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A Crise na Argentina e as relações com o Brasil e os Estados Unidos: continuidade e mudança nas relações triangulares

The crisis in argentina and relationship swith Brazil and the United States: continuity and change in triangular relations

Resumos

Este artigo estuda as relações da Argentina com o Brasil e os Estados Unidos desde fins do século XIX até o momento presente, dando ênfase especial à fase que se inicia com a crise argentina de dezembro de 2001. Esse vínculo entre os países adquiriu um caráter crescentemente triangular marcado por um padrão básico de intercâmbio no qual a aproximação da Argentina a um dos vértices do triângulo implicou distanciamento do outro. A partir da crise de 2001, a adoção de uma combinação de pragmatismo e prudência por parte dos três países possibilitou uma nova forma de vinculação da Argentina com o Brasil e os Estados Unidos que poderá dar lugar ao desenvolvimento de um vínculo triangular mais harmônico. Daqui em diante, fica claro que a Argentina procurará estabelecer boas relações com Brasília e Washington, apesar de que, de natureza diferente. No primeiro caso, trata-se de tornar realidade a aliança estratégica bilateral longamente anunciada; no segundo, de construir uma relação positiva e cordial sustentável na defesa de interesses específicos.

Política Exterior Argentina; Estados Unidos e Brasil; Relações Triangulares; Aliança Estratégica Argentino-Brasileira


The article analyses Argentina's relationship with Brazil and the United States from the end of the nineteenth century on, giving special emphasis to the period that begins with the Argentinean crisis in December, 2001. The relationship between these countries has acquired a prominently triangular character, marked by a basic pattern of trade in which the closeness of Argentina to one of the triangle's vertices implied a distance from the other. Since the crisis in 2001, all three countries have adopted a mixture of pragmatism and prudence that made a new type of relationship between Argentina, Brazil and the United States possible and that could enable the development of a more harmonious triangular bond. From now on, it seems clear that Argentina is going to try to establish good relations with Brasilia and Washington, despite their different nature. The former aims at giving substance to the long lasting announced strategic bilateral alliance. The latter aims at building a standing relationship both positive and cordial in defense of specific interests.

Argentina Foreign Policy; United States and Brazil; Triangle Relationships; Argentine-Brazilian Strategic Alliances


A Crise na Argentina e as relações com o Brasil e os Estados Unidos: continuidade e mudança nas relações triangulares* * Tradução de Márcia Cavalcanti Ribas Vieira.

The crisis in argentina and relationship swith Brazil and the United States: continuity and change in triangular relations

Roberto RussellI; Juan Gabriel TokatlianII

IDiretor do Mestrado em Estudos Internacionais da Universidad Torcuato Di Tella e professor do Instituto del Servicio Exterior de la Nación, Buenos Aires, Argentina

IIDiretor de Ciência Política e Relações Internacionais da Universidad de San Andrés, Victoria, Provincia de Buenos Aires, Argentina

RESUMO

Este artigo estuda as relações da Argentina com o Brasil e os Estados Unidos desde fins do século XIX até o momento presente, dando ênfase especial à fase que se inicia com a crise argentina de dezembro de 2001. Esse vínculo entre os países adquiriu um caráter crescentemente triangular marcado por um padrão básico de intercâmbio no qual a aproximação da Argentina a um dos vértices do triângulo implicou distanciamento do outro. A partir da crise de 2001, a adoção de uma combinação de pragmatismo e prudência por parte dos três países possibilitou uma nova forma de vinculação da Argentina com o Brasil e os Estados Unidos que poderá dar lugar ao desenvolvimento de um vínculo triangular mais harmônico. Daqui em diante, fica claro que a Argentina procurará estabelecer boas relações com Brasília e Washington, apesar de que, de natureza diferente. No primeiro caso, trata-se de tornar realidade a aliança estratégica bilateral longamente anunciada; no segundo, de construir uma relação positiva e cordial sustentável na defesa de interesses específicos.

Palavras-chave: Política Exterior Argentina - Estados Unidos e Brasil - Relações Triangulares - Aliança Estratégica Argentino-Brasileira

ABSTRACT

The article analyses Argentina's relationship with Brazil and the United States from the end of the nineteenth century on, giving special emphasis to the period that begins with the Argentinean crisis in December, 2001. The relationship between these countries has acquired a prominently triangular character, marked by a basic pattern of trade in which the closeness of Argentina to one of the triangle's vertices implied a distance from the other. Since the crisis in 2001, all three countries have adopted a mixture of pragmatism and prudence that made a new type of relationship between Argentina, Brazil and the United States possible and that could enable the development of a more harmonious triangular bond. From now on, it seems clear that Argentina is going to try to establish good relations with Brasilia and Washington, despite their different nature. The former aims at giving substance to the long lasting announced strategic bilateral alliance. The latter aims at building a standing relationship both positive and cordial in defense of specific interests.

Keywords: Argentina Foreign Policy - United States and Brazil - Triangle Relationships - Argentine-Brazilian Strategic Alliances

Introdução

As relações da Argentina com o Brasil e com os Estados Unidos ocuparam um lugar de crescente importância nos diferentes esquemas que orientaram a política externa do país desde finais do século XIX. Este lugar foi sempre alvo de intensos debates. O Brasil foi considerado um aliado indispensável para a ampliação da autonomia nacional e para o fortalecimento da capacidade de negociação internacional do país, mas foi apontado também como o principal rival geopolítico, que ameaçava a segurança e a integridade territorial da Argentina. Do mesmo modo, no amplo contexto das interpretações que os retrataram, os Estados Unidos foram vistos, por um lado, como um perigoso império em permanente expansão e, por outro, como um aliado central para garantir o vínculo da Argentina com o mundo, com bons resultados. No século XX, este debate adquiriu um caráter cada vezmais triangular no desenrolar de um processo histórico marcado, ao mesmo tempo, pela decadência da Argentina e aumento do poder relativo dos Estados Unidos em escala mundial e do Brasil no âmbito sul-americano1 1 . Seguindo a definição de Dittmer, segundo a qual "um triângulo estratégico pode ser compreendido como um tipo de jogo transacional entre três jogadores", a relação entre Argentina, Brasil e Estados Unidos constituiu-se como um típico triângulo estratégico. De acordo com o mesmo autor, "três diferentes padrões sistêmicos de relações de troca podem ser concebidos: o 'ménage à trois', composto por amizades simétricas entre os três jogadores; o triângulo romântico, caracterizado pela amizade entre o jogador-pivô e os dois jogadores-alas e inimizade entre estes dois últimos; e o casamento estável, formado por relações de amizade entre dois dos jogadores e relações de inimizade entre cada um deles e o terceiro" (Dittmer, 1981:485-489). .

Nesse contexto, o modo de vinculação da Argentina com cada um destes dois países teve um impacto crescente e essencialmente negativo nas relações com o outro. Assim, o vínculo positivo com um dos vértices do triângulo derivou em confrontos, diferenças, distanciamentos ou receios em relação ao outro. Até hoje, a Argentina não conseguiu resolver este dilema e, conseqüentemente, articular uma relação simultânea com o Brasil e os Estados Unidos que seja funcional para os seus interesses nacionais2 2 . Para uma análise mais recente das relações da Argentina com os outros dois lados do triângulo, ver Hirst e Russell (2001); Norden e Russell (2002); Russell e Tokatlian (2003). .

O debate sobre o lugar de Brasil e Estados Unidos na política externa argentina intensificou-se após o esgotamento de cada um dos três esquemas desenvolvidos historicamente pela Argentina para orientar esta política:a)a relação especial com a Grã-Bretanha, que se estendeu desde finais do século XIX até os anos 30 do século XX; b)o paradigma da globalização, iniciado em meados dos 40 e que terminou no final da Guerra Fria; e c)a estratégia de "aquiescência pragmática", que se processa desde os 90 e que, com diferentes gradações, orientou a política externa do país até o fim antecipado do governo da Aliança, em dezembro de 2001.

Após a crise de dezembro de 2001, este último paradigma foi alvo de intensos questionamentos. A frieza e o desprezo do governo Bush com respeito àArgentina mostraram a falsidade do primeiro pressuposto:que a adesão aos interesses estratégicos e políticos dos Estados Unidos no mundo e na região garantiria ao país o apoio efetivo de Washington em circunstâncias de graves problemas internos. Ao mesmo tempo, a crise obrigou a que se repensassem as relações com o Brasil, que já tinham atravessado numerosas idas e vindas durante a década de 90, e também o sentido estratégico do Mercosul para a Argentina.

Este artigo se divide em quatro partes. Na primeira, fazemos uma rápida revisão dos vínculos da Argentina com o Brasil e com os Estados Unidos, desde a implementação do modelo de relação especial com a Grã-Bretanha até o final antecipado do governo de Raúl Alfonsín (8/7/1989). Em seguida, nos ocupamos com o mesmo assunto durante os governos de Carlos Menem e Fernando de la Rúa (1989-2001), período em que a Argentina desenvolve uma estratégia de adesão aos Estados Unidos sem precedentes na América Latina e reserva para o Brasil o lugar de sócio fundamentalmente econômico. Esta posição do país diante de seus dois aliados considerados preferenciais, segundo o discurso oficial da época, constituiu uma fonte de atritos e de desconfianças permanentes com o Brasil. Na terceira seção, examinamos rapidamente o papel desempenhado por Brasil e Estados Unidos durante a crise argentina de dezembro de 2001 e no período que abarcou o governo de Eduardo Duhalde (1/1/2001-25/5/2003), assim como o comportamento deste governo em relação aos dois países. Finalmente, analisamos as relações da Argentina com o Brasil e com os Estados Unidos desde o início do governo de Néstor Kirchner, para concluir com algumas reflexões sobre o futuro próximo destas relações.

O Lugar do Brasil e dos Estados Unidos na Política Externa Argentina (1880 -1989)

De 1880 a 1930, a Argentina conseguiu um nível de integração no sistema internacional que não tornaria a repetir-se. A partir de 1860, mas em particular nos anos 80, as classes dirigentes do país construíram um modelo de política externa que seguiu três orientações principais: o europeísmo, a oposição aos Estados Unidos e o isolamento em relação à América Latina (ver, entre outros, Ferrari, 1981; Puig, 1975).

O vínculo com a Europa, em especial com a Grã-Bretanha, foi a chave que permitiu ao país uma integração bem-sucedida na economia mundial, na qualidade de produtor e exportador de matérias-primas e alimentos. Os Estados Unidos, ao contrário, não ofereciam, naquele momento, boas garantias para a entrada no seu próprio mercado, tanto pelas barreiras protecionistas como pela baixa complementaridade das duas economias. Além do mais, no exato momento - depois da Guerra Civil - em que a Argentina punha em prática um projeto de política externa que se manteria sem grandes variações até os anos 30, a classe dirigente estadunidense começava a considerar a América Latina como uma possível área de hegemonia dos Estados Unidos. Esta visão se chocava com as aspirações políticas das elites argentinas de exercerem papel semelhante, ao menos na América do Sul. Os frutos econômicos concretos das relações com a Europa sustentaram, de forma progressiva, as aspirações políticas das elites argentinas de liderança regional, além de produzirem uma crescente autoconfiança que derivou, em numerosos casos, em um sentimento de superioridade cultural em face dos Estados Unidos. A famosa frase pronunciada pelo delegado argentino Roque Sáenz Pena na Primeira Conferência Pan-Americana (1889-1890), realizada em Washington, "A América para a humanidade", resume melhor do que nenhuma outra as prioridades externas do país e, ao mesmo tempo, as prevenções dos círculos dirigentes argentinos diante dos Estados Unidos, país que era visto muito mais como uma fonte de ameaças do que de oportunidades.

