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Estilos de pensamento de professores da área de Ciências da Natureza e o processo de autonomia compartilhada

Style of thought of teachers of the area of Natural Sciences and the process of shared autonomy

Resumo:

O estudo apresenta o desenvolvimento do coletivo de pensamento de professores da área de Ciências da Natureza em um programa de formação sob a perspectiva da investigação-ação emancipatória. Com o objetivo de analisar sentidos expressos pelos professores da área acerca do conceito de autonomia, a pesquisa delineou-se em um contexto formativo em que foram identificados dois estilos de pensamento: um conservador, que expressa um sentido de autonomia unilateral, e outro transformador, em que a autonomia é compreendida como um processo compartilhado. Os estilos de pensamento analisados constituem-se como importantes propulsores de movimentos formativos, alicerçados pela perspectiva dialética, a qual auxilia na qualificação dos processos de formação na área.

Palavras-chave:
Formação de professores; Ensino de ciências; Investigação-ação; Coletivo de pensamento; Autonomia

Abstract:

The study presents the development of the teachers' collective of thought in the area of Natural Sciences in a training program from the perspective of emancipatory action research. With the aim to analyze the meanings expressed by the teachers of the area about the concept of autonomy, the research was delineated in a formative context in which two styles of thinking were identified: a conservative, who expresses a sense of one-sided autonomy; and another transformer, in which autonomy is understood as a shared process. The analyzed styles of thought constitute important propellers of formative movements based on the dialectical perspective that assists in the qualification of the formation processes in the area.

Keywords:
Teacher training; Science teaching; Action research; Collective of thought; Autonomy

Introdução

Pensar a formação de professores da área de Ciências da Natureza (CN) é o foco central deste texto, que parte de uma pesquisa na qual se investigou a instauração e a transformação dos estilos de pensamento de professores, licenciandos e professores formadores de Biologia, Física e Química, participantes de um projeto de formação continuada realizado por um grupo de estudos e de pesquisa de uma universidade pública do interior do Estado do Rio Grande do Sul. Nesse contexto, buscamos analisar de que forma um processo de formação de professores, sob a perspectiva da investigação-ação, contribui com o desenvolvimento do coletivo de pensamento interdisciplinar de professores.

A origem da problemática esteve ancorada em nossas vivências como professoras da área e em compartilhamentos realizados em processos de formação inicial e continuada de professores. De forma mais específica, temos observado que os processos formativos pouco têm refletido em ações interdisciplinares na escola, o que pode ser resultado das contínuas práticas curriculares fragmentadas que os professores vivenciam ao trabalharem conceitos das disciplinas de Biologia, Física e Química. Ainda, a dificuldade em compreender epistemologicamente as relações conceituais entre as disciplinas também pode estar contribuindo para limitar ações interdisciplinares em sala de aula. Com isso, decorre o questionamento inicial: quais sentidos são atribuídos a conceitos representativos da docência na área de CN?

Com essas preocupações, temos realizado pesquisas em processos de formação continuada, em que participam professores de educação básica, professores formadores e futuros professores, o que Zanon (2003)ZANON, L. B. Interações de licenciandos, formadores e professores na elaboração conceitual de prática docente: módulos triádicos na licenciatura de química. 2003. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Metodista de Piracicaba, Piracicaba, 2003. denominou tríade de interação, tendo em vista a importância do desenvolvimento de coletivos de professores que pensam e atuam acerca do ensinar e aprender Ciências de forma colaborativa. Reconhecemos as possibilidades e desafios já empreendidos a esse respeito e reiteramos a importância de desenvolver "[...] coletivos organizados sobre indivíduos isolados, como forma de ação" (MALDANER, 2003MALDANER, O. A. A formação inicial e continuada de professores de química: professores/pesquisadores. 2. ed. Ijuí: Ed. Unijuí, 2003., p. 25). Para tanto, temos investido, entre as tendências de formação, nos processos de investigação-ação sob a perspectiva crítica ou emancipatória (CARR; KEMMIS, 1988CARR, W.; KEMMIS, S. Teoria crítica de la enseñanza: la investigación-acción en la formación del professorado. Barcelona: Martínez Roca, 1988.), como um espaço-tempo profícuo para a constituição de professores.

No que se refere à formação de professores, nos apoiamos em Carr e Kemmis (1988)CARR, W.; KEMMIS, S. Teoria crítica de la enseñanza: la investigación-acción en la formación del professorado. Barcelona: Martínez Roca, 1988. para marcar a investigação-ação como o movimento que rejeita as noções positivistas da racionalidade, favorecendo o enfoque dialético na constituição docente. Assim, partimos da compreensão de que a circulação de pensamentos que ocorre no grupo de sujeitos em processo de formação corresponde a uma categoria interpretativa para o processo de mediação. Para tanto, utilizamos as contribuições de Fleck (2010)FLECK, L. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010. quanto à instauração, extensão e transformação de estilos de pensamento representativos de grupos de sujeitos envolvidos, referidos pelo autor como coletivos de pensamento.

O diálogo atento às questões epistemológicas é imprescindível para o processo de discussão, pois partimos do entendimento de que a integração não pode ocorrer, apenas, pela junção das disciplinas. Pensar que o mero contato de sujeitos vinculados à Biologia, Física e Química garante a interdisciplinaridade e propicia o desenvolvimento da perspectiva interdisciplinar em sala de aula é reforçar a ideia simplista de que ensinar é fácil. Pelo contrário, promover e compreender interações sistemáticas entre professores em formação inicial e continuada numa perspectiva inter ou transdisciplinar na escola é complexo e desafiador, como explica Morin (2002)MORIN, E. A religação dos saberes: o desafio do século XXI. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. .

Nesse sentido, temos observado que a interação de professores da educação básica e de licenciandos, mediada por professores formadores das três disciplinas representativas da área de CN, promove reflexões na, sobre e para a prática, como sistemático processo de reconstrução social de concepções, situações e ações. Essa é a característica central dos movimentos que marcam o caminho que percorremos para analisar o objeto e tornar mais visível as questões formativas que temos percebido. Ainda, cabe ressaltar que os movimentos formativos que temos identificado, nos processos de investigação-ação, têm como característica principal a formação da espiral autorreflexiva lewiniana, que, de acordo com Carr e Kemmis (1988, p. 174, tradução nossa)CARR, W.; KEMMIS, S. Teoria crítica de la enseñanza: la investigación-acción en la formación del professorado. Barcelona: Martínez Roca, 1988., "é formada por ciclos sucessivos de planejamento, ação, observação e reflexão".

Com essa perspectiva, identificamos no contexto analisado, movimentos reflexivos acerca do conceito de autonomia, a qual se constituiu como uma categoria que marca o pensamento dos participantes no projeto. Nesse sentido, partimos da compreensão de que a autonomia não é uma conquista individual e sim uma construção cultural, como afirma Freire (2011)FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011., portanto, depende da relação do sujeito com os outros e com o conhecimento. Assim, o sujeito consegue agir de forma consciente e contribuir para construir as condições necessárias de se emancipar pelo coletivo. A autonomia como emancipação é encontrada no modelo de professor como intelectual crítico, apresentado por Contreras (2002, p. 192)CONTRERAS, J. D. A autonomia de professores. São Paulo: Cortez, 2002.. Para o autor, nesse caso, ocorre a "[...] liberação profissional e social das opressões", o desenvolvimento da consciência crítica e, com isso, a autonomia passa a ser vista "[...] como processo coletivo, dirigido à transformação das condições institucionais e sociais do ensino" (CONTRERAS, 2002CONTRERAS, J. D. A autonomia de professores. São Paulo: Cortez, 2002., p. 192).

