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Apropriações de estudantes de Ensino Médio acerca do conceito de vírus sob a perspectiva Vigotskiana

Secondary school students’ understanding of the concept of virus from a Vygotskian perspective

Resumo:

O artigo discute a formação de conceitos científicos na escola, a partir do contexto da pandemia pela COVID-19. O cenário do trabalho de pesquisa foi uma disciplina eletiva em que, a partir do desenvolvimento de uma sequência didática sob a perspectiva vigotskiana, estudantes do ensino médio puderam expressar e debater assuntos inerentes ao contexto pandêmico. O foco da pesquisa foi direcionado ao conceito de vírus e a produção dos dados foi realizada a partir da aplicação de três instrumentos de pesquisa ao longo da execução da sequência didática: o levantamento de ideias prévias (LIP), o questionário intermediário e o estudo de síntese (ES). As contribuições da sequência didática para os estudantes foram, primeiramente, o estudo de um assunto relevante e concreto e, principalmente, o potencial entendimento de conceitos relacionados à pandemia. A comparação dos dados a partir dos instrumentos evidenciou o desempenho processual de elaboração de conceitos.

Palavras-chave:
Ensino médio; Ensino de ciências; Pandemia; Vírus; Sequência didática

Abstract:

The article focuses on how schools taught scientific concepts during the COVID-19 pandemic and aims to improve students’ comprehension of the concept of viruses. We conducted the research in a secondary school elective course which allowed students to discuss and express issues related to the pandemic environment. The study developed a didactic sequence using a Vygotskian perspective, and collected the data through three questionnaires: a survey of previous conceptions, an intermediate questionnaire, and a synthesis study. The didactic sequence had several benefits for the students, including studying a relevant and concrete subject and the potential to understand concepts related to the COVID-19 pandemic. Data comparison across answers to the three questionnaires showed students' gradual performance in concept elaboration.

Keywords:
Secondary school; Science teaching; Pandemic; Virus; Didactic sequence

Contextualizando o trabalho

No mês de março de 2020, a educação paulista recebeu a orientação oficial sobre a necessidade do fechamento das escolas. Uma série de restrições em decorrência da pandemia do novo coronavírus passou a ser divulgada. Desde então, o trabalho pedagógico que se desenvolvia foi interrompido e precisou se reinventar, enfrentando novos e numerosos desafios. Como continuar o processo de ensino longe de alunos e alunas?

Esse foi apenas um exemplo de outras tantas dúvidas e inseguranças que passaram a fazer parte do cotidiano de professores e professoras. Mostrou-se como uma triste realidade que impediu estudantes e docentes de frequentarem o ambiente escolar por motivo de segurança sanitária com aulas acontecendo por meio das mídias digitais. Entende-se que o contexto pandêmico deixou marcas indeléveis no processo educacional e, embora não seja o foco do presente artigo, esse contexto é importante para situar a pesquisa em tela.

É necessário assinalar que o período que antecedeu a pandemia da COVID-19 foi marcado por vários problemas na educação brasileira, os quais se agravaram durante e após a crise sanitária ecológica e social vivenciada. Isso piorou diante um governo que não demonstrou preocupação com as necessidades da população, desprezou a vacina, as vidas perdidas e o desenvolvimento científico. Em seu livro, Birman (2020)BIRMAN, J. O trauma na pandemia do coronavírus: suas dimensões políticas, sociais, econômicas, ecológicas, culturais, éticas e científicas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020. explora estes aspectos trazendo detalhes importantes para o entendimento sobre a pandemia no Brasil.

A volta às aulas presenciais aconteceu com revezamento entre grupos de estudantes, distanciamento social, uso de máscaras, uso de álcool em gel de acordo com os protocolos sanitários, dentre outras medidas que, para estes estudantes, se configuraram como obrigações. Foi nesse cenário que teve início a reflexão de articulação entre dois universos (aparentemente) distintos, quais sejam: a prática pedagógica e a pesquisa acadêmica. Como docente da área das ciências, os questionamentos eram os mais diversos: como os estudantes entendiam a importância das medidas sanitárias? Como compreendiam a pandemia e o vírus? Entendiam o motivo de usar máscaras? Esses alunos e alunas tiveram acesso aos conhecimentos científicos sobre esse assunto ao longo da vida escolar? Como a vida durante a pandemia foi problematizada pela escola?

Esses questionamentos impulsionaram a escolha do contexto pandêmico e a sala de aula como tema de uma pesquisa de mestrado, cuja preocupação fundamental foi promover a construção de conhecimento científico detidamente focada nos processos intersubjetivos. Assim sendo, foi produzida uma sequência didática, cuja base epistemológica foi a perspectiva vigotskiana que, dentre outros aspectos, defende que os sujeitos se desenvolvem e se constituem de acordo com as relações sociais, históricas e culturais (Bonfim; Solino; Gehlen, 2019BONFIM, V.; SOLINO, A. P.; GEHLEN, S. T. Vygotsky na pesquisa em educação em ciências no Brasil: um panorama histórico. Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias, Vigo, v. 18, n. 1, p. 224-250, 2019. Disponível em: https://tinyurl.com/4bha8w7b. Acesso em: 24 maio 2021.
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; Duarte, 2011DUARTE, N. Vigotski e o “aprender a aprender”: críticas às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana. 5. ed. rev. Campinas: Autores Associados, 2011.; Ivic, 2010IVIC, I. Lev Semionovich Vygotsky. Recife: Massangana, 2010.), ou seja, o contexto pandêmico passa a produzir interpretações por parte dos/das escolares desde o momento em que foi divulgado, interferindo diretamente na vida das pessoas, confrontando seus saberes e vivências.

Vigotski reconhece a importância da escola na apropriação de conceitos científicos, por ser o local em que ocorrem estudos sistematizados. Assuntos referentes à pandemia não poderiam ficar ausentes. Entendemos como negligência a falta de orientação por parte dos órgãos competentes quanto à retomada de conteúdos sobre a pandemia que se vivia. A partir dessas considerações, o presente artigo apresenta uma investigação acerca dos conhecimentos construídos, bem como do processo de ensino-aprendizagem de estudantes de ensino médio, a partir de orientações didático-pedagógicas acerca da pandemia, debate a apropriação realizada por estudantes a partir da aplicação de uma sequência e identifica a elaboração conceitual, especialmente o conceito de vírus, utilizando-se de exercícios e atividades realizadas por estudantes.

Os estudos vigotskianos possuem relevância para o ensino de ciências e tem, cada vez mais, demarcado sua abrangência como referencial teórico nos trabalhos e pesquisas acadêmicas (Bonfim; Solino; Gehlen, 2019BONFIM, V.; SOLINO, A. P.; GEHLEN, S. T. Vygotsky na pesquisa em educação em ciências no Brasil: um panorama histórico. Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias, Vigo, v. 18, n. 1, p. 224-250, 2019. Disponível em: https://tinyurl.com/4bha8w7b. Acesso em: 24 maio 2021.
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). Isso ocorre porque as ideias de Vigotski acerca do desenvolvimento e aprendizagem representam importantes ferramentas para a reconfiguração do ensino, pois valoriza a história de aprendizagem (bagagem) construída por estudantes ao longo de sua vida cotidiana, as relações e interações de sujeitos que são históricos, culturais e sociais nos ambientes de formação, o que contribui para a formação de conceitos científicos por meio de problemas e investigações (Boss et al., 2012BOSS, S. L. B.; SOUZA FILHO, M. P.; MIANUTTI, J.; CALUZI, J. J. Inserção de conceitos e experimentos físicos nos anos iniciais do ensino fundamental: uma análise à luz da teoria de Vigotski. Ensaio: pesquisa em educação em ciências, Belo Horizonte, v. 14, n. 3, p. 289-312, 2012. DOI: https://doi.org/gg5z9f.
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; Gehlen; Delizoicov, 2013GEHLEN, S. T.; DELIZOICOV, D. O papel do problema no ensino de ciências: compreensões de pesquisadores que se referenciam em Vygotsky. Ensaio: pesquisa em educação em ciências, Belo Horizonte, v. 15, n. 2, p. 45-63, 2013. DOI: https://doi.org/ggwm7t.
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; Gehlen; Maldaner; Delizoicov, 2012GEHLEN, S. T.; MALDANER, O. A.; DELIZOICOV, D. Momentos pedagógicos e as etapas da situação de estudo: complementaridade e contribuições para a educação em ciências. Ciência & Educação, Bauru, v. 18, n. 1, p. 1-22, 2012. DOI: https://doi.org/ggwm9f.
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).

