Resumo:
A pesquisa qualitativa em educação, especialmente nos campos de investigação em educação ambiental e educação em saúde, requisita outras formas de investigação, distintas daquelas positivistas e cartesianas, apoiadas em descrições verbais e textuais. São necessários novos elementos, como corporeidade, estética e articulações corpo~mente~mundo, para compreender fenômenos em nível experiencial e afetivo. Motivo pelo qual esse ensaio teórico objetiva refletir acerca dos fundamentos teórico-filosóficos e do walking ethnography na pesquisa em educação como possibilidade de interface entre os campos da educação ambiental e educação em saúde. Walking ethnography permite articular ontologia-epistemologia-metodologia como tríade indissociável, discutindo elementos que legitimam novas possibilidades à pesquisa educacional brasileira. Considera-se o potencial da discussão para integração entre os campos da educação ambiental e educação em saúde e para a formação de professores.
Palavras-chave:
Educação ambiental; Educação para a saúde; Pesquisa em educação; Formação do professor
Abstract:
Qualitative research in education, especially in environmental and health education, requires a distinct approach to inquiry that departs from the positivist and Cartesian methodologies based on verbal and textual descriptions. To gain a deeper understanding of phenomena at an experiential and affective level, it is necessary to consider new elements such as corporeality, aesthetics, and body-spirit-world articulations. This essay aims to reflect on walking ethnography's theoretical and philosophical foundations in educational research to establish an interface between environmental and health education. Conducting walking ethnography allows for the examination of how ontology, epistemology, and methodology interrelate. This approach allows for an exploration of the factors that support new opportunities for educational research in Brazil. The discussion also highlights the potential for integrating environmental and health education and the implications for teacher training.
Keywords:
Environmental education; Health education; Education research; Teacher training
Introdução
Ao tomar o corpo como base da nossa interpretação do mundo, muitos estudos, das mais diferentes disciplinas e campos do saber, têm se apropriado do walking ethnography como proposta metodológica, uma vez que concebem que percepção corporal e movimento estão emaranhados em um mesmo fluxo relacional, o qual é cogerador na produção de significados (meaning-making).
As investigações sobre as práticas corporais têm sido percebidas como fundamentais para percepção das multissensorialidades do mundo-mais-que-humano e como potentes para ampliar a compreensão das várias agências1
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O conceito de agência do mundo mais-que-humano advém de vários pensadores, dentre eles, Bruno Latour. Esse conceito reconhece que o mundo mais-que-humano (vento, chuva, temporalidade, rochas, animais, plantas, tecnologias) tem potencial de afecção.
que compõem processos econômicos, políticos e sociais nos níveis estruturais e experienciais, nos quais estão imersos também os processos educacionais (Iared; Oliveira, 2017IARED, V. G.; OLIVEIRA, H. T. Walking ethnography for the comprehension of corporal and multisensorial interactions in environmental education. Ambiente & Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 2, p. 99-116, 2017. Short DOI: https://doi.org/nhh6.
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). Ao nos atentarmos a como nosso corpo responde às agências humanas e mais-que-humanas, abrem-se oportunidades de maior compreensão da nossa existência (corpo~mente) no fluxo de relações com o mundo (biológico, político, social). Soma-se a essa perspectiva, as orientações filosóficas das teorias não-representacionais, pois entende-se que métodos convencionais que se apoiam em descrições verbais e textuais não são suficientes para capturar e expressar o nível experiencial e afetivo.
Investigações no campo da pesquisa em educação ambiental vêm se baseando no walking ethnography como possibilidade de apreender as experiências estéticas na natureza. Nesses estudos, a concepção de estética transcende a noção do belo e é concebida como corpo somático que é a base para interpretar nossas percepções e correspondências com as agências mais-que-humanas. Na educação em saúde, ainda não foram encontrados estudos que se utilizem do walking ethnography, entretanto, acreditamos que essa metodologia pode permitir uma compreensão de saúde para além da biomédica, que de forma reducionista relaciona saúde à aspectos anátomo-fisiológicos e ausência de doenças, ampliando o olhar para elementos sócio-políticos, ambientais e existenciais.
Baseado em movimentos contemporâneos como o novo materialismo e as viradas ontológicas e afetivas, o walking ethnography permite pensar em novas epistemologias, formas de compreender o mundo e construir conhecimentos, especialmente, na pesquisa educacional. Essa proposta rompe com ideias cartesianas e positivistas na pesquisa em educação e, no caso da educação ambiental e educação em saúde, pode possibilitar a articulação de dois campos que historicamente parecem dicotomizados, mas que na realidade possuem complementaridades e possibilidade de integrarem-se em uma compreensão de mundo mais equilibrada, considerando corpo~mente~mundo. Compreensão esta que ultrapassa o campo da teoria, chegando ao campo da prática na realidade escolar e da formação docente.
O presente estudo, em formato de ensaio teórico, tem como objetivo refletir acerca dos fundamentos teórico-filosóficos e walking ethnography na pesquisa em educação, apresentando autores, como Tim Ingold, Richard Shusterman e Alberto Acosta, e conceitos, como o Bem Viver, educação da atenção e somaestética, que vêm pautando nossos estudos para pensar essa metodologia como possibilidade de interface entre os campos da educação ambiental e educação em saúde, assim como constituir legitimação dessa forma de pesquisa educacional.
Optamos pelo formato de ensaio teórico, visto que, de acordo com Severino (2000)SEVERINO, A. J. Metodologia do trabalho científico. 21 ed. São Paulo: Cortez, 2000., este tipo de estudo apresenta-se como uma exposição lógica, reflexiva e interpretativa, de julgamento pessoal dos pesquisadores. Assim como Meneghetti (2011)MENEGHETTI, F. K. O que é um ensaio-teórico? Revista de Administração Contemporânea, Curitiba, v. 15, n. 2, p. 320-332, 2011. Short DOI: https://doi.org/dmt5mm.
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afirma que o ensaio se apresenta como uma análise que propõe ampliação e construção de novos conhecimentos de uma forma reflexiva, o que para autora, significa incubar novos conhecimentos científicos ou pré-científicos sobre o quais evidenciamos nesse trabalho elementos teóricos, ontológicos, epistemológicos e metodológicos da pesquisa qualitativa em educação. Ainda, para Larrosa (2003)LARROSA, K. O ensaio e a escrita acadêmica. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 101-115, 2003., nem sempre a lógica é observada do início ao fim do estudo, visto que esse gênero textual e de construção de conhecimentos não requer indução ou dedução, nem análise ou síntese de dados coletados/produzidos, mas sim interpretação e articulações teóricas, aqui realizadas por pesquisadores experientes que têm se debruçado sobre a integração destes campos de investigação nos últimos anos.