Cabe ressaltar que nossos estudos são alicerçados em reflexões sobre o materialismo histórico e dialético discutido por Marx, que, de acordo com Gadotti (2003, p. 19)GADOTTI, M. Concepção dialética da educação: um estudo introdutório. 14. ed. São Paulo: Cortez, 2003., parte da ideia que "[...] não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas pelo contrário, o seu ser social é que determina a sua consciência" de forma dialeticamente transformadora. Sob a perspectiva social de construção humana da ciência, da universidade, da escola, compartilhamos os princípios dialéticos apresentados por Gadotti (2003)GADOTTI, M. Concepção dialética da educação: um estudo introdutório. 14. ed. São Paulo: Cortez, 2003.: princípio da totalidade, em que tudo se relaciona; princípio do movimento, em que todas as coisas têm o seu devir; princípio da mudança qualitativa, em que a mudança das coisas não se realiza num processo circulatório de eterna repetição; e, o princípio da contradição, em que a transformação das coisas só é possível porque no seu próprio interior coexistem forças opostas tendendo simultaneamente à unidade e à oposição.

Ainda, corroboram as ideias de Carr e Kemmis (1988, p. 50-51, tradução nossa)CARR, W.; KEMMIS, S. Teoria crítica de la enseñanza: la investigación-acción en la formación del professorado. Barcelona: Martínez Roca, 1988. acerca das características do pensamento dialético. Para os autores, "é uma forma de pensamento aberta e interrogativa, cujas reflexões vão e vêm entre elementos como a parte e o todo, o conhecimento e a ação, o processo e o produto, o sujeito e o objeto, o ser e o tornar-se, a retórica e a realidade, a estrutura e a função".

Assim, os processos de formação do pensamento do professor inerentes à CN necessitam e podem ser desenvolvidos em programas, de forma articulada com processos de produção do conhecimento profissional docente. Portanto, o presente estudo apresenta como objetivo analisar o desenvolvimento de um coletivo de pensamento interdisciplinar de professores da área de CN, em busca de entendimentos, particularmente, sobre a relação entre a linguagem constitutiva do estilo de pensamento compartilhado por sujeitos participantes do processo de investigação-ação, com perspectiva crítica.

O termo coletivo de pensamento, que utilizamos, é uma categoria apresentada por Fleck (2010)FLECK, L. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010., compreendida como a comunidade de pessoas que intercambiam pensamentos ou se encontram numa situação de influência recíproca de pensamentos. Nesse contexto, tem-se, em cada uma dessas pessoas, o portador de desenvolvimento histórico da área de pensamento de um determinado estado de saber e da cultura, ou seja, do estilo específico de pensamento. O pressuposto principal das intenções, aqui manifestadas, diz respeito à constituição docente como processo que ocorre na interação com o outro pela internalização de signos, o que situa o interesse em analisar os sentidos atinentes aos processos formativos que os sujeitos estabelecem nos contextos sócio-historicoculturais em que se inserem.

Com esse propósito, compartilhamos a ideia de que o pensamento somente existe por meio das palavras, o que é defendido por Vigotski (2008)VIGOTSKI, L. S. Pensamento e linguagem. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.. Segundo o autor, a interação entre pensamento e palavra precisa ser investigada nas "[...] fases e nos planos diferentes que percorre antes de ser expresso em palavras" (VIGOTSKI, 2008VIGOTSKI, L. S. Pensamento e linguagem. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008., p. 157). Portanto, buscamos investigar os estilos de pensamento (FLECK, 2010FLECK, L. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010.) dos sujeitos que participam de encontros de formação inicial e continuada, que se relacionam entre si e expõem, por meio da fala exterior, suas compreensões acerca de temáticas pertinentes ao contexto. O estilo de pensamento, de acordo com Fleck (2010, p. 149)FLECK, L. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010., pode ser definido "[...] como disposição para uma percepção direcionada e apropriada assimilação do que foi percebido". Com isso, o autor se aproxima de Vigotski (2008)VIGOTSKI, L. S. Pensamento e linguagem. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. ao considerar o pensamento "[...] como uma atividade social por excelência" (FLECK, 2010FLECK, L. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010., p. 85). Para Fleck (2010, p. 68)FLECK, L. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010., "[...] as palavras não são, originalmente, nomes para coisas, e o conhecimento não reside na imitação e pré-formação de fenômenos ou na adaptação de pensamentos a quaisquer fatos externos". Com isso, o autor compartilha a importância do contexto social e histórico para o desenvolvimento do pensamento.

Em suma, a temática central do presente artigo reitera o entendimento de que a formação de professores da área de CN deve promover momentos de reflexão dialética e o desenvolvimento de uma nova racionalidade, conforme apresentado por Morin (2011)MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2011.. Uma racionalidade mais aberta e plural que contribui para a realização de um processo formativo que ocorre de dentro para fora, conforme proposto por Maldaner (2003)MALDANER, O. A. A formação inicial e continuada de professores de química: professores/pesquisadores. 2. ed. Ijuí: Ed. Unijuí, 2003..

Segue a discussão do percurso metodológico utilizado e os resultados construídos com base na análise empreendida. Na sequência, são apresentados aspectos da prática vivenciada que deflagram os estilos de pensamento identificados no contexto e as contribuições do movimento formativo observado para a constituição do professor da área de CN.

Percurso metodológico e a busca por complicações no contexto

A pesquisa apresentada neste artigo investiga as ações realizadas em um projeto de formação continuada de professores da área de CN ao longo do ano de 2015 e que tem sido realizado de forma sistemática há cinco anos. Os professores, licenciandos e formadores envolvidos compartilham vivências e reflexões acerca de leituras, tendo como metodologia de formação a investigação-ação com perspectiva emancipatória, de acordo com Carr e Kemmis (1988)CARR, W.; KEMMIS, S. Teoria crítica de la enseñanza: la investigación-acción en la formación del professorado. Barcelona: Martínez Roca, 1988.. Cabe destacar, que nem todos os participantes eram permanentes no grupo, ou seja, ocorreram ingressos de professores no decorrer dos anos e, no ano de 2015, houve o maior número de participantes em um único encontro, chegando a duzentos e oito.

A vivência no grupo ao longo dos anos reflete características importantes para o processo, pois entendemos que os estilos de pensamento dos professores em formação (inicial e continuada) se desenvolvem a partir de uma coesão histórica, tendo em vista que "[...] alguma coisa de cada estilo de pensamento permanece" (FLECK, 2010FLECK, L. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010., p. 150). Com isso, destacamos a importância em empreender estudos acerca da formação de professores, a fim de identificar aspectos que possam contribuir para o desenvolvimento do coletivo de pensamento. Nesse sentido, defendemos a perspectiva formativa da investigação-ação empreendida no projeto ao considerar três aspectos que possibilitam a (re)significação da prática do professor e nortearam o presente estudo: a coletividade, os movimentos formativos e a perspectiva crítica e emancipatória.

Em nossa visão, os movimentos gerados no processo são imprescindíveis para a constituição docente, a qual se torna significativa pelo coletivo. Compreendemos que, na medida em que a tríade de sujeitos se relaciona de forma colaborativa, a formação ocorre para além do nível de formação ambiental (MALDANER, 2003MALDANER, O. A. A formação inicial e continuada de professores de química: professores/pesquisadores. 2. ed. Ijuí: Ed. Unijuí, 2003.). O potencial formativo que emerge do coletivo favorecido pela investigação-ação é apresentado, também, por Carvalho e Gil-Pérez (2009, p. 18)CARVALHO, A. M. P.; GIL-PÉREZ, D. Formação de professores de ciências: tendências e inovações. 9. ed. São Paulo: Cortez, 2009., ao compartilharem que "[...] o trabalho docente tampouco é, ou melhor, não deveria ser uma tarefa isolada". Os autores investem na discussão exemplificando que "[...] o essencial é que possa ter-se um trabalho coletivo em todo o processo de ensino/aprendizagem: da preparação das aulas até à avaliação" (CARVALHO; GIL-PÉREZ, 2009CARVALHO, A. M. P.; GIL-PÉREZ, D. Formação de professores de ciências: tendências e inovações. 9. ed. São Paulo: Cortez, 2009., p. 18). E contribuem ao fazer referência às possibilidades das ações coletivas, buscando apontar o que os professores devem saber e saber fazer para ensinar Ciências; para tanto, reforçam: "[...] trata-se, enfim, de orientar tal tarefa docente como um trabalho coletivo de inovação, pesquisa e formação docente" (CARVALHO; GIL-PÉREZ, 2009CARVALHO, A. M. P.; GIL-PÉREZ, D. Formação de professores de ciências: tendências e inovações. 9. ed. São Paulo: Cortez, 2009., p. 18).

