Acessibilidade / Reportar erro

A ficção científica e o ensino de ciências: o imaginário como formador do real e do racional

Science teaching and science fiction: imaginary in the organization of the real and the rational

Resumos

Este artigo apresenta uma reflexão sobre a inserção da ficção científica no ensino de Ciências, no qual buscamos identificar como a ficção científica incorpora elementos na estrutura conceitual dos educandos partindo do pressuposto de que teria um papel de desencadeadora e/ou organizadora da aprendizagem. O filme "Jurassic Park" foi estudado como constitutivo do conhecimento, transmutando o ficcional no real/racional, possibilitando a organização hierárquica dos conceitos, acrescendo novos elementos na estrutura conceitual dos educandos e atuando, também, na mediação do conhecimento - ora organizando, ora desencadeando.

Ensino de Ciências; Ficção científica; Imaginário; Real e racional


In this paper, we discuss the development of the science fiction approach in Science education. We are concerned to identify conceptual elements incorporated by students when faced with the science fiction approach in their development of scientific concepts. We use the movie "Jurassic Park" in this approach and found that the movie can be effective in the mediation of the fictional to the real.

Science education; Science fiction; Imaginary; Real and rational


A ficção científica e o ensino de ciências: o imaginário como formador do real e do racional

Science teaching and science fiction: imaginary in the organization of the real and the rational

Marcilene Cristina Gomes-MalufI,1 1 Rua Christiano Pagani, 10-49, apto 2C. Residencial Vila Grená. Bauru, SP. 17.047-144 ; Aguinaldo Robinson de SouzaII

IMestre em Educação para a Ciência. Professora de Química da Escola Agrotécnica Federal de Cáceres, MT. <marcilenemaluf@eafc.gov.br>

IIProfessor Adjunto do Departamento de Química da Unesp; Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência, Unesp, campus de Bauru, SP. <arobinso@fc.unesp.br>

RESUMO

Este artigo apresenta uma reflexão sobre a inserção da ficção científica no ensino de Ciências, no qual buscamos identificar como a ficção científica incorpora elementos na estrutura conceitual dos educandos partindo do pressuposto de que teria um papel de desencadeadora e/ou organizadora da aprendizagem. O filme "Jurassic Park" foi estudado como constitutivo do conhecimento, transmutando o ficcional no real/racional, possibilitando a organização hierárquica dos conceitos, acrescendo novos elementos na estrutura conceitual dos educandos e atuando, também, na mediação do conhecimento - ora organizando, ora desencadeando.

Palavras-chave: Ensino de Ciências. Ficção científica. Imaginário. Real e racional.

ABSTRACT

In this paper, we discuss the development of the science fiction approach in Science education. We are concerned to identify conceptual elements incorporated by students when faced with the science fiction approach in their development of scientific concepts. We use the movie "Jurassic Park" in this approach and found that the movie can be effective in the mediation of the fictional to the real.

Keywords: Science education. Science fiction. Imaginary. Real and rational.

Introdução

Descobrimos estranha pegada nas praias do desconhecido.

Concebemos, uma após a outra, profundas teorias

para explicar a origem daquele sinal.

E conseguimos, por fim, reconstruir a entidade que o imprimiu.

E eis que fomos nós próprios.

(EDDINGTON, 1959 apud BERNSTEIN, 1975, p. 27)

Dyson (1998, p. 75) afirma que a ficção científica, em determinado momento, "[...] é mais esclarecedora do que a Ciência para compreender como a tecnologia é vista por pessoas situadas fora da elite tecnológica. A Ciência proporciona o input técnico para a tecnologia; a ficção científica nos exibe o output humano". Esta afirmação talvez tenha configurado o ponto de partida de nossa investigação, e passamos a buscar, então, o papel da ficção científica no ensino de Ciências.

Para tanto, nossa proposta foi buscar, no imaginário, o processo de construção do pensamento científico, numa relação entre o imaginário e o real, que se firma enquanto uma interpretação racional. Assim, a visão do real é constituída com base nestes dois elementos: o imaginário – representado como atos ficcionais – e o racional – representado pelos conceitos da Ciência.

Para analisarmos o papel da ficção científica no ensino de Ciências, partimos do pressuposto de que ela pode ou não incorporar novos elementos na estrutura conceitual de educandos, por meio do papel de organizadora e/ou desencadeadora da aprendizagem. Nessa linha, optamos por desenvolver um estudo de caso, trabalhando, como ato ficcional, o imaginário do filme Jurassic Park e, como elemento racional, os conceitos da Biologia Molecular.