O levantamento realizado por Bonfim, Solino e Gehlen (2019)BONFIM, V.; SOLINO, A. P.; GEHLEN, S. T. Vygotsky na pesquisa em educação em ciências no Brasil: um panorama histórico. Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias, Vigo, v. 18, n. 1, p. 224-250, 2019. Disponível em: https://tinyurl.com/4bha8w7b. Acesso em: 24 maio 2021.
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é fundamental para compreender a proporção da utilização da teoria e ideias de Vigotski no ensino de ciências ao longo do tempo. Ao organizar o trabalho em três períodos cronológicos, a pesquisa apresenta recortes históricos do ensino da área que evidenciam as preocupações e tendências das épocas e apropriações da teoria do autor.

A exemplo, a primeira dissertação no Brasil que apresentou conceitos de Vigotski data do ano de 1991 e abordou assuntos referentes à “[...] mudança conceitual e à construção de modelos científicos na história do indivíduo” (Bonfim; Solino; Gehlen, 2019, p. 228BONFIM, V.; SOLINO, A. P.; GEHLEN, S. T. Vygotsky na pesquisa em educação em ciências no Brasil: um panorama histórico. Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias, Vigo, v. 18, n. 1, p. 224-250, 2019. Disponível em: https://tinyurl.com/4bha8w7b. Acesso em: 24 maio 2021.
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). As autoras demarcam que a partir de 1993 outros trabalhos foram encontrados, porém, afirmam a pouca quantidade de trabalhos publicados a partir da década de 1990 até os anos 2000. Neste recorte de tempo, as ideias de Vigotski aparecem por meio da preocupação em proporcionar a construção de conceitos e habilidades científicas, a partir de aspectos referentes às “estruturas cognitivas dos estudantes, por meio das discussões sobre a construção do pensamento, o papel da linguagem e as interações sociais”, movida pela reformulação do ensino de ciências que passava a valorizar os sujeitos ativos nos processos de ensino (Bonfim; Solino; Gehlen, 2019, p. 232BONFIM, V.; SOLINO, A. P.; GEHLEN, S. T. Vygotsky na pesquisa em educação em ciências no Brasil: um panorama histórico. Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias, Vigo, v. 18, n. 1, p. 224-250, 2019. Disponível em: https://tinyurl.com/4bha8w7b. Acesso em: 24 maio 2021.
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).

Já entre os anos de 2001 e 2010, à medida que o ensino de ciências passava a articular e se preocupar com a alfabetização científica, aspectos como mediação e elementos mediadores, conceitos como zona de desenvolvimento proximal (ZDP) e interação social ganharam espaço nas pesquisas, ou seja, o autor soviético ganha cada vez mais destaque (Bonfim; Solino; Gehlen, 2019BONFIM, V.; SOLINO, A. P.; GEHLEN, S. T. Vygotsky na pesquisa em educação em ciências no Brasil: um panorama histórico. Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias, Vigo, v. 18, n. 1, p. 224-250, 2019. Disponível em: https://tinyurl.com/4bha8w7b. Acesso em: 24 maio 2021.
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).

O último agrupamento cronológico presente no trabalho das autoras se refere ao período de 2011 a 2016, em que o ensino de ciências demonstrou preocupações e dimensões políticas e sociais e, consequentemente, a característica humanizadora, e as ideias de Vigotski sobre a interação social e sua contribuição na construção de conceitos ganharam espaço nas discussões e análises (Bonfim; Solino; Gehlen, 2019BONFIM, V.; SOLINO, A. P.; GEHLEN, S. T. Vygotsky na pesquisa em educação em ciências no Brasil: um panorama histórico. Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias, Vigo, v. 18, n. 1, p. 224-250, 2019. Disponível em: https://tinyurl.com/4bha8w7b. Acesso em: 24 maio 2021.
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).

É interessante apontar que em revisão encontrada no artigo de Bonfim, Solino e Gehlen (2019)BONFIM, V.; SOLINO, A. P.; GEHLEN, S. T. Vygotsky na pesquisa em educação em ciências no Brasil: um panorama histórico. Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias, Vigo, v. 18, n. 1, p. 224-250, 2019. Disponível em: https://tinyurl.com/4bha8w7b. Acesso em: 24 maio 2021.
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observaram-se textos que se apropriaram da teoria vigotskiana explorando, principalmente, a ZDP e os conceitos espontâneos e científicos, porém em alguns deles se sentiu falta de uma descrição detalhada da importância de se observar e considerar a zona de desenvolvimento proximal nas atividades de sala de aula, por exemplo. Por outro lado, esses artigos demonstraram a importância da continuidade de estudos sobre a formação de conceitos e reforçaram a necessidade de que outros trabalhos sejam elaborados no sentido de aproximar a abordagem vigotskiana das salas de aula, num movimento de valorizar os conhecimentos científicos construídos historicamente e fundamentais para a vivência humana por promover a aprendizagem e desenvolvimento dos sujeitos.

Dada a importância dessas pesquisas como contributo à difícil discussão de conceitos espontâneos e científicos, vale citar algumas delas: Boss et al. (2012)BOSS, S. L. B.; SOUZA FILHO, M. P.; MIANUTTI, J.; CALUZI, J. J. Inserção de conceitos e experimentos físicos nos anos iniciais do ensino fundamental: uma análise à luz da teoria de Vigotski. Ensaio: pesquisa em educação em ciências, Belo Horizonte, v. 14, n. 3, p. 289-312, 2012. DOI: https://doi.org/gg5z9f.
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, Castro e Bejarano (2012)CASTRO, D. R.; BEJARANO, N. R. R. O perfil de conhecimento sobre seres vivos pelos estudantes da COOPEC: uma ferramenta para planejar um ensino de ciências. Ensaio: pesquisa em educação em ciências, Belo Horizonte, v. 14, n. 3, p. 261-274, 2012. DOI: https://doi.org/ggwm4h.
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, Castro et al. (2016)CASTRO, D. R.; GUERRA, J. A.; SANTOS, K. B.; SANTOS, S. P.; SANTOS, S. R. M.; AMORIM, T. S. Os conhecimentos prévios sobre ser vivo/célula dos estudantes ingressos no curso de engenharia da pesca. Ensaio: pesquisa em educação em ciências, Belo Horizonte, v. 18, n. 3, p. 73-96, 2016. DOI: https://doi.org/gg5z8k.
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, Cunha e Dickman (2018)CUNHA, E. L.; DICKMAN, A. G. O estudo da óptica na modalidade de educação para jovens e adultos (EJA) por meio de uma sequência didática diversificada. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, Florianópolis, v. 35, n. 1, p. 262-289, 2018. DOI: https://doi.org/mvhs.
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, Gaspar e Monteiro (2005)GASPAR, A.; MONTEIRO, I. C. C. Atividades experimentais de demonstrações em sala de aula: uma análise segundo o referencial da teoria de Vygotsky. Investigações em Ensino de Ciências, Porto Alegre, v. 10, n. 2, p. 227-254, 2005. Disponível em: https://tinyurl.com/3kxp22zr. Acesso em: 18 jun. 2021.
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, Gehlen e Delizoicov (2020)GEHLEN, S. T.; DELIZOICOV, D. A função do problema: aproximações entre Vygotsky e Freire para a educação em ciências. Investigações em Ensino de Ciências, Porto Alegre, v. 25, n. 2, p. 347-368, 2020. DOI: https://doi.org/mvht.
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, Gehlen, Maldaner e Delizoicov (2012)GEHLEN, S. T.; MALDANER, O. A.; DELIZOICOV, D. Momentos pedagógicos e as etapas da situação de estudo: complementaridade e contribuições para a educação em ciências. Ciência & Educação, Bauru, v. 18, n. 1, p. 1-22, 2012. DOI: https://doi.org/ggwm9f.
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.