O trabalho realizado no projeto, objeto do presente estudo, fortalece a ideia da coletividade por meio da investigação-ação, o que é corroborado por Güllich (2012, p. 165)GÜLLICH, R. I. C. O livro didático, o professor e o ensino de ciências: um processo de investigação-formação-ação. 2012. Tese (Doutorado em Educação nas Ciências) - Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, Ijuí, 2012. Disponível em: <http://bibliodigital.unijui.edu.br:8080/xmlui/handle/123456789/2043>. Acesso em: 1 out. 2018.
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, pois "[...] o coletivo sobressai nas propostas de formação de professores a partir da investigação-ação, como garantia de um processo mais pleno e assumido de modo deliberado pelos participantes". As vivências no grupo possibilitam acenar que a permanente motivação, a reciprocidade e a cumplicidade são características marcantes do coletivo instaurado. Güllich (2012, p. 30)GÜLLICH, R. I. C. O livro didático, o professor e o ensino de ciências: um processo de investigação-formação-ação. 2012. Tese (Doutorado em Educação nas Ciências) - Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, Ijuí, 2012. Disponível em: <http://bibliodigital.unijui.edu.br:8080/xmlui/handle/123456789/2043>. Acesso em: 1 out. 2018.
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persiste ao investir que a investigação-ação "[...] nos possibilita perceber/averiguar, explicitar, incorporar e compreender contradições, resistências e mudanças na postura dos professores investigados, a partir do discurso que expressa a sua prática docente".

A organização do processo formativo em questão contempla características próprias à espiral autorreflexiva da investigação-ação (CARR; KEMMIS, 1988CARR, W.; KEMMIS, S. Teoria crítica de la enseñanza: la investigación-acción en la formación del professorado. Barcelona: Martínez Roca, 1988.), tendo emergido a partir de um movimento de problematização geral acerca da (inter) disciplinaridade na formação e prática docentes dos sujeitos participantes. Os estudos e atividades foram abrangendo sistemáticos movimentos de planejamento, ação, observação e reflexão interativamente empreendidos ao longo dos encontros presenciais intercalados por respectivas atividades e vivências formativas que a eles se intercalavam.

Assim, partindo de uma abordagem qualitativa, conforme apresenta Lüdke e André (1986)LÜDKE, M.; ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo, E.P.U., 1986., a pesquisa ora apresentada foi realizada na forma de um estudo de caso. O estudo em questão apresenta particularidade no que se refere à perspectiva epistemológica da formação do pensamento de professores de CN para a constituição da área de ensino em um contexto de formação continuada. Para tanto, investimos em uma etapa empírica, momento em que, como participantes observadoras, realizamos gravações em áudio e, posteriormente, degravações das falas dos sujeitos de todos os encontros realizados durante o ano de 2015, totalizando nove encontros e uma média de participantes de aproximadamente 150 sujeitos. Ainda, foram analisadas as reflexões realizadas em diários de bordo, a fim de entrecruzar dados obtidos dos discursos falados com os escritos de cada sujeito, os quais consentiram com o uso das informações obtidas por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, totalizando 114 termos assinados. Seguindo as normas e preceitos éticos de pesquisa, os participantes encontram-se designados por nomes fictícios, sendo que os nomes utilizados nesta escrita iniciam com a letra correspondente ao grupo que pertencem: formadores (F), licenciandos (L) e professores da educação básica (P).

Em se tratando de uma pesquisa em que atuamos como participantes do processo, ressaltamos que nossos diários de bordo serviram como instrumento de reflexão individual e coletiva, ou seja, neles registramos aspectos que nos faziam pensar acerca da nossa formação pessoal e, ainda, registramos expressões dos sujeitos ao longo dos encontros, que não podem ser gravadas em áudio, tais como olhares e gestos que contribuíam para o processo de pesquisa.

No processo de degravação, o termo autonomia foi identificado repetidamente e constituiu-se como um dos aspectos que indiciaram complicações no processo de formação de professores na área de CN. No que se refere às complicações, corroboramos as ideias de Fleck (2010, p. 71)FLECK, L. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010., ao afirmar que "[...] qualquer teoria abrangente passa por uma fase clássica, na qual somente se percebem fatos que se enquadram com exatidão, e uma fase de complicações, quando as exceções se manifestam".

Ainda, para Lorenzetti (2008, p. 25)LORENZETTI, L. Estilos de pensamento em educação ambiental: uma análise a partir das dissertações e teses. 2008. Tese (Doutorado em Educação Científica e Tecnológica) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008. Disponível em: <http://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/91657>. Acesso em: 1 out. 2018.
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,

[...] um estilo de pensamento se instaura quando um problema é encarado como tal por mais de uma pessoa, por um coletivo de pensamento. [...] uma vez instaurado o estilo de pensamento, o coletivo de pensamento esforça-se em estendê-lo a outros problemas com sucesso. Ao surgirem complicações, que são problemas que o estilo de pensamento não consegue resolver, este passa por um processo de transformação e se instaura um novo estilo de pensamento, dando início a um novo ciclo.

Nesse sentido, partimos da compreensão de que as complicações podem contribuir para iniciar um ciclo da espiral autorreflexiva e, dessa forma, movimentar os sujeitos para o desenvolvimento do pensamento crítico. De acordo com Carr e Kemmis (1988, p. 51, tradução nossa)CARR, W.; KEMMIS, S. Teoria crítica de la enseñanza: la investigación-acción en la formación del professorado. Barcelona: Martínez Roca, 1988., "na medida em que se revelam contradições, se demandam novas ideias construtivas e ações construtivas", que se caracteriza como um processo dinâmico e constitutivo dos sujeitos.

Assim, buscando qualificar essa etapa do processo, utilizamos a abordagem microgenética tendo como referência a matriz histórico-cultural. De acordo com Góes (2000)GÓES, M. C. R. A abordagem microgenética na matriz histórico-cultural: uma perspectiva para o estudo da constituição da subjetividade. Cadernos Cedes, Campinas, v, 20, n. 50, p. 9-25, 2000. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0101-32622000000100002>. Acesso em: 1 out. 2018.
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, a abordagem microgenética trata de "[...] uma forma de construção de dados que requer a atenção a detalhes e o recorte de episódios interativos" (GÓES, 2000GÓES, M. C. R. A abordagem microgenética na matriz histórico-cultural: uma perspectiva para o estudo da constituição da subjetividade. Cadernos Cedes, Campinas, v, 20, n. 50, p. 9-25, 2000. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0101-32622000000100002>. Acesso em: 1 out. 2018.
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, p. 9). Observar o professor, em momento de interação com professores de outras disciplinas da mesma área, e/ou em processo de reflexão, requer uma investigação que respeite e abasteça o movimento formativo; com isso, o olhar para os dados teve como suporte o paradigma indiciário (GINZBURG, 1989GINZBURG, C. Prefácio/sinais: raízes de um paradigma indiciário / Ticiano, Ovídio e os códigos da figuração erótica no século XVI. In: GINZBURG, C. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. páginas inicial e final do prefácio?), pois empreendemos um estudo em busca de pistas do que estaria por trás das expressões e falas compartilhadas pelos sujeitos no decorrer dos encontros de formação.