Ao mesmo tempo, o isolamento da América Latina foi uma conseqüência direta da escassez dos vínculos comerciais da Argentina com a região e concretizou-se em uma recusa sistemática ao estabelecimento de esforços associativos permanentes. Essa política abrangeu, com certeza, o Brasil, país que adotou, por seu lado, uma posição similar diante da Argentina. A baixa densidade da relação econômica teve seu correlato no campo da cultura e das idéias, mas não no da política externa. Desde as origens do país, a maioria da classe dirigente argentina viu o Brasil como um rival geopolítico, visão que se nutriu muito mais do temor da "expansão territorial" brasileira e do desequilíbrio de poder do que dos conflitos territoriais que ambos os países enfrentaram durante os anos de consolidação de seus respectivos Estados nacionais. A partir do final da Guerra da Tríplice Aliança (1865-1870), a rivalidade bilateral manifestou-se na busca de aliados nos países do Cone Sul, para atraí-los a uma esfera de influência própria, e no desenvolvimento de uma carreira armamentista. O fracasso da supremacia regional e o isolamento do outro foram os principais objetivos das políticas externas dos dois países com respeito à sub-região3 3 . Em fins do século XIX, o Brasil substituiu o eixo das relações especiais com Londres por Washington. Os Estados Unidos constituíram-se no seu principal mercado e, ao mesmo tempo, no seu primeiro provedor e financista. Secundariamente, a busca de uma "relação especial" com os Estados Unidos tentou neutralizar o poderio militar argentino e as ameaças ao Brasil que pudessem surgir de uma coalizão sub-regional liderada pela Argentina. Essa política foi vista desse modo em Buenos Aires; mais ainda, muitos dirigentes a viram como a primeira tentativa de distribuição de influências no hemisfério. .

A princípios do século XX, a visão predominante do Brasil como rival chocou-se com perspectivas cooperativas que começaram a ganhar força a partir do final da Segunda Guerra Mundial (convergência de interesses, complementação econômica, contrapeso de poder dos Estados Unidos), mas ainda no âmbito de uma política próeuropéia, que foi adquirindo um caráter cada vez mais defensivo ante o avanço dos Estados Unidos na América Latina.

As profundas transformações ocorridas na política e na economia mundiais após a Primeira Guerra implicaram o questionamento do modelo de relação especial com a Grã-Bretanha, para retirar-lhe progressivamente qualquer viabilidade. Após 1930, as mudanças no sistema de comércio mundial deram-lhe o golpe de misericórdia, e tornaram vãos todos os esforços realizados para recriar-se a antiga bilateralidade com Londres. A essa altura, a Grã-Bretanha já não tinha condições de proporcionar os capitais, bens e equipamentos que o país precisava para colocar em ação as novas estratégias de desenvolvimento, orientadas para a industrialização. Esse papel coube fundamentalmente aos Estados Unidos, mas desta vez não foram dadas as condições para a construção de um vínculo que operasse como um equivalente funcional ao produzido com a Grã-Bretanha durante os anos de apogeu do modelo exportador.

O fim do modelo desencadeou um amplo debate sobre as alianças que deveriam ser privilegiadas (Europa, Estados Unidos ou, de forma menos significativa, América Latina), o grau de abertura da economia ao comércio exterior, o desenvolvimento do mercado interno e as estratégias de industrialização. Enquanto a maior parte da classe dirigente argentina ainda considerava que o vínculo com a Europa poderia recuperar seu lugar central na política externa ("volta à normalidade", segundo expressões da época), outras vozes postulavam o estabelecimento de uma relação estreita com Washington, tanto por razões políticas como econômicas. Os partidários desta posição também concediam um lugar de importância para a América Latina, em particular para o Brasil, dada a necessidade de superar a estreiteza do mercado interno e de diversificar os externos (Pinedo, 1943:112). Em uma vertente mais política, outras vozes defenderam uma relação mais cooperativa com o Brasil a partir de um novo ângulo: o da comunidade de origem e da condição comum de subdesenvolvimento. Para esses agentes, a rivalidade com o Brasil só servia para fazer o jogo dos interesses externos e internos empenhados em aprofundar as diferenças no mundo subdesenvolvido.

Na prática, a preocupação com o equilíbrio sub-regional e a competição pela influência nos países vizinhos continuou dominando a visão argentina do Brasil. A atitude que ambos os países adotaram depois do início da Segunda Guerra Mundial - aumento da neutralidade argentina e consolidação do alinhamento brasileiro com os Estados Unidos - deu lugar ao surgimento na Argentina de uma nova visão sobre o Brasil, inscrita na lógica da rivalidade geopolítica, como "país-chave" da futura ação estadunidense no continente4 4 . Segundo explica a diretoria de uma revista que iria ter muita influência, nos anos 70, na configuração das visões sobre o Brasil: "entende-se por 'país-chave' aquele que, dentro de uma região determinada, pode servir de pivô para a política de poder de uma grande potência, a qual lhe outorga prioridade nos seus programas de ajuda e assistência econômica, militar, etc." ( Dirección de Estrategia, 1970:49). .

A partir do fim da Segunda Guerra Mundial, as circunstâncias internacionais e da Argentina foram conformando um novo paradigma de política externa, que substituiu definitivamente o da relação especial com a Grã-Bretanha, transformando-se no principal quadro de referência da ação internacional do país até o início do governo Menem5 5 . Denominamos este paradigma de "globalista" porque a partir de sua implementação a Argentina buscou uma ampla diversificação de vínculos externos, além de desenvolver, como país médio, um papel ativo nas negociações internacionais sobre temas políticos e econômicos de natureza global. O mesmo organizou-se a partir das seguintes premissas: não-alinhamento aos Estados Unidos que nunca implicou eqüidistância entre os blocos; impulso à integração latino-americana a partir de uma perspectiva gradual e assentada no reconhecimento da grande diversidade de situações econômicas nacionais; posição ativa nos foros internacionais em defesa da paz, do desarmamento e da distensão Leste-Oeste; recusa de organismos e regimes internacionais que procuram congelar a distribuição do poder mundial, particularmente no que tange ao desenvolvimento de tecnologias sensíveis; oposição ao estabelecimento de organismos supranacionais que restrinjam a autonomia e o desenvolvimento argentinos; execução de uma estratégia de desenvolvimento orientada para a substituição de importações nos planos nacional e regional como via principal para superar as vulnerabilidades do modelo tradicional baseado nas exportações primárias; introdução de reformas no sistema econômico e financeiro internacional que contemplem os interesses dos países em desenvolvimento; e diversificação dos sócios comerciais externos sem barreiras ideológicas. . O esboço desse paradigma foi traçado durante a segunda metade da década de 40 por Juan Domingo Perón que, desde o momento em que assumiu o governo, se esforçou por encontrar um modus vivendi com os Estados Unidos que satisfizesse os interesses econômicos da Argentina, sem renunciar aos seus objetivos de soberania política e independência econômica. O esquema concebido por Perón organizou-se a partir de cinco elementos básicos: o pertencimento cultural da Argentina ao Ocidente; o alinhamento do país aos Estados Unidos em caso de conflito bélico com a União Soviética; o não-alinhamento com os interesses estratégicos, políticos e econômicos estadunidenses devido a diferenças verdadeiras de interesses e enfoques entre os dois países, considerando sua desigual posição relativa no sistema internacional; a definição de uma agenda bilateral e regional com nítidas hierarquias temáticas, em que as questões econômicas ocupavam o primeiro lugar, acima inclusive das de segurança; e, finalmente, a oposição à intervenção norte-americana nos assuntos internos dos países da região.

Estes cinco aspectos constituíram o leito sobre o qual se estabeleceu a política externa argentina em relação aos Estados Unidos durante os anos da Guerra Fria. Politicamente, esse esquema continha um componente de autonomia que não garantia a lealdade que Washington esperava da América Latina naquele período. Economicamente, promovia heterodoxias que contrastavam com as políticas liberais e o multilateralismo favorecidos pelos Estados Unidos. Ele foi certamente percebido como uma estratégia orientada para reduzir o poder estadunidense e aumentar a capacidade de negociação argentina e latino-americana. O aprofundamento da dependência econômica do país em relação aos Estados Unidos desde finais dos anos 40 atenuou, em algumas ocasiões, esse perfil autonomista, mas jamais o colocou na retaguarda. Mesmo os governos argentinos que tiveram uma inequívoca vontade de se aproximar dos Estados Unidos procuraram manter espaços de decisão próprios diante das demandas e pressões de Washington6 6 . O extravasamento para um maior alinhamento ou confrontação com Washington foi efêmero, dado que obedeceu a circunstâncias de momento, tanto internas como internacionais, ou foi promovido por grupos que nunca alcançaram suficiente poder para instalar, à direita e à esquerda do esquema dominante, fórmulas alternativas. .

De qualquer forma, a diplomacia argentina mostrou-se menos disposta a confrontar-se com os Estados Unidos do que na etapa de predomínio do paradigma da relação especial com a Grã-Bretanha, talvez impelida mais por necessidade do que por convicção. Mais que isso, uma maior aproximação econômica com os Estados Unidos era apresentada geralmente como um recurso instrumental para se alcançar o desenvolvimento nacional e, na prática, fez-se acompanhar de políticas compensatórias para a América Latina, a Europa Ocidental e os países socialistas, assim como de medidas orientadas para criar obstáculos às aspirações norte-americanas, particularmente no plano hemisférico.

No âmbito sub-regional, a Argentina não conseguiu estabelecer um padrão de relações duradouro, capaz de vencer antigas desconfianças. As políticas orientadas para o fortalecimento da cooperação com o Brasil, para que os temas internacionais e os problemas do subdesenvolvimento fossem encarados a partir de critérios comuns, foram superadas pelos enfoques de política de poder que enfatizavam a rivalidade e a disputa por influência no espaço sul-americano. Assim, a causa latino-americana defendida por Perón nunca chegou a entusiasmar os governantes brasileiros, que a viam não apenas com ceticismo e desconfiança, mas também como uma ameaça à sua relação especial com os Estados Unidos. Ao fim da década de 50, enfoques semelhantes sobre as realidades regional e mundial permitiram uma aproximação inédita entre Argentina e Brasil que, no entanto, ficou incompleta devido à política interna dos dois países7 7 . O passo mais importante, dirigido a modificar o sinal da relação bilateral, para transitar da rivalidade pela influência sub-regional à cooperação, foi a assinatura dos Acordos de Uruguaiana, em 22 de abril de 1961, pelos presidentes Arturo Frondizi e Jânio Quadros. Seu principal objetivo era promover uma ação internacional conjunta dos países "em função da condição sul-americana que lhes é comum" (ver Lanús, 1984:298). . A partir da segunda metade dos 60, a agenda da política externa para a região foi dominada por uma preocupação crescente com a marcha ascendente do Brasil, que se refletia no aumento de sua importância política e econômica na América do Sul. Nesse contexto, a relação com o país vizinho foi definida pela idéia de rivalidade, a partir de duas vertentes: a geopolítica, que acentuava o desequilíbrio de poder entre os dois países, com uma patente inveja pelos resultados do "milagre brasileiro"; e a teoria da dependência, que destacava o perigo do "subimperialismo brasileiro" na Bacia do Prata e o papel do Brasil, em função de uma aliança privilegiada com Washington, de guardião dos Estados Unidos na sub-região.