Em que lugar das pesquisas vigotskianas este estudo se encontra?

É importante apresentar o foco do presente trabalho, destacando, primeiramente, uma preocupação que norteou a abordagem vigotskiana da pesquisa. Para isso, a referência utilizada foi Duarte (2011)DUARTE, N. Vigotski e o “aprender a aprender”: críticas às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana. 5. ed. rev. Campinas: Autores Associados, 2011.. Secundariamente, adentra-se na discussão da construção dos conceitos científicos, que foi justamente o objetivo principal da elaboração e aplicação da sequência didática.

No Brasil, de acordo com Prestes (2010, p. 66)PRESTES, Z. R. Quando não é quase a mesma coisa: análise de traduções de Lev Semionovitch Vigotski no Brasil: repercussões no campo educacional. 2010. 295 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de Brasília, Brasília, 2010. Disponível em: https://tinyurl.com/ymp228mj. Acesso em: 17 abr. 2024.
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, os primeiros trabalhos que apresentaram Vigotski como referência eram da área de Educação em Ciências e o pioneiro deles remonta ao ano de 1986. Isso demonstra a importância das orientações histórico-culturais no campo da pesquisa em ensino de ciências.

Nas obras de Vigotski observa-se o materialismo como um marco importante do estudo dos fenômenos “como processos em movimento e em mudança” (Vigotski, 2007, p. xxvVIGOTSKI, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.) e esse aspecto, para o autor, é fundamental e contribuiu para que encaminhasse sua teoria. Se há movimento e mudança, é perceptível que haja, também, um tempo para que ocorram, um contexto e sujeitos bem definidos. Ou seja, há uma historicidade nessas ações, uma vez que se assume que há “a especificidade do ser humano como um ser histórico, social e cultural” (Duarte, 2011, p. 250DUARTE, N. Vigotski e o “aprender a aprender”: críticas às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana. 5. ed. rev. Campinas: Autores Associados, 2011.).

Para Duarte (2011, p. 239)DUARTE, N. Vigotski e o “aprender a aprender”: críticas às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana. 5. ed. rev. Campinas: Autores Associados, 2011., a abordagem vigotskiana baseia-se na “perspectiva marxista do ser humano, da história e da cultura”. Tuleski (2008, p. 37)TULESKI, S. C. Vygotski: a construção de uma psicologia marxista. 2. ed. Maringá: Eduem, 2008. diz: “[...] os pontos cruciais desta psicologia se baseiam nos princípios do materialismo histórico e dialético”. Duarte (2011, p. 233-234)DUARTE, N. Vigotski e o “aprender a aprender”: críticas às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana. 5. ed. rev. Campinas: Autores Associados, 2011. complementa:

[...] Vigotski adotava o pressuposto marxista de que por meio do trabalho o ser humano vem, ao longo da história social, criando o mundo da cultura humana e que o mundo social não pode ser explicado como uma continuação direta das leis que regem os processos biológicos.

Estudos sistemáticos acerca da educação escolar voltam-se para a apropriação dos conceitos científicos, os quais o autor soviético afirmava já serem “historicamente construídos pelo ser humano e, portanto, já possuem uma existência sócio-objetiva ao indivíduo que vai aprender tais conceitos” (Duarte, 2011, p. 239DUARTE, N. Vigotski e o “aprender a aprender”: críticas às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana. 5. ed. rev. Campinas: Autores Associados, 2011.). Para Vigotski, o desenvolvimento intelectual discente é responsabilidade da educação escolar (Duarte, 2011, p. 241DUARTE, N. Vigotski e o “aprender a aprender”: críticas às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana. 5. ed. rev. Campinas: Autores Associados, 2011.).

Duarte (2011)DUARTE, N. Vigotski e o “aprender a aprender”: críticas às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana. 5. ed. rev. Campinas: Autores Associados, 2011. afirma que existe grande quantidade de trabalhos que identificam Vigotski como referencial teórico ou que abordam suas ideias, porém a maioria está vinculada ao que dizem seus intérpretes e tradutores, ao invés de retratar o que o próprio autor escreveu. Ao ler as produções do autor afastando-o do materialismo, retiram-se todas as preocupações e o contexto em que ele se baseou ao formular suas postulações e, provavelmente, interpretações mais próximas do senso comum e simplistas são elaboradas. Como, por exemplo, atribuir o referencial teórico de um trabalho ou pesquisa como de abordagem vigotskiana, considerando apenas a interação social promovida entre os sujeitos.

Duarte (2011, p. 199-200)DUARTE, N. Vigotski e o “aprender a aprender”: críticas às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana. 5. ed. rev. Campinas: Autores Associados, 2011. acredita que essas ações realizadas nas obras de Vigotski tinham a finalidade de “[...] descaracterizar a conotação fortemente crítica [...] ao pensamento de Piaget como também ao idealismo presente”, recriando um autor ‘menos marxista’ e mais próximo do ‘pragmatismo norte-americano’.

Esses apontamentos de Duarte (2011)DUARTE, N. Vigotski e o “aprender a aprender”: críticas às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana. 5. ed. rev. Campinas: Autores Associados, 2011. compõem a sua lista de “[...] procedimentos de diluição, secundarização ou neutralização do caráter marxista da teoria de Vigotski” citada anteriormente. Essas críticas mobilizaram os estudos da presente pesquisa, tentando eliminar algumas simplificações ideológicas, como também as de natureza pedagógicas.

Na tentativa de contornar simplificações ideológicas, houve a escolha pelo trabalho realizado na escola, tomada como o lugar da apropriação de conceitos que estavam postos em circulação no cotidiano dos estudantes há, pelo menos, dois anos. Apesar dessa circulação cotidiana, o currículo oficial não trazia a pandemia e assuntos correlatos para abordagem sistemática. Para usar as palavras de Duarte (2011)DUARTE, N. Vigotski e o “aprender a aprender”: críticas às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana. 5. ed. rev. Campinas: Autores Associados, 2011., a tentativa foi a de adequar a existência sócio objetiva da vida pandêmica a conceitos sistematizados.