O recorte que trazemos para este artigo corresponde à análise de dois episódios que passamos a discutir na sequência e que apresentaram indícios de diferentes sentidos expressos pelos participantes acerca do conceito de autonomia.

Resultados e discussões com vistas aos estilos de pensamento dos professores

As interações proporcionadas na tríade de sujeitos, por meio do processo de investigação-ação, empreendido no projeto, foram intensas e muito produtivas. Destacamos que a instabilidade na participação dos sujeitos e a formação histórica de cada um deflagrou o desenvolvimento de diferentes estilos, os quais geram matizes de estilos de pensamento e marcam os discursos dos sujeitos. Compreendemos que, em alguns casos, as ações realizadas no projeto não promoveram complicações nos pensamentos dos participantes, pois eles mantiveram fortalecidos estilos de pensamento anteriores e não se envolveram com as discussões. Em contrapartida, alguns sujeitos possibilitaram e contribuíram para a realização de complicações no espaço-tempo do projeto, esses tiveram estilos de pensamento transformados.

Nesse sentido, apresentamos dois episódios recortados dos encontros, em que o conceito autonomia entra em cena. O primeiro corresponde a um momento de discussão realizado no encontro inicial do ano, em que a autonomia é colocada em pauta pela professora Priscila.

Na primeira parte da discussão, Priscila traz uma questão de imposição feita pela secretaria de educação que não a satisfaz e, segundo ela, nem ao grupo da escola.

Episódio 1 (parte 1)

1. Priscila: Olá! Quero falar algo que lembrei, posso? [a professora formadora sinaliza que sim] Acho que é por causa de alguma resolução do Estado, sei lá, mas o que vem às vezes para a escola, da secretaria de educação, é que devemos fazer pelo menos dois projetos interdisciplinares ao ano, só que uma coisa que a gente não gostou é que eles estão impondo os temas, a escola parece que não tem mais autoridade.

2. Fernanda: não tem autonomia.

3. Priscila: É. A nossa escola tinha um outro projeto para colocar e não podia.

4. Fernanda: E vocês?

5. Priscila: O único que é igual ao que planejamos é a questão dos negros.

Ao apresentar a questão, a professora Priscila explicita que "a escola parece que não tem mais autoridade", o que na sequência é corrigido por autonomia. Nesse sentido, a professora expõe uma compreensão de autonomia, a nosso ver, como perda de liberdade. Na fala de Priscila identificamos indícios de uma preocupação da professora com relação à dependência da escola com o sistema de ensino, no caso, com a secretaria de educação e, é com isso, que ela explicita a dificuldade na relação entre escola e sistema.

Compreendemos que grande parte dos professores na escola identifica a secretaria de educação como um órgão, seja do município ou do estado, que detém o poder. Essa é uma ideia elaborada em um contexto histórico anterior em que prevaleciam aspectos de autoritarismo e que permanece nos discursos dos professores que atuam nas escolas públicas; assim, se torna um matiz do estilo de pensamento de professores. Nos diálogos realizados, percebemos que a discussão instigou a professora formadora a mediar reflexões acerca de uma nova forma de pensar, o que pode ser observado nos turnos que seguem.

Episódio 1 (parte 2)

1. Fernanda: Olha gente, o que a colega colocou é bem sério e bem importante para pensarmos enquanto grupo. Somos professores e precisamos contribuir. O que fazer nesse caso? As coordenadorias de educação mandam?

2. Flávia: Mas não são só as secretarias que mandam.

3. Fernanda: Quem manda?

[Alguns minutos de silêncio no grupo]

4. Fernanda: São as coordenadorias, as secretarias, quem mais? Estão exigindo a realização de dois projetos interdisciplinares anuais na escola, é isso que você falou, né professora? Isso significa que estão impondo os temas? Todos?

5. Paola: Nós conseguimos fazer um projeto sobre barragens na escola.

6. Fernanda: Eu acho muito interessante este projeto que vocês têm na escola, trata da questão do meio ambiente. E vocês mantêm mesmo com a intervenção da secretaria?

7. Paola: Sim. Na verdade, ninguém impõe nada para nós. Eu percebo que na nossa escola temos essa questão bem resolvida no grupo. Nós somos fortes, temos uma autonomia compartilhada no grupo em que um ajuda o outro, um defende o outro.

O momento de complicações surge nos turnos apresentados (6 a 9), em que a intervenção da formadora indicia a coerção exercida no coletivo. A professora Fernanda se caracteriza como mediadora de uma nova perspectiva, ela realiza questionamentos que, pelo silêncio e a falta de respostas, produz indícios do seu papel de pai (DA ROS, 2000DA ROS, M. A. Estilos de pensamento em saúde pública: um estudo da produção da FSP-USP e ENSP-FIOCRUZ, entre 1948 e 1994, a partir da epistemologia de Ludwik Fleck. 2000. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2000. Disponível em: <http://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/78913>. Acesso em: 1 out. 2018.
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), pois os professores a escutam e, no momento de silêncio, refletem acerca das colocações da professora Priscila, realizadas anteriormente. Cabe destacar, que o contexto formativo desenvolve um coletivo de pensamento em que os sujeitos compartilham estilos que caracterizam sua forma de perceber a formação, o que é realizado por meio da coerção de um "pai" (DA ROS, 2000DA ROS, M. A. Estilos de pensamento em saúde pública: um estudo da produção da FSP-USP e ENSP-FIOCRUZ, entre 1948 e 1994, a partir da epistemologia de Ludwik Fleck. 2000. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2000. Disponível em: <http://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/78913>. Acesso em: 1 out. 2018.
http://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/...
, p. 61), que usa uma certa linguagem, "[...] uma certa postura profissional, uma determinada bibliografia indicada", este é o portador do EP e torna-se "[...] responsável pela formação e aceitação dos novos membros". (DA ROS, 2000DA ROS, M. A. Estilos de pensamento em saúde pública: um estudo da produção da FSP-USP e ENSP-FIOCRUZ, entre 1948 e 1994, a partir da epistemologia de Ludwik Fleck. 2000. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2000. Disponível em: <http://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/78913>. Acesso em: 1 out. 2018.
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, p. 61).

No momento de silêncio do encontro, direcionamos nossa atenção aos olhares e expressões dos participantes e registramos em nossos diários de bordo as contribuições ao processo formativo. Identificamos que as reflexões foram mais intensas no sentido de duvidar das colocações de Priscila, considerando que ninguém argumentou em seu favor. Pelo contrário, a fala de Paola, no turno 12, expõe uma ideia diferente, de que "ninguém impõe nada". Com isso, a professora, que já participa do grupo desde 2010, demonstra um novo sentido ao termo autonomia, ela explicita que na escola em que trabalha essa é uma "questão bem resolvida no grupo", e que trata de uma "autonomia compartilhada".

