R. S. Prática pedagógica e docência: um olhar a partir da epistemologia do conceito. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 97, n. 247, p. 534-551, 2016. DOI: https://doi.org/10.1590/S2176-6681/288236353.
https://doi.org/10.1590/S2176-6681/28823...
, p. 541).

Em questão aberta, o professor 15 detalhou sua percepção sobre as potencialidades da TDIC no apoio ao processo de ensino-aprendizagem:

O uso das tecnologias digitais aproxima os estudantes dos conceitos que devem ser abordados em cada componente curricular. Essa interação ocorre de forma mais significativa, pois a tecnologia é parte da realidade dos jovens. Portanto, a tecnologia não está desvinculada da prática pedagógica, mas é parte integrante do processo de construção do conhecimento [Professor 15].

Essa visão é corroborada por Schuhmacher (2014)SCHUHMACHER, V. R. N. Limitações da prática docente no uso das tecnologias da informação e comunicação. 2014. Tese (Doutorado em Educação Científica e Tecnológica) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2014., que destaca que o professor conhece e reconhece as potencialidades das TDIC em sua prática docente, e acredita que seu uso apoia o processo de ensino-aprendizagem, organiza e torna visível temas abstratos, motiva o aprendizado, entre outras possibilidades. Contudo, o conhecimento expressa apenas um senso comum, e não é a realidade posta em sala de aula. Frequentemente, a compreensão sobre as TDIC não é originada de um conhecimento adquirido em contextos de ensino-aprendizagem, mas de experiências cotidianas fora da sala de aula. Nota-se que o senso comum influencia a atitude em relação à implementação das TDIC na prática docente.

A insegurança surge como resultado de um conhecimento mal construído ou não construído, tornando cada vez mais desafiador o seu uso em atividades pedagógicas habituais. Segundo Schuhmacher, Alves Filho e Schuhmacher (2017SCHUHMACHER, V. R. N.; ALVES FILHO, J. P.; SCHUHMACHER, E. As barreiras da prática docente no uso das tecnologias da informação e comunicação. Ciência e Educação, Bauru, v. 23, n. 3, p. 563-576, 2017. DOI: https://doi.org/10.1590/1516-731320170030002.
https://doi.org/10.1590/1516-73132017003...
, p. 566), o obstáculo epistemológico na educação “[...] se estabelece em um conhecimento não discutido, que se consolida e passa a obstruir o conhecimento pedagógico”.

Ao serem indagados sobre o uso da internet, 42,2% dos professores mencionaram a instabilidade da conexão como um problema recorrente, pois a falta de conexão interrompe a dinâmica do professor e exige mudança de estratégia de ensino. Nesse sentido, entende-se que uma conexão de internet ineficiente, de baixa velocidade e com interrupções transforma o planejamento e a aplicação da estratégia didática em um momento de frustração e, às vezes, de perda de controle da aula. Interpelados sobre situações que os levam a não utilizar a TDIC em sua estratégia didática, 29,4% apontam a indisponibilidade de softwares/aplicativos que seriam necessários para o conteúdo que lecionam, 17,6% apontam laboratórios indisponíveis no período em que estão na escola, a carga horária em sala de aula “grande” e a necessidade de rever o planejamento de suas disciplinas desmotivam 17,7% dos docentes. Algumas declarações confirmam desconforto, resultado mais proeminente de uma estratégia que, em última análise, não foi bem-sucedida - o aprendizado do aluno:

[...] ter bons equipamentos e ter um suporte na escola para eventuais problemas, precisamos do básico [Professor 19].

[...] internet com instabilidade, falta de conhecimento prático para usar certas ferramentas [Professor 5].

[...] falta de cabos, internet, caixa de som [Professor 19].

Percebe-se que o obstáculo estrutural impulsiona o obstáculo didático que, por sua vez, complica a prática pedagógica do professor. Ao enfrentar uma situação de estresse com equipamentos e internet que não funcionam, o professor é forçado a interromper seu planejamento e frequentemente se encontra em um contexto em que não consegue resolver problemas pela falta de uma equipe de suporte técnico. Pressionado pela tecnologia, como continuar com seu planejamento? Como lidar com os alunos que estão excluídos do que, há poucos minutos, era a estratégia planejada?