Após muitas idas e vindas, as diferenças entre os dois países reduziram-se significativamente com a assinatura do Acordo Tripartite de Corpus-Itaipu, em 19/10/1979, entre Argentina, Brasil e Paraguai, que abriu interessantes perspectivas para o avanço no terreno da cooperação8 8 . O tema principal que dividiu os dois países nos anos 60 e 70 foi a utilização do potencial energético dos rios de uso comum - mais especificamente, a disputa sobre a central hidrelétrica que seria construída finalmente em Itaipu -, o que ocasionou uma séria disputa que transcendeu ao plano bilateral. . Um pouco mais tarde, em 17/5/1980, Argentina e Brasil assinaram em Buenos Aires um acordo de cooperação para o desenvolvimento e aplicação com fins pacíficos da energia nuclear. A esta altura, o país vizinho já não era mais a hipótese de conflito prioritária para o pensamento estratégico militar argentino9 9 . É importante notar que tanto o conflito militar argentino com o Chile, ocorrido em fins de 1978, como o desencadeado por motivo da Guerra das Malvinas ocorreram se descartando a possibilidade de o Brasil ter algum tipo de participação hostil em relação à Argentina (ver Fraga, 1999:272). .

Durante a guerra das Malvinas, o Brasil solidarizou-se com a Argentina, embora não concordasse com a ação armada. A derrota argentina nesse conflito acabou para sempre com o dilema de segurança argentino-brasileiro. Logo depois, o início do processo de democratização em ambos os países facilitou a realização de importantes acordos de integração e de concertação da política externa. Durante o governo Alfonsín (1983-1989), abandonou-se paulatinamente a competição, em nome da construção de uma nova aliança - concebida como um projeto de caráter estratégico para a consolidação do processo democrático nos dois países -, como forma de resguardar a soberania nacional, impulsionar o desenvolvimento argentino em complementaridade com o do Brasil e reunir massa crítica para ampliar a capacidade de negociação internacional. Nessa primeira etapa da democracia argentina, embora o governo tivesse estimulado uma postura mais cooperativa com respeito ao Brasil e abandonado a retórica conflitiva, as desconfianças mútuas não desapareceram totalmente.

O Paradigma da Aquiescência Pragmática: A Intensificação das Diferenças no Triângulo (1989-2001)

Quando Carlos Menem assumiu a Presidência da Argentina, em julho de 1989, os contextos internacional e interno reuniam duas das três condições que Jakob Gustavsson (1998:4) identificou como propiciadoras para a realização de mudanças significativas na política externa: alteração das condições estruturais fundamentais na esfera externa (fim da Guerra Fria e nova fase de globalização econômica) e a presença de uma crise interna de envergadura (hiperinflação). A terceira condição - a existência de uma liderança político-estratégica - ocorreu progressivamente, na medida em que Menem consolidou seu poder político interno a partir da construção de uma nova coalizão social, que produziu, entre outros aspectos relevantes, um "giro copernicano" no perfil ideológico do peronismo.

O paradigma da globalização foi considerado não apenas disfuncional para orientar a política externa da Argentina nesses novos ambientes internacional e doméstico, mas também um dos principais motivos da decadência relativa do país no mundo. Para substituí-lo, o governo de Menem propôs e seguiu as premissas de um novo paradigma de política externa que chamamos de "aquiescência pragmática".10 10 . Suas premissas foram as seguintes: 1) submissão aos interesses políticos e estratégicos dos Estados Unidos, tanto globais como regionais; 2) definição do interesse nacional em termos econômicos; 3) participação ativa na criação e no fortalecimento de regimes internacionais em sintonia com a posição dos países ocidentais desenvolvidos, particularmente na área da segurança; 4) apoio à integração econômica no marco do regionalismo aberto; 5) execução de uma estratégia de desenvolvimento econômico ordenada em torno dos alinhamentos do assim chamado "Consenso de Washington"; 6) confiança em que as forças do mercado, mais do que o Estado, garantiriam uma nova e bem-sucedida inserção internacional para a Argentina; e 7) aceitação das regras básicas da ordem econômica e financeira internacional.

O Brasil e os Estados Unidos foram definidos como os principais aliados da Argentina, mas em planos diferentes. O Brasil, no contexto do Mercosul, foi considerado como um aliado fundamentalmente econômico, enquanto as relações com os Estados Unidos constituíram o principal eixo articulador de um novo vínculo da Argentina com o mundo, baseado na submissão estratégica a Washington. Esta tática se justificava por duas razões práticas: os Estados Unidos tinham acabado de ganhar a Guerra Fria e eram a potência hegemônica na América Latina desde o fim do século XIX. Com certa nostalgia pela Argentina "próspera" e pelo modelo de relação especial com a Grã-Bretanha, considerou-se que uma aliança política e econômica com Washington seria fundamental para garantir um retorno bem-sucedido do país à ordem mundial. Além do mais, e no plano especificamente sul-americano, a submissão a Washington foi percebida como a estratégia própria das segundas potências regionais (Argentina na América do Sul), enquanto a busca do equilíbrio correspondia naturalmente às primeiras potências de cada região (Brasil na América do Sul). A estas duas razões, que explicam a submissão privilegiando variáveis externas ao país (contextos mundial e sub-regional), deve somar-se um conjunto de fatores internos da Argentina: a condição de vulnerabilidade externa do país, sua fragilidade institucional, a busca de lucros e a preservação e ampliação do poder político interno por parte do governo Menem.

As relações com o Brasil foram definidas com o olhar posto no passado, em uma "outra" Argentina e em um "outro" Brasil, país que tinha sido um importante aliado dos Estados Unidos. Em relação ao primeiro, apelou-se para a imagem da Argentina próspera do final do século XIX e das primeiras décadas do século XX, e para o projeto nacional e internacional da geração que construiu o país e que conseguiu inseri-lo com êxito no mundo. Quanto ao Brasil como modelo de política exterior, recorreu-se à imagem de um país que optou pelo alinhamento com os Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial.

Aquele Brasil era visto em termos laudatórios, enquanto o dos 90 era percebido com preocupação. Seu relativo distanciamento dos Estados Unidos e a busca de maior poder e influência externa em estilo realista eram considerados como exemplo de políticas que deveriam ser evitadas, tanto pelo seu anacronismo como por terem contribuído de forma significativa, no caso argentino, para a decadência do país.

O governo da Aliança (União Cívica Radical, Frepaso e outros partidos minoritários e moderados de centro-esquerda) que assumiu em 10/12/1999 não alterou, a não ser no estilo, os alinhamentos básicos da política externa seguida por Menem. A princípio, o governo presidido por Fernando de la Rúa parecia inclinado a olhar mais para o Brasil e a relançar o Mercosul. O enfoque então predominante era de que os vínculos com o país vizinho se mostravam essenciais, tanto do ponto de vista econômico como político. No entanto, logo se mostrou evidente que a relação com o Brasil não se alteraria substancialmente. A Argentina evitou comprometer-se com iniciativas que poderiam ser vistas como tentativas de equilíbrio ou de oposição ao poder estadunidense na sub-região. Assim, por ocasião da Primeira Cúpula de Presidentes da América do Sul, convocada pelo Brasil em finais de agosto de 2000, a Chancelaria argentina expressou claramente que este encontro de doze países não deveria ser interpretado como uma tentativa de criar um bloco sul-americano (Rodríguez Giavarini, 2000:17). De fato, as contradições nos vínculos com o Brasil se exacerbaram. No próprio governo, as discrepâncias entre ministérios e funcionários de alto nível provocaram uma crescente tensão diplomática entre Buenos Aires e Brasília, colocando em evidência que não apenas se carecia de uma clara visão do "outro", mas que faltava também uma imagem própria consistente.

Em resumo, as relações da Argentina com o Brasil e com os Estados Unidos tiveram um peso relativo claramente diferenciado em favor de Washington. Nunca se constituiu como um triângulo eqüilátero. Os avanços produzidos nas relações com o Brasil no plano econômico, se bem tivessem aumentado a interdependência entre os dois países, não corresponderam a um aumento das convergências no campo da política externa, onde as diferenças foram notórias e progressivas. Nesse contexto, as intenções da Argentina em relação ao Brasil e, mais especificamente, ao Mercosul não foram nunca muito claras para a diplomacia de Brasília, que também teve sua quota importante de responsabilidade na falta de avanços na relação bilateral. Desse modo, a integração entre os dois países ficou presa entre os vaivéns argentinos e a inflexibilidade brasileira.

A Crise de Dezembro de 2001 e o Governo Duhalde

A crise de dezembro de 2001, cujos aspectos mais visíveis foram o final antecipado do vacilante governo de Fernando de la Rúa, a mudança de cinco presidentes em doze dias, as numerosas mobilizações de rua de setores médios e populares unidos sob o slogan "que vão todos embora" e o anúncio festivo da interrupção dos pagamentos da dívida, levou a um novo debate sobre o rumo que a Argentina deveria seguir em matéria de suas relações internacionais. O lugar do Brasil e dos Estados Unidos na política externa do país voltou a ocupar o centro da cena. Os partidários da submissão a Washington ainda alimentavam uma visão negativa do Brasil, que foi apresentado como um país de futuro incerto e com um tipo de política externa que poderia arrastar a Argentina para a retomada de caminhos equivocados. Ante a gravidade da crise e a extrema vulnerabilidade externa do país, insistiram em que a submissão aos Estados Unidos continuava sendo a melhor estratégia para tirar a Argentina do poço à custa da relação com o Brasil, cujo papel deveria manter-se como o de um sócio fundamentalmente econômico. Esta posição foi discutida por aqueles que defendiam fazer da relação com o Brasil o principal eixo ordenador da política externa, enquanto propunham uma aproximação seletiva com Washington isenta de qualquer tipo de continuísmo. O governo de transição de Eduardo Duhalde navegou com dificuldade entre estas duas alternativas, embora se tivesse voltado progressivamente para a segunda.

O default da Argentina era esperado nos centros financeiros do mundo já há bastante tempo, não tendo portanto causado maiores surpresas quando finalmente ocorreu em dezembro de 2001. Também não surpreendeu que De la Rúa abandonasse a Casa Rosada um ano antes do final de seu mandato constitucional. De fato, a fase terminal do governo da Aliança se havia iniciado depois da derrota nas eleições legislativas de 14/10/2001, quando a população argentina, mediante o chamado "voto-bronca", expressou seu crescente repúdio à classe política de modo geral.

A volta do peronismo ao governo da Argentina, tanto do efêmero e populista Adolfo Rodríguez Saá, como do seu sucessor Eduardo Duhalde, foi recebida pela administração Bush com os comentários de praxe. O presidente dos Estados Unidos, em uma carta dirigida à Rodríguez Saá, definiu a Argentina como "nosso vizinho, nosso valioso aliado e amigo" e anunciou que as relações continuariam "excelentes"11 11 . "Bush Prometió 'Relaciones Excelentes'. Envió una Carta à Rodríguez Saá". La Nación, 24/12/2001, p. 9. . Estas palavras de compromisso foram acompanhadas de outras menos formais, porém mais precisas: o próprio Bush e os principais membros de seu governo esclareceram diversas vezes que qualquer tipo de ajuda estadunidense se daria por meio do Fundo Monetário Internacional (FMI) e advertiram, estabelecendo de saída aquela que seria a sua aproximação à crise argentina, que para conseguir o respaldo de Washington o país deveria, antes de tudo, colocar em ordem suas políticas fiscal e monetária, além de desenvolver um programa econômico que implicasse "crescimento sustentado"12 12 . "Respaldo de EE.UU. al Gobierno de Rodríguez Saá". Clarín, 28/12/2001, p. 4 .