A nova forma de pensar a autonomia, apresentada ao grupo pela professora Paola, converge com as colocações de Contreras (2002, p. 191)CONTRERAS, J. D. A autonomia de professores. São Paulo: Cortez, 2002., ao compartilhar que "[...] cada um entende de modo diferente de onde procedem os valores educativos" e que "[...] cada concepção entende de maneira diferente as competências que a prática exige, por isso estabelece exigências também diferentes sobre as quais deveriam ser os âmbitos de decisão e responsabilidade dos professores". O diálogo é enriquecido com a participação de outros sujeitos:

Episódio 1 (parte 3)

1. Pedro: Bom dia, vou me levantar para o pessoal me ver. Eu trabalho com a disciplina de química e eu vejo bastante rosto novinho e não que eu seja muito experiente, então eu acho importante que eles também possam me escutar. Eu fico muito preocupado que neste momento que eu estou aqui, eu escuto falas de alguns colegas que eu já escutei há tempos atrás e isso me preocupa um pouco, pois, por exemplo, sobre essa falta de autonomia que existe nas escolas, bom, eu acredito que o governo de alguma forma ele tenta minimizar, nós já tivemos várias oportunidades de diferentes formas de falar nossa opinião, até porque estamos num país democrático. Porém, penso que tem gente que só vê coisa ruim, a gente tem que cuidar com o que fala, eu acredito que tem que ficar a ideia que tem coisas boas na escola, nós temos é que ir atrás delas, tem um monte de coisa ruim, mas um pouco do bonzinho tem que nos motivar a continuar sendo, fazendo o curso de licenciatura, senão daqui um pouco o pessoal vai para outra área, é o que eu acredito professora, desculpa.

2. Fernanda: Não precisa pedir desculpas, a gente tá aqui e nos propomos a compartilhar. O que o professor traz é importante, principalmente aos nossos licenciandos, que têm um pré-conceito, uma pré-ideia formada sobre a escola, pelas suas vivências. Eu fiquei pensando no que o professor falou, porque tem professores que não se dispõem, e a gente sabe que tem; bom, então temos que pensar que estes não se movimentam mais, não contribuem para a construção do currículo e que a autonomia precisa ser uma construção coletiva permanente.

3. Flávia: Por isso é importante estarmos aqui e compartilharmos, porque aqui vivemos num coletivo, em que alguns professores já com anos de experiência, outros professores novatos, temos os acadêmicos, como é importante esse momento para os acadêmicos, principalmente.

A inserção do professor Pedro no diálogo é marcante, pois ele repreende as colocações de Priscila ao comentar que "tem gente que só vê coisa ruim", e aproveita para lembrar a todos que "estamos num país democrático". Ao falar assim, o professor chama os colegas para a responsabilidade a que se comprometeram ao se tornarem professores, e contribui para a argumentação da formadora Fernanda, para uma nova forma de pensar acerca da autonomia do professor, ou seja, de que a "autonomia precisa ser uma construção coletiva permanente", o que é reafirmado pela professora Flávia, que demonstra preocupação, também, com a perspectiva compartilhada no grupo em que estão os licenciandos; para tanto, ela chama a atenção de todos de que "aqui vivemos num coletivo".

A discussão inicial acerca da autonomia é significativa para a constituição dos sujeitos, pois possibilita que os participantes construam suas próprias concepções acerca do tema, o que vai ao encontro das colocações de Contreras (2002, p. 193)CONTRERAS, J. D. A autonomia de professores. São Paulo: Cortez, 2002., ao argumentar que a autonomia "[...] deve ser entendida como um processo de construção permanente no qual devem se conjugar, se equilibrar e fazer sentido muitos elementos". Assim, afirma o autor que não pode ser "[...] reduzida a uma definição autoexplicativa" (CONTRERAS, 2002CONTRERAS, J. D. A autonomia de professores. São Paulo: Cortez, 2002., p. 193).

O estilo de pensamento dos sujeitos foi sendo marcado pela concepção de autonomia dos formadores, que ao longo dos encontros foram demonstrando suas compreensões. Tal situação pode ser observada de forma mais explícita no quinto encontro, quando o conceito reaparece nas falas após a condução de um formador.

Episódio 2 (parte 1)

1. Francis: Olá pessoal! Quero conversar com vocês a questão da autonomia. Penso que é importante compreendermos que há diferentes visões nesse processo, mas, em algumas situações, nós percebemos que essas diferentes visões se chocam de forma violenta. Assim, penso que precisamos conversar sobre isso, então, quero perguntar, de que maneira a autonomia vai sendo tirada, ou nunca é dada? Ela nos é negada?

2. Fermino: Quanto a isso, eu fico muito intrigado com a questão do currículo, que traz à tona a autonomia. Eu acho que deveria haver um diálogo sobre o currículo permanente, no sentido de resgatar em nós o que compreendemos, porque não existe uma lei brasileira que declara os famosos conteúdos mínimos. Eu penso que nunca foi intenção da secretaria estadual de educação, nem municipal. Na verdade, nós procuramos algo a seguir, uma regra. É difícil mudar uma prática, é difícil mudar um currículo. Que peso nossas decisões têm? Nós que decidimos que currículo vamos ensinar!

O diálogo iniciado pelos dois professores formadores retoma a discussão acerca do currículo e reforça a ideia que "[...] uma instituição não passa de uma convenção", conforme apontado por Douglas (2007, p. 55)DOUGLAS, M. Como as instituições pensam. São Paulo: Edusp, 2007.. A autora afirma, ainda, que as convenções surgem quando há interesse comum na existência de uma regra, é o que o professor Fermino está afirmando ao comentar que "nós procuramos algo a seguir, uma regra". As colocações de Fermino reforçam nos sujeitos a responsabilidade frente às ações do sistema, ou seja, sua fala possibilita indícios da sua compreensão acerca da importância da consciência dos sujeitos nas escolhas que fazem.

A posição assumida por Francis busca provocar o início de uma discussão. Esta é uma característica da prática formativa nos encontros do projeto. Os professores e licenciandos são convidados a apresentar suas posições, a fim de que eles próprios consigam construir juntos a melhor forma de superar os problemas. Já, Fermino aparece para contribuir com o desenvolvimento do novo EP; no caso, ele assume o papel de mediador das complicações ao apresentar problemas que são observados na compreensão da autonomia docente. A partir da complicação exposta pelo professor Fermino, a participação de professores que atuam na educação básica torna-se mais efetiva, o que ocorre por se sentirem desafiados, como expõe a professora Pietra.

Episódio 2 (parte 2)

1. Pietra: Bom dia professores, falando da questão da autonomia e das questões de currículo, às vezes eu não sei se nós não temos autonomia, eu acho até que a gente tem uma certa autonomia, mas, em certos momentos, a gente fica preso ao que nós mesmos acreditamos estar certo. Eu tenho que pensar continuamente que currículo quero? Que concepções eu tenho? O que eu vou trabalhar com os meus alunos? E eu sempre digo para os meus colegas que agora eu vou escolher tal conteúdo porque isso aqui está mais próximo da realidade dos alunos, outra hora é outro porque é um problema social. Eu sempre me pergunto se o conteúdo vai fazer falta pra ele ou não? Então eu fiquei aqui pensando, eu acho que eu tenho autonomia como professora, devo ter autonomia porque eu tenho as minhas concepções.

2. Flora: Eu preciso falar. Na minha visão, o professor dentro da vivência dele, conhecendo os alunos dele, ele pode determinar o conteúdo, você conhece o ritmo dos seus alunos, por isso que precisa de um tempo maior pra ensinar aqueles alunos. Se alguém aqui ainda acha que não tem autonomia, então tem que encontrar inspiração e brigar com o sistema.

3. Priscila: Mas até que ponto vale a pena brigar? Contra o sistema, contra o currículo que é imposto? Contra a coordenadora pedagógica que quer teus diários bonitinhos, que quer que eu diga até a página do livro didático que eu tô.

4. Flora: A questão é a seguinte, como é que eu penso isso, como é que a gente rompe com isso? É nesse processo de formação continuada da reflexão que eu passo a me incomodar com essas questões.

5. Priscila: Incomodada eu já sou, mas quantas vezes a gente briga sozinha?

6. Flora: Mas nós estamos num coletivo e é nesse coletivo que nós vamos encontrar forças, eu tenho que tomar consciência do que fizeram comigo pra poder reagir contra, como é que a gente rompe com um modelo? É fazendo uma revolução? Não, a gente vai corroendo com um paradigma por dentro, pelas bordas até que ele se desmancha, que ele não consiga mais se sustentar. Então, você vai minando esses modelos até que você vai percebendo do que tá posto já não dá mais conta de resolver.