Essa escolha se justifica pelo fato de que, a todo instante, recebemos, dos meios de comunicação, as mais diversas informações sobre os avanços recentes na área de Biologia Molecular, sem, no entanto, nos apercebermos de como é escasso o entendimento da maioria dos conceitos apresentados, pois, pessoas não diretamente relacionadas com a produção desta ciência tornam-se meros espectadores passivos dos acontecimentos. Outro ponto a se destacar é a proposta de trabalho apresentada nos Parâmetros Curriculares Nacionais em relação ao ensino de Biologia, em que o objeto de estudo é tomado como "[...] o fenômeno vida em toda a sua diversidade de manifestações [...]" de forma que este conhecimento deva

[...] subsidiar o julgamento de questões polêmicas, que dizem respeito ao desenvolvimento [...] e à utilização de tecnologias que implicam imensa intervenção humana no ambiente, cuja avaliação deve levar em conta a dinâmica dos ecossistemas, dos organismos, enfim, o modo como a natureza se comporta e a vida se processa. (BRASIL, 1999, p. 31-32)

Nossos questionamentos estão relacionados à identificação do papel da ficção científica na composição dos conceitos da Biologia Molecular, como: os atos ficcionais vivenciados no filme Jurassic Park podem ser motivadores ou desencadeadores na aprendizagem de conceitos da Biologia Molecular?

Para respondermos a essa indagação e destacarmos a importância da ficção científica no ensino de Ciências, introduzimos o filme Jurassic Park numa proposta de trabalho de uma disciplina de Biologia Molecular de um curso de graduação em Licenciatura em Ciências Biológicas da Universidade do Estado de Mato Grosso, Campus Universitário do Médio Araguaia2 2 A opção de trabalhar com esse curso e instituição se deu pelo fato de que eles se encontram em uma região de difícil acesso aos meios de comunicação e, conseqüentemente, havia a maior possibilidade de se encontrarem pessoas que ainda não haviam assistido o filme Jurassic Park. . A turma desse curso, composta por 48 alunos, foi dividida em duas: uma que já havia assistido ao filme (Turma A) e outra que ainda não havia assistido (Turma B). A inserção do filme se deu em dois momentos da disciplina: no início, para a Turma A e, ao final do trabalho da disciplina, para a Turma B. Dessa maneira, ao longo do trabalho da disciplina fomos coletando dados sobre o conhecimento dos pesquisados, ora na forma de mapas conceituais3 3 Os mapas conceituais "podem ser vistos como diagramas hierárquicos que procuram refletir a organização conceitual de uma disciplina ou parte de uma disciplina" (GUERRA, 1983, p. 8). Foram elaborados seis mapas conceituais. , ora na forma de formulários diagnósticos4 4 Foram aplicados dois formulários diagnósticos. .

Com isso esperamos que a inserção do filme Jurassic Park pudesse oportunizar aos pesquisados uma releitura do real/racional, pois se em algum momento eles afirmaram ser possível a reconstrução da vida a partir de fragmentos de DNA de uma vida extinta há milhões de anos, é porque em determinado momento ela não foi uma afirmação efetuada somente pela ficção científica, "[...] mas é também porque a Ciência, em algum momento da história, procurou essa possibilidade, criando um imaginário coletivo" (GOMES-MALUF, 2001, p. 16).

Na nossa viagem por esse imaginário, via ficção científica, passamos por uma releitura do real/racional, percorrendo um trajeto que passa pelas discussões das diferentes interfaces entre o imaginário e o real, inserindo o filme Jurassic Park como elemento que compõe o real imaginado, quer com os elementos oferecidos pela Ciência, quer pela ficção científica. Desta maneira, o filme se transformou parada obrigatória de nossa viagem de interpretação do imaginário, criado pelo homem para mediatizar suas relações com o mundo real.

Ficção científica e as diferentes interfaces entre o imaginário e o real

Para que possamos entender as diferentes interfaces que existem entre o imaginário e o real, devemos primeiramente definir estes termos, com base em uma posição epistemológica que estabeleça uma ligação entre o imaginário e o real, pois o não estabelecimento desta ligação implicaria uma análise do papel da ficção científica no ensino de Ciências no nível empírico.

Os diversos autores que discutem o real e o imaginário, transformando o imaginário em um aparato epistemológico de interpretação da Ciência, o fazem em negação ao ideário do mito da cientificidade de descrição da natureza, por meio da razão e da experimentação. Para Ferreira e Eizirik (1994, p. 5 ), o mito da cientificidade esquece que "[...] a realidade é multifacetada, que os dados do conhecimento são construídos, resultam de recortes da realidade. Pode-se assim dizer que o conhecimento resulta das perguntas que são feitas ao real".