Pesquisa em Educação: referenciais teórico-metodológicos e filosóficos
As práticas corporais têm sido um conceito chave nos pressupostos fenomenológicos de Maurice Merleau-Ponty. Os questionamentos do filósofo francês sobre as dualidades cartesianas se deslocaram de uma epistemologia da percepção, descritos no livro Fenomenologia da Percepção (Merleau-Ponty, 2011MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.), para o conceito de “carne do mundo” em O visível e o invisível (Merleau-Ponty, 2014MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2014.), que remete a uma proposta ontológica de total indivisibilidade entre corpo~mente, sujeito~objeto, razão~emoção. Apesar de sua morte repentina em 1961 e manuscritos inacabados, o filósofo francês deixou um legado que inspira pensadores contemporâneos.
Dentre as teorias emergentes nas últimas décadas, destacamos os novos materialistas, os quais divergem dos estudos culturais por se fundamentarem na existência de uma realidade independente dos significados humanos. Para os novos materialistas, existem agenciamentos, os quais compreendemos como potências e gerenciamento de ações, para além do que é humano. Em outras palavras, estamos mergulhados em materialidades que afetamos ao mesmo tempo que somos afetados: como negar os efeitos do clima, do tempo, dos cheiros e texturas que nos atravessam cotidianamente? Como reduzir a existência da chuva, da água e da vida, ao que é fruto da concepção humana? Recentemente, testemunhamos o mundo social, político e econômico se adaptar a um vírus que foi o protagonista de uma pandemia (Iared; Hofstatter, 2022IARED, V. G.; HOFSTATTER, L. J. V. Our SARS-CoV-2 teacher: Teachings of the pandemic about our relations with the more-than-human world. The Journal of Environmental Education, Philadelphia, v. 53, n. 2, p. 117-125, 2022.).
A representação mental, já pautada pelos fenomenólogos, é colocada em evidência pelos autores que seguem a teoria não representacional. Evocar afetividades, emoções e sentimentos por meio de palavras e números não é suficiente para expressar e/ou descrever a experiência. Nigel Thrift (Thrift, 2008THRIFT, N. Non-representational theory: space politics affect. London: Routledge, 2008.), um dos autores de referência no campo, argumenta que a teoria não representacional, baseada em uma grande literatura gerada sobre corporeidade, mais particularmente pelas teorias feministas, objetiva ir além do construtivismo, justamente porque esse defende que os sujeitos constroem suas representações sociais. Ele argumenta pela expressão dos afetos e as sensações:
Esses são conceitos-percepções tão importantes quanto os signos e as significações, mas que só recentemente começaram a receber o que lhe é devido. Recentemente, como vários autores, dei uma guinada afetiva com este trabalho, baseando-me em uma combinação de Spinoza, Freud, Tomkins, Ekman, Massumi e uma série de teóricas feministas, bem como tradições biológicas, incluindo teoria evolutiva e etologia, a fim de entender o afeto como a maneira pela qual cada 'coisa' ao agir, viver e se esforçar para preservar seu próprio ser 'nada mais é do que a própria essência da coisa' (Spinosa et al., 1997 apud Thrift, 2008, p. 13THRIFT, N. Non-representational theory: space politics affect. London: Routledge, 2008., tradução nossa).
O nível experiencial e corporal da pesquisa, proposto pela fenomenologia, a proposta de agências mais-que-humanas como partícipe dessas experiências e a preocupação com produções que vão além das representações mentais são também postuladas, embora não explicitamente, pelo conceito de somaestética de Shusterman (2008)SHUSTERMAN, R. Body consciousness: a philosophy of mindfulness and somaesthetics. Cambridge: Cambridge University Press, 2008.. A palavra estética, oriunda do grego Aisthesis, já ultrapassa a concepção do belo ao assumir o conceito como sentir o mundo com os sentidos. O autor amplia essa noção pelo prefixo soma e enfatiza a corporeidade nesse processo relacional com o mundo.
[...] Com a ideia de soma esse papel não é simplesmente aquele de um objeto de apreciação estética (atrativamente bronzeado e modelado num traje de banho revelador); ela também inclui o papel da subjetividade ao aproveitar da sua própria experiência somaestética da praia: uma soma que se excita com cada sopro de ar fresco do oceano, como ele se sente com o calor do sol, como os seus suaves movimentos de alongamento dissolvem gradualmente as tensões musculares. Como pano de fundo, isso gera um poderoso prazer estético de estar feliz e completamente vivo e atento ao eu somático e as suas agradáveis relações com o seu mundo (Shusterman; Estevez; Velardi, 2018, p. 130SHUSTERMAN, R.; ESTEVEZ, A. A. M.; VELARDI, M. A Somaestética e a filosofia pragmatista de Richard Shusterman: uma entrevista. Cognitio-Estudos: revista eletrônica de filosofia, São Paulo, v. 15 n. 1, p. 119-131, 2018. DOI: https://doi.org/10.23925/1809-8428.2018v15i1p119-131.
https://doi.org/10.23925/1809-8428.2018v... , grifo dos autores).
A atenção ao corpo (na postura, ou no movimento, ou na respiração) e suas aptidões somaestéticas são pontos centrais para a consciência corporal das nossas limitações, das nossas performances, do que nos faz bem, do que nos faz mal nos níveis individuais (autoconhecimento, self) e coletivos/sociais/ ambientais (Shusterman, 2008SHUSTERMAN, R. Body consciousness: a philosophy of mindfulness and somaesthetics. Cambridge: Cambridge University Press, 2008.).