Depois de algumas hesitações iniciais, o governo Duhalde concluiu rapidamente que a assinatura de um acordo com o FMI era condição necessária tanto para reintegrar a Argentina no mundo como para começar a organizar a economia do país13 13 . Os organismos multilaterais de crédito são os segundos maiores credores da Argentina. Com quase 30% do total da dívida pública concentrado nos ditos organismos, era impensável encarar o problema da dívida sem passar previamente pelo FMI. . Mais importante ainda, condicionou a realização desse acordo à sua própria sobrevivência. A partir dessa leitura, foram fixadas duas prioridades em matéria de política externa: a obtenção de uma imediata ajuda econômica dos Estados Unidos e o apoio da administração Bush às árduas negociações que se iniciavam com os organismos multilaterais de crédito. Para tirar pedras do caminho, logo depois da posse, desculpou-se com o presidente Bush das medidas de caráter dirigista que herdara ou fora obrigado a pôr em prática, e declarou seu fiel compromisso com a liberdade econômica14 14 . Expressamente, em uma carta dirigida ao presidente Bush, em 25/1/2002, Duhalde diz, após reafirmar o caráter de sócios de ambos os países e a condição de aliada extra-OTAN da Argentina, o seguinte: "Meu governo está firmemente comprometido a deixar de lado, o mais rapidamente possível, medidas transitórias, de caráter dirigista, que herdamos ou nos vimos obrigados a tomar. Insisto, as presentes medidas são apenas circunstanciais e serão abandonadas logo que possamos normalizar a situação econômica e financeira" (ver Clarín, 26/1/2002, p. 5). .

Naqueles dias tumultuados e confusos do início de 2002, o governo argentino imaginou que um acordo com o FMI era questão de curto prazo e que os países do Grupo dos 7 (G-7), encabeçados pelos Estados Unidos, dariam à Argentina uma importante ajuda externa, que oscilaria entre US$15 e US$18 bilhões. Muito rapidamente, os fatos se ocuparam de demonstrar que essa expectativa era desmesurada. O apoio de Washington não somente não chegou, como o governo Bush utilizou a Argentina como rato de laboratório para a nova política destinada aos países emergentes que atravessam crises financeiras. Tal política sustenta, como se sabe, que não faz sentido emprestar o dinheiro dos contribuintes norte-americanos a países cuja estrutura da dívida não é sustentável, nem sair em socorro daqueles que realizaram más inversões em economias de alto risco, em busca de maior rentabilidade. Para sua desventura, a Argentina passou de ser exemplo de reformas econômicas promovidas pelos Estados Unidos e o FMI para a América Latina na década de 90 ao test case dessa nova política, a qual não se aplicaria com o rigor anunciado em nenhum outro caso15 15 . Depois de ter apoiado importantes pacotes de ajuda à Argentina, por via dos organismos multilaterais de crédito, o governo dos Estados Unidos decidiu, em dezembro de 2001, "baixar a crista" do país não apoiando a liberação por parte do FMI de um desembolso previamente combinado de US$ 1,264 bilhão. . A leitura feita em Washington foi a de que os custos relativos aos juros estadunidenses seriam pequenos e que não haveria efeito-contágio em outras nações emergentes, como ocorrera com as crises financeiras no México, no sudeste da Ásia, na Rússia e no Brasil.

O Departamento de Tesouro transmitiu a posição do governo Bush para a Argentina, nunca melhor expressa do que nas declarações do seu então titular, Paul O'Neill: "Não é justo utilizar o dinheiro dos carpinteiros e dos bombeiros estadunidenses para resgatar bancos e empresas que investiram mal em países de alto risco, em busca de uma rentabilidade mais elevada e mais rápida. Se aceitaram correr o risco, eles devem assumir os custos"16 16 . "La Llegada de Paul O'Neill" ( http://nuevamayoria.com/ES/ANALISIS/Martini/020806.htm). . De uma forma menos crua e com as sutilezas próprias da diplomacia, esta posição foi totalmente aceita pelo Departamento de Estado. Assim, a expectativa argentina de que os Estados Unidos adotassem uma visão mais política da crise teve o mesmo destino que os novos fundos esperados, em vão, em Buenos Aires durante os primeiros meses do ano.

A Argentina do imediato período pós-crise não oferecia ao mundo financeiro internacional e aos governos do G-7, começando pela administração Bush, as condições necessárias para negociar com o FMI. Além de uma longa história de não-cumprimento de acordos (desde a entrada ao FMI a Argentina só cumpriu quatro dos dezenove acordos que assinou com esse organismo), três fatores daquela conjuntura contribuíram para elevar o nível já bastante alto de desconfiança externa que o país produzia: a declaração em tom de vitória do "calote"; a notória incapacidade da classe política argentina para trabalhar no meio da tempestade em prol de uma maior governabilidade; e, finalmente, o medo de que a aliança peronista-radical que pusera Duhalde na Presidência se orientasse para políticas dirigistas e populistas. Para cúmulo dos males, a crise Argentina eclodiu apenas três meses após os atentados terroristas de 11 de setembro nos Estados Unidos. Pouco tempo depois de ocorridos estes fatos, Paul O'Neill reconheceu ante a Comissão de Assuntos Bancários do Senado que: "Há uma semana atrás, a Argentina estava no topo da nossa lista de trabalho; agora já não está mais nesse lugar, não da mesma maneira que antes" (apud O'Donnell, 2001:6)17 17 . Se bem que a Argentina tivesse perdido importância relativa para os Estados Unidos após os incidentes terroristas, do mesmo modo que o restante da América Latina, era muito improvável que tivesse recebido outro tratamento dos Estados Unidos se não houvesse ocorrido o 11 de setembro. Antes desse dia, a administração Bush já estava preparada para aplicar medidas exemplares ao país, por causa de seus reiterados descumprimentos. .

As penúrias do país e os mais de dez anos de submissão aos interesses políticos e estratégicos dos Estados Unidos não comoveram a administração Bush, que manteve durante vários meses uma posição de frieza e não fez nenhum esforço para ajudar a levantar a diminuída auto-estima coletiva da Argentina - por exemplo, apesar de sua condição de "aliado extra-OTAN", não a incluiu na lista das nações do hemisfério ocidental com as quais, conforme expresso em sua nova estratégia de segurança nacional, procura formar "coalizões flexíveis" (os países incluídos foram Brasil, Canadá, Colômbia, Chile e México).

Somente no final de 2002, o governo Bush, junto com outros do G-7, ajudou para que o FMI vencesse suas fortes resistências a aprovar um acordo transitório com a Argentina que, a esta altura, terminava um longo ano de duras negociações18 18 . O acordo, finalmente aprovado em 25/1/2003, teve duração de apenas oito meses. Por seu intermédio, a Argentina conseguiu postergar os pagamentos que tinha que fazer entre janeiro e agosto daquele ano ao FMI, US$ 11 bilhões, e de US$ 4,4 bilhões ao BID e ao Banco Mundial. O convênio também contabilizava US$ 5,112 bilhões de vencimentos já reprogramados em 2002, com o qual a soma final elevou-se para US$16,112 bilhões. . O Tesouro dos Estados Unidos teve um papel preponderante na fase final das negociações para aproximar as posições da Argentina das do FMI - por exemplo, logo após a assinatura da Carta de Intenções, o Departamento de Tesouro pediu, em um comunicado ao Diretório do Fundo, que tratasse do acordo em um "futuro mais próximo"19 19 . Um dos parágrafos sobressalentes do comunicado diz o seguinte: "A implementação de um efetivo programa de transição poderá construir e fortalecer o progresso que as autoridades argentinas estão fazendo para estabilizar a situação econômica e financeira do país" ( La Nación, 17/1/2003, p. 9). . Este apoio do Executivo norte-americano à Argentina foi reconhecido pessoalmente pelo próprio Duhalde ante o secretário de Estado dos Estados Unidos, Colin Powell, em uma reunião que mantiveram por ocasião do Fórum Econômico de Davos, em janeiro de 2003. Depois do encontro, o presidente argentino declarou: "Os Estados Unidos nos apoiaram colaborando de uma forma que eu definiria como militante. Todo o tempo estiveram conversando com nossos representantes do Ministério da Economia, do Banco Central e com nosso Embaixador em Washington, para promover um entendimento" (La Nación, 26/1/2003, p. 9).

Certamente, o decisivo respaldo dos Estados Unidos para apressar o fechamento do acordo com o FMI não se deveu a um novo posicionamento com respeito à Argentina, mas a razões práticas da conjuntura, dentre as quais se destacam: era melhor entrar em acordo que deixar o país cair no default absoluto e, com isso, inclinar-se para políticas mais dirigistas; era conveniente que o governo de Duhalde terminasse o seu mandato sem aperto financeiro; o acordo ajudaria a preservar a estabilidade macroeconômica durante a transição a um novo governo; e, finalmente, daria um pouco de oxigênio ao governo recém-estabelecido para encarar a reestruturação da dívida pública.

Tendo como pano de fundo as extenuantes e incertas negociações com o FMI, o governo de Duhalde procurou não se opor a Washington nos assuntos de natureza político-diplomática e estratégica que dominaram a agenda política bilateral naquele ano. O caso mais claro nesse sentido foi a manutenção do voto de condenação a Cuba em matéria de direitos humanos, na sessão anual da Comissão de Direitos Humanos da ONU que ocorre em Genebra. Quando, em Buenos Aires, ainda se esperava uma ajuda econômica imediata de Washington, a Argentina adiantou seu voto de censura a Havana um mês antes da votação do projeto de resolução que convidava o governo de Cuba a realizar esforços visando obter avanços no campo dos direitos humanos, civis e políticos. Em Genebra, a Argentina somou-se ao grupo dos 23 países a favor da condenação, também integrado pela Costa Rica, Chile, Guatemala, México, Peru e Uruguai, da América Latina. Desse modo, o governo de Duhalde manteve a posição defendida pelos governos anteriores de Carlos Menem e Fernando de la Rúa, ao mesmo tempo que não ouvia o Congresso, cujas duas Casas tinham aprovado um pedido ao Executivo para que o país se abstivesse de condenar Cuba20 20 . Ver "La Cámara Baja se Sumó al Reclamos del Senado" ( http://www.lainsignia.org/2000/janeiro/be_156.htm). . O único país latino-americano que votou contra a resolução, afora Cuba, foi a Venezuela, enquanto Brasil e Equador se abstiveram21 21 . Ver Resolución de la Comisión de Derechos Humanos 2002/18, Alto Comisionado de las Naciones Unidas para los Derechos Humanos. .

A posição argentina não despertou muitos debates no país, como nos outros anos. Isto se deveu não apenas ao fato de que a crise interna relegou o assunto a um plano secundário, mas porque o formato da condenação adotada em 2002 foi mais amigável - consistiu em um convite ao governo de Fidel Castro para que introduzisse melhorias no campo dos direitos humanos. Além do mais, a resolução reconheceu "os esforços feitos pela República de Cuba no que se refere à realização dos direitos sociais da população, apesar de um contexto internacional adverso"22 22 . Ver Resolución de la Comisión de Derechos Humanos 2002/18, Alto Comisionado de las Naciones Unidas para los Derechos Humanos. .