Sobre as simplificações pedagógicas, concorda-se com Pereira e Lima Junior (2014, p. 522)PEREIRA, A. P.; LIMA JUNIOR, P. Implicações da perspectiva de Wertsch para a interpretação da teoria de Vygotsky no ensino de física. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, Florianópolis, v. 31, n. 3, p. 518-535, 2014. DOI: https://doi.org/mvhx.
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ao afirmarem que dentre os erros mais comuns encontrados na literatura de fundamentação vigotskiana, estão: “[...] (a) a interação social como negociação de significados; (b) a noção de professor como mediador do conhecimento; (c) a noção de livro didático como parceiro mais capaz; (d) o desenvolvimento como a construção de novas estruturas cognitivas”. A elaboração da sequência didática e, sobretudo, a análise, que é foco do trabalho, tentaram se distanciar do que os autores nomearam como erros mais comuns.

Uma vez apresentadas as escolhas e preocupações, ainda resta aclarar a questão teórica mais central do estudo, relacionada à elaboração conceitual. Concorda-se com Rego (2014, p. 75-76)REGO, T. C. Vygotsky: uma perspectiva histórico-cultural da educação. 25. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. quando, ao iniciar um capítulo destinado aos conceitos e ao papel da escola diz: “[...] este é um tema de extrema importância nas proposições de Vygotsky, pois integra e sintetiza suas principais teses acerca do desenvolvimento humano [...]”.

Para Vigotski (2009)VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009., a formação de conceitos e o pensamento abstrato se desenvolvem nas pessoas após a puberdade, depois dos doze anos, fase da vida em que as funções mentais superiores estão mais desenvolvidas. Além disso, para que o adolescente possa formar um conceito, ele precisa ser colocado em alguma situação que necessite da solução de problemas. “Só com o resultado da solução desse problema surge o conceito” (Vigotski, 2009, p. 237VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.). É necessário reconhecer que o desenvolvimento dos processos que, finalmente, culminam na formação de conceitos começam na fase mais precoce da infância, mas as funções intelectuais que, numa combinação específica, constituem a base psicológica do processo de formação de conceitos, amadurecem, configuram-se e se desenvolvem somente na puberdade (Vigotski, 2009, p. 167VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.).

Outro ponto de destaque são os conceitos espontâneos e científicos. Ambos são conceitos que coexistem no desenvolvimento dos sujeitos, sendo os conceitos espontâneos oriundos das experiências pessoais, do cotidiano, das relações estabelecidas e os conceitos científicos não-espontâneos, provenientes da aprendizagem escolar (Rego, 2014REGO, T. C. Vygotsky: uma perspectiva histórico-cultural da educação. 25. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.; Vigotski, 2009VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.). Entende-se que os dois conceitos são importantes, uma vez que “[...] o desenvolvimento dos conceitos espontâneos e científicos – cabe pressupor – são processos intimamente interligados, que exercem influências um sobre o outro” (Vigotski, 2009, p. 261VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.). Ou seja, eles estão sempre em interação, pelo fato de o conceito científico “[...] apoiar-se em um determinado nível de maturação dos conceitos espontâneos” (Vigotski, 2009, p. 261VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.) para se desenvolver.

Vigotski (2009, p. 263)VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. ainda diz: “[...] naquilo que os conceitos científicos são fortes os espontâneos são fracos, e vice-versa, a força dos conceitos espontâneos acaba sendo a fraqueza dos científicos”. Eles existem ao mesmo tempo, mas não com a mesma intensidade. O início da formação dos conceitos científicos se dá quando o aluno é apresentado a uma nova palavra, um novo termo, um novo significado. Isso desencadeará o “[...] desenvolvimento de uma série de funções” como “atenção arbitrária, memória lógica, abstração, comparação, discriminação” (Vigotski, 2009, p. 246VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.).

A palavra, para Vigotski, possui relevância pois os conceitos psicológicos concebidos evoluem como significados das palavras. A essência do seu desenvolvimento é, em primeiro lugar, a transição de uma estrutura de generalização a outra. Em qualquer idade, um conceito expresso por uma palavra representa uma generalização. Mas, os significados das palavras evoluem. Quando uma palavra nova, ligada a um determinado significado, é apreendida pela criança, o seu desenvolvimento está apenas começando; no início ela é uma generalização do tipo mais elementar que, à medida que a criança se desenvolve, é substituída por generalizações de um tipo cada vez mais elevado, culminando o processo na formação dos verdadeiros conceitos (Vigotski, 2009, p. 246VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.).

Não é possível conceber a formação de conceito científico por meio da memorização, eles não podem simplesmente ser decorados durante as aulas, “[...] mas surgem e se constituem por meio de uma imensa tensão de toda a atividade do seu próprio pensamento” (Vigotski, 2009, p. 260VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.). De acordo com o autor, pode-se afirmar que o processo de aprendizagem é fundamental para o desenvolvimento humano, demarcado por ele como “o momento decisivo e determinante de todo o desenvolvimento intelectual da criança, inclusive do desenvolvimento dos seus conceitos [...]” (Vigotski, 2009, p. 262VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.). Além de possibilitar a aproximação aos conhecimentos científicos elaborados historicamente e a formação de conceitos por parte dos estudantes, o período escolar é crucial para que o estudante descubra “a capacidade para a tomada de consciência e a arbitrariedade” já que “o desenvolvimento dessa capacidade é o que constitui o conteúdo principal de toda a idade escolar [...]” (Vigotski, 2009, p. 283VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.).

De acordo com as explicações do autor, diz-se que os conceitos espontâneos estão numa fase não conscientizada do aluno; e os conceitos científicos estão relacionados com “[...] tomada de consciência dos conceitos, ou melhor, a sua generalização e a sua apreensão parecem surgir antes de qualquer coisa”, uma vez que a “tomada de consciência se baseia na generalização dos próprios processos psíquicos” e, para o autor, este é o “papel decisivo do ensino” (Vigotski, 2009, p. 290VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.). Pode-se complementar que a “generalização significa ao mesmo tempo tomada de consciência e sistematização de conceitos” (Vigotski, 2009, p. 292VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.). Aí está a relevância da aprendizagem escolar, não apenas no sentido de desenvolver conceitos, mas de entender que a formação de conceitos científicos é algo complexo e se apoia nos conceitos espontâneos. Nesse sentido, não se trata de excluir o que o aluno conhece sobre algum assunto, mas de, a partir disso, estabelecer caminhos para que ocorra a aprendizagem e, com isso, possa se desenvolver de modo consciente, aplicando os conceitos científicos com a mesma naturalidade que aplica os conceitos espontâneos.

Metodologia

A aplicação da sequência didática da pesquisa foi realizada no ano de 2022, com estudantes de ensino médio de uma escola pública estadual, localizada em um dos bairros periféricos de um município do interior do Estado de São Paulo, que possui cerca de trinta e três mil habitantes. Atualmente, a escola integra o Programa de Ensino Integral (PEI) e atua com o ensino regular, concomitantemente. É composta pelo ensino fundamental de anos finais no período da manhã e o ensino médio no período vespertino-noturno (público da pesquisa) do PEI, e pelo ensino médio regular e pela Educação de Jovens e Adultos (EJA) no período noturno. É importante salientar que a escola era também sede de trabalho da professora-pesquisadora desde o ano de dois mil e dezoito.

A pesquisa se estruturou a partir da elaboração e aplicação de uma sequência didática que foi produzida abordando como tema central a pandemia da COVID-19. O contexto pandêmico foi escolhido para o desenvolvimento da pesquisa pela atualidade do assunto e, portanto, com potencial de estabelecer sentido real para alunos e alunas.