Como estamos convictos que o real oculto é uma construção humana e mais rica que o dado imediato, tomamos de Bachelard (1986) a proposição de negação do dado imediato: a ciência moderna não é uma continuidade da ciência clássica e o conhecimento científico não se dá em continuidade ao conhecimento comum; são processo de retificações contínuas, pois não existem verdades primeiras, mas erros primeiros, que são retificados. Com isso, Bachelard inaugura, em 1934, uma categoria filosófica inédita: "a do 'Não' [...] constituída pela extensão regular da negação" (LECOURT, 1972, p. 21).

Essa proposição de negação constitui a própria noção conceitual de ruptura de Bachelard (1972), pois se trata da ruptura entre conhecimento sensível e conhecimento científico, o que não seria exagero definir que a ciência instrumental é uma transcendência da ciência de observação natural. Nesse sentido, a aplicação da teoria bachelardiana oferece condições para captar os conceitos científicos em síntese psicológica efetiva, isto é, em sínteses progressivas, estabelecendo, a propósito de cada noção, uma escala de conceitos, mostrando como um conceito produziu outro, ligou-se a outro.

Com esse processo, tomando por base o irreal, buscamos uma nova interpretação do real, construído com base nos modelos da Ciência. Neste sentido, uma das interfaces entre o imaginário e o real, é que o primeiro assume uma posição de interpretação do mundo da Ciência para o mundo ficcional. A ficção científica transforma-se no output humano como uma organização que transforma o imaginário em "dinamismo próprio que possibilita a organização cognitiva do mundo" (BACHELARD, 1972, p. 32).

O termo imaginário possui diversos significados, criados pela própria imaginação, que pode ser aquilo que não existe, como os nossos sonhos, imagens mirabolantes, algo distante da nossa realidade, como os nossos devaneios. Para Barbier (1994), o termo imaginário possui três fases: da sucessão – a atualização do pensamento racional e a potencialização da função de imaginação do ser humano; da subversão – o imaginário torna-se o único real, e a imaginação, o caminho da realização; e da autorização – um reequilíbrio do imaginário e do real/racional.

Tanto o real quanto o irreal são importantes na nossa interpretação da realidade, mas o "[...] imaginário [tem] a capacidade elementar e irredutível de evocar uma imagem, a faculdade originária de afirmar ou de se dar, sob a forma de representação, uma coisa e uma relação que não existe" (BARBIER, 1994, p. 20).

Somente sob a forma da representação é que podemos unificar Barbier e Bachelard em torno do imaginário, pois se, para o primeiro, a representação do imaginário é de algo que não existe, para o segundo, a representação supera a própria realidade, criando um objeto científico que não se encontra dado no mundo natural. Para nós, é o nosso imaginário que inicia o processo de construção do pensamento científico, porque

[...] refletimos, não um espaço real, mas um verdadeiro espaço de configuração. É o processo de autorização entre o imaginário e o real/racional. Um diz do outro sem ser o outro e ao mesmo tempo se completa na composição do outro; é uma invenção do imaginário e, ao mesmo tempo, do real. (GOMES-MALUF, 2001, p. 19)

É sob esta visão da Ciência e o imaginário que trabalhamos a ficção científica no ensino de Ciências e,

através de Bachelard que se sabe que a Ciência é orientada para descobrir limiares e patamares novos, relacionados entre si, continuamente recomeçando, através da vigilância e da retificação; aprende-se que a Ciência não é um empilhamento, é reconstrução e organização sempre de diferentes modos de pensar e de compreender o mundo, numa problematização constante do real. (FERREIRA e EIZIRIK, 1994, p. 13)

Com esta proposição de devir, inserimos o filme Jurassic Park como o ato ficcional que se torna presente na ruptura e na retificação das estruturas conceituais, ora desencadeando, ora organizando a aprendizagem, numa perspectiva cognitiva em que o sujeito revê as suas concepções com base na Ciência trabalhada.