Buenos Aires e Washington também expressaram fortes coincidências em face da situação colombiana. Neste caso, a proximidade da posição da Argentina com a dos Estados Unidos não foi produto somente de uma necessidade, mas de acordos efetivos entre os dois países. O governo Duhalde apoiou mais explicitamente do que qualquer outro governo sul-americano o novo presidente da Colômbia, Álvaro Uribe, e sua estratégia frontal de "luta contra o terrorismo". Ele o fez porque estava persuadido de que a democracia corria sérios riscos na Colômbia, porque temia um efeito dominó que chegasse, por via do conflito político com as FARCs, a tocar as portas de uma Argentina já bastante convulsionada pela crise, porque mostrava aos Estados Unidos que o país estava seriamente comprometido com o combate ao terrorismo (esperando que o governo Bush não insistisse demais no pedido de envio de tropas ao Afeganistão e ao Iraque) e, por último, porque se diferenciava da postura bastante crítica de Brasília em relação a Washington e ao "Plano Colômbia"23 23 . Cabe ressaltar que, no período 2002/2003, Buenos Aires não se pronunciou contra o Plano Colômbia nem contra a posterior iniciativa andina de Washington que regionalizava, de fato, a "guerra contra as drogas". .

Além do mais, a Argentina foi o único país sul-americano a enviar o seu chanceler para a reunião do presidente Uribe com os seus pares da América Central (Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua e Panamá), realizada no Panamá em 11 de fevereiro de 200324 24 . O catalisador desse encontro foi o atentado das FARCs ao clube El Nogal (35 mortos e 165 feridos), no centro de Bogotá, em 7 de fevereiro. . Durante este encontro, solicitado pela Colômbia devido ao aumento das ações terroristas das FARCs a partir da chegada ao poder de Uribe, o chanceler argentino opôs-se categoricamente às ações desenvolvidas pela insurreição colombiana e opinou que: "Às FARCs deveria dar-se o mesmo tratamento que à Al-Qaeda" (El Espectador, 16/2/2003, Colômbia)25 25 . Foi tal o reconhecimento do apoio argentino à Colômbia que o presidente Uribe, que raramente assistia às cerimônias de posse de mandatários da região - por exemplo, não foi à investidura de Lula -, assistiu à posse do presidente Néstor Kirchner, em boa medida como retribuição ao presidente que saía, Eduardo Duhalde. . Éinteressante notar que alguns dias depois desta declaração, e pontuando as diferenças com a Argentina, o principal assessor de Lula em matéria de política exterior, Marco Aurélio Garcia, assinalou que "o Brasil não julgava as forças insurgentes colombianas devido a que, eventualmente, ver-se-ia impedido de ser um mediador em um possível acordo de paz" (El Tiempo, 19/2/2003, Colômbia).

Já de volta a Buenos Aires, o chanceler argentino buscou promover uma cúpula de ministros de Relações Exteriores do Grupo do Rio - que não chegou a realizar-se -, com o objetivo de adotar medidas destinadas a controlar e imobilizar recursos financeiros e de outra natureza que facilitavam a expansão regional do "narcoterrorismo". Esta frustrada tentativa constitui outro claro exemplo da lógica que orientou a política externa do país em relação a Washington durante o mandato de Duhalde. A convocatória ganhou força em solidariedade à Colômbia, mas também porque naquele momento se analisava no Senado dos Estados Unidos um projeto para aplicar sanções aos países que não colaborassem na iminente guerra contra o Iraque, da qual a Argentina já decidira não participar (Santoro, 2003:7).

Diante da crescente ofensiva de Washington contra o regime presidido por Saddam Hussein, o governo argentino tentou encontrar uma forma de equilíbrio que satisfizesse a opinião pública interna, contrária na sua maioria a uma intervenção militar, e, ao mesmo tempo, não frustrasse as expectativas e demandas de Washington. De uma postura inicial em que se especulou, inclusive, sobre a possibilidade de participação com tropas de paz tanto no Afeganistão como no Iraque, após o final do conflito bélico neste último, passou-se gradualmente à posição de não-participação na guerra de forma alguma, independentemente do fato de ela começar por uma decisão unilateral dos Estados Unidos ou no âmbito do Conselho de Segurança. Nesse percurso, o governo argentino passou por inumeráveis idas e vindas, embora sempre mantivesse uma vontade clara de colocar distância de atitudes que pudessem ser lidas em Washington como de neutralidade. Ante as consultas do Departamento de Estado acerca do tipo de ajuda que se poderia esperar da Argentina caso o conflito explodisse, o governo Duhalde fez a oferta de pôr à disposição um hospital de campanha modular da Força Aérea, assim como especialistas militares em desativação de minas e controle de armas químicas e biológicas. Esta oferta do governo argentino constituía uma forma de homologação implícita da guerra; se bem consistisse em uma ajuda qualificada como humanitária, era uma contribuição de especialistas militares em um cenário que dava como certa a operação militar dos Estados Unidos e a posterior necessidade de respaldo a essa presença (Morales Solá. 2003a:7; 2003b:27). Por seu lado, o chanceler Ruckauf sempre colocou mais ênfase nas suas críticas ao regime de Bagdá e nos perigos do terrorismo para a segurança internacional do que na necessidade de que a guerra fosse o resultado de uma decisão aprovada pelo Conselho de Segurança.

No balanço final, Washington considerou a posição da Argentina como positiva, em particular por duas razões: pelo tácito reconhecimento de que o conflito bélico era inexorável e pelo baixo nível de críticas. A Argentina não adotou uma postura de firme oposição à guerra, como fez o Brasil, que compartilhou a tese defendida pela França. Assim mesmo, poucos dias antes do início da guerra, opôs-se a uma proposta da diplomacia brasileira de levar a cabo uma reunião dos países da América do Sul destinada a conformar uma atitude comum diante do conflito. O argumento utilizado pela Argentina foi o de que a magnitude global do problema requeria a convocação de toda a América Latina, especialmente do México26 26 . Entrevista de Carlos Ruckauf: "No Inmiscuirse No Es Ser Neutral" ( La Nación, 23/3/2003). .

No último período de seu governo, e mais aliviado por alguns sinais de recuperação da economia argentina, o governo Duhalde foi aumentando o nível de oposição à intervenção militar estadunidense no Iraque, pensando mais no processo eleitoral interno do que nas relações do país com os Estados Unidos. A mesma lógica explica a mudança de voto em 2003 - da condenação à abstenção - na questão dos direitos humanos em Cuba27 27 . Em 2003, novamente, tratou-se do caso na CDH das Nações Unidas. Em 17/4/2003 uma resolução co-patrocinada por Costa Rica, Nicarágua, Peru e Uruguai solicitou que o governo cubano recebesse a representante pessoal do Alto Comissariado dos Direitos Humanos da ONU, para a inspeção do estado dos direitos humanos na ilha. A resolução foi aprovada com 24 votos a favor (pela América Latina somaram-se aos quatro favoráveis mencionados os governos da Guatemala, Paraguai, Chile e México), vinte contra (apenas Venezuela pela América Latina votou nesse sentido) e nove abstenções (Brasil e Argentina foram os dois votos regionais de abstenção). . Nesse momento, tudo aquilo que tivesse um tom anti-Bush era funcional para o duplo objetivo de que "seu" candidato, Néstor Kirchner, chegasse ao segundo turno e que Menem fosse derrotado na sua ambição presidencial. A mudança de voto, do mesmo modo que o aumento do nível de crítica em relação à guerra escolhida pelos Estados Unidos no Iraque marcavam sérias diferenças entre Kirchner e Menem. Este último, fiel ao realizado à frente do seu governo na década de 90, era partidário de seguir os Estados Unidos no Iraque e de manter o voto de condenação no caso de Cuba.

É certo também que o voto de abstenção teve algum sabor de vingança pela frieza da administração Bush em relação a Duhalde. Ao mesmo tempo, foi uma maneira de expressar a vontade argentina de acertar posições com o Brasil e de reconhecer a solidariedade de Brasília nos momentos mais dramáticos da crise28 28 . Cabe ressaltar que uma das primeiras medidas adotadas por Duhalde depois de assumir foi enviar José de la Sota - ex-embaixador no Brasil e atual governador de Córdoba - para que o Brasil aceitasse rapidamente o novo governo argentino, não duvidasse da sua legitimidade e o apoiasse em suas negociações com os organismos multilaterais de crédito. . Enquanto, a partir de Washington e de várias capitais européias, se fustigava Buenos Aires pelo mau manejo da economia, o governo de Fernando Henrique Cardoso sustentou que o FMI não podia ficar insensível à crise da Argentina, e que o Brasil continuaria confiando politicamente no seu principal sócio comercial no Mercosul. Mais adiante, já com Luís Inácio Lula da Silva no governo, foi tomando corpo a imagem do país vizinho como um "modelo alternativo de desenvolvimento" àquele posto em prática nos anos 90 e como a "principal carta" da inserção internacional, dando lugar, em plena campanha eleitoral, à visão do Brasil como "sócio político" em um projeto conjunto a ser realizado. Como presidente eleito, Lula viajou a Buenos Aires em dezembro de 2002, no que foi a sua primeira viagem ao exterior. Pouco depois, com Lula na Presidência, os dois presidentes, em 14/1/2003, tiveram uma reunião de trabalho em Brasília na qual expressaram a firme determinação de aprofundar a aliança estratégica bilateral, estendê-la a novos campos e transformá-la no motor de integração da América do Sul. Também ressaltaram a importância da coordenação de ambos os países nas negociações comerciais internacionais, em particular com a União Européia, no processo de conformação da ALCA29 29 . Comunicado de imprensa conjunto. Reunião de trabalho entre os presidentes Luís Inácio Lula da Silva e Eduardo Duhalde ( La Nación, 15/1/2003). . Ao finalizar a reunião, Duhalde definiu a cooperação entre os dois países como "inevitável" e "indispensável". A vontade do novo governo brasileiro de fortalecer o Mercosul e as relações com a Argentina ofereceram-lhe um importante espaço de ação internacional no limitado universo de suas opções externas. No entanto, a vontade proclamada pelos dois governos de dar um novo impulso à relação bilateral e ao Mercosul voltou a ficar como uma questão pendente, transformando-se em um dos principais desafios da política externa argentina para o futuro próximo. Desta vez, a bola passou para as mãos de Néstor Kirchner.

O Governo de Kirchner e as Relações com os Estados Unidos e o Brasil

Ao final do mandato de Duhalde, a Argentina atravessava uma conjuntura novamente propícia para rever, dentro dos limites óbvios impostos pelas circunstâncias internacionais e domésticas, sua política externa. A um ambiente externo marcado pela intervenção militar dos Estados Unidos no Iraque que violava a legalidade internacional somavam-se, no âmbito interno, o esgotamento do paradigma da aquiescência pragmática e o acesso ao governo de um novo presidente com uma visão de mundo e um estilo de gestão particulares que eram, nesse momento, desconhecidos da grande maioria dos argentinos.