Atrelado a isso, havia duas preocupações que convergiram e impulsionaram o trabalho, demonstrando o elo professora-pesquisadora. Como professora da área de Ciências da Natureza, houve a preocupação em superar (pelo menos em partes) a falta de embasamento e oportunidades de conhecimentos sobre a pandemia que havia observado entre os alunos e alunas. Somado a isso, a vivência da implementação da reforma do Novo Ensino Médio denunciou a ausência da abordagem sistematizada sobre o tema no currículo e, por consequência, sua ausência nas aulas, evidenciando o distanciamento entre conhecimento científico e o cotidiano. Daí a pergunta: de que forma uma pesquisadora atenta à aprendizagem dos estudantes e que se questiona sobre a sua prática deixaria esse contexto isento de problematização e do seu potencial para a produção de conhecimento?

Devido ao contexto de reforma, a sequência didática foi elaborada para ser aplicada em uma disciplina eletiva que, junto com as disciplinas de Projeto de Vida e Tecnologia e Inovação, compõem o Programa Inova Educação, lançado em 2019 em São Paulo e, em 2020, difundido por todo o estado (Goulart; Alencar, 2021GOULART, D. C.; ALENCAR, F. Inova educação na rede estadual paulista: programa empresarial para formação do novo trabalhador. Germinal: marxismo e educação em debate, Salvador, v. 13, n. 1, p. 337-366, 2021. Disponível em: https://tinyurl.com/4xhxtehb. Acesso em: 10 ago. 2022.
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).

No componente curricular em questão, a programação fica inteiramente a cargo dos docentes; os temas precisam atender aos interesses de estudantes matriculados nas aulas de projeto de vida; as turmas são formadas de modo multisseriado por meio da escolha dos próprios estudantes e, ao final de cada semestre ocorre uma culminância – atividade de finalização já prevista pelo Programa Inova Educação – dos trabalhos desenvolvidos.

Dessa forma, houve o entendimento de que ao abordar a pandemia da COVID-19 em uma disciplina eletiva, haveria a oportunidade de discutir assuntos desconhecidos e muito importantes para os dias atuais, coerente com interesses vocacionais voltados para áreas de saúde, áreas científicas, entre outras. Sendo a pandemia do novo coronavírus um exemplo de assunto da vida que não se compartimenta em disciplinas isoladas, a sequência didática foi pensada de modo a trazer aspectos interdisciplinares para cada etapa de trabalho. Ou seja, a vida cotidiana ‘pede’ vários conhecimentos integrados. Não há como entender o combate, prevenção, consequências, etc da doença causada pelo vírus SARS-CoV-2, bem como as consequências relacionadas à pandemia sem o aporte de várias áreas do conhecimento. A partir do momento em que a pandemia foi confirmada, o noticiário demonstrou a corrida de pesquisadores e instituições com os estudos sobre o vírus – até então desconhecido –, taxa de infecção, taxa de mortalidade, cálculos sobre quantidade de leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) disponíveis, métodos e campanhas de prevenção e conscientização, locais mais propensos, pessoas em condição de grupo de risco, impactos sociais, econômicos e psicológicos, sequelas da doença.

Após a escolha pela temática, o passo seguinte foi a elaboração da sequência didática e a estruturação da disciplina eletiva, ministrada por dupla de professores (professora-pesquisadora de ciências e professor de filosofia). As etapas de trabalhos foram denominadas por momentos, entendendo que o desenvolvimento dos assuntos poderia abranger mais de uma aula ou mais de um assunto por aula, de acordo com o ritmo de aprendizagem. Na construção dos momentos foi contemplado o processo de aprendizagem esperado. Vale mencionar que todo o desenvolvimento da pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da universidade sob o número CAAE nº 57861622.0.0000.5504.

Os resultados descritos e discutidos a seguir têm por referência a elaboração do conceito de vírus por estudantes, a partir de questões específicas de três instrumentos (que serão melhor descritos na sequência): questionário de levantamento de ideias prévias (doravante nomeado LIP); questionário intermediário e estudo de síntese (doravante nomeado ES), que envolveu uma tentativa de formulação de análise e aplicação conceitual por parte dos estudantes.

Resultados e discussões

De um modo geral, analisando os três instrumentos (também podem ser referidos como questionários) aplicados, é possível perceber que houve avanços diante do modo como os alunos e alunas comunicavam o assunto antes, durante e depois da realização da sequência didática. A demonstração mais detalhada da produção desses dados se dará a partir da categorização realizada após a análise de cada instrumento/questionário. As citações das respostas dos alunos e alunas estão indicadas por letras: A1, A2, A3 etc, com a finalidade de garantir sua privacidade. A transcrição dessas respostas foi realizada mantendo-as exatamente como foram escritas.

Apesar de haver diferentes perguntas no LIP que buscam identificar as ideias de estudantes sobre vírus e os impactos da pandemia, o artigo voltou-se para as respostas da questão número 1, qual seja:

Em termos biológicos, o que é vírus?

A primeira atividade tinha por objetivo conhecer o entendimento mais geral acerca do termo vírus. Vale salientar que neste LIP, todos os respondentes (26 discentes), sem exceção, veem o grupo dos vírus como algo ruim, algo causador de doenças. Ramos (2021, p. 302)RAMOS, R. S. O vírus e o conceito de vida em tempos de pandemia. Revista Princípios, São Paulo, n. 16, p. 299-328, 2021. DOI: https://doi.org/mvhz.
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explica que

Para a população humana de modo geral, os vírus são seres microscópicos patogênicos: normalmente ela não leva em consideração as relações de cunho ecológico desses organismos, numa perspectiva sistêmica que culmina na biosfera, como as simbioses presentes nas relações com muitos seres vivos, formando uma microbiota junto com outros microrganismos que se beneficiam mutuamente; além disso, eles contribuem na ciclagem de matéria orgânica e no “controle” numérico das populações com as quais se relacionam.

Isso é observado nas respostas, quando indicam: moléculas do mal, agente infeccioso, dentre outros. Também, algo que aparece em todas as respostas é a utilização predominante de terminologias escolarizadas como hospedeiro, parasitas, agentes, mostradas nas seguintes respostas:

A7 – Um organismo que se hospeda em nosso corpo.

A21 – Ao meu ver, vírus são ‘parasitas’ causadores de doenças.

A26 – Agentes causadores de doenças.

O papel dos vírus para a manutenção do sistema imunológico dos seres vivos e para a própria manutenção equilibrada das bactérias nos organismos não aparece nas respostas. Acredita-se que a recente e grave crise da COVID-19 tenha colaborado para o predomínio e a manutenção desse entendimento. Isso é reiterado quando se observa a questão 2 e estudantes demonstram conhecerem os principais vírus causadores de boa parte das doenças mais discutidas na escola e/ou canais de divulgação (gripe, febre amarela, HIV, gripe espanhola, dengue, zika vírus, ebola, gripe suína).

A partir do LIP foi possível agrupar as respostas em três categorias, as quais estão descritas e exemplificadas a seguir.

1. Ser vivo intracelular contaminante. Exemplos:

A1É um microorganismo que entra nos organismos e contamina as células.

A5É uma bactéria que causa alguma doença.

A7Um organismo que se hospeda em nosso corpo.

A8Se não me engano vírus é uma bactéria que contamina as células de um ser.

A9É um agente infeccioso que pode causar doença.

A11Vírus são parasitas que causarão várias doenças ao homem.

2. Itens microscópicos prejudiciais à saúde. Exemplos:

A2Vírus é uma molécula do mal.

A4Vírus são pequenos agentes infecciosos.

A10Microorganismo que vive na terra que não podemos ver e que é prejudicial à saúde.