A composição da ficção científica

Em diferentes discursos a ficção apresenta-se como o mítico, o onírico, o artístico ou o literário. Podemos afirmar que são discursos de representação e apresentação implícitas e/ou explícitas do mundo visível, sendo comum a estas representações o sentido da palavra. O sentido dicionarizado de ficção (FERREIRA, 1986, p. 774), é o "ato ou efeito de fingir, simulação, fingimento. Coisa imaginária, fantasia, invenção, criação". A ficção é o ato da criação, no qual percebemos, com base em nossos referenciais, o mundo que nos cerca. Não há, nesta produção, mesmo revelando aspectos importantes da realidade, a preocupação em se produzir um discurso da verdade, pois o "objetivo estético de qualquer ficção é a criação de um mundo verbal, ou parte significativa deste através de toda ordem de seu Ser" (GASS, 1971, p. 20).

Mesmo não se preocupando em produzir verdades, os escritores de ficção acabam por produzirem um mundo ainda não pensado pelas 'ciências', mas sem se preocupar em explicar o mundo. Para Gass (1971), a tentativa de se fundamentar em idéias filosóficas a elaboração de obras ficcionais foi um erro bem compreendido pelos escritores, abandonando a idéia de explicar o mundo, passando a criar mundos com um único instrumento: a linguagem. Assim, a linguagem é o aparato tecnológico da ficção e a narração a sua técnica.

A forma de subversão tomada pelo imaginário torna-se o único real, criando mundos imaginários; é o ficcional criando o real, mas é, ao mesmo tempo, a garantia da potencialização da imaginação humana: a ficção cria o real e se disfarça do real, mas oportuniza a criação de um discurso que seja validado pelo real/racional. O discurso criado na ficção é tão digno de crédito como outro qualquer porque, como qualquer outro, nos apresenta uma leitura do real e inventa um mundo ainda não imaginado por nós; coloca-nos de frente com o real, com base em uma narrativa livre de diferentes manifestos, sejam epistemológicos, filosóficos, sociológicos e/ou científicos.

Para não sermos confundidos pelos contistas, que fazem uma falsa aparência de um discurso que se propõe verdadeiro, devemos estar atentos à textura da ficção para não confundi-la com a própria natureza, pois:

Se examinarmos cuidadosamente a textura de uma ficção, descobriremos imediatamente que algumas palavras parecem gravitar em torno de seu tema como moscas em torno do açúcar, enquanto outras aparecem surgir dali. Em muitas obras esse movimento lógico é facilmente discernível e muito intenso. Quando um personagem fala, as palavras parecem emanar dele e serem atos reais. A descrição primeiro forma uma natureza, depois deixa que a natureza realize. Precisamos, contudo, ter cuidado de não julgar pelas aparências. (GASS, 1971, p. 57)

O contista Michael Crinchton (CRINCHTON, 1995), em seu romance Jurassic Park, usa da narração para nos fazer adentrar em imagens da natureza e do real, extrapolando-as, saindo do impossível para o possível, criando a vida a partir de fragmentos da molécula de DNA; ele constrói o real e, ao mesmo tempo, a natureza, e, ao se unir com outro contista, Steven Spielberg, transporta-nos do mundo da narração para o mundo do cinema, usando a mais alta tecnologia, disponível na época, para nos convencer de que é possível a reconstrução da vida. Esta transferência muda a forma de discurso, abandona-se a narrativa escrita e transforma-se o romance em ação, transportando-nos, ao mesmo tempo, para o imaginário e para o real/racional, numa credibilidade fantasiosa da ciência.

Um consagrado contista, entretanto – uma pessoa propensa à mentira – servirá melhor a sua história e assegurará sua popularidade, não imitando a Natureza, uma vez que a Natureza não é a fonte de verossimilhança, mas seguindo de tão perto quanto possível as formas mais simples, mais diretas e mais naturais de nossa vida real, pois narramos coisas reais, coisas que intrigam e que nos preocupam, e essa semelhante linguagem num livro permite-nos acreditar em personagens e fatos que não podemos ver, jamais tocar, numa certeza de segurança que libere nossas paixões. (GASS, 1971, p. 40)

A proposição dos dois contistas é a de transformar a visão que possuíamos dos dinossauros, unindo a narração e a técnica, introduzindo, no filme, a Ciência e a Tecnologia para gerar a vida, e a de nos colocar no mundo imaginário, e é "[...] possível que o filme O Parque dos Dinossauros seja uma fantasia, mas a popularidade universal dos dinossauros é bem real" (DYSON, 1998, p. 90). Para nós, este seja talvez o papel da ficção científica: utilizar-se da matéria-prima da Ciência, manipulando os instrumentos da ficção. O resultado disso é que seu compromisso não é com a verdade, e sim com a imaginação e a fantasia.