O "ser atentivo" é narrativa constante nas obras de outro teórico, Tim Ingold, que converge com essas posturas filosóficas críticas das dicotomias, ontologias cartesianas e as representações mentais. Ingold (2010INGOLD, T. Da transmissão de representações à educação da atenção. Educação, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 6-25, 2010., 2012INGOLD, T. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 18, n. 37, p. 25-44, 2012., 2017INGOLD, T. Anthropology and/as education. Abingdon, UK: Routledge, 2017.), ao longo de vários de seus textos, desenvolve o que chama de educação da atenção. Em uma das suas produções mais citadas, o autor inicia sua indagação questionando “[...] como a experiência que adquirimos ao longo de nossas vidas é enriquecida pela sabedoria de nossos ancestrais?” (Ingold, 2010, p. 6INGOLD, T. Da transmissão de representações à educação da atenção. Educação, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 6-25, 2010.). Ao longo das quase 20 páginas de argumentos e contra-argumentos, o antropólogo estabelece um diálogo entre diversos pensadores da biologia evolutiva e da psicologia cognitiva. Ele se opõe à noção de capacidades inatas e competências adquiridas, se contrapondo até mesmo aos conceitos de capacidades e competências, defendendo, ao invés deles, as habilidades que vão sendo desenvolvidas ao longo de processos contínuos e relacionais de uma educação da atenção.
Para Ingold (2010INGOLD, T. Da transmissão de representações à educação da atenção. Educação, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 6-25, 2010., 2017INGOLD, T. Anthropology and/as education. Abingdon, UK: Routledge, 2017.), as habilidades são emergentes e vão sendo construídas na medida que o iniciante copia do experiente em um processo criativo e de improviso durante o qual também desenvolve suas habilidades. O processo de cópia exige uma atenção ao movimento corporal do iniciante para que se alinhe ao experiente. Essa sintonia fina, como ele mesmo chama, solicita um afinamento do sistema perceptivo ao ambiente. Ou seja, a mesma atenção ao corpo (postulada por Richard Shusterman) e às materialidades do ambiente (defendidas pelos novos materialistas) é trazida para o debate por Tim Ingold, apesar de não mencionarem um ao outro.
O alinhamento dos movimentos corporais é chamado de correspondência por Tim Ingold, que suscita a noção de que um corpo responde ao outro na medida que se desenrolam por linhas que tecem a malha da vida (Ingold, 2012INGOLD, T. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 18, n. 37, p. 25-44, 2012.). A primazia ao movimento é uma das afirmativas em que Ingold se apoia para defender que conceber o movimento como uma postura ontológica nos permite enxergar o mundo como um devir, um tornar-se, um brotar que nunca cessa de gerar mais vida. Portanto, o sol e o vento têm vida, porque respondem aos movimentos do mundo e porque outros seres na malha da vida respondem aos seus movimentos:
Mas o que dizer do vento? Novamente, o cientista teria suas próprias explicações: o vento é causado por diferenças horizontais e verticais na pressão do ar atmosférico. Isso também é um efeito. Na maior parte das cosmologias anímicas, no entanto, os ventos são considerados vivos e apresentam poderes agentivos próprios; em muitas cosmologias eles são pessoas importantes que dão forma e direção ao mundo em que as pessoas vivem, assim como fazem o sol, a lua e as estrelas (Ingold, 2013, p. 19INGOLD, T. Repensando o animado, reanimando o pensamento. Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 7, n. 2, p. 10-25, 2013.).
É a partir deste movimento, em correspondência, que se encontram os elementos para compreensões e interpretações oriundas da investigação qualitativa em educação. Interpretações possíveis pela experiência e pela riqueza de detalhes dos dados produzidos que, de acordo com Freire e Macedo (2022)FREIRE, I. P.; MACEDO, S. M. F. A investigação qualitativa em educação: aspectos epistemológicos e éticos. Revista Pesquisa Qualitativa, Cascavel, PR, v. 10, n. 24, p. 276-296, 2022. DOI: https://doi.org/10.33361/RPQ.2022.v.10.n.24.400.
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, apoiam-se na triangulação das fontes de dados, dos analistas e pareceristas, das teorias e da descrição e integridade do contexto dos fenômenos e dos sujeitos participantes.
Posto nosso referencial teórico-filosófico, nos debruçamos sobre a pesquisa em educação. Cabe ressaltar que esse referencial vem sendo apropriado nos mais diferentes campos do saber: geografia, artes, antropologia, sociologia, linguística, etc. Portanto, cabe a nós, articular os pressupostos às metodologias de pesquisa em educação, especificamente, educação ambiental e educação em saúde.
Rigor e Legitimação: a importância da teoria na pesquisa em educação
Inicialmente é preciso esclarecer que cada campo de pesquisa possui suas epistemologias para a construção de conhecimentos científicos, portanto, não é possível falar em um único método para fazer ciência. Não seria diferente com o campo da educação, ou ciências da educação, que encontra diálogos consistentes com outros campos epistemológicos como o da educação em ciências. Aqui cabe esclarecer inicialmente que as áreas de Educação e Ensino – Ensino de Ciências e Matemática –, apesar da sua articulação, diálogos e fenômenos de estudo em comum, encontram-se separadas, dicotomia cuja vigilância é necessária para não ressurgir em tenções de que a área de Ensino tenha objetos de investigação controláveis, tais como as ciências ‘duras’ que a precede. Em oposição, a defesa é de que ambas as áreas buscam investigar, compreender e produzir conhecimentos acerca dos processos e fenômenos educativos (Dias; Therrien, Farias, 2017DIAS, A. M. I.; THERRIEN, J.; FARIAS, I. M. S. As áreas da educação e de ensino na Capes: identidade, tensões e diálogos. Revista Educação e Emancipação, São Luís, MA, v. 10, n. 1, p. 34-57, 2017. DOI: https://doi.org/10.18764/2358-4319.v10n1p34-57.
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), sendo parte das ciências educacionais. Como vimos advogando, a construção de conhecimentos educacionais não pode restringir-se às metodologias e concepções cartesianas e positivistas, a comunidade epistêmica em pesquisa em educação vem argumentando acerca da necessidade de compreensões do fenômeno educacional e seus elementos, é claro que requisitando rigor e solidamente apoiadas por discussões teóricas robustas, já avaliadas e validadas por essa comunidade de pesquisadores.