3. Vírus como doença. Exemplos:

A3Vírus é uma doença muito perigosa.

A12São doenças que se destacam principalmente pelas doenças causadas no homem.

A14Um termo usado para especificar uma doença letal.

A18Uma doença que ataca o sistema imunológico e pode matar.

Essas categorias reforçam as observações anteriormente apontadas sobre as respostas de alunos e alunas. A categoria Ser vivo intracelular contaminante expressa definições que denotam o vírus como algo vivo que causa contaminação ao entrar nas células. Portanto, apesar de citarem como algo vivo, demonstram ter a noção de que os processos virais acontecem no interior das células.

Já na categoria Itens microscópicos prejudiciais à saúde as respostas também apontam para algo que faz mal à saúde, ou seja, o mesmo sentido de contaminação. Porém, a diferença está no emprego de termos diferentes de ser vivo, organismos, bactérias, por exemplo. São utilizados termos como molécula, agentes, microrganismo1 1 O termo microrganismo remete a algo vivo, porém incluímos esta resposta na segunda categoria por trazer a ideia de algo muito pequeno..

E, na terceira categoria, Vírus como doença, as partículas virais são conceituadas como doença, um entendimento bastante espontâneo haja vista o cenário pandêmico.

No LIP, o termo vírus foi definido de modo a se distanciar de seu conceito científico em muitas respostas. Houve quem associou vírus às “bactérias causadoras de doenças” e quem o definiu como “organismo unicelular”, por exemplo. O termo também foi associado a “parasita” e “agentes que causam doenças”, bem como a “organismo que se hospeda em nosso corpo”. Embora algumas respostas apresentem características que podem ser atribuídas aos vírus, pouco se observa o domínio do conhecimento biológico já que as descrições discentes demonstram apropriações fragmentadas sobre o assunto, evidenciando um conteúdo fragilizado e precisa ser problematizado.

Após o desenvolvimento da sequência didática foi aplicado o questionário intermediário – segundo instrumento de pesquisa – e este serviu para demonstrar os avanços conceituais. Neste caso, foi observado uma maior quantidade de terminologias escolarizadas, permitindo não avaliar o correto ou o incorreto, mas a apropriação relevante de termos como “unicelular”, “acelular”, “intracelular” etc. Neste questionário, foi possível agrupar as respostas sobre o que é vírus em três novas categorias, sendo:

1. Apropriações de termos relevantes ao conceito de vírus. Exemplos:

A3Vírus é um parasita, que ataca as células para se reproduzir

A28Vírus é um parasita que ataca as células.

A9Um parasita que se hospeda no corpo humano e causa doenças.

A20São pequenos agentes infecciosos.

A8Vírus é um ser acelular que invade o nosso corpo.

A5Vírus são parasitas intracelulares, de estrutura simples e que só se reproduzem dentro das células.

2. Vírus como ser vivo. Exemplos:

A1Um organismo unicelular que entra em outros organismos para infectá-los.

A7Um organismo que se aloja no nosso corpo.

3. Vírus como doença. Exemplos:

A12Vírus é uma doença transmitida pelo contato e pelo ar.

A30Vírus é um tipo de doença que afeta o sistema imunológico [parasita].

A17Vírus se trata de uma doença que se contrai, que não é algo vivo como uma bactéria.

A categoria Apropriações de termos relevantes ao conceito de vírus é composta pela maioria das respostas e compreende menções a termos como “intracelular”, “parasita”, “agente infeccioso” e “acelular que invade o corpo”, entre outros. É a categoria que mais se aproxima do conceito biológico de vírus e é possível inferir que o trabalho com a sequência didática contribuiu para essa elaboração.

Na categoria Vírus como ser vivo, as respostas são parecidas com a categoria Ser vivo intracelular contaminante, identificada no LIP pois, estudantes deste grupo ainda apresentam o vírus como algo vivo que irá adentrar no corpo humano. Já a categoria Vírus como doença foi identificada tanto no LIP quanto nesse questionário intermediário, reforçando a associação de vírus com o contexto pandêmico. De acordo com Vigotski (2009, p. 230)VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.,

O adolescente forma o conceito, emprega-o corretamente em uma situação concreta, mas tão logo entra em pauta a definição verbal desse conceito o seu pensamento esbarra em dificuldades excepcionais, e essa definição acaba sendo bem mais restrita que a sua aplicação viva.

Por exemplo, quando questionado sobre o que é vírus no LIP, o aluno A8 respondeu “Se não me engano vírus é uma bactéria que contamina as células de um ser” e no questionário intermediário escreveu que “Vírus é um ser acelular que invade o nosso corpo”. Ou seja, a princípio ele definia vírus como bactéria. Apesar de não demostrar total domínio do conhecimento biológico, compreende (é possível afirmar isso ao analisar outras respostas do questionário), que “eles só se reproduzem no meio de uma célula viva”, que “é como uma gripe, pode se alastrar facilmente”. Está inserido na categoria Apropriações de termos relevantes ao conceito de vírus.

Já o aluno A23 responde que vírus “É um organismo unicelular que causa alguma reação ao ser que ele habita, podendo levar à morte do indivíduo que adquiriu tal vírus” e, posteriormente, responde ao mesmo questionamento que vírus “São pequenos agentes infecciosos que só podem ser vistos com um microscópio, ele utiliza outros seres vivos para se proliferar e reproduzir”. Quando menciona organismo unicelular que causa alguma reação, provavelmente, se recorda do conceito de bactérias, considerando que cursava a terceira série do ensino médio. Diante disso, é possível dialogar com Fontana (1993)FONTANA, R. A. C. A elaboração conceitual: a dinâmica das interlocuções na sala de aula. In: SMOLKA, A. L. B.; GÓES, M. C. R. (org.). A linguagem e o outro no espaço escolar: Vygotsky e a construção do conhecimento. 2. ed. Campinas: Papirus, 1993. p. 121-151., quando, ao discorrer sobre o papel da escolarização, aponta os conceitos espontâneos e sistematizados, afirmando que “[...] no processo de elaboração da criança, eles [os conceitos] articulam-se dialeticamente. Frente a um conceito sistematizado desconhecido, a criança busca significá-lo por meio de sua aproximação com outros já conhecidos, já elaborados e internalizados” (Fontana, 1993, p. 125FONTANA, R. A. C. A elaboração conceitual: a dinâmica das interlocuções na sala de aula. In: SMOLKA, A. L. B.; GÓES, M. C. R. (org.). A linguagem e o outro no espaço escolar: Vygotsky e a construção do conhecimento. 2. ed. Campinas: Papirus, 1993. p. 121-151.). Isso foi também demonstrado na escrita do aluno A8.

Quanto à segunda resposta do aluno A23, ele cita poder ver os vírus com microscópio, mas não especifica o tipo do aparelho. É importante destacar que com o microscópio de luz, comumente presente nas instituições da educação básica, não é possível observar um vírus. Apenas com microscópios mais específicos, presentes em instituições de pesquisa, pode-se fazer essa observação ainda que limitada aos contornos e formas do objeto de estudo.

Além disso, o trecho da resposta “ele utiliza outros seres vivos” pode indicar que o estudante ainda entenda que vírus também seja um ser vivo, ao mesmo tempo que diz que eles “são pequenos agentes infecciosos”. Há uma possibilidade de que este conceito esteja na complexa zona de desenvolvimento proximal de A23, ou seja, ainda precisaria de suporte da professora para relembrar as características dos seres vivos e fazer as devidas distinções. Porém, ele entende que “eles precisam de um indivíduo para se rproduzir”.