Ao ser a ficção científica uma narrativa que estabelece uma relação intrínseca entre o conhecido e o desconhecido, não se preocupando com a previsão do futuro, o que se espera é somente um mundo imaginado; mas, no entanto, existem alguns casos de profecias que acabam se concretizando como, por exemplo, as obras de Hugo Gernsback, editor de Amazing Stories, que, em seu livro Ralph 124C 41+, prevê o radar, o vôo espacial, a luz fluorescente entre outras.

Não há, na ficção científica, a profecia em si, mas esta se impregna de elementos da realidade e da produção da Ciência para se fazer ficcional e real perante a opinião pública. Além das profecias, as obras ficcionais podem ser consideradas como antevisões, como, por exemplo: o trabalho de Stanley Kubric com 2001 (1968); de Steven Spielberg com Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977); de George Lucas com Guerra nas Estrelas (1977), e de Arthur Clarke com 2001: uma odisséia no espaço. Estas obras mostram que "a ficção científica não está limitada somente a projeções no futuro, pois seu assunto é o curso evolucionário da humanidade de sub-humano a humano, e daí a alguma coisa mais humana" (ALLEN, 1974, p. 223).

Na ficção científica também são retratados os problemas caóticos ligados à natureza, aparecendo catástrofes relacionadas à possibilidade do "fim do mundo". De qualquer maneira, "a Ciência imaginária desempenha um papel muito importante na ficção científica, sendo que o número de romances e contos baseados em alguma Ciência imaginária, provavelmente excede consideravelmente o de baseados em pura extrapolação de Ciência corrente" (ALLEN, 1974, p. 235).

O uso da ficção científica no ensino não é algo recente, tanto que, no ano de 1973, Williamson apud Britton (1998) identificou que é a forma de filme mais usada pelos professores do Ensino Superior no ensino de ciências, totalizando mais de quinhentos tipos de ficção científica. A categoria de ficção científica utilizada com este propósito é a chamada dura, que explora as produções das Ciências denominadas exatas ou físicas, e a tecnologia associada a elas, abordando a existência de um universo ordenado, cujas leis são constantes e passíveis de serem descobertas. Este tipo de ficção, de acordo com Allen (1974), trabalha com estórias do tipo extrapolativas,

São aquelas que tomam o conhecimento corrente de uma das Ciências e projetam logicamente quais podem ser os próximos passos nessa Ciência; também estão incluídas aquelas estórias que tomam o conhecimento ou teoria aceita correntemente e, ou aplicam-na em um novo contexto para mostrar suas implicações ou constroem um mundo em torno de um conjunto particular de fatos. (ALLEN, 1974, p. 22)

e estórias do tipo especulativas,

São aquelas geralmente projetadas no futuro, mais adiante que as estórias extrapolativas e, conseqüentemente, têm alguma dificuldade de projetar o desenvolvimento lógico de uma Ciência; entretanto as ciências envolvidas em tais estórias são semelhantes às ciências que conhecemos agora e são nela baseadas. (ALLEN, 1974, p. 22)

Neste contexto, configura-se o filme Jurassic Park (1993) de Steven Spielberg, baseado no romance de Michael Crichton; um filme que considera em sua composição as produções da Biologia Molecular, permitindo uma discussão sobre o seu "Dogma Central" e a Tecnologia do DNA Recombinante, em seus aspectos éticos, morais, sociais, bem como o avanço dos conceitos científicos que permeiam a estória ficcional. É uma ficção dura, do tipo extrapolativa, pois nos transpõe para um imaginário baseado em fatos reais, mudando o significado da representação que temos sobre a vida. Na fala do personagem Dr. Ian Malcolm, no filme Jurassic Park, ao discutir a interferência do homem na vida podemos notar esta transposição:

- Deus criou dinossauros;

- Deus destrói dinossauros;

- Deus cria o homem;

- O homem destrói Deus;

- O homem cria dinossauros.

O filme Jurassic Park e as diferentes interfaces entre o imaginário e o real

A narração a seguir é parte de uma transcrição de alguns momentos do filme Jurassic Park. A intenção é tentar transportar o leitor para estes momentos, sugerindo uma perspectiva para nos firmarmos como contadores de estórias.

Ao chegar à ilha Nublar, na República Dominicana, para avaliar a possibilidade da abertura de um parque temático a visitantes, um dos consultores, a paleobotânica Drª Ellie Sattler, tem em suas mãos uma folha de uma planta de origem pré-histórica, sem acreditar no que manuseava. Naquele momento, aproxima-se o paleontólogo Dr. Alan Grant, que fica boquiaberto, pois além do fascínio gerado pela natureza, percebe a presença de um Branquiossauro, o mesmo ocorrendo com o matemático Dr. Ian Malcolm. Para o advogado Donald Gennaro, a possibilidade apontada pelo parque é a de ganhar milhões de dólares com o sonho visionário de John Hammond.