Este último aspecto merece uma atenção especial tendo em vista nossos objetivos. Os dois pontos de referência principais do presidente Kirchner são a experiência frustrada de retorno do peronismo ao governo da Argentina nos anos 70 e a experiência peronista dos 90, sob a liderança de Menem, considerado pelo atual presidente nefasto para o país (ver, especialmente, Natanson, 2004:12; Tokatlian, 2004). Por uma questão de geração, as suas primeiras vivências políticas correspondem à década de 70, quando vivenciou, de maneira encadeada, as lutas que levaram ao retorno de Perón ao país, o triênio peronista (1973-1976), a gradual eclipse da "burguesia nacional", as atrocidades e desventuras da última ditadura militar (1976-1983) e o contraditório papel dos Estados Unidos em relação à Argentina. Os Estados Unidos, durante a administração Ford, tinham visto com bons olhos o golpe de Estado de 1976, mas pouco depois desenvolveriam, desde o início do governo de JimmyCarter em janeiro de 1977, uma ativa política em defesa dos direitos humanos. A busca de Kirchner por uma estrita subordinação dos militares ao poder civil, seu forte compromisso em favor dos direitos humanos, a expectativa de regenerar, a partir de um Estado mais autônomo, uma nova "burguesia nacional" e a vontade de dar novo curso às relações com os Estados Unidos inserem-se na lógica daquela experiência dos 70 e da leitura que dela faria três décadas depois.

Por seu lado, a derrocada socioeconômica de finais dos 90, que terminaria com a crise de 2001, trouxe novos elementos para o universo político íntimo do presidente. Sua disposição de combater alguns enclaves de corrupção, suas críticas ao receituário neoliberal patrocinado pelo FMI, sua inclinação para negociar duramente com certos setores internos (empresas privatizadas) e externos (possuidores de bônus do default argentino) e sua vontade de fortalecer vínculos com a América Latina e de aproximar-se de Cuba obedecem, em grande medida, à racionalidade de buscar diferenciar-se do legado menemista, seu contexto vivencial mais próximo no tempo.

Quanto ao estilo da sua gestão - particularmente no que diz respeito ao campo internacional -, dois aspectos prevaleceram durante o primeiro ano de seu governo: o uso da política externa com objetivos de política interna e o manejo pessoal da primeira. No primeiro caso, Kirchner apelou para questões de ordem internacional com o objetivo de fortalecer sua débil legitimidade inicial e, com isso, ampliar os espaços de governabilidade. Assim, conteúdo e estilo de política externa devem ser lidos, em boa medida, à luz da primazia que dedica às questões da política interna. O exemplo mais claro é sua postura em face dos organismos multilaterais de crédito e credores privados, em que combina a firmeza dos argumentos com um discurso contestatório com algum sabor dos 70. Ao mesmo tempo, Kirchner foi assumindo um perfil bastante claro nos principais assuntos de política externa: a não-realização de exercícios militares conjuntos entre a Argentina e os Estados Unidos pela sua negativa em conceder imunidade funcional ao pessoal militar estadunidense; controle e redação das condições específicas do acordo conseguido com o FMI em setembro de 2001; os vaivéns iniciais das relações entre Buenos Aires e Brasília, bastante influenciados por conjecturas e percepções pessoais; o veto direto - ao fim, ineficaz - para que o ex-ministro da Economia da Aliança, José Luis Machinea, não fosse designado para comandar a CEPAL; e, finalmente, o anúncio de que assumiria diretamente o manejo das relações com os Estados Unidos.

O mapa cognitivo do presidente e o seu estilo de gestão, no contexto pós-crise argentina, adquirem particular relevância para a análise das relações da Argentina com os Estados Unidos e o Brasil, apesar de não se traduzirem ainda em uma estratégia definida de política externa. No primeiro caso, é claro que não voltará a submissão a Washington, mas não será tampouco uma estratégia de ruptura. Antes de cumprir dois meses de gestão, Kirchner viajou até a capital dos Estados Unidos, em julho de 2003, para um breve encontro solicitado pelo presidente George W. Bush. Embora se tivesse tratado de uma visita protocolar de conhecimento mútuo, a questão da dívida externa da Argentina dominou as conversas. O encontro corroborou o interesse do Executivo estadunidense em respaldar de forma mais explícita as negociações entre a Argentina e os organismos multilaterais de crédito (ver Laudonia, 2003; Baron, 2003; Rosales, 2003a). Não apenas se havia produzido uma mudança de governo em Buenos Aires que requeria uma nova quota de oxigênio vinda de fora, senão que Washington não podia continuar desconhecendo o torvelinho sociopolítico que sacudia a região, de norte a sul da América do Sul. Ignorar uma Argentina que tinha preservado a democracia em horas tão difíceis, seria um péssimo sinal diplomático com respeito ao conjunto da América Latina. Por seu lado, o mandatário argentino podia não compartilhar a orientação política da administração Bush, mas não estava em condições de começar sua gestão sem um acordo com os organismos multilaterais de crédito; um default com estes organismos teria levado a Argentina a aprofundar tanto seu isolamento internacional como a crise interna. Uma lógica pragmática mútua, mais do que uma visão de princípios ou ideológica, de um lado e de outro, marcou o primeiro diálogo entre Kirchner e Bush.

Este carimbo pragmático inicial caracterizou o primeiro ano das relações bilaterais desses países. Apesar do mal-estar do Pentágono e do Departamento de Estado pela não-realização, em outubro de 2003, de exercícios militares conjuntos; apesar das críticas do subsecretário de Estado, Roger Noriega, em janeiro de 2004, à decisão argentina de abster-se novamente, em abril de 2004, de censura a Cuba em matéria de direitos humanos no seio da CDH da ONU e de posturas diferentes, no plano da segurança regional, nas negociações comerciais no marco da ALCA e da Rodada de Doha; e apesar da situação política da Bolívia e da Venezuela, a Argentina e os Estados Unidos preservaram um espaço de diálogo e de aproximação que se centrou nos aspectos financeiros (ver Gallo, 2003; Longoni; 2003; Rosales, 2003b; Santoro, 2004; Elias, 2003; Blanck, 2004). Os Estados Unidos combinaram uma mistura de apoio e pressão que se manifestou claramente a partir de 2004. De fato, o governo Bush exerceu um papel moderador em face dos países do G-7 que eram mais duros com a Argentina para facilitar as negociações com o FMI, ao mesmo tempo que exerceu pressões fortes e crescentes na defesa dos portadores de bônus privados estadunidenses30 30 . É bom notar que os 9,1% dos US$ 87,050 bilhões de bônus argentinos em default estão em mãos de estadunidenses - a quarta porcentagem depois da própria Argentina, Itália e Suíça. .

Por seu lado, as relações entre a Argentina e o Brasil transitaram de um conjunto de desencontros iniciais que as imobilizaram até uma série de avanços importantes que lhes imprimiram uma nova força. Os primeiros meses do mandato Kirchner caracterizaram-se por constantes referências à importância do Brasil para a política externa argentina. No entanto, muito rapidamente, os principais funcionários encarregados da política externa assinalaram que enquanto o país vizinho desenhava e executava a sua política internacional em "chave sul-americana" - seu espaço primeiro e natural de projeção -, a Argentina desejava e pretendia um olhar mais "latino-americano". A diferente valorização de uma e outra unidade geopolítica e econômica - América do Sul para o Brasil e América Latina para a Argentina - voltava a expressar os temores argentinos de uma eventual hegemonia brasileira na América do Sul31 31 . A idéia de vincular-se ao conjunto da América Latina implica, para aqueles que a sustentam, aproximar-se mais do México - um aliado confiável dos Estados Unidos - com o objetivo de contrabalançar o poder do Brasil, e sempre deixa aberta a possibilidade da "deserção" - para entrar em acordo, por exemplo, com algum tipo de compromisso comercial bilateral com os Estados Unidos. Embora de difícil realização no momento atual, essa visão tem muito peso na Chancelaria argentina e está expressa no discurso oficial do governo Kirchner em matéria de política exterior. . Por outro lado, as referências ao Brasil ocorriam no âmbito de um franco estancamento do Mercosul: as promessas repetidas do seu relançamento "político" não podiam deixar transparecer que, em termos de seu significado econômico, o mecanismo mostrava sinais manifestos de esgotamento, devido à falta de aprofundamento e de institucionalização. Portanto, durante o primeiro trimestre do governo Kirchner, o Brasil foi mais um aliado retórico do que uma contrapartida transcendental de um projeto a ser realizado em comum.

No segundo período de 2003, as flutuações entre Buenos Aires e Brasília foram notórias. Por um lado, o governo interpretou que o Brasil - Lula, em especial - tinha guardado um inquietante silêncio ante o acordo obtido em setembro pela Argentina com o FMI, que contemplava metas fiscais menos onerosas do que as acordadas por Brasília com esse organismo. Por outro, e em sentido oposto, durante a visita oficial de Lula à Argentina no mês de outubro, os dois mandatários selaram o assim chamado "Consenso de Buenos Aires", que convoca, entre outros aspectos importantes, à intensificação da unidade e à integração no âmbito regional, à recusa ao exercício unilateral de poder no campo internacional e à implementação de políticas nacionais ativas em favor do emprego e da produção (ver Hirst, 2003; Morales Solá, 2003c; Colonia, 2003).

Apesar desse compromisso, as perspectivas estratégicas desiguais voltaram a aflorar durante a única entrevista simultânea concedida pelos dois mandatários. Nessa ocasião, Lula assinalou:

"Estamos dando um passo definitivo para consolidar o Mercosul e mostrar ao mundo que existem outras alternativas afora a dependência ao grupo de países ricos que agem sempre como se nós fôssemos de segunda categoria. A Argentina e o Brasil precisam se relacionar com os Estados Unidos e a Europa, mas temos muito, mas muito mais, para resolver entre nós mesmos. Com a importância política e econômica que temos, podemos dar o exemplo, e incentivar a que outros países se voltem para a América do Sul e olhem menos para ultramar... Por isso, a prioridade da minha política externa é a integração da América do Sul, e, dentro dela, a nossa relação com a Argentina, dada sua importância".

A resposta de Kirchner à mesma pergunta foi:

"Apostamos fortemente na construção bilateral, na construção do Mercosul como um bloco que não apenas deve ser econômico, senão que político, como marco que encerra o ponto de inflexão dos novos tempos. Esse Mercosul deverá necessariamente se abrir aos países andinos, precisamos construir uma convergência muito forte na América Latina que, somada às relações com o México, nos permita gerar um bloco com uma voz possante, que possa negociar seriamente, inserir-nos com seriedade no mundo" (ver Verbitsky, 2003:12).

No início de 2004, a proximidade entre Argentina e Brasil parecia adquirir um sentido mais prático e urgente, com o impulso de uma complexa combinação de fatores internos e externos. Sem dúvida, o fator principal da aproximação bilateral foi o impacto negativo da questão da dívida externa para a realização dos projetos reformistas promovidos por ambos os governos. O governo argentino precisava de mais respaldo externo - que não conseguia obter facilmente nos países do G-7 - para poder legitimar uma espécie de modelo de "novo tratamento" entre o FMI e os países mais endividados, e também aumentar sua margem de manobra, em um momento em que iria confrontar-se com um horizonte de duras negociações com o FMI e com os portadores de bônus privados. Assim, o apoio do governo brasileiro às posições críticas sustentadas pela Argentina diante dos organismos multilaterais de crédito foi percebido pelo governo Kirchner como fundamental para dotá-las de maior legitimidade e credibilidade externas.