O aluno A21 explora com mais propriedade o fato de vírus serem parasitas intracelulares, elaborando respostas em momentos distintos que se complementam parcialmente. No LIP ele escreveu que “a meu ver, vírus são ‘parasitas’ causadores de doenças” e no questionário intermediário, “vírus são agentes infecciosos intracelulares”. Percebe-se uma boa apropriação dos conhecimentos biológicos, uma vez que em respostas a outras perguntas ele afirma que os vírus são “intracelulares, ou seja, eles só se reproduzem dentro das células”, que a transmissão da COVID-19 é feita por meio de “gotículas de saliva, contato com pessoas infectadas etc. A transmissão é muito rápida”, e que as vacinas “diminuem os impactos dos vírus”.

A aluna A26, assim como A21, faz uso do termo intracelular ao se referir ao ambiente dos vírus. Tem um avanço notório na formação de conceitos, uma vez que no LIP ela descreveu vírus como “Agentes causadores de doenças” e no questionário intermediário definiu como “um parasita intracelular”. Ela pontua que a vacina “cria imunidade para determinada doença”.

Já para a aluna A18 o conceito de vírus parece também estar na sua zona de desenvolvimento proximal uma vez que, primeiramente, afirma que vírus é “uma doença que ataca o sistema imunológico e pode matar” e, em seguida, escreve que vírus é “um parasita”, demonstrando pouco domínio sobre o assunto.

Há quem definiu vírus de modo semelhante nos dois questionários. Por exemplo, o aluno A17 responde primeiramente que “vírus é [sic] células ou bactérias que resulta uma doença em nosso corpo, dependendo pode causar a morte” e, depois, escreve que “vírus se trata de uma doença que se contrai, que não é algo vivo como uma bactéria”. Para ele, vírus se trata de uma doença, o que diferencia as respostas é o fato de pontuar, posteriormente, que é algo diferente de bactéria. Ele tem noção de que a transmissão viral é “rápida, exponencial”.

Semelhante ao estudante A17, a aluna A7 afirma no LIP que o vírus é “um organismo que se hospeda em nosso corpo” e, posteriormente, no questionário intermediário responde que é “um organismo que se aloja no nosso corpo”. Ou seja, a estudante respondeu de uma maneira muito semelhante, trocando o verbo hospedar por seu sinônimo alojar.

O estudante A2, ao responder o LIP, escreveu que “vírus é uma molécula do mal”. É interessante perceber que ele empregou o termo molécula em vez de bactéria, agentes e outros. Porém, ao responder a uma pergunta semelhante no questionário intermediário, escreve “não lembro”. Ele redigiu uma resposta no LIP e, depois, acenou que não se lembrava. Isso pode ter acontecido porque o conceito está em sua zona de desenvolvimento proximal, uma vez que, ao responder individualmente sinaliza que precisa de auxílio, precisa de mais problematizações ou que elas sejam feitas de outras formas, já que consegue reconhecer alguns aspectos do vírus como o fato de ser “transmitido de pessoa para pessoa num aperto de mão, abraço e outros meios de contato”.

Outro ponto relevante nesse processo de desenvolvimento conceitual é o reconhecimento da importância de fontes de pesquisas e informações confiáveis. No LIP, para a pergunta quais eram suas fontes de informação sobre a COVID-19, muitas respostas mencionaram as redes sociais, jornais televisivos, internet sem especificações. Ao longo da sequência didática, foram apresentados sites de instituições de pesquisas e artigos científicos sobre o assunto. O que resultou na mudança de respostas apresentadas no questionário intermediário para a mesma pergunta. Estudantes reconhecem que as fontes confiáveis para informações sobre a COVID-19 são “jornais e site dos estados” (A18), “jornais científicos e profissionais da área” (A26), “aquelas apresentadas por jornais e centro de pesquisas oficiais” (A.23), por exemplo.

O ES, último instrumento, diferente dos anteriores, foi aplicado quatro meses depois do encerramento da sequência didática com o intuito de identificar como estudantes se apropriaram dos aspectos referentes ao conceito de vírus trabalhado durante as atividades em sala de aula. Enquanto os anteriores dedicaram-se à tentativa de apresentar o grau de apreensão de conceitos centrais, de forma processual, o ES propõe exercícios que expandem o conceito escolarizado para um uso mais situado, objetivando responder a questões não necessariamente da pandemia, mas fazendo uso de conceitos debatidos a partir da pandemia. Ele evidencia como discentes relacionam os assuntos estudados com atividades que exigem certo grau de generalização. Ou seja, ao realizar as atividades propostas, este instrumento busca por interpretações aplicadas a cenários referentes e/ou parecidos à pandemia do novo coronavírus.

Para esta análise, foram consideradas as respostas de nove estudantes participantes da pesquisa que responderam a todos os questionários, o que tornou possível acompanhar de modo mais detalhado o desenvolvimento do conceito. Neste ponto, interessa identificar se os/as estudantes compreenderam aspectos relevantes da temática, o que implica ir além de respostas automáticas. Isso porque a formação de conceitos não acontece de imediato, mas começa quando há a aproximação com o novo termo, novo conceito, nova palavra (Vigotski, 2009VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.). O ES foi diferente dos instrumentos anteriores, pois optou-se por analisar as pistas que podem levar à inferência acerca dos avanços conceituais.

O aluno A8 faz um movimento interessante nas respostas do primeiro e do segundo questionários ao associar vírus à bactéria e, depois, compreender que não se trata de uma bactéria, como demostrado anteriormente. No ES, ao analisar gráficos sobre os casos de sarampo notificados em 2019 no estado de São Paulo, ele reconhece que para a pessoa com sintomas “é recomendado que ela tome os devidos cuidados para não transmitir a doença mais ainda”. Além disso, reconhece que a elevada incidência dos casos confirmados do sarampo para crianças menores de um ano está relacionada à falta de vacinação, já que começa, justamente, com doze meses de vida. O estudante reconhece que os vírus se encaixam como tema da disciplina de biologia ao responder se reconhecia assuntos escolares trabalhados na sequência didática. Além disso, atribuiu assuntos para as disciplinas de geografia, história, matemática, língua portuguesa e sociologia.

Também é possível verificar um avanço conceitual nas respostas do estudante A23 se compararmos os três questionários. Ele define vírus de maneira distinta no primeiro e segundo questionários, aproximando-se mais do conceito científico na segunda resposta. No terceiro, aplicando os conhecimentos sobre o sarampo, ele reconhece que se alguém está com sintomas de doença viral precisa de “isolamento para evitar mais contaminação”. O aluno consegue demonstrar apropriação de termos importantes para a definição de vírus, pois responde que a incidência de casos de sarampo para crianças menores de doze meses é elevada pois, “devido as crianças serem vacinadas a partir dos 12 meses elas estão mais aptas a contraírem o vírus, pois apresenta imunidade baixa”. Ele reconhece assuntos relacionados a todas as disciplinas escolares abordadas na sequência didática, mas, para a disciplina de biologia, o aluno atribuiu o “estudo dos vírus”.

A aluna A18 não demonstra grandes avanços ao conceituar vírus. Porém, compreende a importância do isolamento social quando responde que se uma pessoa estiver com sintomas de doença viral “recomenda-se que fique em casa e faça o teste da doença” quando analisou os gráficos sobre o sarampo. Analisando o gráfico sobre a incidência de sarampo em crianças, especificamente entre crianças de um a quatro anos, ela reconhece que “os casos de crianças entre 1 a 4 diminuiu, mas podemos observar que ainda há crianças que não foram vacinadas”. A estudante demarca que o assunto abordado na disciplina de biologia foi “como a doença atinge nosso sistema imunológico”, não faz referência ao vírus.