A Drª Ellie Sattler começa a explicar sobre a origem da espécie da planta que está em suas mãos, quando é interrompida por Alan e fica estarrecida com a nova imagem que surge a sua frente.

Neste momento Alan afirma:

- É um dinossauro;

O que é completado por Hammond:

- Bem-vindos ao Jurassic Park.

Depois de uma visão geral dos Branquiossauros, os visitantes do parque seguem para o centro de visitantes, e ao chegar, Hammond afirma:

- Estão no Park mais avançado do mundo, com as tecnologias mais modernas, com a presença de atrações biológicas vivas...

Neste momento, há uma breve pausa na fala de Hammond, que continua:

- ... tão surpreendentes; que irão capturar a imaginação do planeta inteiro.

No centro de visitantes, Hammond leva os consultores até um cinema e todos assistem à projeção de um desenho animado, explicando o processo utilizado pelos cientistas do parque para a recriação dos Dinossauros, e como conseguir gerar espécies extintas a partir de fragmentos de DNA: o milagre da clonagem. A projeção demonstra um realismo na própria apresentação. Naquele momento, Ellie e Alan questionam:

- Como conseguiram DNA inteiro de uma espécie extinta há 100 milhões de anos?

Ao longo da projeção, este questionamento é respondido pelo próprio apresentador do desenho animado, uma cadeia estilizada de DNA, até que, em um determinado momento, a figura afirma:

- E agora podemos fazer um filhote de dinossauro.

Os assentos do auditório são giratórios, e a mudança de posição possibilita aos consultores visualizar o trabalho dos geneticistas. Tamanha é a surpresa que os visitantes abandonam as poltronas e vão até o laboratório para tentar compreender todo o processo de recriação da vida dos seres extintos. Durante os questionamentos do grupo de consultores, um dos cientistas afirma que não existe nascimento não autorizado de dinossauros no parque, pois todas as vidas recriadas são de fêmeas. Depois de explicado o processo que recriava só nascimento de fêmeas, Ian Malcolm afirma:

- A vida não pode ser contida, ela se liberta, ela se expande a novos territórios e atravessa barreiras dolorosamente, talvez perigosamente...

Depois de questionar as afirmações do geneticista, ele completa:

- A vida encontra um meio.

A pergunta principal que podemos encontrar nesta narrativa é se existe a possibilidade de reconstrução da vida de seres extintos a partir de fragmentos de DNA, ou seja, a Ciência apresenta condições para que os dois contistas afirmem sobre a possibilidade de recriar a vida? Dinossauros extintos poderão voltar a viver? A resposta a esta pergunta, considerada à luz dos contistas é: tudo é possível. A partir de fragmentos de moléculas de DNA, e do uso da tecnologia disponibilizada pela técnica, como apresentada no romance e no filme, oferece-nos todas as condições para a duplicação, a transcrição e a tradução das informações contidas nos genes, via Tecnologia do DNA Recombinante. Assim, estabelece-se o imaginário da possibilidade de reconstruir a vida a partir da produção da Ciência; o imaginário é, ao mesmo tempo, a Ciência e o real, pois "[...] para que o real exista, é necessário fazer um desvio pelo imaginário" (BARBIER, 1994, p. 17).

Se considerarmos a produção atual da ciência, a resposta a essa pergunta é que atualmente isso é impossível, pois a molécula de DNA é muito frágil e, com o passar do tempo, teríamos de obter o material genético completo, pois, com as técnicas desenvolvidas até o momento, seria improvável encontrar e manipular essa amostra, quer seja oriunda do período triássico, jurássico ou cretáceo.

O próximo passo seria verificar se a utilização da Reação em Cadeia da Polimerase (PCR) (FARAH, 1997) pode ou não contribuir para a reconstrução da vida de seres extintos, pois é um tipo de reação "tão útil para os pesquisadores pelo fato de propiciar a multiplicação de qualquer DNA original em bilhões de vezes" (DESALLE e LINDLEY, 1998, p. 34).