7. Priscila: Mas e se a gente sofrer?

8. Flora: Mas se for sozinho sim, vá com um grupo.

Ao inferir que "a gente fica preso ao que nós mesmos acreditamos estar certo", a professora Pietra proporciona indícios de um estilo de pensamento já instaurado. De acordo com Fleck (2010, p. 150)FLECK, L. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010., ao fazer parte de um coletivo de pensamento, "[...] o estilo de pensamento passa por um fortalecimento social" e "[...] transforma-se em coação para os indivíduos, definindo o que não pode ser pensado de outra maneira". Os integrantes do coletivo formam uma harmonia das ilusões, que ocorre quando o coletivo se fecha e persiste no EP. Para Fleck (2010, p. 74)FLECK, L. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010., "[...] tal sistema fechado e em conformidade com o estilo não está imediatamente acessível a qualquer inovação: ele reinterpretará tudo conforme o estilo".

A defesa de Pietra com relação à perspectiva de autonomia como construção, que depende das concepções dos sujeitos, converge com a argumentação de Contreras (2002, p. 203)CONTRERAS, J. D. A autonomia de professores. São Paulo: Cortez, 2002. de que se trata de um "[...] processo de emancipação", que requer "[...] a análise das condições de nossa prática e de nosso pensamento". A fala de Pietra motiva a inserção da professora Flora, que se torna mediadora da construção de um novo EP. Ela parte das colocações de Pietra e amplia, apontando outras situações em que os professores podem reconhecer a construção da autonomia.

A mediação da professora Flora oportuniza a inserção da professora Priscila. Percebemos que a professora Priscila, em todas as suas participações, acena para um pensamento revolucionário com relação ao sistema. Em outro momento de fala, identificamos que ela também demonstra insatisfação, e os exemplos que usa indicia uma ideia de professor como vítima de um sistema autoritário e controlador. O encaminhamento dado na fala (8) pela professora Flora suaviza a concepção individualista de Priscila e a coloca no compromisso de agir no coletivo.

Ainda destacamos a contribuição de Flora ao expor aos sujeitos a força do coletivo. Para ela, é importante que os professores desenvolvam posições e argumentações que fortaleçam suas ideias, ou seja, aponta para a formação do coletivo de pensamento no grupo, e afirma que é preciso superar o paradigma de que não está adequado. Para isso, sugere uma forma de romper com o processo, ou seja, que se deve ir "corroendo com um paradigma por dentro, pelas bordas", o que corrobora a argumentação de Fleck (2010, p. 155)FLECK, L. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010., ao dizer que "[...] qualquer introdução didática, é literalmente uma condução-para-dentro, uma suave coação".

Com a proposição de Flora, o diálogo é direcionado para a perspectiva de currículo e faz emergir o pensamento da necessidade que os sujeitos possuem de terem regras.

Episódio 2 (parte 3)

1. Pedro: É isso aí professora, porque falar em currículo sempre é um campo minado porque é complexo, eu acho que tem que ter um caminho a nível nacional, não um modelo a ser seguido, mas um norte.

2. Flora: Você acha que já deveria vir pronto e depois escolher?

3. Pedro: Não bem pronto, mas um norte, porque como falou o professor [se referindo ao professor Fermino] eu penso que nós, que estamos na escola, nos acostumamos com essa forma e o processo de construção tem que ser lento, nós precisamos ter regras.

4. Flora: Então, a questão não é trazer pronto. Nós podemos construir nossas próprias regras. Neste sentido, elas se fortalecem quando são construídas no coletivo. Olha, eu discordo da ideia de currículo pronto, porque o grande salto seria nós definirmos o currículo, o que nós ensinaríamos, que conceitos seriam centrais. Eu, como professora, tenho que estudar os conceitos e entender o que é central, o que é periférico, o que é importante. O nosso modelo de formação nos impôs certas coisas, tirou essa autonomia porque nos isolou. Precisamos rever nossas relações com nossos colegas. Será que a gente pode fazer isso? Eu penso que nós devemos estar sempre lutando, trazer questionamentos pra não produzir uma sociedade alienada.

O diálogo que transcorre entre Flora e Pedro evidencia a necessidade do sujeito em ter a percepção direcionada, ou seja, o EP conforme um coletivo. Ao reafirmar que "nós precisamos ter regras", Pedro demonstra que todos precisam de um solo firme (FLECK, 2010FLECK, L. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010.), ou seja, das regras a serem seguidas, por exemplo, da área, da escola, dos coletivos.

O segundo episódio vem marcar a coerção exercida pela formadora Flora que, neste momento, assume o papel de "pai" (DA ROS, 2000DA ROS, M. A. Estilos de pensamento em saúde pública: um estudo da produção da FSP-USP e ENSP-FIOCRUZ, entre 1948 e 1994, a partir da epistemologia de Ludwik Fleck. 2000. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2000. Disponível em: <http://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/78913>. Acesso em: 1 out. 2018.
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). Sua fala ao grupo indica solidariedade e confiança, o que pode ser observado na proximidade do diálogo entre ela e Priscila, ao ponto da última demonstrar receio em sofrer por tentar lutar contra o sistema. A argumentação de Flora contribui para a ideia do desenvolvimento do coletivo de pensamento, ao expor que "nós podemos construir nossas próprias regras. Neste sentido, elas se fortalecem, quando são construídas no coletivo". A colocação da formadora possibilita uma nova compreensão de autonomia, em que deixa de ser unilateral e autoritária para a formação de uma autonomia coletiva e compartilhada, o que corrobora as ideias de Contreras (2002, p. 197)CONTRERAS, J. D. A autonomia de professores. São Paulo: Cortez, 2002., ao afirmar que "[...] a autonomia não pode ser analisada de uma perspectiva individualista ou psicologicista, como se fosse uma capacidade que os indivíduos possuem", ela é compreendida como "[...] um exercício" e, ainda "[...] como forma de intervenção nos contextos concretos da prática onde as decisões são produto de consideração da complexidade, ambiguidade e conflituosidade das situações" (CONTRERAS, 2002CONTRERAS, J. D. A autonomia de professores. São Paulo: Cortez, 2002., p. 197).

Pensamos que a construção da autonomia docente está alicerçada na ideia de Freire (2011, p. 53)FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011., de que "[...] minha presença no mundo não é a de quem a ele se adapta, mas a de quem nele se insere". Assim, é possível promover o desenvolvimento de um coletivo de pensamento que apresente como matiz a autonomia profissional compartilhada, destacada pela professora Paola no primeiro episódio e apresentada por Imbernón (2011, p. 15)IMBERNÓN, F. Formação docente e profissional: formar-se para a mudança e a incerteza. 9. ed. São Paulo: Cortez, 2011.. Para o autor, o papel do professor é "[...] compartilhar conhecimento com o contexto" e, para tanto, o professor deve ser formado "[...] na mudança e para a mudança por meio do desenvolvimento de capacidades reflexivas em grupo" (IMBERNÓN, 2011IMBERNÓN, F. Formação docente e profissional: formar-se para a mudança e a incerteza. 9. ed. São Paulo: Cortez, 2011., p. 19).

Assim, considerando os dados produzidos, a partir dos diálogos e escritas dos sujeitos imbricados na pesquisa, utilizamos como base das categorias os matizes de estilos de pensamento indiciados no período investigado, que se constituem como marcas constitutivas dos sujeitos e possibilitaram identificar dois estilos de pensamento, sendo eles: conservador e transformador. Destacamos que os professores da educação básica, os licenciandos e os professores formadores participam dos processos interativos dos quais emergiram ambos os estilos de pensamento, pois com a análise do movimento reflexivo coletivamente vivenciado no processo de investigação-ação, acenamos o movimento reflexivo, gerado no processo de investigação-ação. Além disso, percebemos que os professores, ora com estilos de pensamento conservador, apresentaram um sentido de autonomia unilateral e autoritária, enquanto os professores com estilos de pensamento transformador evidenciaram uma compreensão de autonomia compartilhada e coletiva.