O conceito de comunidade epistêmica é relevante para nossos diálogos, pois, comunidade epistêmica pode ser entendida como o grupo de pessoas, pesquisadores, estudiosos que formam uma comunidade que, de acordo com Brito (2019, p. 28)BRITO, B. P. L. O papel dos valores na proposição e aceitação de teorias e modelos nas ciências biológicas: uma contribuição desde a epistemologia. 2019. Tese (Doutorado em Ensino, Filosofia e História das Ciências) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2019., “[...] busque, com base em práticas e critérios largamente compartilhados, alcançar objetivos epistêmicos tais como adquirir conhecimento, entendimento ou sabedoria”. Ainda, de acordo com o autor,
[...] é a partir dela [comunidade epistêmica] que são estabelecidos quais Teorias e/ou Modelos podem ser propostos, quais fenômenos de interesse podem ser delimitados, como esses fenômenos podem ser investigados, quais as formas possíveis de testes e quais as restrições e expansões epistêmicas que podemos utilizar, dada a nossa formação e atuação como membros de uma dada comunidade epistêmica. [...] Consideramos como agente epistêmico um indivíduo ou uma comunidade que seja capaz de tomar atitudes cognitivas a respeito de sua busca pela verdade, pelo entendimento, pelo conhecimento, pelos fundamentos de sua crença, entre outros possíveis sucessos epistêmicos (Brito, 2019, p. 57BRITO, B. P. L. O papel dos valores na proposição e aceitação de teorias e modelos nas ciências biológicas: uma contribuição desde a epistemologia. 2019. Tese (Doutorado em Ensino, Filosofia e História das Ciências) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2019.).
Desta forma, consideramos que esta comunidade, com seus valores epistêmicos (modos de conhecer o mundo) e ontológicos (compreensões/visões de mundo), tem habilidades para decidir sobre as possibilidades de construção de conhecimentos, pois essas comunidades tornam-se autoridades científicas daquela área. A exemplo da área Biomédica relacionada à produção de vacinas, “[...] são os membros daquela comunidade epistêmica (e não autoridades políticas ou autoridades advindas de outras comunidades epistêmicas) que podem confirmar se os procedimentos metodológicos para a produção de uma nova vacina adotaram o rigor científico, ou não, se uma vacina tem eficácia comprovada, ou não” (Venturi, 2022, p. 156VENTURI, T. Educação em saúde e ensino de ciências e biologia: reflexões em tempos de pandemia e negacionismo científico. In: EYNG, A. M.; COSTA, R. R. Educação e formação de professores: inspirações, espaços e tempos da educação em diálogo. Curitiba: CRV, 2022. p. 153-167.). Do mesmo modo, as pesquisas em educação possuem suas características que vêm sendo discutidas pelos pesquisadores que fazem parte da comunidade epistêmica deste campo.
Gatti (2012)GATTI, B. A. A construção metodológica da pesquisa em educação: desafios. RBPAE, Brasília, DF, v. 28, n. 1, p. 13-34, 2012. DOI: https://doi.org/10.21573/vol28n12012.36066.
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afirma que uma das principais características da pesquisa em educação é o fato de possuir uma perspectiva integradora, que dialoga com diversas áreas do conhecimento, mas que sempre terá como ponto de partida os fenômenos ou processos educativos. É no mesmo sentido que Godoy (1995)GODOY, A. S. Introdução à pesquisa qualitativa e suas possibilidades. Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 35, n. 2, p. 57-63, 1995. Short DOI: https://doi.org/gf87s2.
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argumenta que os pesquisadores qualitativos em educação não partem de hipóteses estabelecidas a priori como essência, mas sim, partem de questões ou focos de interesse amplos, que vão se tornando mais diretos e específicos no transcorrer da investigação, motivo pelo qual, objetivos específicos e metodologias vão sendo ajustadas no transcorrer da investigação. Entretanto, a pesquisa em educação, ao considerar tais flexibilizações em virtude da necessidade de considerar e integrar ontologia e epistemologia, reconhecer a inexistência de neutralidade na pesquisa e evidenciar as relações sociais e humanas, requisita discussões acerca de seu rigor (assim como as demais pesquisas sociais).
Fortes críticas são realizadas à pesquisa em educação, dentre as quais destacam-se os reflexos da supervalorização da prática e o desprezo pela teoria presentes em políticas públicas educacionais neoliberais, que caracterizam a necessidade de que as pesquisas possuam intervenções para serem analisadas (André, 2001ANDRÉ, M. Pesquisa em educação: buscando rigor e qualidade. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 113, p. 51-64, 2001. DOI: https://doi.org/10.1590/S0100-15742001000200003.
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). O empresariamento educacional adentrou também os campos de pesquisa que, somados à precarização da pós-graduação e pressão por avaliações de produtividade desiguais, resultam no recuo da teoria em função de um empirismo exacerbado (Moraes, 2001MORAES, M. C. M. Recuo da teoria: dilemas na pesquisa em educação. Revista Portuguesa de Educação, Braga, Portugal, v. 14, n. 1, p. 7-25, 2001.). Hart (2014)HART, P. Destabilizing representation of research in education. In: REID, A. D.; HART, P. ; PETERS, M. (ed.). A companion to research in education. London: Springer, 2014. p. 479-488. critica o foco nas metodologias ou no método de pesquisa em educação e evidencia a negligência nas discussões e aprofundamentos teóricos de caráter ontológico e epistemológico.
Entretanto, para superar esses desafios, alguns autores têm se debruçado sobre uma abordagem pós-crítica na pesquisa em educação (Davies, 2014DAVIES, B. Legitimation in post-critical, post-realist times, or whether legitimation? In: REID, A. D.; HART, P. ; PETERS, M. (ed.). A companion to research in education. London: Springer, 2014. p. 443-450.), que estabelece novas concepções, perspectivas, abordagens e metodologias para a pesquisa neste campo de estudos e práticas. Essas abordagens se afastam do empirismo que, muitas vezes, objetiva explicar, prever e controlar para legitimar uma abertura ao desconhecido, para gerar ideias e práticas alternativas.
Lather (1996LATHER, P. Troubling clarity: the politics of accessible language. Harvard Educational Review, Cambridge, US, v. 66, n. 3, p. 525-554, 1996. Short DOI: https://doi.org/gmx7c6.
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, 2006LATHER, P. Paradigm proliferation as a good thing to think with: teaching research in education as a wild profusion. International Journal of Qualitative Studies in Education, Abingdon, UK, v. 19, n. 1, p. 35-57, 2006.) tem caracterizado as pesquisas sociais, se incluem aqui as pesquisas educacionais, como positivistas (focadas na previsão e controle); interpretativas e fenomenológicas (nas quais os pesquisadores objetivam a compreensão do fenômeno); críticas e marxistas (com visões emancipadoras dos seus sujeitos de pesquisa) e as pesquisas pós-críticas, as quais procuram desconstruir verdades e posturas concebidas como certas, pois “[...] neste quadro pós-crítico, pesquisadores são capturados por versões da verdade que excedem eles” (Davies, 2014, p. 443DAVIES, B. Legitimation in post-critical, post-realist times, or whether legitimation? In: REID, A. D.; HART, P. ; PETERS, M. (ed.). A companion to research in education. London: Springer, 2014. p. 443-450., tradução nossa).