Para a correta utilização desta técnica, necessitamos de algumas moléculas especiais denominadas primes: seqüências conhecidas de trechos de DNA dos seres extintos. Continuando nesta linha de raciocínio, iremos encontrar outros elementos que confirmarão a nossa afirmação de que atualmente não é possível a reconstrução de seres vivos extintos, a partir de fragmentos de moléculas de DNA. Existe, então, uma separação real entre o que se afirma no romance e no filme em relação à produção da Ciência? Se considerarmos que este momento é o da autorização, o real e o imaginário possuem uma única interface, que é construir o racional, e neste momento "atingirá seu apogeu no dia em que o imaginável prevalecer sobre o quimérico, no cerne de um pensamento humano, tomando consciência de sua hipercomplexidade e de sua relação com o ecossistema a que ela pertence" (BARBIER, 1994, p. 21).

As duas visões do real, uma sob a égide da ficção científica e a outra sob a égide da Ciência, colocam-nos frente a frente com o imaginário, que se faz presente enquanto criação humana. É sob este prisma que devemos pensar a ficção científica no ensino de Ciências, pois se for possível reconstruir a vida de seres extintos, a partir de fragmentos de moléculas de DNA, não é somente porque se afirmou isso na ficção científica, mas também porque a Ciência, em algum momento da história, procurou por esta possibilidade.

Conclusões

A opção em se trabalhar a ficção científica apresentada no filme Jurassic Park está diretamente relacionada ao grande número de informações genéricas, veiculadas nos meios de comunicação, relacionadas aos temas de melhoramento genético, clonagem de DNA recombinante, plantas transgênicas, Projeto Genoma etc. Permeando estas informações, talvez em um mesmo patamar, está presente a ficção científica, que acaba gerando conflitos em relação aos conceitos que deveríamos conhecer, transformando-os, talvez, na própria Ciência.

A produção literária envolvendo o gênero ficção científica transformou-se em uma fonte de informação em tempo real e imaginário. No tempo real é apresentado ao público o que na Ciência se discute atualmente e quais os direcionamentos apresentados pelas novas pesquisas; e em tempo imaginário, a ficção científica transforma o caminhar das pesquisas científicas em "futuro possível", oferecendo a possibilidade de se fazer Ciência, antecedendo os resultados a serem alcançados. Ao trabalhar entre estes dois mundos, a ficção científica favorece o acesso a diferentes produções da Ciência, oportunizando, com base em uma obra artística, o contato com as transformações que o homem da Ciência vem imprimindo ao mundo.

O filme Jurassic Park, enquanto um ato ficcional, nos remete aos conceitos vinculados ao estudo da Biologia Molecular, oportunizando a discussão sobre a possibilidade de recriação da vida, polemizando questões éticas, cientificas e sociais, inserindo-se dentro dos atuais debates sobre a manipulação da vida, o que oportuniza a reflexão em torno desse debate, pois

é desejável e inevitável um certo controle democrático da Ciência., [pois os cientistas podem e devem educar o público, que] cientificamente informado pode debater as múltiplas ramificações da Ciência e da Tecnologia na vida cotidiana, sem ceder a um otimismo superficial ou à hostilidade frenética, participando do processo decisório e minimizando as possibilidades de mau uso. (KNELLER, 1980, p. 20)

Somente essa oportunidade de reflexão crítica do papel das ciências perante a vida já seria o suficiente para o uso da ficção científica no ensino de Ciências, mas não é o suficiente para responder o nosso questionamento inicial: pode a ficção científica ser desencadeadora e/ou organizadora da aprendizagem?

A resposta a essa pergunta encontra-se no resultado dos mapas conceituais e dos formulários diagnósticos dos pesquisados, pois ao inserir o filme em momentos diferentes, constatamos que a inserção no início do trabalho da disciplina passou a orientar as respostas que eles ofereciam nos formulários e na organização dos mapas conceituais; enquanto a inserção no final do trabalho da disciplina gerou, junto aos pesquisados, uma descrença em relação ao conhecimento adquirido, ocorrendo uma total mudança na organização de seus mapas conceituais e nas respostas de seus formulários.

Assim, podemos afirmar que a inserção de filme de ficção científica deve ser efetuada no início das atividades, pois ele serve como um aparato desencadeador da aprendizagem e organizador dos conceitos que serão explorados; enquanto sua inserção após a exploração dos conceitos da disciplina acaba por gerar uma insegurança em relação à validade teórica de seus conceitos. É como se sua inserção ao término das atividades gerasse dúvidas nos pesquisados sobre a validade de seus conceitos, criando-se um obstáculo frente ao conhecimento.