Como exposto anteriormente, o estudante A17 associou vírus a doença nos dois primeiros questionários, fazendo uma distinção importante: inicialmente vírus era célula ou bactéria e, posteriormente, ele respondeu negando que vírus é ser vivo. Porém, não conseguiu sistematizar mais características relevantes para esta entidade. Sua resposta sobre o que é necessário fazer na presença de sintomas do sarampo contemplou que as pessoas devem “ficar em casa e alertar ao hospital [...] para que isso não passe para frente”. Ele se refere à transmissão e reconhece que “a contaminação [ocorre] de forma exponencial [...]”. Além de reconhecer, também, que a alta incidência de sarampo para crianças com menos de doze meses está relacionada ao fato de não terem sido vacinadas. Mas, ao demarcar os assuntos das disciplinas escolares, listou apenas doença para a disciplina de biologia.

Já o aluno A2, responde inicialmente utilizando termos não usados pelos colegas, mas que não remetem à ideia de ser vivo e, posteriormente, afirma não lembrar e não descreve nenhuma definição para vírus. Porém, reconhece que quando as pessoas estão com sintomas é necessário “usarem máscaras e ficar na casa”, ao analisar os gráficos da propagação de sarampo em 2019 no estado de São Paulo. Além disso, entende que a vacina “aumenta a força do nosso sistema de defesa e reduziu a chance de pegar a doença”. O aluno não se apropriou de termos escolarizados sobre o vírus, suas respostas para o terceiro questionário foram mais curtas em relação ao questionário intermediário, indicando que precisava de mais suporte. Apesar disso, aponta “doenças, vírus e bactérias” como assuntos abordados nas atividades referentes à disciplina de biologia. Ou seja, ele consegue estabelecer alguma relação, ainda que rasa.

O aluno A21 também avançou na formação do conceito de vírus quando se comparam os dois questionários iniciais. Ele se apropria de termos importantes para a compreensão do conceito. No ES analisando os gráficos sobre o sarampo, responde que quando alguém apresenta sintomas deve “manter-se em isolamento social e obedecer aos meios de prevenção”. Ainda sobre os gráficos, o estudante consegue fazer uma boa interpretação ao responder sobre os casos de sarampo em crianças com menos de um ano, apontando que “a vacinação começa nessa faixa etária então estão propícios a se contaminar” e que para as crianças entre um a quatro anos “os casos diminuem e a incidência se mantém ‘estável’ em relação as demais faixas etárias”. É possível perceber que o aluno entende o assunto, mas não se aprofunda na escrita, estabelecendo relações entre diminuição dos números de casos confirmados com o fato de as crianças serem vacinadas. O mesmo movimento é notado quando ele responde sobre o significado do achatamento da curva visto em gráficos sobre a COVID-19, por exemplo. Identifica vírus e doenças como temas de biologia que foram trabalhados.

Comparando o primeiro e segundo questionários, a aluna A26 demonstrou que está no percurso do desenvolvimento do conceito. Apesar disso, não conseguiu associar o distanciamento social como um método de prevenção, como os colegas fizeram e, assim como o aluno A21, não associou a vacina como uma provável causa da diminuição dos casos confirmados de sarampo em crianças de um a quatro anos. Como assuntos trabalhados da disciplina de biologia ela listou “pandemia, vírus e a mutação deles”.

Já a aluna A7, apesar de não ter demonstrado avanços na formação do conceito ao escrever o que é vírus nos dois primeiros questionários, demonstra ter compreendido que os casos confirmados de sarampo em crianças menores de um ano aconteceram porque “ainda não foram vacinadas” e que entre um a quatro anos “os números começam a diminuir por conta da vacinação”. Ela apontou os assuntos vírus e bactérias como os que foram abordados nas atividades relacionados à disciplina de biologia.

Por fim, a aluna A4, como discutido anteriormente, apresentou muitos termos próximos ao conceito de vírus que não foram citados por seus colegas. Quando analisadas suas respostas ao ES, observa-se poucos avanços conceituais. Por exemplo, ao escrever o que é recomendado fazer se a pessoa está com suspeita/sintomas da doença viral, a aluna afirmou que “é recomendado ela comer alimentos leves, fazer repouso, tomar vacina”, divergindo das respostas de seus colegas que pontuaram a importância do isolamento social, por exemplo. O que demonstra que as apropriações foram mínimas. Ela reconheceu a importância da vacina ao mencioná-la, mas não explorou o conceito mais detalhadamente, principalmente ao fato de ser algo preventivo. Isso ficou evidente ao não conseguir estabelecer relações com os gráficos sobre a contaminação de sarampo em 2019, bem como ao não listar nenhum assunto da disciplina de biologia trabalhado na sequência didática.

Considerações finais

Para finalizar o texto, é importante retomar que todo o processo abordado nesta pesquisa teve como foco central a sala de aula e as possibilidades acenadas pela prática docente e pelo contexto da escola. Para tal, contou com o ‘olhar’ atento da professorapesquisadora que, a partir de escolhas relacionadas à metodologia e referencial teórico, possibilitou avançar na formação de conceito científico por parte de estudantes.

O contexto de trabalho exposto é relevante, na medida em que, tanto a pandemia, já bastante retratada em artigos da área educacional, quanto o processo de reforma vigente no Brasil apresentaram entraves e reformulações pedagógicas e políticas que impactaram o ensino de um modo geral e, portanto, também o ensino de ciências. Tais temáticas não foram o foco do texto, mas se constituem como o cenário em que a pesquisa se desenvolveu e justificam, especialmente, a abordagem da sequência didática utilizada pela professora pesquisadora para as sínteses aqui apresentadas. Em outras palavras, visando estudar o desenvolvimento de conceitos relacionados à pandemia da COVID-19 e com recorte específico para o conceito de vírus, estruturou-se um trabalho de sala de aula, a partir de disciplina eletiva que possibilitou produzir dados acerca do desenvolvimento de conceitos de estudantes do ensino médio.

De todo o trabalho realizado, observou-se apropriação paulatina acerca do conceito de vírus e, conforme se espera, em diferentes estratos da zona de desenvolvimento proximal. De três instrumentos de pesquisa, o último deles propôs questões em que o/a estudante deveria mobilizar conceito para outros contextos, inclusive não pandêmicos. Foi possível mostrar que, embora em número muito menor (somente nove estudantes responderam a todos os instrumentos de pesquisa), houve uma apropriação relevante das discussões e tarefas realizadas.

Por fim, o presente texto se destaca em relação às pesquisas com as quais dialogou, pois objetivou planejar, executar e analisar os impactos de uma sequência didática baseada na abordagem vigotskiana para problematizar a apreensão de um conceito especificamente. Novas questões surgem em função deste trabalho, algumas delas são: se um novo instrumento de pesquisa fosse aplicado, como os/as estudantes definiriam vírus? Qual o impacto a longo prazo no desenvolvimento discente tendo um sistema educacional que coloca como foco a aprendizagem por competências e habilidades? Ou até: qual o impacto das disciplinas eletivas e as reformas propostas pelo governo para o ensino médio na aprendizagem e desenvolvimento de estudantes? Estas questões apresentam potencial para novas pesquisas com fundamento vigotskiano.

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    O termo microrganismo remete a algo vivo, porém incluímos esta resposta na segunda categoria por trazer a ideia de algo muito pequeno..

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    14 Out 2023
  • Aceito
    23 Fev 2024
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