A pesquisa pós-crítica envolve uma ampla variedade de instrumentos de pesquisa, já estabelecidos ou alternativos (entrevistas, observação, pesquisa participante, autobiografia, biografia coletiva, etnografia, etc); sem relação com protocolos prescritos; mas com essencial preocupação em enquadrar a questão de pesquisa, sua produção e análise de dados dentro dos termos de conceitos filosóficos que estruturam a investigação (Davies, 2014DAVIES, B. Legitimation in post-critical, post-realist times, or whether legitimation? In: REID, A. D.; HART, P. ; PETERS, M. (ed.). A companion to research in education. London: Springer, 2014. p. 443-450.). A própria crise da representação é colocada em pauta na pesquisa em educação e o caminho para o enfrentamento é recorrer à filosofia (Hart, 2014HART, P. Destabilizing representation of research in education. In: REID, A. D.; HART, P. ; PETERS, M. (ed.). A companion to research in education. London: Springer, 2014. p. 479-488.). Segundo o autor, as metodologias e métodos na pesquisa em educação tornam-se por si só questões de pesquisa.
A pesquisa em educação deve se abrir ao desconhecido e não ao que já é conhecido. Nessa perspectiva, ao invés de coletarmos dados (como se os dados já estivessem disponíveis para isso), produzimos emaranhados de encontros em que o pesquisador também é atravessado. Ao assumirmos esse posicionamento, nos deslocamos de uma pesquisa analítica tradicional para uma análise encarnada na própria biografia do pesquisador (Hart, 2014HART, P. Destabilizing representation of research in education. In: REID, A. D.; HART, P. ; PETERS, M. (ed.). A companion to research in education. London: Springer, 2014. p. 479-488.). Portanto, a legitimidade da pesquisa em educação não reside na obediência de métodos enquadrados e/ou já estipulados, e sim na comensurabilidade entre ontologia~epistemologia~metodologia.
Hart (2014)HART, P. Destabilizing representation of research in education. In: REID, A. D.; HART, P. ; PETERS, M. (ed.). A companion to research in education. London: Springer, 2014. p. 479-488. reitera a importância do debate ativo e permanente sobre rigor e metodologias de pesquisa educacionais e das profundas diferenças de caráter filosófico e ético acerca do que legitima essa pesquisa. André (2001)ANDRÉ, M. Pesquisa em educação: buscando rigor e qualidade. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 113, p. 51-64, 2001. DOI: https://doi.org/10.1590/S0100-15742001000200003.
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já discutia que tais debates devem ser realizados por universidades, pesquisadores, agências de fomento, periódicos, o que denominamos anteriormente de comunidade epistêmica, a fim de construir as concepções de rigor e parâmetros que contribuam para a legitimação de pesquisas em educação, a fim de identificar diálogos teóricos inovadores, consolidados ou insuficientes.
São debates que contribuem para o reconhecimento da importância dos quadros teóricos e filosóficos que conduzem às escolhas metodológicas – portanto, o julgamento da qualidade de pesquisa leva em conta fundamentos teórico-filosóficos e metodologia de pesquisa, mas que não se resumem apenas aos quadros filosóficos. Smith (2014)SMITH, K. J. Quality in educational research. In: REID, A. D.; HART, P. ; PETERS, M. (ed.). A companion to research in education. London: Springer, 2014. p. 375-488. afirma que os quadros filosóficos que embasam determinadas metodologias de pesquisa social já demonstraram limites, portanto, requerem novas formas de fazer, e de conhecer, pesquisa educacional com a finalidade de responder perguntas ainda não respondidas ou refinar o conhecimento já produzido. Motivo pelo qual, concordamos com Gamboa (2003, p. 404)GAMBOA, S. A. S. Pesquisa qualitativa: superando tecnicismos e falsos dualismos. Contrapontos, Itajaí, v. 3, n. 3, p. 393-405, 2003., pois a
[...] qualidade dos trabalhos dos grupos de pesquisa se consolida quando aprofundam as suas reflexões sobre as questões epistemológicas e, dessa forma, articulam as técnicas com métodos, com as teorias e, essas teorias, com critérios de rigor e de verdade científicos. Dessa maneira, definindo uma epistemologia, podemos aprofundar essa lógica recuperando os pressupostos gnosiológicos, (teoria do conhecimento), e as visões de mundo (ontologia) que explicitam melhor os compromissos dos pesquisadores com a realidade que analisam.
Nesse sentido, buscamos encontrar o que Hart (2014, p. 370)HART, P. Destabilizing representation of research in education. In: REID, A. D.; HART, P. ; PETERS, M. (ed.). A companion to research in education. London: Springer, 2014. p. 479-488. chama de continuum, ou seja, reconhecer que a pesquisa educacional vai muito além de uma construção positivista lógica, pois ela trata de pensamentos e vivências sociais. Uma das formas de legitimar este tipo de pesquisa é por meio do diálogo reflexivo, a partir de diversos autores, outros estudos, pesquisadores que atuam/publicam na temática e estabelecem uma rede de reflexões robustas, ou seja, o continuum de posicionamentos com base em fundamentos ontológicos e epistemológicos.
Assim, apesar da subversão ao empirismo cartesiano, o domínio da tríade ontologia~epistemologia~metodologia solicita uma leitura teórica-filosófica robusta e uma postura investigativa crítica para contestar, transformar, expor-se e romper com padrões predeterminados. De acordo com St. Pierre (2011)ST. PIERRE, E. Post qualitative research: the critique and the coming after. In: DENZIN, N.; LINCOLN, Y. (ed.). The Sage handbook of qualitative research. Los Angeles: Sage, 2011. p. 611-625., devemos lutar como pesquisadores, com nossas noções de quem somos e como representamos nossas suposições teóricas e descobertas no relato da pesquisa.