Ao inserirmos a ficção científica no início de qualquer atividade pedagógica, ela se transforma em um instrumento metodológico para o ensino de Ciências, pois passa a ser o elemento que informa o conhecimento a ser explorado e, ao mesmo tempo, é o aparato que oferece as imagens de experiências a serem realizadas na aprendizagem dos conceitos da Biologia Molecular.

A nossa proposição inicial de que a ficção científica pode ser mais esclarecedora que a Ciência, pode ser considerada como o ponto de partida para uma proposta metodológica no ensino de Ciências, devendo-se inserir o filme na exploração inicial dos conceitos a serem desenvolvidos em sala de aula.

Artigo recebido em maio de 2006 e aprovado em maio de 2007.

  • ALLEN, L. D. No mundo da ficção científica. Trad. Antonio Alexandre Faccioli e Gregório Pelegi Toloy. São Paulo: Sumus, 1974.
  • BACHELARD, G. O novo espírito científico Trad. António José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1986.
  • ______. Filosofia do novo espírito científico: a filosofia do não. Lisboa: Presença, 1972.
  • _______. A Epistemologia Trad. Fátima Lourenço Godinho e Mário Carmino Oliveira. Lisboa: Edições 70, 1990.
  • BARBIER, R. Sobre o imaginário. Em Aberto, Brasília, v. 14, n. 61, p. 15-23, 1994.
  • BERNSTEIN, J. As idéias de Einstein Trad. Leonidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 1975.
  • BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio - Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias. Brasília: SEF, 1999.
  • BRITON, L.A. An exploratory study of the impact of hypermedia-based approach an science-in-fiction approach for instruction on the polymerase chain reaction 1998. 361f. Dissertation - Faculty of Lousiana, Lousiana, 1998.
  • CRINCHTON, M. O parque dos dinossauros São Paulo: Editora Best Seller, 1995.
  • DESALLE, R.; LINDLEY, D. Jurassic Park e o mundo perdido Trad. Sérgio Coutinho Biasi. Rio de Janeiro: Campos, 1998.
  • DYSON, F. J. Mundos imaginados: conferências Jerusalém-Harvard. Trad. Cláudio Weber Abramo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
  • FARAH, S. B. DNA: segredos e mistérios. São Paulo: Sarvier, 1997.
  • FERREIRA, A. B. H. Novo dicionário da língua portuguesa Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
  • FERREIRA, N. T.; EIZIRIK, M. F. Educação e imaginário social. Em Aberto, Brasília, v. 14, n. 61, p. 5-14, 1994.
  • GASS, W.H. A ficção e as imagens da vida Trad. Edmilson Alkmin Cunha. São Paulo: Cultrix, 1971.
  • GOMES-MALUF, M. C. O filme Jurassic Park e a tecnologia do DNA recombinante: o uso da ficção científica no ensino de Ciências. 2001. Dissertação (Mestrado em Educação para a Ciência) Faculdade de Ciências, Universidade Estadual Paulista, Bauru, 2001.
  • GUERRA, W. A. Mapas conceituais como instrumentos para investigar a estrutura cognitiva em física 1983. 105f. Dissertação (Mestrado em Física) Instituto de Física, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1983.
  • KNELLER, G. F. A ciência como atividade humana Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1980.
  • LECOURT, D. Para uma crítica da epistemologia 2. ed. Trad. Manuela Menezes. Lisboa: Assírio e Alvim, 1980.
  • 1
    Rua Christiano Pagani, 10-49, apto 2C. Residencial Vila Grená. Bauru, SP. 17.047-144
  • 2
    A opção de trabalhar com esse curso e instituição se deu pelo fato de que eles se encontram em uma região de difícil acesso aos meios de comunicação e, conseqüentemente, havia a maior possibilidade de se encontrarem pessoas que ainda não haviam assistido o filme
    Jurassic Park.
  • 3
    Os mapas conceituais "podem ser vistos como diagramas hierárquicos que procuram refletir a organização conceitual de uma disciplina ou parte de uma disciplina" (GUERRA, 1983, p. 8). Foram elaborados seis mapas conceituais.
  • 4
    Foram aplicados dois formulários diagnósticos.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Set 2008
    • Data do Fascículo
      2008

    Histórico

    • Recebido
      Maio 2006
    • Aceito
      Maio 2007
    Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência, Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências, campus de Bauru. Av. Engenheiro Luiz Edmundo Carrijo Coube, 14-01, Campus Universitário - Vargem Limpa CEP 17033-360 Bauru - SP/ Brasil , Tel./Fax: (55 14) 3103 6177 - Bauru - SP - Brazil
    E-mail: revista@fc.unesp.br