O processo interativo analisado sinaliza características da espiral autorreflexiva (CARR; KEMMIS, 1988CARR, W.; KEMMIS, S. Teoria crítica de la enseñanza: la investigación-acción en la formación del professorado. Barcelona: Martínez Roca, 1988.) integrada de dinâmicos, complexos e sistemáticos movimentos de planejamento, ação, observação e reflexão vivenciados pelos participantes, e é alimentado, dialeticamente, pelos estilos de pensamento conservador e transformador. Inúmeros círculos formativos se (inter) confluem e se entrecruzam, mobilizados e mobilizadores de ciclos autorreflexivos em que os sujeitos se integram à perspectiva de uma formação que se configura ora por um e ora por outro estilo de pensamento.

Os sujeitos que evidenciaram, ao longo da pesquisa, o estilo de pensamento conservador, caracterizam-se por serem menos abertos ao diálogo e compartilhamento, com negociação de ideias e pontos de vista sobre conhecimentos teóricos e práticos. Tendem a ser mais limitados aos entendimentos teóricos produzidos e validados no contexto de circulação intracoletiva até então vivenciado na formação. No grupo, encontram-se professores que atuam na educação básica, licenciandos e formadores que tendem a reproduzir o status quo, por não priorizarem o sistemático movimento de circulação de ideias intracoletiva nem intercoletiva. O estilo de pensamento conservador pode ser decorrente de certa ingenuidade, atribuída ao limite das teorias pessoais desenvolvidas no cotidiano, ou de uma postura positivista cética e dogmática de Ciência e de suas relações com as teorias e práticas docentes na área.

Com um perfil persuasivo, o sujeito que preserva o estilo de pensamento conservador nos contextos em que vivencia, promove uma força de coerção no tráfego do coletivo de pensamento e, com isso, busca manter o estilo de pensamento. Trata-se de uma situação preocupante em processos de formação de professores, pois imobiliza e impede o entrecruzamento de coletivos e restringe o movimento necessário para a transformação e consequente inovação na forma de pensar dos professores e futuros docentes. No caso, cria-se uma atmosfera comum em que a harmonia das ilusões não permite a evolução do estilo de pensamento.

Destacamos, neste estudo, que os professores que atuam na educação básica, licenciandos e professores formadores, participantes do projeto de formação analisado, os quais indiciam o estilo de pensamento conservador, não participam dos encontros com falas e, nas escritas no diário de bordo, apenas reproduzem falas de outros sem expor posicionamento. Além disso, apresentam postura indiferente ao processo, conforme compartilhado por um dos formadores em seu diário de bordo: "o olhar dos participantes para mim, durante a minha fala, foi o que mais me chamou a atenção, pois alguns fixam o olhar e parece que estão hipnotizados com a minha fala, enquanto outros se mantêm distantes, não estão ligados no grupo."

A falta de envolvimento de alguns professores com o coletivo foi identificada na escrita da licencianda Leila durante a avaliação do trabalho realizado.

Leila: Trabalhar de forma interdisciplinar na escola é um obstáculo que dificulta o planejamento. Eu penso que os alunos precisam mais dos conceitos específicos da Biologia. Percebi que o que foi transmitido pelos professores nos Ciclos mostra que eles têm muito conhecimento. [escrita realizada no encontro presencial, em 15/12/2015].

As colocações de Leila permitem caracterizá-la como resistente ao processo e, portanto, com estilo de pensamento conservador, pois, ao destacar dificuldades na realização do trabalho interdisciplinar ela expõe uma postura individualista que limita seu desenvolvimento profissional sob a perspectiva crítica proposta nesta pesquisa. Ao longo dos encontros, observamos que Leila procurava sentar-se sempre ao fundo do auditório, próximo à porta de saída. Ao iniciar o encontro, ligava seu computador de mesa e lá permanecia até perceber que o encontro estava encerrando. Ao seu lado, permaneciam outros colegas licenciandos que contribuíam para seu afastamento do grupo por meio de diálogos incessantes e sem relação com o trabalho que estava sendo realizado.

Nos encontros, identificamos a presença da professora Poliana, a qual atua na educação básica, possui idade mais avançada e demonstrou em seus compartilhamentos estar na expectativa pela sua aposentadoria. Em sua escrita acerca da avaliação dos encontros, expõe:

Poliana: Entendo que muitas vezes há dificuldades de colocar a interdisciplinaridade em prática nas escolas, nunca consegui ir muito adiante com isso. Também não consigo mais aprender sobre esses dispositivos tecnológicos, acho que eles teriam que ser melhores aproveitados na escola, porém acho que falta conhecimento de como poder usá-los [...]. Eu gosto de ouvir as falas dos professores da universidade, vou sentir saudades disso! [escrita realizada no encontro presencial, em 15/12/2015].

A professora Poliana escreve uma avaliação que pode ser interpretada como uma despedida do processo, ao relatar que vai "sentir saudades". Poliana pode ser caracterizada como portadora do estilo de pensamento conservador, pois não evidencia transformação ao expor apenas dificuldades quanto à realização das ações compartilhadas no projeto na escola. Ainda, no que se refere ao sentido expresso ao conceito de autonomia docente apresentado no primeiro episódio, identificamos a professora Priscila como portadora do estilo de pensamento conservador.

Salientamos que, em nossas observações, o estilo de pensamento conservador foi caracterizado por um número reduzido de sujeitos no projeto analisado, pois o espírito de colaboração e reflexão compartilhada prevalecia nos momentos presenciais, bem como nas escritas nos diários de bordo. Essas características fortalecem o espaço formativo do projeto, no sentido de promover o desenvolvimento constante da transformação dos sujeitos. Assim, ressaltamos que a maioria dos sujeitos participantes apresenta o estilo de pensamento transformador.

O estilo de pensamento transformador decorre da denominação proposta por Delizoicov (1995)DELIZOICOV, N. C. O professor de ciências naturais e o livro didático. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, 1995. Disponível em: <http://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/76326>. Acesso em: 1 out. 2018.
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, que se apropriou da ideia de professor transformador-crítico de Giroux (1988)GIROUX, H. Escola crítica e política cultural. São Paulo: Cortez, 1988.. Aqui, destacamos que os sujeitos com estilo de pensamento transformador se envolvem nas discussões com argumentos e se posicionam favoráveis à ideia de transformação das práticas, prevalecendo o espírito crítico. Nesse grupo encontram-se professores que atuam na educação básica, licenciandos e professores formadores que contribuem para a transformação do coletivo, bem como se mantêm em processo de transformação constante, pois movimentam o processo a partir de questionamentos e o compartilhamento de situações problemáticas da escola, que se caracterizam como complicações, como é acenado pela professora Paola:

Paola: Mesmo com mais de 25 anos de atividades docentes, ainda duvido se estou no caminho certo. Todas as dúvidas e questionamentos têm gerado inquietações, temores, angústias, reflexões, voltando minha atenção quase que exclusivamente sobre minhas aulas, métodos e formas de avaliar meu aluno em suas aptidões em sala de aula. [Excerto diário de bordo - 17/03/2015].

Em outro momento, Paola indicia novamente o estilo de pensamento transformador ao fazer uma avaliação do trabalho realizado no ano de 2015.

Paola: Por meio dos encontros, das falas, observei com um olhar atento e reflexivo o desenrolar e a explanação de educadores, como forma de sistematizar e melhorar minha formação docente, dando ênfase ao planejamento e as minhas ações pedagógicas. Todos os encontros deste ano foram significativos, pois busquei extrair e somar ao máximo ao meu crescimento profissional. Com esse princípio, procuro repaginar minhas aulas e melhorar significativamente. [Excerto diário de bordo - 15/12/2015].