Isto posto, defendemos uma pesquisa educacional transparente, ética, aberta ao desafio, ou ao refinamento e destacamos o papel estratégico do aprofundamento e da reflexão teórica e crítica sobre e na pesquisa em educação, que ao transcender o empirismo ou a mera descrição de fenômenos, empodera-se em favor da construção de conhecimentos educacionais científicos, propositivos, tolerantes, plurais, especialmente na educação ambiental e na educação em saúde. E, concordando com Gatti (2008)GATTI, B. A. A pesquisa na pós-graduação e seus impactos na educação. Nuances: estudos sobre educação, Presidente Prudente, S P, ano 14, v. 15, n. 16, p. 35-49, 2008., ao observarmos o surgimento de novas aproximações entre campos de investigação, que abrem leques de temas à investigação, buscamos integrar os campos da educação ambiental e da educação em saúde, como discutiremos na próxima seção.
Integração dos campos Educação Ambiental e Educação em Saúde: bem viver
Historicamente, as áreas de pesquisa e prática em educação ambiental e educação em saúde traçaram paralelos por estarem embricadas em pautas que se afetam reciprocamente (Venturi; Iared, 2022VENTURI, T.; IARED, V. G. Educação em saúde e educação ambiental: tendências e interfaces. In: CARDOSO, N. S. et al. (org.). Ciência e democracia: interfaces e convergências. Campina Grande: Realize Editora, 2022. v. 1, p. 1012-1032.). Todavia, existem poucas pesquisas que se debruçam sobre as possibilidades ontológicas~epistemológicas~metodológicas de aproximação dessas práticas pedagógicas. Não concebemos aqui uma afecção linear de causa e efeito (mesmo porque estaríamos indo contra o nosso referencial fenomenológico), mas como campos que fazem parte do mesmo horizonte de preocupação com a saúde e a sustentabilidade do planeta.
Não tomamos como conceito de sustentabilidade os ideais de desenvolvimento sustentável postulados pela Organização das Nações Unidas (ONU). Autores como Blühdorn (2012)BLÜHDORN, I. The politics of unsustainability: COP15, post-ecologism, and the ecological paradox. Organization & Environment, Thousand Oaks, US, v. 24, n. 1, p. 34-53, 2012. DOI: https://doi.org/10.1177/1086026611402008.
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, Carvalho (2008)CARVALHO, I. C. M. Educação para sociedades sustentáveis e ambientalmente justas. REMEA: Revista Eletrônica do Mestrado Em Educação Ambiental, Rio Grande, RS, v. esp., p. 46-55, 2008. DOI: https://doi.org/10.14295/remea.v0i0.3387.
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e Payne (2022)PAYNE, P. G. Tbilisi’s “sounds of silence”: (In)action in the policy ≠ embodiments of environmental education. The Journal of Environmental Education, Philadelphia, v. 53, n. 6, p. 314-339, 2022. DOI: https://doi.org/10.1080/00958964.2022.2128017.
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tem problematizado o falso consenso acionado por vieses neoliberais que compreendem a natureza como uma fonte de recursos a serem utilizados. Segundo esses autores, as mega políticas mobilizadas pela ONU nada mais são que espetáculos maquiados de verde e pelo prefixo eco que se orientam por pautas econômicas que visam o lucro ao invés de deslocar a “[...] oposição natureza/sociedade, para situar o ambiente como espaço das relações humanos-humanos e humanos-mais -que-humanos constituído pelas práticas históricas e culturais que estas interações performam” (Carvalho, 2008, p. 47CARVALHO, I. C. M. Educação para sociedades sustentáveis e ambientalmente justas. REMEA: Revista Eletrônica do Mestrado Em Educação Ambiental, Rio Grande, RS, v. esp., p. 46-55, 2008. DOI: https://doi.org/10.14295/remea.v0i0.3387.
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).
Multirreferencializado no âmbito acadêmico, das políticas públicas e nas utopias e horizontes de algumas comunidades, a filosofia do Bem Viver é um convite para repensar padrões hegemônicos de sociedade. Fundado nas cosmologias dos povos ameríndios, o Bem Viver atualmente é concebido como uma postura de vida que pode pautar outros povos e nações. Assume-se aqui um olhar de aprendiz em que nós, autora e autor desse artigo, buscamos formas alternativas e emergentes de povos originários que podem auxiliar a ficar com o problema e a viver e morrer bem ao performar mundos (Haraway, 2016HARAWAY, D. Staying with the trouble: making kin in the Cthulhucene. Durham: Duke University Press, 2016.). Ao invés de um modelo desenvolvimentista e da crença indiscriminada na tecnologia como solução dos problemas, o Bem Viver propõe um resgate de valores e princípios seculares dos povos originários, preconizando uma revisão lenta e profunda dos nossos modos de ser. Alberto Acosta, um dos pensadores mais experientes no campo do Bem Viver, é autor de uma das obras que é referência na contextualização da terminologia:
O Bem Viver – isto é fundamental – supera o tradicional conceito de desenvolvimento e seus múltiplos sinônimos, introduzindo uma visão muito mais diversificada e, certamente, complexa. Por isso mesmo, as discussões sobre o Bem Viver, termo em construção, são extremamente enriquecedoras. O Bem Viver revela os erros e as limitações das diversas teorias do chamado desenvolvimento. Critica a própria ideia de desenvolvimento, transformada em uma enteléquia que rege a vida de grande parte da Humanidade – que, perversamente, jamais conseguirá alcançálo (Acosta, 2016, p. 32ACOSTA, A. O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Autonomia Literária: Elefante, 2016.).
Ao contrapor-se ao antropocentrismo e reconhecer o mundo-mais-que-humano como partícipe do fluxo da vida no planeta, o Bem Viver culmina como uma tessitura alinhada aos princípios da educação ambiental postulados desde Tbilisi, mas silenciados ao longo das décadas por políticas hegemônicas. Enquanto a educação em saúde liberta-se de perspectivas biomédicas, normativas e comportamentalistas impostas à ausência de doença como exclusivo requisito à saúde, associando elementos ambientais, psicológicos, biológicos, educacionais, culturais, ocupacionais, políticas públicas, dentre outros, em prol de um empoderamento que reconhece e reconstrói o contexto e a comunidade como local de vida.