Neste contexto o professor nos diz: “[...] é importante para o aluno, mas ainda tenho dificuldades no uso” [Professor 12].

Fecha-se o espaço de inclusão da TDIC, o obstáculo estrutural cerra fronteiras em que o professor se acanha em seu uso.

Não obstante, é meritório discutir-se que os obstáculos estruturais reverberam na responsabilidade de políticas públicas adequadas para as escolas, já pontuadas pela Constituição Nacional “[...] proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação, à ciência, à tecnologia, à pesquisa e à inovação [...]” (Brasil, 1988BRASIL. Constituição de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 1988. Disponível em: https://tinyurl.com/5yhhzjux. Acesso em: 14 maio 2023.
https://tinyurl.com/5yhhzjux...
). Já a lei de diretrizes e bases da educação nacional (LDB) traz como princípio básico do ensino: “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola” e “garantia de padrão de qualidade” (Brasil, 1996BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, DF: Congresso Nacional, 1996. Disponível em: https://tinyurl.com/mvr3ubrb. Acesso em: 30 maio 2023.
https://tinyurl.com/mvr3ubrb...
, p. 9).

Por outro lado, o descuido das políticas públicas em torno do acesso as tecnologias digitais, em destaque a internet, demonstram um grau de ambiguidade no cenário escolar entende-se a necessidade de se pensar a educação como uma prática social, como diálogo de reconhecimento que se constitui na percepção e na experiência social do cotidiano, auxiliando assim, na prevenção de exclusões tecnológicas coletivas (Freire, 1996FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.).

Entrevista

Os professores entrevistados mencionaram as tecnologias como meio de mediação, afirmando que foram utilizadas com os alunos para realizar pesquisas na internet sobre conteúdos disciplinares, construir materiais para apresentações em sala, vídeos para reforço do conteúdo e a criação de mapas mentais.

O uso do celular é adotado por dois professores em sala de aula. Um dos professores expressou:

Acredito que sim, ajuda. A questão do celular, só precisamos saber limitá-los, certo? O que eles vão fazer, o que eles vão produzir com o celular, mas é mais rápido, certo? Às vezes, eles têm uma pesquisa para fazer. É muito rápido, é muito ágil, certo? Eles procuram ali, já vêm as respostas. Então, claro, ensinar eles a filtrar, certo? Também, porque é muito conhecimento que vem [Professor 21].

É imprescindível reafirmar que o conhecimento epistemológico e pedagógico em TDIC do professor em situações de ensino e aprendizagem, e a sua maturidade envolve “[...] habilidades, atitudes e conhecimentos necessários para apoiar a aprendizagem num mundo digitalmente rico” (Hall; Atkins; Fraser, 2014HALL, R.; ATKINS, L.; FRASER, J. Defining a self-evaluation digital literacy framework for secondary educators: the DigiLit Leicester project. Research in Learning Technology, Abingdon, UK, v. 22 p. 1-17, 2014. DOI: https://doi.org//10.3402/rlt.v22.21440.
https://doi.org//10.3402/rlt.v22.21440...
, p. 5, tradução nossa). Quando os professores foram questionados sobre o uso das tecnologias em sua prática, o Professor 26 respondeu:

Uso, quando necessário, mas o processo é bem básico, mesmo. Uso para pesquisas para os planejamentos diários, alguma dúvida de alunos que eu não sei no momento, eu também faço pesquisa, e as questões de elaboração de trabalhos, provas [Professor 26].

A observação do professor parece demonstrar que ele desconhece as possibilidades da TDIC em sua prática, faltando conhecimento epistemológico e pedagógico para trazer esses recursos para sua prática didática. Essa fala traz “[...] a marca de um empirismo evidente e básico. É tão agradável para a preguiça intelectual limitar-se ao empirismo, chamar um fato de fato” (Bachelard, 1996BACHELARD, G. A formação do espírito científico. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996., p. 37). Na fala do professor, vislumbram-se obstáculos epistemológicos e epistemológico-didáticos. Entende-se que o professor apresenta conhecimentos elementares em TDIC, passando ao largo do conhecimento pedagógico.