Professores como a Paola, que expõem, no contexto da formação, a importância das complicações para movimentar as reflexões na e para a prática, tendem a ser mais abertos e plurais nos discursos, evidenciando a perspectiva dialética e demonstrando uma compreensão ampliada acerca do processo de ensinar, de aprender e da própria formação. Caracterizam-se por contribuírem com a transformação de si e dos outros, são transformados e transformam. Em tempo, acenamos que o estilo de pensamento que denota o discurso da professora Paola não é garantia de que suas ações na escola ou em outros contextos formativos tendem a expressar tal compreensão, pois depende das possibilidades de negociação do estilo de pensamento nos contextos em que ela vivencia.

O estilo de pensamento transformador também pode ser identificado no discurso do professor Fermino:

Fermino: Após uma rodada de leitura do diário de bordo como ação para a formação no grupo fiquei com muitos porquês? Por que não queriam ler? Por que demoraram a indicar-se nas leituras? Por que professoras de escola não desejam ler? Por que formadores ficam se desculpando para não ler? Então, mais tarde, ao pensar sobre o processo, fiquei tentando encontrar as razões, entre elas, como é difícil ler/abrir-se. O Diário é algo mais pessoal/individual e constitutivo do sujeito? [Excerto diário de bordo - 26/03/2015].

A constatação do professor formador possibilita acenar a importância do papel exercido por ele no grupo. Ao compreender que o diário é algo pessoal e constitutivo do sujeito, ele indicia um pensamento reflexivo dialético, confrontando a ideia de importância do compartilhamento das escritas no diário, com o respeito à individualidade de cada um. Assim, professores como Paola e Fermino contribuem para o movimento contínuo de formação de novos estilos de pensamento no contexto da formação, pois nutrem a espiral autorreflexiva, compartilhada por Carr e Kemmis (1988)CARR, W.; KEMMIS, S. Teoria crítica de la enseñanza: la investigación-acción en la formación del professorado. Barcelona: Martínez Roca, 1988., o que possibilita a transformação permanente dos sujeitos. Com o estilo de pensamento transformador, os sujeitos podem, também, vir a exercer uma força de coerção; porém, nesse caso, a harmonia das ilusões construídas contribui para o desenvolvimento coletivo.

O desenvolvimento do coletivo de pensamento da área de CN supõe a formação do estilo de pensamento transformador nos contextos: universidade, escola e demais espaços formativos. Destarte, não pretendemos desconsiderar o estilo de pensamento conservador, pois compreendemos que, à medida que novos integrantes façam parte do grupo, esse estilo estará sempre presente, o que é necessário para o processo de investigação-ação, ao considerar a necessidade do tensionamento de ideias e práticas no movimento de construção crítica e dialética, para movimentar a espiral autorreflexiva.

Considerações finais

Com a atenção voltada aos sentidos expressos pelos professores da área de CN acerca da autonomia docente, investigamos um contexto formativo em que professores da educação básica, licenciandos e professores formadores compartilham experiências e reflexões acerca da docência no ensino de Ciências sob a perspectiva da investigação-ação. Buscando complicações e indícios de transformação dos sujeitos no processo, identificamos estilos de pensamento que caracterizam o contexto e contribuem para os movimentos formativos necessários para o desenvolvimento do coletivo de pensamento interdisciplinar da área de CN.

O processo vivenciado contribuiu para compreendermos que os princípios dialéticos apresentados por Carr e Kemmis (1988)CARR, W.; KEMMIS, S. Teoria crítica de la enseñanza: la investigación-acción en la formación del professorado. Barcelona: Martínez Roca, 1988. como aspectos centrais em processos de investigação-ação, circundam o desenvolvimento do coletivo e produzem o movimento de circulação intracoletiva e intercoletiva de ideias sob a perspectiva crítica ou emancipatória. Compartilhamos os argumentos de Fleck (2010)FLECK, L. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010. ao afirmar que é preciso abandonar as dicotomias atinentes aos processos de ensino, que reforçam o desenvolvimento de um pensamento unilateral e simplista do trabalho docente. Nesse sentido, é importante que, nos processos de formação de professores da área de CN, sejam promovidas discussões que desenvolvam a racionalidade plural e aberta num movimento de complicar os estilos de pensamento instaurados, a fim de que se transformem em novos estilos de pensamento. Esse é o movimento necessário para que os professores, licenciandos e professores formadores desenvolvam novas formas de pensar sob a perspectiva crítica, promovendo reflexões dialéticas que devam perpassar os diálogos, a fim de contribuir para a formação de um novo sujeito que estabeleça uma aproximação da/na área de ensino.

A investigação realizada possibilitou identificarmos diferentes sentidos expressos pelos participantes acerca do conceito de autonomia, um mais unilateral e autoritário e outro em que a autonomia apresenta um sentido de coletividade e compartilhamento. Esses diferentes sentidos possibilitam acenarmos a formação de dois estilos de pensamento no contexto investigado, sendo eles: conservador e transformador. Os estilos de pensamento marcam o contexto do projeto de formação vivenciado e nutrem a espiral autorreflexiva que movimenta o processo de investigação-ação desenvolvido, ou seja, ambos os estilos são significativos para movimentar o processo, pois a presença de sujeitos com estilos de pensamento conservador é importante para gerar complicações permanentemente e, com isso, formar o estilo de pensamento transformador, que por sua vez torna o sujeito portador responsável em manter o tensionamento do processo e, assim, contribuir para o desenvolvimento do coletivo de pensamento da área de CN.

Defendemos que o desenvolvimento de coletivos de pensamento da área de CN pode contribuir para compreendermos de forma mais qualificada os processos formativos e serve de subsídio para a formação de novos professores, além da contribuição referente à essencialidade dos movimentos formativos dos professores da universidade e da escola básica coparticipantes do processo. Entretanto, são necessárias condições que permitam que o coletivo se efetive. É preciso que os professores das disciplinas formadoras da área demonstrem interesse no processo de interação coletiva de forma colaborativa, que sejam proporcionados momentos de formação compartilhada, que os processos sejam contínuos e permanentes, com encontros realizados sistematicamente sob a perspectiva da investigação-ação, que haja representatividade de sujeitos das disciplinas constituintes da área, e que se construa um ambiente propício para gerar complicações e transformar o estilo de pensamento conservador.

O processo formativo requer, também, que se efetivem as interações coletivas em um contexto que desenvolva a autonomia compartilhada, no sentido de desenvolver um conhecimento ampliado para o professor e, assim, possibilitar-lhe a aproximação com a área de CN. Para tanto, de acordo com Carr e Kemmis (1988, p. 194)CARR, W.; KEMMIS, S. Teoria crítica de la enseñanza: la investigación-acción en la formación del professorado. Barcelona: Martínez Roca, 1988., é necessário que o professor se transforme em um investigador educacional crítico e "[...] adote uma noção de racionalidade que é dialética". Nessa perspectiva, o sujeito pode vir a compreender que as situações sociais abarcam aspectos que precisam ser superados continuamente.

Esse processo é dinâmico e pode contribuir para superar o status quo em que a formação dos professores tem tendência a se estabelecer. Ou seja, uma formação voltada à resolutividade, impregnada de concepções utilitaristas que levam a uma realidade de busca de soluções imediatistas e, ao proporcionar isso, retorna a sua perspectiva original, como se fosse passar por um processo de dormência, em que, por determinados períodos, compartilha-se a ideia de que está tudo bem e assim deve permanecer, ou seja, uma harmonia das ilusões (FLECK, 2010FLECK, L. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010.).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    09 Abr 2017
  • Aceito
    23 Maio 2018
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