Pautado em princípios chaves como "reciprocidade, relacionalidade, complementariedade e solidariedade entre indivíduos e comunidades" (Acosta, 2016, p. 41ACOSTA, A. O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Autonomia Literária: Elefante, 2016.), o Bem Viver tem por ideal uma reversão dos modelos socioeconômicos e desenvolvimentistas contemporâneos para reivindicar uma ética do cuidado (ao outro e a si mesmo), do respeito e da vida (humana e mais-que-humana). Essa ruptura – que concebemos aqui como ontológica, porque nos demanda uma cicatrização entre o ser~conhecer, corpo~mente, natureza~sociedade, humanos~mais-que-humanos – é a zona de convergência que identificamos entre as atuações do campo da educação ambiental e educação em saúde.
Tecidas as considerações acerca do nosso referencial teórico e, consequentemente, das ontologias e epistemologias por nós assumidas, discorreremos, no próximo tópico, sobre o walking ethnography como abordagem metodológica que também poderá ser um caminho de interface entre os campos. Além disso, buscamos estabelecer um diálogo coerente com as defesas da seção anterior sobre a legitimação das pesquisas em educação, especialmente ao integrar educação ambiental e educação em saúde, a partir deste olhar teórico, que resulta em uma recriação de metodologias para a produção e a interpretação de dados resultantes de processos educacionais, sobre os quais walking ethnography também pode apresentar contribuições, conforme discutiremos.
Walking ethnography como pesquisa e prática na integração destes campos
Como já explicitado, nos apoiamos em um quadro teórico que dá primazia ao movimento. Portanto, argumentamos que o movimento é cogerador na percepção corporal e na produção de significados (meaning-making) estéticos~éticos~políticos (Iared; Oliveira, 2017IARED, V. G.; OLIVEIRA, H. T. Walking ethnography for the comprehension of corporal and multisensorial interactions in environmental education. Ambiente & Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 2, p. 99-116, 2017. Short DOI: https://doi.org/nhh6.
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). Ou dito de outro modo, compreendemos o movimento~corpo~mente como potente para compreender as multissensorialidades do mundo. Maxine Sheets-Johnstone em seu livro The corporeal turn (Sheets-Johnstone, 2009SHEETS-JOHNSTONE, M. The corporeal turn: an interdisciplinary reader. Exeter: Imprint Press, 2009.), argumenta pela não dissociação espaço-temporal entre sentir, perceber, atribuir significado. Nas palavras de Merleau-Ponty (2014)MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2014., corpo, ação e percepção são "carne do mundo".
[...] o sentir e o movimentar não se reúnem em virtude de sua ocorrência num mesmo corpo, ou por serem partes de um mesmo corpo. Percepções são entrelaçadas em um fluxo de movimento do aqui-agora assim como meu fluxo de movimento do aqui-agora é entrelaçado em minhas percepções. Movimento e percepção estão perfeitamente ligados; não há nenhum “fazer-mental” que é separado do “fazer-corporal” (Sheets-Johnstone, 2009, p. 32SHEETS-JOHNSTONE, M. The corporeal turn: an interdisciplinary reader. Exeter: Imprint Press, 2009., tradução nossa).
Do ponto de vista da pesquisa, Csordas (2008)CSORDAS, T. Corpo/significado/cura. Porto Alegre: UFRGS, 2008. define a corporeidade como um indeterminado campo metodológico definido pela experiência perceptual e pelo modo de presença e engajamento no mundo. Transcendendo isso para o contexto educacional, a educação da atenção de Tim Ingold nos auxilia a entender como o movimento do corpo é fonte de aprendizagem. Ora, se a presença do corpo no mundo não está restrita aos invólucros materiais, o conhecimento se dá a partir dos modos como nos relacionamos e percebemos o mundo no/em movimento, isto é, ser e conhecer acontecem em tempo real (Ingold, 2010INGOLD, T. Da transmissão de representações à educação da atenção. Educação, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 6-25, 2010.). Em outras palavras, conhecer é habitar o mundo no sentido de que nos juntamos a ele no seu processo de produção e formação.
Esse processo exige movimento e movimento gera vida. Ingold (2012)INGOLD, T. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 18, n. 37, p. 25-44, 2012. define que o movimento de seguir o outro é diferente de reproduzir, assim como a interação e conexão são diferentes de itineração. Reproduzir, conectar e interagir remetem a corpos com invólucros, ao passo que seguir e itinerar (acompanhar) os movimentos dos outros é juntar-se a ele em uma cópia criativa. Para o autor, é assim que aprendemos: nos juntando aos movimentos dos outros (sejam humanos ou mais-que-humanos), os quais vamos copiando criativamente para desenvolver nossas habilidades. Essa relação de correspondência (corresponder/ responder aos movimentos dos outros) é chamada por Ingold de educação da atenção (Ingold, 2010INGOLD, T. Da transmissão de representações à educação da atenção. Educação, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 6-25, 2010., 2017INGOLD, T. Anthropology and/as education. Abingdon, UK: Routledge, 2017.).
É daí que se desenrola uma alternativa metodológica intitulada walking ethnography (Ingold; Vergunst, 2008INGOLD, T.; VERGUNST, J. L. (ed.). Ways of walking: ethnography and practice of foot. Surrey, UK: Ashgate Publishing, 2008.). Segundo Iared e Oliveira (2017, p. 103)IARED, V. G.; OLIVEIRA, H. T. Walking ethnography for the comprehension of corporal and multisensorial interactions in environmental education. Ambiente & Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 2, p. 99-116, 2017. Short DOI: https://doi.org/nhh6.
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, existem outras denominações que se assemelham a essa proposta:
[…] 'caminhada compartilhada' – shared walk (LEE; INGOLD, 2006), o 'acompanhar natural' – natural go-along (KUSENBACH, 2003), 'caminhada comentada' – commented walks (WINKLER, 2002), 'entrevista em movimento' – walking interview (EVANS; JONES, 2011), 'etnografias móveis' – mobile ethnographies (PORTER et al., 2010) (Iared; Oliveira, 2017, p. 103IARED, V. G.; OLIVEIRA, H. T. Walking ethnography for the comprehension of corporal and multisensorial interactions in environmental education. Ambiente & Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 2, p. 99-116, 2017. Short DOI: https://doi.org/nhh6.
https://doi.org/nhh6.... , grifo dos autores).
Justamente por compreendermos que ação e percepção não estão separadas do ponto de vista espacial e temporal, é que argumentamos que estudos que buscam essa perspectiva empírica têm a potencialidade de captar os processos relacionais da educação. Iared e Oliveira (2017)IARED, V. G.; OLIVEIRA, H. T. Walking ethnography for the comprehension of corporal and multisensorial interactions in environmental education. Ambiente & Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 2, p. 99-116, 2017. Short DOI: https://doi.org/nhh6.