Por seu lado, o Brasil de Lula não conseguiu mostrar, depois de um ano de gestão, crescimento econômico algum (o PIB retrocedeu em 0,2% em 2003) nem ganhos concretos na sua delicada agenda social interna. Além disso, o presidente brasileiro foi perdendo apoio doméstico junto ao empresariado, assim como em setores da esquerda e nos grupos progressistas que o levaram ao poder, inclusive dentro do seu próprio partido, o Partido dos Trabalhadores. Para piorar o quadro, precisou enfrentar a eclosão de casos de corrupção de funcionários próximos, que derivou em uma maior perda de popularidade e no avanço político da oposição de direita. Lula conseguiu mostrar uma estatura diplomática crescente de seu país no campo político e em assuntos cuja evolução exige tempo e consenso (por exemplo, a reforma do Conselho de Segurança da ONU e a obtenção de um assento permanente para o Brasil), mas poucos progressos, quando não retrocessos, nos campos econômico e social. A necessidade de abrandar a sua política de ajuste para investir em infra-estrutura e ação social, arriscando-se a atravessar outro ano sem crescimento e com indicadores sociais ainda piores, levou-o a aliar-se à Argentina de Kirchner, com o objetivo de recuperar parte de seu discurso de centro-esquerda, que estava sepultado depois de quinze meses de política econômica ortodoxa (ver Esnal, 2004:8). Segundo avaliação corrente, necessidades convergentes dos dois governos explicam a aproximação prática e conceitual expressa na Declaração Conjunta sobre Cooperação para o Crescimento com Eqüidade assinada no Rio de Janeiro, por ambos os presidentes, em 16/3/2004. Neste documento, e em tom moderado, Kirchner e Lula concordam, entre outros aspectos, em "conduzir as negociações com os organismos multilaterais de crédito, garantindo um superávit primário e outras medidas de política econômica, que não comprometam o crescimento, e que garantam a continuidade da dívida, de tal modo que se preserve inclusive a inversão em infra-estrutura"32 32 . Declaración Conjunta sobre Cooperación para el Crecimiento con Equidad. Ministério de Relações Exteriores, Comercio Internacional y Culto. Rio de Janeiro, 16/3/2004. Manuscrito. .

Com toda certeza, importantes fatores externos também contribuíram para facilitar a maior coincidência apontada: a necessidade de unificar posições nas negociações com a União Européia e na construção da ALCA; a maior presença militar dos Estados Unidos na América Latina, por intermédio dos Forward Operation Locations, em El Salvador, Curaçao e Equador, acompanhado de uma pressão crescente para que se envolva os militares na região em âmbitos estritamente policiais; o aumento do torvelinho político e militar nos Andes (a crise político-institucional na Venezuela, a persistência do conflito armado na Colômbia e o seu impacto regional, a instabilidade institucional na Bolívia, Equador e Peru), que requer cada vez mais uma ação diplomática conjunta argentino-brasileira; e o reaparecimento dos conflitos limítrofes na América do Sul (Colômbia-Venezuela, Chile-Bolívia) e seus potenciais efeitos desestabilizadores para a área na sua totalidade.

Até aqui, é inegável que desde o Consenso de Buenos Aires, em 16/10/2003, até a Ata de Copacabana, em 16/3/2004, os dois governos deram passos alentadores. No terreno financeiro, Kirchner e Lula decidiram coordenar mais e melhor os parâmetros que irão nortear as relações dos dois países com o FMI. Não se trata da criação de um "clube de devedores", mas da concretização de um "guarda-chuva conceitual" comum para as respectivas negociações com o FMI. No campo das negociações governamentais, Brasília e Buenos Aires fortaleceram seu compromisso de atuar em conjunto, tanto no âmbito da Rodada de Doha como com a União Européia e no espaço hemisférico. No contexto diplomático multilateral, os dois governos reafirmaram o voto de abstenção no tratamento da questão dos direitos humanos em Cuba no seio da CDH das Nações Unidas. Mesmo assim, no marco da resolução 1529 do Conselho de Segurança da ONU, o Brasil (com 1.100 efetivos) e a Argentina (com 200 efetivos) comprometeram-se com o desenvolvimento de uma força de estabilização no Haiti, depois da confusa renúncia do presidente Jean-Bertrand Aristide. Finalmente, na frente diplomática bilateral ficou estabelecida a presença de um diplomata argentino na representação do Brasil no Conselho de Segurança da ONU em 2004, e fizeram planos para se levar a cabo duas experiências de consulados conjuntos em Hamburgo e em Boston, na sede dos consulados da Argentina e do Brasil, respectivamente.

Conclusões

Por razões diferentes mas complementares, Buenos Aires, Brasília e Washington foram desenvolvendo, após a crise de 2001, uma relação triangular bastante sensata que se distancia da sua dinâmica histórica tradicional. Como vimos no nosso trabalho, a lenta ascensão dos Estados Unidos de potência hemisférica (entre finais do século XIX e começo do XX) à superpotência mundial (após a Segunda Guerra Mundial) e a grande pólo solitário (após o final da Guerra Fria), a baixa densidade de vínculos entre as três partes, a oposição argentino-estadunidense até as primeiras três décadas do século XX e a persistente rivalidade argentino-brasileira durante boa parte do século passado, impossibilitaram uma relação triangular harmoniosa. De sua parte, Buenos Aires e Brasília optaram, em diferentes circunstâncias históricas, por uma submissão explícita a Washington (Brasil, entre os anos 30 e início dos 70 e Argentina, durante os 90), mas jamais se deu uma convergência efetiva entre ambos para unir posições em face dos Estados Unidos. Como "wing players", Argentina e Brasil ficaram prisioneiros das próprias disputas e da estratégia de divide et impera de Washington, em vez de transformarem os comportamentos bilaterais e coordenarem suas respectivas políticas com seu jogador-pivô, os Estados Unidos. O mais errático dos três atores foi Buenos Aires, variando muito mais sua orientação com os Estados Unidos e com o Brasil do que estes o fizeram em relação à Argentina.

Neste novo momento histórico, o desequilíbrio de forças entre os três países pode ter induzido, em uma situação de grande fragilidade da Argentina, à implementação de políticas de poder, ao desinteresse sobre o destino de Buenos Aires por parte de Washington e de Brasília ou, mais ainda, ao abandono. No entanto, uma surpreendente mistura de pragmatismo e prudência nos três vértices do triângulo permitiu a junção de políticas em torno do que poderíamos denominar de uma estratégia de controle dos prejuízos. O governo Bush, se bem que tivesse adotado uma posição de relativa indiferença em relação ao país no início da crise, sempre evitou que as diferentes políticas bilaterais contaminassem o processo de negociação econômica da Argentina com os organismos multilaterais de crédito, e acabou por desempenhar um papel importante para que o país pudesse fechar os acordos com o FMI, primeiro com Duhalde e logo com Kirchner. O Brasil, com os olhos voltados para sua própria imagem no espelho, e para a crítica situação político-econômica de todos os países vizinhos, procurou sempre que fosse entendida a dimensão política da crise argentina e, em especial, suas conseqüências para a estabilidade democrática na região. Com essa leitura, contribuiu para que os membros do G-7 adotassem uma postura mais flexível com respeito à Argentina.

De agora em diante, o principal desafio é passar do controle de prejuízos a políticas definidas em uma chave positiva, que permitam uma maior harmonia triangular. Para tanto, faz-se necessária uma mudança conceitual de envergadura por parte de todos os protagonistas, em particular do principal poder dentro do triângulo, os Estados Unidos. Este país deveria entender e aceitar que uma relação argentino-brasileira fortalecida poderá ser funcional para seus interesses de segurança a longo prazo na América do Sul. Brasil e Argentina podem jogar um papel-chave na resolução de numerosos problemas na região (em especial, no mundo andino) e para garantir que a América do Sul seja uma zona livre de armas de destruição em massa e não contaminada pelo desenvolvimento do terrorismo internacional.

Simultaneamente, Argentina e Brasil não devem construir seus vínculos bilaterais baseados na oposição aos Estados Unidos. Além de anacrônica, tal definição não só impediria a união dos dois países, senão que acabaria por dividi-los. O sentido estratégico profundo de uma sociedade argentino-brasileira resume-se em quatro aspectos fundamentais: a formação de uma zona de paz, a consolidação da democracia, a constituição de um espaço econômico comum e a construção de "massa crítica" para fortalecer a capacidade de negociação dos dois países diante do mundo. Atualmente, existem poderosas forças motoras, tanto de natureza positiva (democratização, integração, superação de hipótese de conflito, identificação positiva com o outro, predomínio de visões cooperativas) como negativa (aumento da sensibilidade e da vulnerabilidade externa dos dois países), que favorecem o desenvolvimento de um projeto estratégico comum. É verdade que essa tarefa deverá se realizar em um contexto em que a posição relativa de ambos os países se alterou significativamente, em detrimento da Argentina. No entanto, em lugar de despertar prevenções sobre uma nova forma de dominação, essa situação deveria ser outra das principais forças motoras que impulsionem a Argentina, sem ingenuidades de espécie alguma, à construção de uma relação de amizade com o Brasil. Como mostra o caso europeu, as assimetrias de poder entre países não impedem a execução de um projeto estratégico comum. Obrigam, sim, aos mais poderosos a se auto-restringirem e a darem mostras claras e persistentes de vocação comunitária. A experiência dos 90, assim como a vivida após a crise argentina de 2001, nos ensinam que falta muito ainda para que sejam definitivamente superados os receios e as desconfianças mútuas. No entanto, os recentes avanços bilaterais aqui mencionados, se bem motivados por razões práticas mais do que por convicção, devem ser seguidos com atenção, visto que podem ocasionar uma mudança qualitativa nas relações argentino-brasileiras, no sentido de uma amizade de um novo tipo.

Entre as principais tarefas pendentes, o governo Kirchner precisa definir uma nova e consistente estratégia de política externa que substitua o paradigma da aquiescência pragmática. A Argentina pós-crise, enfraquecida internamente e muito vulnerável em relação ao mundo, precisa de amigos e de aliados; é bastante improvável que tal cenário crítico se resolva mediante o isolamento ou a confrontação. Os casos da Alemanha e do Japão, depois da Segunda Guerra Mundial, e o da Europa Oriental, no final da Guerra Fria, são eloqüentes quanto às conseqüências de se seguir um ou outro caminho: uma reinserção positiva realizada por atores com maior poder relativo ou um ensimesmamento negativo marcado pelo abandono por parte dos principais países regionais e mundiais. Independentemente do perfil específico que ao fim e ao cabo se adote em matéria de política externa, a esta altura duas coisas parecem claras: que Kirchner buscará um novo vínculo internacional, no qual não haverá lugar para o isolamento ou para a confrontação ideológica com os maiores centros de poder, e também estabelecer boas relações com o Brasil e com os Estados Unidos, embora de natureza distinta. No primeiro caso, trata-se de dar conteúdo à tão anunciada aliança estratégica bilateral; no segundo, de construir um vínculo positivo e cordial que se sustente na defesa dos interesses específicos. Os vínculos com esses dois países não esgotam o amplo universo dos vínculos externos da Argentina, mas constituem a base principal de toda estratégia de política externa bem-sucedida.