[...] eu acho que a gente vive nesse meio técnico-científico-informacional, e os nossos alunos estão inseridos nessa era da tecnologia. Então, para eles, às vezes, o que era difícil para nós até um tempo atrás, para eles é muito fácil. Então eles se encaixam muito mais do que nós, que não nascemos nessa era da tecnologia, como eles [Professor 19].

Ao justificar a importância da tecnologia, o entrevistado expôs sua fragilidade no que concerne seu conhecimento da TDIC no ensino e as competências necessárias para seu uso na prática docente. A fala conduz à interpretação de uma situação em que o professor parece inseguro frente ao conhecimento do aluno em TDIC. Bachelard (1996BACHELARD, G. A formação do espírito científico. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996., p. 17) afirma ser “[...] no cerne do próprio ato de conhecer que aparecem, por uma espécie de imperativo funcional, lentidões e conflitos”.

Ao serem indagados sobre a razão do não uso da TDIC em suas práticas, os professores trouxeram argumentos em que retratam barreiras estruturais. Entre elas, a falta de softwares ou aplicativos para abordar o conteúdo curricular, a indisponibilidade de laboratórios e a carga horária extensa em sala de aula, que limita o tempo para repensar estratégias e planejamentos que incorporem recursos digitais.

Quando questionados se os cursos de formação continuada em TDIC trouxeram possibilidades de uso de tecnologias digitais para sua área de conhecimento, os entrevistados, em um primeiro momento, afirmaram que foi positivo. No entanto, durante o relato, criticaram os cursos oferecidos, afirmando não terem compreendido como utilizar a TDIC como recurso didático. Fica evidente a busca por conhecimentos, não construídos na formação continuada:

Um professor de Geografia de Goiás, por exemplo, ensinou como usar o Kahoot e como criar atividades online, o que foi excelente para a disciplina, que envolve mapas [Professor 2].

Aprendi a trabalhar mais no básico, que muitas vezes é subestimado, e aprendi a criar e editar vídeos [Professor 33].

Sobre críticas ou sugestões aos cursos de formação para o uso das TDIC, todos os professores sugeriram a criação de cursos práticos com foco nas TDIC em sua área de conhecimento. Percebeu-se uma ansiedade do professor em aprender a usar os recursos disponíveis em seu conteúdo curricular.

As falas dos professores permitem uma reflexão a respeito da sua falta de conhecimento para desenvolver a inclusão da TDIC em sua prática docente. Percebe-se que resistem por não conhecerem, uma vez que o conhecimento construído em emergência durante o período da pandemia, em cursos de formação continuada, não atende ao seu dia a dia. A superação de obstáculos existentes passa pela desconstrução de conhecimentos mal edificados, para então prosseguir com a construção de conhecimentos epistemológicos e didáticos que trarão competências digitais para a docência. Os professores resumem os fatos: “Quem não conhece, não faz” [Professor 33]; e “[...] se a gente não tiver esse interesse, a gente vai ficando arcaico, aqui, e eles vão avançando” [Professor 23].

Construir conhecimentos epistemológicos e didáticos em TDIC não se limita ao uso de recursos básicos, elementares; isso perpassa conhecimentos que permitam que o professor tenha conforto, possa refletir, tenha senso crítico sobre escolhas, e possa realizar as melhores escolhas de quando, como e o que utilizar desse grande conjunto de recursos digitais disponíveis para o universo da Educação.

Reflexões e apontamentos

Considerando a vasta gama de contribuições que as Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação podem oferecer ao processo educacional, os educadores frequentemente se encontram diante de desafios epistemológicos, didáticos e estruturais presentes no ambiente escolar, que dificultam o caminho do ensino. Esses obstáculos impedem avanços no uso da TDIC, deixando professores desamparados na construção do conhecimento epistemológico e didático.