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, ao realizarem uma revisão bibliográfica sobre o tema, argumentam que não há um protocolo preestabelecido na adoção desse referencial metodológico. Todavia, existem algumas convergências, independente do contexto e questão de pesquisa: (a) justamente por ser uma experiência corporal e sensorial (e que desfoca o verbal e textual), há a preocupação em transcender a representação da vivência; (b) ressignificar a relação pesquisador~participante, já que estão todos imersos na mesma experiência, alinhando-se à noção de observação participante e correspondência de Tim Ingold; (c) desarranjar os métodos convencionais como entrevistas, grupos focais e questionários como centrais nos instrumentos de coleta de dados por apresentarem limitações na captação da corporeidade, do movimento, das afetividades e dos fluxos sensoriais.
São convergências que denotam um caráter inferencial e interpretativo em busca da “[...] compreensão dos fenômenos sociais a partir das intenções e dos significados que os protagonistas lhes atribuem no quadro das interações sociais no quotidiano das suas vidas e dos contextos em que elas ocorrem” (Freire; Macedo, 2022, p. 282FREIRE, I. P.; MACEDO, S. M. F. A investigação qualitativa em educação: aspectos epistemológicos e éticos. Revista Pesquisa Qualitativa, Cascavel, PR, v. 10, n. 24, p. 276-296, 2022. DOI: https://doi.org/10.33361/RPQ.2022.v.10.n.24.400.
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), assim como das correspondências e atencionalidades vivenciadas, como defende Ingold (2010INGOLD, T. Da transmissão de representações à educação da atenção. Educação, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 6-25, 2010., 2017INGOLD, T. Anthropology and/as education. Abingdon, UK: Routledge, 2017.). E, desta forma, aproximações teóricas entre educação ambiental e educação em saúde nos permitem articular as noções de experiência, corporeidade, afetividade, sensações, movimento, contexto e comunidade em recriações do ser~conhecer e do corpo~mente~ambiente, que, no sentido de André (2001)ANDRÉ, M. Pesquisa em educação: buscando rigor e qualidade. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 113, p. 51-64, 2001. DOI: https://doi.org/10.1590/S0100-15742001000200003.
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, permitem novas formas de pesquisar em educação, de produzir e interpretar os fenômenos educacionais, produzindo novos conhecimentos ou refinando àqueles já produzidos.
Assim como pode gerar conhecimentos em pesquisa, acreditamos nas potencialidades da abordagem teórico-metodológica do walking ethnography como estratégia formativa para formação de professores, visto a articulação de perspectivas ontológicas, epistemológicas e metodológicas da educação em saúde e da educação ambiental que (re)inovam em direção a uma filosofia de Bem Viver. E assim caracterizando e legitimando uma pesquisa educacional com possibilidades de transformações sociais e educacionais, como defendem André (2001)ANDRÉ, M. Pesquisa em educação: buscando rigor e qualidade. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 113, p. 51-64, 2001. DOI: https://doi.org/10.1590/S0100-15742001000200003.
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e Gamboa (2003)GAMBOA, S. A. S. Pesquisa qualitativa: superando tecnicismos e falsos dualismos. Contrapontos, Itajaí, v. 3, n. 3, p. 393-405, 2003., e ainda buscar a consolidação da robustez de posicionamentos apregoada pelo continuum de Hart (2014)HART, P. Destabilizing representation of research in education. In: REID, A. D.; HART, P. ; PETERS, M. (ed.). A companion to research in education. London: Springer, 2014. p. 479-488., com vistas a uma vida em harmonia, pessoal e socioambiental, que pode ter como resultado um mundo socialmente e ambientalmente justo, democrático, tolerante, ético-estético, solidário e saudável.
Considerações finais
Marli André (André, 2001ANDRÉ, M. Pesquisa em educação: buscando rigor e qualidade. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 113, p. 51-64, 2001. DOI: https://doi.org/10.1590/S0100-15742001000200003.
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) já afirmava a necessidade de debates sobre a pesquisa em educação que possam expor ideias, que dialoguem com outras pesquisas do campo e entre campos de investigação. Demanda necessária para que possamos ampliar e enriquecer o debate em busca do aperfeiçoamento em nossas investigações e práticas, especialmente ao considerarmos a importância destas para os contextos educativos e para a formação de professores.
A este debate nos propusemos e vimos nos propondo pensar na ontologia~epistemologia~metodologia na pesquisa educacional que, consolidando-se como tríade indissociável, nos permite novas formas de compreender, viver e pesquisar em educação ambiental e educação em saúde. Contudo, sem negligenciar o diálogo e o aprofundamento teórico e sem desviar das preocupações com a legitimação e o rigor da pesquisa educacional. Em curso temos pesquisas que articulam educação ambiental e educação em saúde em debates teóricos e históricos; que por meio de caminhadas com idosos e suas experiências buscam aprofundar enlaces teórico-epistemológicos da articulação entre estes campos; com debates acerca das possibilidades curriculares e práticas desta articulação em cursos de formação inicial, continuada de professores e educação básica, buscando diálogos com as necessidades docentes e sociais para formar cidadãos responsáveis consigo e com o mundo.
E assim encontramo-nos em movimento e compromissados em contribuir com o desenvolvimento de investigações em educação e em educação em ciências, nos campos da educação ambiental e educação em saúde, com uma visão fundamentada, crítica, com valores e princípios que conectem finalidades investigativas, modos de pesquisar, compreensões, conhecimentos produzidos e a existência em um planeta repleto de contradições, conflitos e incertezas, mas que ainda pode recobrar o equilíbrio. A pesquisa, o debate e a luta por legitimação e por transformação continuam!
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O conceito de agência do mundo mais-que-humano advém de vários pensadores, dentre eles, Bruno Latour. Esse conceito reconhece que o mundo mais-que-humano (vento, chuva, temporalidade, rochas, animais, plantas, tecnologias) tem potencial de afecção.
Referências
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- ANDRÉ, M. Pesquisa em educação: buscando rigor e qualidade. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 113, p. 51-64, 2001. DOI: https://doi.org/10.1590/S0100-15742001000200003.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
21 Out 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
26 Out 2023 -
Aceito
05 Ago 2024