Notas

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  • VERBITSKY, Horacio. (2003), "Mucho Más que Dos". Página 12, 19 de outubro.
  • 1
    . Seguindo a definição de Dittmer, segundo a qual "um triângulo estratégico pode ser compreendido como um tipo de jogo transacional entre três jogadores", a relação entre Argentina, Brasil e Estados Unidos constituiu-se como um típico triângulo estratégico. De acordo com o mesmo autor, "três diferentes padrões sistêmicos de relações de troca podem ser concebidos: o 'ménage à trois', composto por amizades simétricas entre os três jogadores; o triângulo romântico, caracterizado pela amizade entre o jogador-pivô e os dois jogadores-alas e inimizade entre estes dois últimos; e o casamento estável, formado por relações de amizade entre dois dos jogadores e relações de inimizade entre cada um deles e o terceiro" (Dittmer, 1981:485-489).
  • 2
    . Para uma análise mais recente das relações da Argentina com os outros dois lados do triângulo, ver Hirst e Russell (2001); Norden e Russell (2002); Russell e Tokatlian (2003).
  • 3
    . Em fins do século XIX, o Brasil substituiu o eixo das relações especiais com Londres por Washington. Os Estados Unidos constituíram-se no seu principal mercado e, ao mesmo tempo, no seu primeiro provedor e financista. Secundariamente, a busca de uma "relação especial" com os Estados Unidos tentou neutralizar o poderio militar argentino e as ameaças ao Brasil que pudessem surgir de uma coalizão sub-regional liderada pela Argentina. Essa política foi vista desse modo em Buenos Aires; mais ainda, muitos dirigentes a viram como a primeira tentativa de distribuição de influências no hemisfério.
  • 4
    . Segundo explica a diretoria de uma revista que iria ter muita influência, nos anos 70, na configuração das visões sobre o Brasil: "entende-se por 'país-chave' aquele que, dentro de uma região determinada, pode servir de pivô para a política de poder de uma grande potência, a qual lhe outorga prioridade nos seus programas de ajuda e assistência econômica, militar, etc." (
    Dirección de Estrategia, 1970:49).
  • 5
    . Denominamos este paradigma de "globalista" porque a partir de sua implementação a Argentina buscou uma ampla diversificação de vínculos externos, além de desenvolver, como país médio, um papel ativo nas negociações internacionais sobre temas políticos e econômicos de natureza global. O mesmo organizou-se a partir das seguintes premissas: não-alinhamento aos Estados Unidos que nunca implicou eqüidistância entre os blocos; impulso à integração latino-americana a partir de uma perspectiva gradual e assentada no reconhecimento da grande diversidade de situações econômicas nacionais; posição ativa nos foros internacionais em defesa da paz, do desarmamento e da distensão Leste-Oeste; recusa de organismos e regimes internacionais que procuram congelar a distribuição do poder mundial, particularmente no que tange ao desenvolvimento de tecnologias sensíveis; oposição ao estabelecimento de organismos supranacionais que restrinjam a autonomia e o desenvolvimento argentinos; execução de uma estratégia de desenvolvimento orientada para a substituição de importações nos planos nacional e regional como via principal para superar as vulnerabilidades do modelo tradicional baseado nas exportações primárias; introdução de reformas no sistema econômico e financeiro internacional que contemplem os interesses dos países em desenvolvimento; e diversificação dos sócios comerciais externos sem barreiras ideológicas.
  • 6
    . O extravasamento para um maior alinhamento ou confrontação com Washington foi efêmero, dado que obedeceu a circunstâncias de momento, tanto internas como internacionais, ou foi promovido por grupos que nunca alcançaram suficiente poder para instalar, à direita e à esquerda do esquema dominante, fórmulas alternativas.
  • 7
    . O passo mais importante, dirigido a modificar o sinal da relação bilateral, para transitar da rivalidade pela influência sub-regional à cooperação, foi a assinatura dos Acordos de Uruguaiana, em 22 de abril de 1961, pelos presidentes Arturo Frondizi e Jânio Quadros. Seu principal objetivo era promover uma ação internacional conjunta dos países "em função da condição sul-americana que lhes é comum" (ver Lanús, 1984:298).
  • 8
    . O tema principal que dividiu os dois países nos anos 60 e 70 foi a utilização do potencial energético dos rios de uso comum - mais especificamente, a disputa sobre a central hidrelétrica que seria construída finalmente em Itaipu -, o que ocasionou uma séria disputa que transcendeu ao plano bilateral.
  • 9
    . É importante notar que tanto o conflito militar argentino com o Chile, ocorrido em fins de 1978, como o desencadeado por motivo da Guerra das Malvinas ocorreram se descartando a possibilidade de o Brasil ter algum tipo de participação hostil em relação à Argentina (ver Fraga, 1999:272).
  • 10
    . Suas premissas foram as seguintes: 1) submissão aos interesses políticos e estratégicos dos Estados Unidos, tanto globais como regionais; 2) definição do interesse nacional em termos econômicos; 3) participação ativa na criação e no fortalecimento de regimes internacionais em sintonia com a posição dos países ocidentais desenvolvidos, particularmente na área da segurança; 4) apoio à integração econômica no marco do regionalismo aberto; 5) execução de uma estratégia de desenvolvimento econômico ordenada em torno dos alinhamentos do assim chamado "Consenso de Washington"; 6) confiança em que as forças do mercado, mais do que o Estado, garantiriam uma nova e bem-sucedida inserção internacional para a Argentina; e 7) aceitação das regras básicas da ordem econômica e financeira internacional.
  • 11
    . "Bush Prometió 'Relaciones Excelentes'. Envió una Carta à Rodríguez Saá".
    La Nación, 24/12/2001, p. 9.
  • 12
    . "Respaldo de EE.UU. al Gobierno de Rodríguez Saá".
    Clarín, 28/12/2001, p. 4
  • 13
    . Os organismos multilaterais de crédito são os segundos maiores credores da Argentina. Com quase 30% do total da dívida pública concentrado nos ditos organismos, era impensável encarar o problema da dívida sem passar previamente pelo FMI.
  • 14
    . Expressamente, em uma carta dirigida ao presidente Bush, em 25/1/2002, Duhalde diz, após reafirmar o caráter de sócios de ambos os países e a condição de aliada extra-OTAN da Argentina, o seguinte: "Meu governo está firmemente comprometido a deixar de lado, o mais rapidamente possível, medidas transitórias, de caráter dirigista, que herdamos ou nos vimos obrigados a tomar. Insisto, as presentes medidas são apenas circunstanciais e serão abandonadas logo que possamos normalizar a situação econômica e financeira" (ver
    Clarín, 26/1/2002, p. 5).
  • 15
    . Depois de ter apoiado importantes pacotes de ajuda à Argentina, por via dos organismos multilaterais de crédito, o governo dos Estados Unidos decidiu, em dezembro de 2001, "baixar a crista" do país não apoiando a liberação por parte do FMI de um desembolso previamente combinado de US$ 1,264 bilhão.
  • 16
    . "La Llegada de Paul O'Neill" (
  • 17
    . Se bem que a Argentina tivesse perdido importância relativa para os Estados Unidos após os incidentes terroristas, do mesmo modo que o restante da América Latina, era muito improvável que tivesse recebido outro tratamento dos Estados Unidos se não houvesse ocorrido o 11 de setembro. Antes desse dia, a administração Bush já estava preparada para aplicar medidas exemplares ao país, por causa de seus reiterados descumprimentos.
  • 18
    . O acordo, finalmente aprovado em 25/1/2003, teve duração de apenas oito meses. Por seu intermédio, a Argentina conseguiu postergar os pagamentos que tinha que fazer entre janeiro e agosto daquele ano ao FMI, US$ 11 bilhões, e de US$ 4,4 bilhões ao BID e ao Banco Mundial. O convênio também contabilizava US$ 5,112 bilhões de vencimentos já reprogramados em 2002, com o qual a soma final elevou-se para US$16,112 bilhões.
  • 19
    . Um dos parágrafos sobressalentes do comunicado diz o seguinte: "A implementação de um efetivo programa de transição poderá construir e fortalecer o progresso que as autoridades argentinas estão fazendo para estabilizar a situação econômica e financeira do país" (
    La Nación, 17/1/2003, p. 9).
  • 20
    . Ver "La Cámara Baja se Sumó al Reclamos del Senado" (
  • 21
    . Ver Resolución de la Comisión de Derechos Humanos 2002/18, Alto Comisionado de las Naciones Unidas para los Derechos Humanos.
  • 22
    . Ver Resolución de la Comisión de Derechos Humanos 2002/18, Alto Comisionado de las Naciones Unidas para los Derechos Humanos.
  • 23
    . Cabe ressaltar que, no período 2002/2003, Buenos Aires não se pronunciou contra o Plano Colômbia nem contra a posterior iniciativa andina de Washington que regionalizava, de fato, a "guerra contra as drogas".
  • 24
    . O catalisador desse encontro foi o atentado das FARCs ao clube El Nogal (35 mortos e 165 feridos), no centro de Bogotá, em 7 de fevereiro.
  • 25
    . Foi tal o reconhecimento do apoio argentino à Colômbia que o presidente Uribe, que raramente assistia às cerimônias de posse de mandatários da região - por exemplo, não foi à investidura de Lula -, assistiu à posse do presidente Néstor Kirchner, em boa medida como retribuição ao presidente que saía, Eduardo Duhalde.
  • 26
    . Entrevista de Carlos Ruckauf: "No Inmiscuirse No Es Ser Neutral" (
    La Nación, 23/3/2003).
  • 27
    . Em 2003, novamente, tratou-se do caso na CDH das Nações Unidas. Em 17/4/2003 uma resolução co-patrocinada por Costa Rica, Nicarágua, Peru e Uruguai solicitou que o governo cubano recebesse a representante pessoal do Alto Comissariado dos Direitos Humanos da ONU, para a inspeção do estado dos direitos humanos na ilha. A resolução foi aprovada com 24 votos a favor (pela América Latina somaram-se aos quatro favoráveis mencionados os governos da Guatemala, Paraguai, Chile e México), vinte contra (apenas Venezuela pela América Latina votou nesse sentido) e nove abstenções (Brasil e Argentina foram os dois votos regionais de abstenção).
  • 28
    . Cabe ressaltar que uma das primeiras medidas adotadas por Duhalde depois de assumir foi enviar José de la Sota - ex-embaixador no Brasil e atual governador de Córdoba - para que o Brasil aceitasse rapidamente o novo governo argentino, não duvidasse da sua legitimidade e o apoiasse em suas negociações com os organismos multilaterais de crédito.
  • 29
    . Comunicado de imprensa conjunto. Reunião de trabalho entre os presidentes Luís Inácio Lula da Silva e Eduardo Duhalde (
    La Nación, 15/1/2003).
  • 30
    . É bom notar que os 9,1% dos US$ 87,050 bilhões de bônus argentinos em
    default estão em mãos de estadunidenses - a quarta porcentagem depois da própria Argentina, Itália e Suíça.
  • 31
    . A idéia de vincular-se ao conjunto da América Latina implica, para aqueles que a sustentam, aproximar-se mais do México - um aliado confiável dos Estados Unidos - com o objetivo de contrabalançar o poder do Brasil, e sempre deixa aberta a possibilidade da "deserção" - para entrar em acordo, por exemplo, com algum tipo de compromisso comercial bilateral com os Estados Unidos. Embora de difícil realização no momento atual, essa visão tem muito peso na Chancelaria argentina e está expressa no discurso oficial do governo Kirchner em matéria de política exterior.
  • 32
    . Declaración Conjunta sobre Cooperación para el Crecimiento con Equidad. Ministério de Relações Exteriores, Comercio Internacional y Culto. Rio de Janeiro, 16/3/2004. Manuscrito.
  • *
    Tradução de Márcia Cavalcanti Ribas Vieira.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Set 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2004
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