É necessário pensar e desenvolver soluções possíveis para suprir a lacuna persistente no contexto educacional. Nesse sentido, as políticas públicas têm a responsabilidade de cumprir as metas e leis estabelecidas nos documentos oficiais da Educação para a utilização de tecnologias em todo o processo de ensino. Sob a responsabilidade das políticas públicas, as instituições de ensino carecem de equipamentos e investimentos consideráveis, e não somente computadores e softwares, mas também redes de internet e serviços disponíveis para conexão de boa qualidade que facilite o acesso, ou seja, a infraestrutura adequada (Kenski, 2003KENSKI, V. M. Tecnologias e ensino presencial e a distância. São Paulo: Papirus, 2003.). Segundo Kenski (2003KENSKI, V. M. Tecnologias e ensino presencial e a distância. São Paulo: Papirus, 2003., p. 60), “[...] essa questão é motivo de preocupação quando se sabe que muitas escolas no país não possuem as mínimas condições de infraestrutura para a realização das suas atividades de ensino”. O professor requer/exige/necessita uma formação continuada adequada para apropriação do conhecimento epistemológico e pedagógico em TDIC.

Observa-se que cada professor possui um nível diferente de conhecimento sobre tecnologias em suas práticas pedagógicas. A insegurança é comum, na maioria dos casos, e a prática pedagógica do ensino é delicada, faltando espaços e tempos para reflexão e formação. Para implementar planos que integrem TDIC na Educação, é essencial conhecer a escola, seus espaços, a maturidade quanto aos conhecimentos em TDIC dos atores (professores, gestores e alunos) do processo educativo e, não menos importante, o contexto social da comunidade.

Considerações finais

A educação passa por transformações contínuas e os professores se adaptam a essas mudanças ao longo de sua trajetória. Tudo na profissão é moldado ao longo desse percurso, desde a decisão de se tornar professor, passando pela formação acadêmica, pós-graduação, formações continuadas, até a troca de experiências, em um processo contínuo de construção e atualização de conhecimentos até o final da carreira.

No desenvolvimento profissional, o caminho pode ser frágil e delicado, e muitas vezes é necessário desconstruir conhecimentos mal construídos para reconstruí-los. Bachelard (1996)BACHELARD, G. A formação do espírito científico. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. sugere a necessidade de ruptura, de superação de obstáculos que causam lentidão, resistência e conflitos na construção do conhecimento científico.

A pesquisa sugere que as dificuldades no uso da TDIC na prática do professor ainda persistem, pois ele ainda apresenta obstáculos epistemológicos, didáticos e estruturais. A opinião continua constituindo o conhecimento sobre seu uso no ensino, derivada de um senso comum sem reflexão ou crítica, construída apressadamente na busca por respostas. O professor carece de conhecimentos que permitam seu uso na prática da sala de aula. Além disso, identificaram-se sentimentos contraditórios, como anseios, resistência, disponibilidade e interesse dos professores em conhecer, praticar, motivar, mediar, ensinar e até modernizar sua proposta didática inserindo a TDIC.

A inserção da TDIC não é vista pelo professor como um modismo, mas como uma proposta atraente, motivadora e com ares de inovação. No entanto, a fragilidade do professor em relação aos conhecimentos necessários para colocá-la em prática ainda parece presente.

Aponta-se que a formação continuada não está proporcionando ferramentas para superar os obstáculos das TDIC na prática docente, e que a integração dela ao currículo escolar não é uma realidade, passando por questões deficitárias de políticas públicas, estrutura pedagógica, formação de professores e outras limitações que trazem à tona o impedimento do uso. Nesse rol, podem ser citadas inúmeras questões estruturais, não resolvidas, que compõem o cenário escolar e que impõem dificuldades para a sua incorporação no cotidiano dos professores.

Os relatos trazem momentos da prática do professor em sala, o medo do fracasso na condução da prática planejada, a dificuldade, a resistência no uso das tecnologias e a certeza de que as TDIC não são necessárias em seu planejamento flagram indícios de obstáculos epistemológicos e didáticos.

Para o uso da TDIC na sala de aula, são necessárias muitas mudanças, como o abandono de opiniões e de velhas crenças construídas ao longo da formação inicial e do exercício da profissão. Depreende-se que a superação de obstáculos epistemológicos e didáticos pode ser alcançada com sucesso por cursos de formação continuada pensados, planejados e construídos com respeito ao cenário do educador em cada escola, proporcionando apoio para repensar, refletir e construir conhecimentos em TDIC e, portanto, conscientizando o docente de suas práticas alinhadas à ação didático-pedagógica nas escolas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    20 Mar 2024
  • Aceito
    29 Abr 2024
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